Anotações sobre Johannes Brahms (Quarteto Op. 26) e Astor Piazzolla (Libertango)

Johannes Brahms (1833-1897): pequena biografia e Quarteto para Piano, Op. 26

Este Trio Nº 1, Op. 8, é uma comprovação de que Brahms nasceu pronto. É obra de um jovem compositor maduro. Como se não bastasse o trocadilho infame que o nome Brahms sugere a nós, brasileiros, ele era filho de um contrabaixista de Hamburgo que tocava em cervejarias… E, a partir dos dez anos de idade, o pequeno Johannes passou a trabalhar como pianista com seu pai, nas tabernas. Não sabemos se estas atividades foram nocivas à saúde do menino, sabemos apenas que ele, mais tarde, fez bom uso de seu conhecimento sobre o repertório popular alemão. Brahms teve apenas dois professores, ambos durante a infância e adolescência. Ainda muito jovem, ficou pronto para compor após estudar Bach, Mozart e Beethoven.

Começou a compor cedo e, antes de completar 20 anos, seu Scherzo opus 4 já tinha entusiasmado e revelado afinidades com Schumann, a quem Brahms ainda desconhecia. Foi visitar Schumann e então os fatos são mais conhecidos: primeiro, Schumann escreve em seu diário “Visita de Brahms, um gênio!”, depois publica artigo altamente elogioso ao compositor, fazendo com que o jovem Brahms tivesse a melhor publicidade que um artista pudesse desejar. Schumann o considerava um filho espiritual e a esposa de Schumann, Clara, chamava-o de seu “deus loiro”. Muitas hipóteses são possíveis sobre a relação entre Clara e Brahms, mas só uma coisa é certa: eles destruíram a maior parte das cartas que dizia respeito a ela. Porém, a versão de que houve um forte componente amoroso na relação entre os dois dá margem a muitas conjeturas e ficções.

O Quarteto para Piano é uma formação que envolve um piano e três outros instrumentos. Durante o período clássico, usualmente os outros instrumentos eram um trio de cordas – violino, viola e violoncelo. Para esta formação, Mozart, Schumann, Brahms, Mendelssohn, Schubert, Dvorak, Berwald e Fauré, entre outros, escreveram obras. Mais modernamente, Mahler e Messiaen utilizaram a mesma formação, sendo que o Quarteto para o Fim dos Tempos de Messiaen envolve piano, violino, cello e um clarinete em lugar da viola.

Brahms compôs três quartetos para piano. Curiosamente, o último foi o primeiro a ser escrito, nos anos de 1855-1856, quando o compositor tinha 22-23 anos e estava hospedado na casa dos Schumann. Só que ele foi revisado e estreado apenas trinta anos depois, em 1875. O segundo a ser escrito e primeiro a ser estreado é o que recebeu o Nº1, Op. 25 (escrito em 1861 – Brahms com 28 anos) e o terceiro é o Nº 2, Op. 26 (1862 – Brahms com 29 anos).

Foi um compositor originalíssimo. Suas obras representam uma tentativa única de fusão entre a expressividade romântica e as preocupações formais clássicas. O resultado é uma música de grande densidade e intensidade. Foi, em sua época, adotado pelos conservadores. Ele colaborou bastante com esta adoção ao assinar um manifesto contra a chamada escola neo-alemã de Liszt e Wagner. Porém… teve tal imerecido estigma quebrado pelo famoso ensaio de Schoenberg: “Brahms, o Progressista”.

Em seus últimos anos de vida, Brahms afirmava que suas maiores obras de câmara teriam sido as da juventude e citava nominalmente o Sexteto, Op. 18, e os Quartetos para Piano, Op. 25 e 26, como as suas preferidas.

Astor Piazzolla (1921-1992): pequena biografia e Libertango

Certamente, a maioria de nós não tem a mesma imagem do tango que os argentinos têm. Eu, por exemplo, comecei a ouvi Piazzolla nos anos 70 e fico surpreso de ainda ler, sempre associada a seu nome, a palavra revolução. Por exemplo, a página oficial de Astor Piazzolla na Internet, na parte de sua biografia, começa com letras garrafais: Astor Piazzolla: Cronología de una Revolución, ou seja, a briga com os tangueiros tradicionais ainda é importante e quando leio que os deuses de Piazzolla eram Stravinski, Bartók e o jazzista Stan Kenton e, mais, que ele estudou com Nadia Boulanger em Paris nos anos 50, começo a entender alguma coisa…

Piazzola nasceu em Mar Del Plata e sua família mudou-se para Nova Iorque quando tinha 3 anos. Foi lá, aos 8 anos de idade, que ganhou de seu pai o primeiro bandoneón e que, em 1933, começou a ter aulas de piano com o húngaro Bela Wilda, discípulo de Rachmaninov e do qual Piazzolla diria mais tarde “Com ele, aprendi a amar Bach”. Pouco depois – imaginem! – conheceu Carlos Gardel que se fez amigo da familia e com quem, ainda menino, tomou parte em uma cena do filme El Dia em que me quieras como um pequeno vendedor de jornais. Desnecessário dizer que esta cena possui um poderoso valor emblemático na história do tango.

Após voltar a Buenos Aires e de ter participado de vários grupos de tango – compondo e tocando -, Piazzolla, em 1953, estreou Buenos Aires, três movimentos sinfônicos. Quando a obra foi interpretada na Faculdade de Direito de Buenos Aires por Orquestra Sinfônica acompanhada de dois bandoneons, estourou o escândalo. O setor “culto” da platéia ficou indignado pela incorporação dos bandoneons à orquestra e os tradicionalistas o acusaram de não fazer mais tango e sim música erudita…

Se os eruditos foram rapidamente dobrados pela qualidade de sua música, o mesmo não se pode dizer dos tradicionalistas. Começou então uma revolução solitária contra os tangueiros ortodoxos que faziam-lhe críticas sistemáticas e impiedosas. Era quase um problema de estado. Os meios de comunicação e até alguns palcos negavam-se a receber Piazzolla. Ele não colaborava muito para a paz, mantendo sua postura e respondendo com ironias. Voltou então ao exterior onde foi recebido como autor de tangos e começa uma nova experiência, o tango-canção, com Amelita Baltar, sua mulher na época.

Na Argentina, a controvérsia sobre se sua música seria tango ou não seguiu seu curso, mas agora seu sucesso no exterior começa a gerar inveja entre a comunidade tangueira. Ele acena com a possibilidade de paz ao chamar sua música de “música contemporânea da cidade de Buenos Aires” mas continua provocando com sua vestimenta informal, com sua pose para tocar o bandoneón (tocava de pé, quando a tradição mandava segurar o fole sentado) e com suas respostas muito pouco reverentes.

Em 1974, Piazzolla gravou em Milão, dois de seus maiores discos, em ambos acompanhado por músicos italianos: o primeiro foi Libertango e o segundo Summit, em parceria com o saxofonista americano Gerry Mulligan. Curiosamente, estes trabalhos nasceram a partir da pressão de seu agente europeu, que lhe pedia para continuar compondo normalmente suas peças instrumentais, só que deixando-as mais curtas. O resultado levou Piazzolla a um amplo reconhecimento, deixando as querelas argentinas em segundo plano.

Libertango é o disco mais vendido de Piazzolla, seguido do segundo disco milanês. Ele gostava de criar neologismos com tango, tanto que escreveu “estudos tanguísticos”, produziu “tanguédias” e os nomes das obras de Libertango chamam-se Meditango, Violentango, Tristango, Undertango, etc.

A um Escritor que Amo

Quando o li pela primeira vez, foi por exigência do colégio. Tinha 14 anos e foi uma revelação. Nunca antes me deparara com nenhuma atividade que me interessasse de verdade. Não queria ser médico ou engenheiro – tinha eu 14 anos de idade… – mas poderia ser aquilo. Escreveria livros! A partir daquele, comecei a procurar outros do mesmo autor e notei como ele frequentemente citava músicas. Ora, meu pai era um homem de muitos discos, então era fácil conhecer as coisas de Beethoven, Mozart, Brahms e Bach de que ele falava. Depois, conheci Herbert Caro, que — amigo de Erico — fez-me uma relação verbal das músicas que ele ouvia repetidamente em casa, enquanto escrevia ou nos intervalos. Sabe-se hoje que Erico Verissimo deixou por escrito a recomendação de que, se quisessem lembrá-lo no futuro, não precisariam fazer grandes homenagens e discursos, bastaria reunir seus amigos e leitores “numa noite, qualquer noite” e tocar um “dos últimos quartetos de Beethoven, algumas sonatas de Mozart e qualquer coisa do velho Bach. E o resto – que diabo! – o resto é silêncio.”

Ontem à noite, fui a um concerto em homenagem aos 100 anos de nascimento de Erico Verissimo – ele nasceu em 17 de dezembro de 1905. Executou-se um quarteto de Mozart, outro de Beethoven e o esplêndido Op. 25 de Brahms. Foram apresentados por membros do Salzburg Chamber Soloists Ensemble. O fundador e regente desta orquestra é um portoalegrense chamado Lavard Skou-Larsen. Lavard é um violinista filho de mãe brasileira e pai dinamarquês e, mesmo morando desde os 4 anos em Viena, conhece a obra de Erico por influência de sua mãe. O concerto foi espetacular, com destaque para a violoncelista – e mulher de Lavard – Adriane Savytzky, para a pianista israelense Revital Hachamoff e para o entusiasmo, tesão e alegria de todos. Não houve discursos. Com fotos de Erico por todo o lado, ouvimos música. A empresa patrocinadora fez das suas apresentando um vídeo institucional, mas sabemos que sem patrocínio não tem concerto. Se todas as homenagens a Erico forem deste porte, teremos um grande final de ano em Porto Alegre.

Erico viajava muito ao exterior e costumava dizer aos que não conheciam Porto Alegre: “Moro numa cidade que tem Orquestra Sinfônica”. Para ele, isto demonstraria inequivocamente nosso tamanho, civilidade e humanismo. Tinha razão. Espero que a Orquestra Sinfônica de Porto Alegre não esqueça dele.

P.S.- Esta pequena crônica foi escrita em abril de 2005. Sim, a Ospa homenageou Erico no concerto do dia 13 de setembro de 2005. O programa não foi um horror, mas também não incluiu nada que o escritor especialmente admirasse: começou com a Abertura da ópera “Fosca” de Carlos Gomes, depois veio o Concerto para Piano e Orquestra em lá menor de Schumann e finalizou com a Sinfonia nº 4 em ré menor, também de Schumann. Poderiam ter lido trechos de seus livros, apresentando as músicas depois, mas como são uns béocios, perderam a oportunidade. Uma pena.

A Provocação de Glenn Gould

Quem é intolerante a respeito de música não faz jus a seu aparelho auditivo. E quem não tem capacidade de reflexão e descoberta não deveria usar a palavra “arte”.

Este post é dedicado ao autor da afirmativa acima, Tiago Casagrande, e a Gilberto Agostinho.

Antigamente, a música — mesmo a mais grandiosa — era utilizada como pano de fundo para jantares e comemorações. Para nós é difícil conceber isto, mas a música de Vivaldi, por exemplo, era ouvida sob o provavelmente alegre som de comensais italianos alcoolizados… Excetuando-se os saraus privados, o único local onde podia-se ouvir música em silêncio era nas igrejas. O ritual de deslocar-se até uma sala de concertos a fim de ouvir e ver silenciosamente a performance de orquestras, cantores e recitalistas é relativamente recente – começou há uns 150 anos. Sob uma forma mais barulhenta, a música popular aderiu a este ritual no século XX, porém hoje seus concertos visam mais a celebração do artista do que a finalidades “expressivas” ou “interpretativas”. Alguns radicais, como o extraordinário pianista canadense Glenn Gould (1932-1982) – cujas interpretações de Bach são até hoje difíceis de superar – trilharam o caminho inverso chegando ao extremo de abandonar suas carreiras de concertistas por não acreditarem mais que o formato de concertos e shows fosse aceitável quando comparado às vantagens oferecidas pelos estúdios de gravação. Não obstante o abandono dos holofotes e dos aplausos — em seu caso sempre entusiásticos –, Gould seguiu pianista e continuou produzindo discos cada vez melhores; mesmo sem ter marcado um mísero concerto em seus 27(!) últimos anos de vida.

Glenn Gould acreditava que a tecnologia oferecida pelos estúdios o colocava mais próximo de seu ideal artístico, que colocava a técnica pianística em segundo plano. Apesar de ser um instrumentista absolutamente preciso e hábil, a impressão mais forte que temos ao ouvi-lo não é a do virtuosismo, mas a da expressividade. Com ele, pode-se ouvir a música. Gould pensava que existia somente uma interpretação perfeita de cada obra e que esta só poderia ser obtida em estúdio com auxílio da tecnologia.

A verdade é que as gravações revolucionaram inteiramente nossa abordagem à música. Em menos de um século, passamos do sarau ao CD, fomos do amadorismo afetuoso e comovedor de nossas residências (que bom se pudéssemos voltar no tempo, não?) ao sampler. Vejamos como:

1877: Thomas Edison constrói e dá nome ao primeiro fonógrafo, um aparelho que registra e reproduz sons, utilizando um cilindro de parafina.

1888: O disco envernizado substitui o cilindro de Edison.

1925: Aparece o primeiro toca-discos elétrico, que funcionava com discos de 78 rpm. Um movimento – cheio de chiados – de uma sonata de Beethoven poderia ocupar vários discos… Meu pai tinha o Op. 111 do compositor alemão em 8 discos ou 16 lados de discos 78 rpm!

1940: O acetato e o verniz começam a ser substituídos pela fita magnética.

1948: Surge o LP, que podia receber até 30 minutos de música (uma sinfonia de Mozart!) de cada lado. Todos os discos de 78 rotações deveriam ser jogados fora. (Este é outro assunto…)

1958: O som estereofônico torna obsoletas as gravações anteriores, feitas em mono. Chegou a vez de jogar fora tudo o que não era estéreo.

1965: A fita cassete ameaça o disco, mas não o vence.

1979: Aparecem as fitas digitais (DAT) com som semelhante ao do CD; isto é, muito mais claras do que tudo o que já havia surgido antes.

1983: Chega o CD, mais uma vez desvalorizando todas as outras gravações realizadas em outros meios.

Gould falava em quão recente era a supostamente eterna tradição das salas de concerto e ridicularizava vários de seus aspectos. Por que haveria de ser necessário alguém atravessar a cidade — talvez com chuva ou sem a vestimenta adequada –, para ir sentar-se, com hora marcada, em cadeiras normalmente piores do que as de nossas casas, a fim de ouvir o mesmo velho e conhecido repertório tocado com acompanhamento de sussurros e tosses? Segundo ele, a única coisa que mantinha viva a tradição dos concertos era a oligarquia do mundo dos negócios musicais, acrescida do que Glenn Gould chamava de “uma afetuosa, ainda que às vezes frustrante, característica humana: a relutância em aceitar as conseqüências de uma nova tecnologia.”

Eu, modestamente, adoro ir a concertos. Amo aquela celebração dedicada aos músicos e à música; mas concordo com Gould em muitas coisas. É complicado sair de casa para ver, muitas vezes, concertos constrangedoramente inferiores àquilo que temos em nossa discoteca. Outra coisa triste é o conservadorismo do repertório apresentado: principalmente no Brasil, considera-se que estejamos eternamente “educando o público para a música erudita”. Com este argumento, as orquestras obtém o aval para apresentarem somente o mainstream do repertório. (Há as exceções, mas são raras…) Enquanto isto, o LP e o CD abriram um leque de opções que mudaram nosso conhecimento musical. Obras extraordinárias puderam voltar a fazer parte de nossa cultura, grande parte da música de câmara (música escrita para pequenos grupos de instrumentistas) e da música antiga, inadequadas para as grandes salas, voltaram através dos discos.

Houve uma importante alteração na maneira de tocar a música e, por conseguinte, de ouvi-la e compreendê-la. Uma vez que, no estúdio, os músicos não tinham mais de preencher os grandes espaços das salas de concerto com som, todo o processo de fazer música passou a colocar mais ênfase na clareza e beleza do fraseado. Os microfones que fizessem o resto! Os antigos instrumentos – de som mais fraco – retornaram à vida e surgiram as gravações com interpretações históricas, utilizando instrumentos de época, que respeitam a dinâmica e a forma original das obras.

Peço agora que vocês, meus prezados 7 leitores, leiam principalmente a segunda observação abaixo. Ao final dela, vocês entenderão o motivo pelo qual este texto acaba (ou não acaba) tão bruscamente.

Observação:

— A maior parte dos argumentos aqui colocados livremente estão sistematizados no livro de Otto Friedrich Glenn Gould: A Life and Variations.

Louco por Beethoven

Pois pensei ter ouvido as 32 Sonatas para Piano de Beethoven em dois dias. Foram mais de dez horas de música. Não indico tal empreitada a quem não conheça as sonatas, pois acho que a falta de convivência com elas pode causar uma massa de milhares de notas sem maior sentido. Por que fiz isso? Ora, Beethoven escreveu sonatas durante toda sua vida e pensei que seria interessante ouvir a evolução de sua linguagem através delas.

Foi uma boa idéia, não me arrependo. Para fazer a maratona, escolhi a versão do estupendo pianista ucraniano Emil Gilels (1916-1985), que gravou a quase integral para a Deutsche Grammophon. Fiz excelente escolha de pianista, mas… a versão de Gilels tem apenas 29 sonatas e as 15 Variações e Fuga sobre o tema de Prometeus da Eroica. Ele estava completando a série quando faleceu. Dei-me conta da incompletude da série quando notei a falta da transcedental Sonata Nº 32, Op. 111, sobre a qual tinha escrito aqui, referindo ao famoso capítulo 8 de Fausto de Mann. Para minha sorte, as outras duas sonatas faltantes acrescentariam pouco ao mosaico. Estão lá a nº 29, a imensa Hammerklavier — premiada pela revista Gramophone como a melhor gravação do ano de 1984 –, a Moonlight, a Patética, a Appassionata, a Waldstein, a 13ª e as últimas, com exceção da 32ª.

Gilels teve uma morte bem ao estilo da guerra fria. Já fora vítima de um ataque cardíaco em Amsterdam em 1981, mas o ocidente, auxiliado por Sviatoslav Richter, atribuiu sua morte a um médico incompetente do Hospital do Kremlin, que teria errado o conteúdo de uma injeção… Acredite quem quiser.

Para descrever a evolução do compositor através das sonatas seria preciso escrever um livro. Apesar de Beethoven ter morrido em 1827, sua evolução parece ultrapassar seu ano de morte: vem desde a virada do século XVIII para o XIX, impregnado que estava de seus contemporâneos de juventude: Haydn e Mozart; entra decidido no romantismo com obras fortes e grandiosas — expressão às vezes paroxística de um romantismo muito bem compreendido por sua época — e, paradoxalmente, avança em direção ao século XX, tornando-se modelo e norte para os compositores que o sucederam, ao menos até o início do século XX. “Entenderão depois”, dizia Beethoven a quem criticava esta fase “inacessível”. Torna-se um espantoso criador de arquiteturas que, se foram melhor apresentadas nos últimos quartetos, também o foram nas sonatas. Estamos diante de uma culminância da arte ocidental. Sim, o homem foi um monstro só comparável a Bach, deixando Brahms, Mozart e Bartók empatados no segundo lugar de meu panteão particular.

Gilels talvez tenha a melhor versão das sonatas. As clássicas versões de Arthur Schnabel e Wilhelm Kempf estão no mesmo patamar esta turma póstuma só é derrotada quando o italiano Maurizio Pollini — que não tem a integral delas — ataca as chamadas últimas sonatas e algumas românticas, como a Waldstein. Todos tem suas manias e eu não fujo à regra. Quando quero analisar um pianista tocando Beethoven, vou direto à Waldstein. Visceralmente romântica, radicalmente contrastante, obriga o pianista a passar da obsessão furiosa do primeiro movimento para a lenta solenidade do movimento central que dará lugar a um delicado final. Ninguém, mas ninguém supera Maurizio Pollini nestas variações assombrosas, talvez inconcebíveis, de humor. E a segunda melhor gravação que ouvi desta sonata vem de um irlandês que gravou uma importante integral das sonatas pela Telarc e do qual se fala muito pouco no Brasil: John O’Conor.

A Hammerklavier (Pianoforte) e a Op.111 de Pollini também são imbatíveis. Imaginem que Beethoven indicou que sua sonata Op. 106 tinha de ser tocada no piano, pois muitos ainda utilizavam o cravo!

Não conheço todas as integrais. Ouvi as citadas e mais a de Arrau, que não acrescenta muito. Vou parar por aqui porque me deu vontade de ouvir a Waldstein com o Pollini, ao vivo. Fui.

José Saramago, Gabriel García Márquez e Ela

Dois escritores de línguas latinas, dois velhos, um com 83 anos, outro com 77, os dois ganhadores do Prêmio Nobel, ambos mestres reconhecidos mundialmente e homens de esquerda, publicaram livros em 2005. Como se não bastasse, o tema de As Intermitências de Morte e de Memória de Minhas Putas Tristes é o mesmo: a morte. E são, apesar de se utilizarem de abordagens inteiramente diferentes, excelentes romances, vivos, belos e otimistas, apesar do realismo de ambos impedir quaisquer frases menos claras do que esta de García Márquez: “Faça o que você fizer, neste ano ou em cem, você estará morto para sempre e jamais”.

E aqui cessam as semelhanças, pois talvez a intenção e a expectativa dos dois sejam diversas. Se Saramago escreveu um de seus melhores livros, uma obra muito ambiciosa e original, García Márquez criou um delicado divertimento, uma obra menor – o que não é demérito nenhum -, que fica no terreno do onírico e do poético. Porém, paradoxalmente, o livro de Saramago, aquele que não é um “divertimento”, é engraçadíssimo e posso dizer que há anos não ria tanto lendo um livro.

(Gostaria de acalmar meus 7 leitores dizendo-lhes que não contarei as histórias dos livros. Na verdade, duvido que alguém NÃO tenha comparado estes dois livros ainda. Mas pesquisei no Google e não encontrei nada… Adiante!)

As Intermitências de Morte pode ser dividido em duas partes; a primeira é a mais cômica e descreve o momento em que a morte desiste de matar os habitantes de um pequeno país. Este passa a crer-se como protegido por Deus, há euforia e atmosfera de orgulho no ar, porém a governo e a Igreja incomodam-se muitíssimo. Depois a morte volta a atuar, mas de outra forma, e acaba tendo sérios problemas com um habitante, o qual não consegue absolutamente matar. O caráter da Morte de Saramago é bem diferente do que vemos usualmente em obras artísticas. Trata-se apenas de uma burocrata com, digamos, excessivo poder e que organiza seu trabalho em fichas. Às vezes, ela se atrapalha, estando bem distante daquela Morte imaginada por Bergman em O Sétimo Selo e que aceita jogar xadrez com sua vítima, demonstrando ser uma jogadora suja e implácavel. A segunda parte dá notável e justo destaque à 6ª Suíte para Violoncelo Solo de J. S. Bach, que é eleita pelo autor como uma espécie de símbolo da imortalidade , o qual é respeitado e admirado até pela Morte. Aqui o romance torna-se mais reflexivo e lento, estamos dentro do terreno do destino inexorável e o senso de estilo de Saramago dobra-se e adapta-se perfeitamente a este clima, levando-nos a um final literária e literalmente arrepiante.

García Márquez optou por ser bem mais modesto. Se Saramago apresenta-nos a Morte “viva”, movendo-se e dialogando como Thomas Mann fez com o Demônio num dos capítulos mais gloriosos de toda a literatura, García Márquez dá a uma prostituta de 14 anos a representação da morte. O personagem principal e narrador, um jornalista de 89 anos ainda em atividade e que manteve-se solteiro por toda sua vida, pede uma menina ainda virgem a sua velha amiga cafetina, no dia em que completará 90 anos. Esta menina chama-se Delgadina, provavelmente uma ironia para com a figura da morte, sempre delgada e elegante em sua existência de puro-osso. Delgadina – sempre cansada do trabalho – costuma permanecer dormindo nas “noites de amor” com o velho, que parece descobrir pouco a pouco a vantagem de nunca acordá-la e de deixar-lhe apenas mimos, enquanto a jovem prostituta reclama para a cafetina o fato de nunca ser acordada e de ainda ser virgem… Porém, nem sempre ele conseguirá que seja assim.

Trata-se de um livro mais leve, poético e “fácil”, mas, se tivesse que sugerir leituras de férias a meus 7 leitores, sugeriria os dois livros; mas, se fosse obrigado a escolher apenas um, os mandaria direto ao assunto, direto a Saramago.

Para terminar, gostaria de destacar mais uma curiosíssima coincidência entre os livros:

García Márquez: Às quatro horas tentei me apaziguar com as seis suítes para cello solo de Johann Sebastian Bach, na versão definitiva de dom Pablo Casals. Acho que é o que de mais sábio existe em toda a música, mas em vez de me apaziguar como de costume me deixaram num estado da pior prostração.

José Saramago (utilizo a mesma grafia do romance): Por um instante a morte soltou-se a si mesma, expandindo-se até as paredes, encheu o quarto todo e alongou-se como um fluido até a sala contígua, aí uma parte de si deteve-se a olhar o caderno que estava aberto sobre uma cadeira, era a suite número seis opus mil e doze em ré maior para violoncelo de johann sebastian bach composta em cöthen e não precisou ter aprendido música para saber que havia sido escrita, como a nona sinfonia de beethoven, na tonalidade da alegria, da unidade entre os homens, da amizade e do amor. Então aconteceu algo nunca visto, algo não imaginável, a morte deixou-se cair de joelhos, era toda ela, agora, um corpo refeito, por isso é que tinha joelhos, e pernas, e pés, e braços, e mãos, e uma cara que entre as mãos se escondia, e uns ombros que tremiam não se sabe porquê, chorar não será, não se pode pedir tanto a quem sempre deixa um rasto de lágrimas por onde passa, mas nenhuma delas que seja sua.

Sim, Bach, sempre ele, o homem de obras elas quase tantas como foram as da criação (ainda Saramago), Bach e suas suítes para violoncelo solo, aquelas mesmas que dou a tantos amigos, que falam como os homens, que trazem a humanidade em si e que podem tornar a morte humana, ao menos na arte.

Algumas reflexões irresponsáveis sobre música

Não sou tão original quanto Glenn Gould. Gosto de concertos e de gravações ao vivo. Acho as últimas quase sempre superiores às de estúdio. Frequento concertos – principalmente aqueles de preços camaradas – e creio que eles sejam experiências fundamentais tanto para o músico quanto para a platéia. Ver uma obra ser interpretada é uma experiência muito diferente de apenas ouvi-la. O jogo entre os instrumentos, a dinâmica, o trabalho dos grupos instrumentais de uma orquestra, por exemplo, é algo que enriquece muito a audição e, quando voltamos a ouvir a mesma música em nossa casa, as imagens da execução nos acompanharão.

Mas tenho restrições à escolha de repertório da esmagadora maioria dos concertos, quase conservadoras e heterogêneas. A escolha é conservadora porque o solista e o produtor não gostam de arriscar, trilhando via de regra o batido mainstream do repertório. Porém, amigos, há uma imensa distância entre o repertório destes museus sonoros que são nossas atuais salas de concerto e a variedade da oferta de música em CD ou em mp3. Tal distância não precisaria ser tão grande, até porque, excetuando-se os casos Gould-like, quem grava normalmente já apresentou a obra em concertos. Mas nos concertos terceiromundistas… Mesmo que um solista ou grupo tenha maior intimidade com determinado compositor ou período, os executantes apresentarão as obras mais óbvias e conhecidas, as de aplauso fácil. Não parece haver grande interesse em surpreender o público com algo diferente. E a heterogeneidade? Credo, dia desses fui a um concerto onde eram interpretados Mozart, Rossini, música para “trompa alpina”, Shostakovich e Bartók. Alguém pode conceber cardápio mais variado? Qual é a intenção? É a de satisfazer o maior número de ouvintes ou irritá-los?

Já no amplo mundo dos CDs existe oferta de todo o tipo de música, há a possibilidade de se ouvir 90% das obras dos principais compositores. Os catálogos das gravadoras são potencialmente sempre crescentes, podem ir se ampliando através dos anos (principalmente no caso da Naxos, que tem este objetivo). Hoje — se pudermos dispor de muito dinheiro e de um considerável limite de crédito em nosso cartão internacional –, podemos realizar qualquer desejo auditivo. Se você quiser a integral das Cantatas de Bach, por exemplo, basta pagar uns R$ 3.000,00 que logo chegarão via Sedex centenas de cantores berrando a sua casa.

A parte financeira é um tremendo problema para alguém que seja doido por música clássica. Os blogs como PQP Bach e seus congêneres resolvem parcialmente o caso. Nossa necessidade de ouvir diferentes gravações de uma obra que amamos é uma coisa que o ouvinte comum não entende. Uma vez que The White Album dos Beatles foi adquirido, o problema está resolvido. O Álbum Branco sempre será o melhor registro do Álbum Branco, creio. O resto são regravações de músicas isoladas. O mesmo não vale para uma sonata de Beethoven, até porque Beethoven não deixou quaisquer registros sonoros… Simplesmente temos uma grave compulsão por ouvir a sonata x por Pollini, Arrau, Freire, Uchida, Richter, Gould, Pires, Kissin, Gilels, etc. Amigos meus que só se interessam por literatura ficam pasmos ante a necessidade de se ouvir (ou possuir) várias gravações da mesma sonata. Para quê, perguntam eles? Eles não imaginam a nossa felicidade ao descobrirmos aquele pequeno detalhe, aquela sutil intenção do compositor que apenas Pollini ou outro regente ou solista soube mostrar. Eles não imaginam como podemos discordar alegremente elogiando ou detratando uma concepção que esteja muito perto ou longe daquilo que nosso ouvido considera o ideal.

A gente é assim, não adianta. A gente gosta é disso que transcrevo a seguir (transcrição ipsis litteris deste post, que é meu):

Numa noite fria do século XVIII, Bach escrevia a Chacona da Partita Nº 2 para violino solo. A música partia de sua imaginação (1) para o violino (2), no qual era testada, e daí para o papel (3). Anos depois, foi copiada (4) e publicada (5). Hoje, o violinista lê a Chacona (6) e de seus olhos passa o que está escrito ao violino (9) utilizando para isso seu controverso cérebro (7) e sua instável, ou não, técnica (8). Do violino, a música passa a um engenheiro de som (10) que a grava em um equipamento (11), para só então chegar ao ouvinte (12), que se desmilingúi àquilo.

Na variação entre todas essas passagens e comunicações, está a infindável diversidade das interpretações. Mas ainda faltam elos, como a qualidade do violino – e se seu som for divino ou de lata, e se ele for um instrumento original ou moderno? E o calibre do violinista? E seu senso de estilo e vivências? E o ouvinte? E… as verdadeiras intenções de Bach? Desejava ele que o pequeno violino tomasse as proporções gigantescas e polifônicas do órgão? Mesmo?

E depois tem gente que acha chata a música erudita…

As 100 obras essenciais da música erudita segundo a Bravo! ou Vendendo ignorância

Sou um sujeito que está sempre rindo. Morro um pouco a cada dia, mas abstraio-me autenticamente do fato. Então, às vezes quero escrever uma coisa bem alegre ou criativa, esquecendo a Mônica Leal e a Pâmela, mas não dá. Me chamam de volta para que eu meta o pau.

A lista de cem obras essenciais da música erudita da revista Bravo! parece ter sido feita… Sei lá, quem sabe por ocorrências no Google? Proponho um acerto com você, caro leitor. Acho que você concorda que é fácil fazer listas e, quanto mais longas forem, mais fácil fica, certo? Se a lista contiver alguns absurdos, você diz que é questão de gosto e fim. Pois a Bravo! conseguiu fazer a lista errada, aquela que demonstra claramente que seus autores não têm a menor vivência na audição de obras do gênero erudito. Essa lista não é questão de gosto, é questão de polícia.

Moacy Cirne, neste post, já havia destruído a relação da e com a Bravo! utilizando como arma apenas uma obra ausente, as Vésperas da Virgem, de Claudio Monteverdi. Bastou. Trata-se de uma omissão que realmente desqualifica toda a lista. Tem razão a maior autoridade brasileira das histórias em quadrinhos, uma lista de uma centena sem as Vésperas é como deixar de fora Grande Sertão: Veredas ou Cidadão Kane em listas análogas de romances brasileiros ou cinematográfica. Mas não apenas o Moacy merece divertir-se, eu também! Analisarei uma poucas coisinhas… HÁ absurdos inacreditáveis na lista.

82º) Concerto para Oboé, de Mozart: é óbvio que o autor da lista não fez teste de bafômetro. Por favor, meu caro ouvinte, ouça este concerto e depois a Sinfonia Concertante para Violino e Viola, ou quaisquer dos Concertos para Piano de 23 a 27 do mesmo Mozart. Um bêbado, sem dúvida.

71º) Tocata e fuga em ré menor: aqui, tenho a primeira convulsão séria. Obra menor de Bach, o alcoolizado autor da lista deixou de FORA TODOS OS SEIS CONCERTOS DE BRANDENBURGO!!!

57º e 83º) A Morte e a Donzela e Trio Op. 100, de Schubert: são obras excelentes, mas esquecer o Quinteto de Schubert é embriaguez de cair deitado.

49º) Missa em Si Menor, de Bach: aqui, a piada foi a de colocá-la atrás da Sinfonia Fantástica de Berlioz. Não, a piada foi muito maior. Há certo consenso que a Missa seria uma espécie de Cidadão Kane da história da música, ou seja, que seria estaria no topo de todas as listas, mas o chumbeado autor coloca-a lá no meio…

11º) Dichterliebe, de Schumann: HAHAHAHAHA, os lieder de Schubert ficaram de fora — exceção feita aos Winterreise — e o Quarteto e Quinteto de Schumann também, mas essas cançõeszinhas de Schumann, simplesinhas e humildes, quase chegaram ao Top 10 do borracho.

4º) O cachaceiro botou a Sagração da Primavera, de Stravinski, em quarto lugar. Será necessário um alongamento muito severo para que alguém razoável admita que a obra esteja colocada no Top 10. Muuuuuito alongamento.

13º) Mais risadas, um único quarteto de cordas de Beethoven está na lista e não é o 130, nem o 132, nem a Grosse Fugue, Op. 133. Estranhamente o pinguço acertou bem onde não devia: no meio. O Op. 131 é belo com seus sete movimentos e um Andante avassalador, mas convenhamos.

84º) Questão de gosto: a Pastoral não poderia estar nesta lista. Mas o bebum a trouxe.

58º) O que faz Dvorak aqui? Hein, beberrão?

38º) Sinfonia “Inacabada”, de Schubert: essa entrou no carteiraço. E a Nona, conhecida como “A Grande”, biriteiro? Em que ela é menor? É por ter sido “Acabada”?

22º) Quadros de uma Exposição, de Mussorgski, é a vigésima-segunda obra essencial de todos os tempos do ébrio…

48º) Réquiem, de Verdi: é uma surpresa encontrá-lo aqui, mas já que o gambá o conhecia, por que deixou-o apenas em 48º? Merecia o Top 20!

95º) 4`33, de Cage: bem, se A Sagração estava em quarto pela importância histórica, esta obra de Cage deveria estar nas imediações, junto de algo de Stockhausen, um dos grandes ausentes da lista, pau d`água.

93º) Intermezzo, Op. 118, de Brahms: a imensa música de câmara — sonatas para violoncelo e clarinete, trios, septetos — de Brahms está inteiramente ausente da lista… Por quê, meu Deus, o esponja escolheu isto?

76º) Carmina Burana, de Orff: sem comentários. Viu, chupa-rolha?

É absolutamente necessário rir de uma publicação dessas, senão vêm as dores de cabeça, úlceras, etc. E citei apenas os primeiros absurdos que me ocorreram, nem explorei os despautérios cometidos ao barroco. Não me perguntem onde vai parar um jornalismo cultural que orienta assim os jovens e inexperientes. O cara que fez esta lista estava desnorteado, aturdido. Menos mal que o blog P.Q.P. Bach recebe 60.000 visitas por mês. E está à distância de um clique. E não custa nada.