Nossa parte de noite, de Mariana Enriquez

Nossa parte de noite, de Mariana Enriquez

Assinado sob o pseudônimo de Paula Ledesma, Nossa Parte de Noite juntou-se a mais de 650 outros originais apresentados à seleção de 2019 do Prêmio Herralde de Romance — uma das mais importantes premiações da literatura de língua espanhola. A história acompanha pai e filho cruzando a Argentina de carro sob os olhos de soldados armados, no ambiente da ditadura militar, despertando interesse e aflição. Há ocultismo, ocorrem coisas inexplicáveis e é impossível parar de lê-lo. O livro tem, ao mesmo tempo, várias narrativas e impressiona pelo domínio com que Mariana Enriquez constrói o enredo em várias direções e contextos. Ela ganhou o prêmio, claro, foi a primeira mulher a fazê-lo.

Bem, a maior parte do romance trata de temas que não são de minha preferência, porém, já disse, não parei de ler, não poderia largar.

Gaspar é o filho de Juan Peterson. O pai, em solitária cruzada, trata de proteger seu filho do destino que lhe foi designado. A mãe do menino já morreu em circunstâncias obscuras. Gaspar, como seu pai fora, recebeu um chamado para ser médium de uma sociedade secreta, a Ordem, que se relaciona com a Escuridão em busca de vida eterna em rituais brutais. Para tais rituais, é imprescidível a presença de um médium, mas o destino desses detentores de poderes especiais é cruel, já que o desgaste físico e mental é muito severo. As origens da Ordem, comandada pela família da mãe de Gaspar, remontam a séculos, quando o conhecimento da Escuridão foi trazido da África para a Inglaterra e dali à Argentina.

O terror sobrenatural se mistura com outros, reais. Ao lado de casas cujos interiores se transformam, de passagens perigosas, de sacrifícios em rituais de êxtase e dor, de andanças pela maravilhosa Londres dos anos 60, do fetiche por pálpebras humanas, das liturgias sexuais, há a repressão da ditatura militar, os desaparecimentos e, mais tarde, a chegada incerta da democracia e dos primeiros casos de Aids.

Nossa Parte de Noite é um livro perturbador e deslumbrante. A prosa de Mariana Enríquez é muito rica e bem trabalhada, obrigando-nos continuar e continuar mergulhado na história. A inclusão de diferentes vozes narrativas e de vários personagens muito bem definidos conferem ao tema variações e reviravoltas imprevisíveis, às vezes sufocantes… E, portanto, muitas vezes o assunto é o que menos importa. Era meu caso, eu parti de uma posição claramente cética, mas fui absorvendo uma história muito complexa e verdadeiramente estranha.

Há capítulos sobre a vida dilacerada do personagem principal, Juan Peterson, o pai de Gaspar, que vive sempre em tensão, entre doenças, operações cardíacas versus as exigências da Ordem. Sua esposa, a mãe de Gaspar, foi morta em circunstâncias nada claras. Ele tem a necessidade urgente de separar seu filho das influências da família e do tema da Escuridão, pois sabe que se não separar isso continuará com ele depois de sua morte. Quanto ao título, a noite é fundamental, há no livro uma alusão direta, num diálogo entre Juan e seu filho Gaspar, na noite em que vão deitar as cinzas da mãe em um rio. Juan, acariciando o filho, diz mais ou menos assim: “Deixei para você algo meu, espero que não seja amaldiçoado, não sei se posso deixar para você algo que não seja sujo, que não seja escuro, nossa parte de noite.”

Algo curioso aconteceu comigo durante a leitura deste livro, pois entrei e saí da atmosfera do romance sem parar, mas em todos os momentos estive atento e predisposto a acreditar em tudo, absolutamente em tudo. Há momentos de total serenidade, mas o leitor sabe que está numa montanha-russa, num sobe e desce.

Um aspecto que também é de grande interesse são as alusões ao golpe militar na Argentina, às greves, aos desaparecimentos, a um momento histórico muito conflituoso. Nossa Parte de Noite envolve muitos aspectos que não são fáceis de encadear, de unir e de dar continuidade, que ainda assim estão lá perfeitamente lançados. Uma resenhista espanhola identificada apenas como Ros, realizou o exercício de separar os vários temas extras tocados no romance. Vejamos:

— Este é um romance sobre paternidade e amor, Juan é o grande protagonista do romance, ele tem muito para nos dar. É um personagem sombrio mas também é o grande protetor do filho que ama. E, claro, seu filho Gaspar, eles são o centro das atenções em torno do qual gira o romance, embora ao seu redor haja mais pais, mães e filhos e filhas que responderão às inúmeras tramas que se desenvolverão.

— É também um romance sobre o poder, um poder necessário para exercer os ritos a que serão obrigados os personagens. Todos aqueles que fervilham em torno da poderosa família ou que atuam como anfitriões da sociedade secreta, onde tudo é possível. Eles têm poder e o exercem sem limites. Mesmo. Como ditadores.

— Mas também se desenvolve um tema muito mais gentil, que é o tema da amizade. Ela é belamente descrita e totalmente sentida por Gaspar e seus amigos que, estando juntos, viverão uma grande experiência que ficará com eles para sempre, com suas visões e seus medos.

— Também podemos falar da brutalidade, da violência, um tema que surge a cada momento. Mesmo quando parece haver paz e tranquilidade, ela volta, aparecendo sem que percebamos e é uma violência que sempre deixa vítimas. É terrível. Todos e cada um dos personagens do romance, os mais novos e os mais velhos, sofrem com isso. Corpos aparecem mutilados, torturados, desaparecidos, estuprados…

— É um romance sobre a crueldade e a vontade incontrolável de exercê-la, mas, acima de tudo, haverá a luta, o conflito interno contínuo e diário, para que ela não aconteça. Isso se desenvolve em Juan e, claro, em seu filho Gaspar, porque é a herança familiar que ele lhe deixou.

— E acima de tudo há também a Argentina, as ditaduras e as grandes famílias que mexem os pauzinhos, que matam e nada acontece. Para isso há o mais importante, o que não devemos perder, a existência e a exigência da memória. O paralelo é evidente entre os rituais da Ordem e o que acontecia na Argentina.

Mas ainda há muito mais, tudo perfeitamente regido por Mariana Enriquez, juntando-se e encaixando-se à perfeição.

No final… Bem, não vou contar. O final é sensacional.

Mariana diz que uma de suas inspirações foi Sobre Heróis e Tumbas, de Ernesto Sábato. Realmente, sua atenção aos fatos da história argentina mostra que “a vida é um conto de terror”, como no livro de Sábato… Admiradora de Lovecraft, Stephen King e Cormac McCarthy e dizendo ser uma pessoa normal, que tem medo do desconhecido, da morte e da violência, ela nos mostra que o medo que está na página seguinte é o mesmo que podemos encontrar ao dobrar a esquina, só que este será sem arte.

Obs.: Mariana também disse que teve de fazer uma séria curadoria em suas obsessões para escrever o romance. Teve que dosar poesia, música, ocultismo, homens bonitos, doenças, cultos pagãos, sexualidade não normativa… Tudo para que as coisas não saíssem fora de controle. Não saíram.

Mariana Enriquez (1973)

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Bruegel, os cegos e meu sonho

Hoje eu tive um sonho. Estava pintando o quadro abaixo. Eu era Pieter Bruegel, o Velho e pintava em meu atelier A Parábola dos Cegos, certo? Há mais: estava emocionadíssimo porque um dos cegos — qual seria? — era meu pai e era do maneira abaixo que ele se deslocava com seus pares. Um negócio desesperador. Mesmo! Eu pintava e chorava.

Assim como para a Caminhante, Ernesto Sábato e José Saramago,a cegueira e suas metáforas, mas principalmente a cegueira sem metáfora, é algo que assusta e causa perplexidade, pena, medo, profundo interesse, tudo.

Quando acordei, a imagem da obra-prima de Bruegel foi substituída pela da galinha abaixo, vista ontem no Google Images. Bem, sei lá.

P.S. — Meu pai, morto em 1993, nunca teve deficiência visual.

Parábola dos Cegos

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Dois anos sem o furioso, brilhante e desigual Ernesto Sabato

Dois anos sem o furioso, brilhante e desigual Ernesto Sabato
O escritor argentino Ernesto Sabato, falecido em 2011, a menos de dois meses de completar 100 anos.

Publicado em 5 de maio de 2013 no Sul21

Toda a obra de ficção é catártica.
(Ao menos para) Ernesto Sabato

A última terça-feira, 30 de abril, marcou o segundo aniversário de morte de um dos maiores mestres da literatura latino-americana, o argentino Ernesto Sabato. O autor de Sobre Heróis e Tumbas nasceu em 1911 e morreu em 2011, a menos de dois meses de tornar-se centenário. Vista em perspectiva, a trajetória de Sabato – brilhante, desigual e surpreendente – não está nada longe de seus personagens tortuosos. Jogador de futebol na juventude, comunista, físico de grande futuro, súbita desistência da carreira científica, ficcionista, artista plástico, equívoco e espetacular correção de rumos frente à ditadura argentina, o que não fez Sabato?

Sabato com Jorge Luis Borges: a amizade foi diversas vezes interrompida com críticas de parte a parte

Aos 22 anos, estudante na Faculdade de Ciências Físico-Matemáticas de La Plata, foi um dos fundadores o Grupo Insurrexit, de tendência comunista, que atuava na reforma da universidade. Ainda no mesmo ano de 1933, foi eleito Secretário Geral da Juventude Comunista e conheceu Matilde Kusminsky Richter, uma estudante de 17 anos que abandonou a casa de seus pais a fim de viver com ele.

Quando jovem, Sabato foi um promissor físico. Aos 25 anos, trabalhava no Laboratório Curie de Paris, realizando estudos sobre radiação atômica, e um ano depois, já estava no renomado MIT (Massachusetts Institute of Technology) nos EUA. Trocou Paris pelos Estados Unidos antes do início da Segunda Guerra Mundial. Em 1940, retornou à Argentina para ser professor na Universidade de Buenos Aires e, em 1943, em crise existencial — ele cita que via “um vazio de sentido” naquilo que fazia — , desistiu das ciências exatas pela literatura e pintura.

Sabato era torcedor e ex-jogador do Estudiantes de la Plata

Os romances e ensaios de Sabato não traem o cientista que ele fora, nem o humanista que sempre demonstrou ser. O poeta, romancista e ensaísta Fernando Monteiro chama-o com toda a razão de “o último dos renascentistas”. Dotado de uma vasta cultura, escreveu sobre os mais variados assuntos como se deles tudo soubesse – e parecia sabê-lo. Politicamente, causou espanto por ter sido um anti-stalinista de primeira hora. Sua posição, mais facetada e complexa a que a do comum dos militantes, fez com que fosse atacado como imperialista pela esquerda e como comunista pela direita. “Não vou ser complacente com o stalinismo e o que ele representa, não sou comunista de salão”, disse na época. Também o intelectual não traía a paixão mais chã pelo futebol – ele era um interessado hincha do Estudiantes de Plata – e pela música popular. Na música popular, há uma história recente contada pelo grande compositor e músico sérvio Goran Bregovic numa entrevista ao El Pais.

Disse Bregovic: “Ao chegar a meu hotel em Buenos Aires, me deram um pacote da parte de Ernesto Sabato, escritor que conhecia muito bem. Ele continha sua obra-prima Sobre Heróis e Tumbas, além de uma carta em que me pedia desculpas por não poder ir ao concerto em função da idade. Me explicava que minha música o havia salvado em momentos de depressão. Aquilo era incrível. Quando eu cumpria o serviço militar em Niš, na época do comunismo da Iugoslávia, roubei um exemplar deste livro do quartel. Era um romance extraordinário! Eu tinha o livro na biblioteca de minha casa em Sarajevo. Com a guerra perdi tudo, inclusive a biblioteca. Você pode começar uma nova vida, mas não pode começar duas vezes uma biblioteca”.

Um almoço para esquecer: com Videla, líderes militares, religiosos e Borges (clique para ampliar)

Mas Sabato também cometeu erros incríveis: levado por seu ódio ao peronismo, dois meses após o golpe militar de 1976, participou de animado convescote com Jorge Rafael Videla, representantes religiosos e Jorge Luis Borges. Sabato elogiou a cultura de Videla, a quem tomou por um líder moderado. Escritor à antiga, Sabato manteve sempre uma independência que não levava em conta quem eram os beneficiários ou as vítimas de suas opiniões.

Porém, quando deu-se conta de onde tinha embarcado, retirou imediatamente seu apoio e, após o final da ditadura, colocando-se a 180 graus da posição inicial, tornou-se o presidente da Conadep (Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas) que teve por objetivo investigar as graves e reiteradas violações aos direitos humanos durante o Terrorismo de Estado entre 1976 e 1983. Sabato foi o responsável por reunir o testemunho e a documentação de 8960 desaparecimentos, assim como da existência de 340 centros de detenção e tortura. A Comissão recebeu milhares de declarações e depoimentos, verificando in loco a existência de centenas de locais de tortura e prisão em todo o país. Foi este o instrumento que permitiu o início dos processos e a condenação dos responsáveis máximos das juntas militares, começando justamente por Jorge Rafael Videla. Foi uma correção e tanto de rumo.

Sabato não foi um escritor prolífico. Em 1945, publicou seu primeiro livro, Nós e o universo, uma série de artigos filosóficos nos quais critica a neutralidade moral da ciência e alerta sobre os processos de desumanização nas sociedades tecnológicas.

Sabato, presidente da Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas, entrega a Raúl Alfonsin um informe bem mais circunstanciado que o célebre ‘Informe sobre cegos’.

Em 1948, publicou a novela O Túnel, a qual fez com que os hofolotes se voltassem para ele a partir do entusiasmo de Albert Camus pela narrativa. Trata-se de uma curiosa história policial, narrada pelo autor de um assassinato, o artista plástico Juan Pablo Castel. Seu tema é a solidão e a incapacidade de criarmos conexões com outras pessoas. A obra termina com uma oração que diz “Senhor, livra-me de mim”. O Túnel é uma espécie de um longo desabafo — de notável fluência e eficiência — que reconstrói os fatos e os sentimentos que levaram ao crime. Castel apenas busca que alguém, “ainda que uma só pessoa”, compreenda seu ato. Logo, o leitor entende que Castel matara a “única pessoa” que poderia ouvi-lo, Maria. “Adotei a narrativa em primeira pessoa depois de muitas tentativas, porque era a única técnica que me permitiria passar a sensação da realidade externa a partir de um coração e de uma cabeça, a partir da subjetividade total…”.

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O Último Minuto, de Marcelo Backes (Fim)

o-ultimo-minuto_marcelo-backesComo escrevi na primeira parte deste texto, a voz de Yannick Nasyniak ou João, O Vermelho, não é única no livro de Backes. Concordo, é ele quem fala por quase todo o romance através de um copioso discurso livre indireto, mas há importantes interrupções de parte do narrador-interlocutor. Ou seja, o livro não é um longo monólogo que se estende por 224 páginas, como li em algum lugar. Uma das qualidades do livro está no contraponto, no diálogo, no reflexo das palavras de João-Yannick sobre o seminarista. Como já escrevi, o livro chega a apresentar uma inversão de posições, dando espaço ao monólogo do seminarista! Outro fato que me causou contrariedade foi a redução feita por alguns jornais, como se o livro apenas argumentasse sobre o futebol como metáfora da vida. Ok, é uma das teses presentes no livro, mas é apenas uma delas. O Último Minuto é bem mais rico. Fiquei feliz ao ler meu amigo Carlos André Moreira na ZH de hoje. Ele caracterizou bem o livro de Backes, passando o centro do romance para a paternidade de Yannick.

De forma muito curiosa, o evento de hoje no StudioClio propõe o tema “A Voz da Prisão” em autores como Nabokov, Sabato, Dostoiévski e Graciliano. É uma boa ideia estabelecer diferenças entre estes ícones e o livro que estaremos comentando. Nestes livros e em O Último Minuto, a posição que cada narrador ocupa é diferente. É lamentável que eu tenha estudado tão pouco o assunto. Vamos, um tanto esquematicamente, ao que lembro destes livros narrados por prisioneiros. Read More

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Santa Maria trinta dias depois

A charge de Latuff na manhã de 27 de janeiro quando ainda se pensava em “apenas” 100 mortos.

Oh, filhos, filhos! Como têm coragem de partir?
O Outro Filho, Luigi Pirandello

Um dos lugares comuns com os quais mais concordo é que é absolutamente contra a natureza os filhos morrerem antes dos pais. E que nenhum pai-mãe merece uma coisa dessas. É uma situação intolerável e sempre penso em Drummond, que não queria mais viver após a morte de sua filha Maria Julieta. Ele tinha 85 anos e não suportou: morreu rapidamente, apenas 12 dias depois. Cada pai tem medo do que possa acontecer com seu filho e tem noções muito claras do inferno que sua vida será sem um deles. É isto que está sendo vivido por aqueles que ficaram. Tenho dois filhos e me forço a pensar no assunto porque esta é uma perspectiva que me preocupa e da qual se fala muito pouco: a dos que ficam.

Dia desses, estava com um amigo que é dono de um estabelecimento que pode receber aproximadamente 100 pessoas. Ele me disse que tomou a iniciativa de chamar uma consultoria a fim avaliar o local, “porque depois de Santa Maria temos que ser sérios, não quero carimbo, gaveta, nem jeitinho, quero segurança”. E acho que a sociedade, ao menos aqui no RS, vai conseguir melhorar muito as casas noturnas. Acredito nisso, mas voltemos ao viés inicial.

Não, não conheço ninguém envolvido, mas fico com enorme pena dos pais. Hoje, agora, às 8h, Santa Maria vai parar por um minuto. No sábado passado, 600 pessoas compareceram a um encontro da recém formada Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM). A associação tem como principal objetivo a reintegração social dos pais e irá acompanhar as investigações do caso. Nada mais correto. Essas pessoas precisam de ajuda a fim de trazê-las de volta a uma vida que será tudo menos normal. Há relatos de que muitos estão reclusos, coisa que, conhecendo a mim mesmo, talvez fizesse. Foram 239 mortos, 100 feridos. O grupo de pais tem certamente todo tipo de pessoa, todo tipo de biografia, todo tipo de reação. Essas pessoas devem se conhecer, devem ouvir as histórias um do outro a fim de obter apoio entre seus iguais.

Pois, como escreveu Sábato em Sobre Heróis e Tumbas (cito de memória), nós deveríamos ser como as formigas que veem seu formigueiro pisoteado e começam imediatamente a reconstrução. Por mais que nos desesperemos, não deve haver outra saída. Só que o ser humano tem a noção do que é a morte e é impossível simplesmente agir como um formiga-autômato numa hora dessas. Haja terapia, porque o buraco que o pisão criou é uma verdadeira cratera.

A normalidade não existirá mais para essas pessoas. Um pai esquecer seu filho? Não, impossível. O que acontecerá será um lento e doloroso aprendizado para viver sem a presença dele-dela. Como lidar com as datas, com a saudade, com a madrugada, com o quarto vazio, com a ida ao supermercado sem comprar a guloseima preferida do filho, com os encontros com os amigos, com o computador? Nada do que aconteceu foi banal ou descartável, essas pessoas têm de ser respeitadas, ainda mais neste período em que a ficha está caindo e a dor da realidade está vindo em ondas cada vez mais altas. Será muito dura a rotina sem o filho. Tudo parecerá inútil.

E que a sociedade, as fiscalizações, as defensorias e as prefeituras trabalhem para que uma merda dessas não ocorra em outro lugar. É o mínimo que se pode fazer para honrar aquelas crianças que morreram. A única utilidade delas hoje. Porque o resto é tristeza.

They lived and laughed und loved end left
Nasceram serriram seamaram seforam

Finnegans Wake, James Joyce (trad. Caetano Galindo)

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Meus dez livros preferidos

Novamente me pedem para fazer uma lista de meus dez melhores livros. Já fiz várias dessas e acho até que outra(s) por aí no blog. Mas vamos lá, vou escrever a listinha de um jato, em um minuto, e vocês prometem não lê-la, certo?

  • Dom Quixote, Cervantes.
  • Moby Dick, Melville.
  • Doutor Fausto, Thomas Mann.
  • Uma Confraria de Tolos, John Kennedy Toole.
  • Grande Sertão: Veredas, Guimarães Rosa.
  • Entre Heróis e Tumbas, Ernesto Sabato.
  • Berlim Alexanderplatz, Alfred Döblin.
  • Ulysses, James Joyce.
  • Middlemarch, George Eliot.
  • Os Irmãos Karamázov, Dostoiévski.
  • Ana Karênina, Tolstói.
  • A Vida e as Opiniões de Tristram Shandy, Laurence Sterne.
  • A História Maravilhosa de Peter Schlemihl, Adelbert Von Chamisso.

Cheguei aos 10? Tem 13? Kafka e Machado de Assis fora? E Virginia Woolf? E meu amado Jonathan Swift? Putz. Não, é sem revisão. Deixa assim. Quem quiser que retire três deles.

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Sobre Ernesto Sabato, autor de duas obras-primas, falecido hoje

Faleceu hoje um dos três maiores escritores vivos: o argentino ERNESTO SABATO — os outros dois seriam, por ordem, Ismail Kadaré e Philip Roth. O realmente grande Sabato, autor de pelo menos duas obras-primas (“O Túnel” e “Sobre Heróis e Tumbas”) iria completar 100 anos no dia 24 de junho próximo.

(Fernando Monteiro)

Com a morte de Sabato, o país latino-americano mais esquecido, humilhado e ofendido pela indiferença dos acadêmicos suecos que decidem o Nobel, passa a ser a Argentina. Deixaram de premiar Borges e Sabato, nem mais nem menos.

(Fernando Monteiro)

Fernando, acrescente Saer na listinha do país ofendido.

(MR)

CONCORDO inteiramente com vosmicê, Milton. Juan José Saer estaria na ordem direta de grandeza de Borges e de Sabato, neste momento, caso não houvesse falecido relativamente moço, ainda. Atenção, Feicebuque: LEIAM J. J. SAER!

(Fernando Monteiro)

Sabato foi um grande físico, chegando a trabalhar no Laboratório Curie, em Paris. Nos anos 40, depois de questionar esse mundo tão racional — que lhe provocava, segundo suas palavras, “um vazio de sentido” — , abandonou a ciência para se dedicar à literatura e à pintura. Publicou livros de ensaios e romances, poucos em quantidade — só três romances — , mas de uma qualidade incontestável. Destaca-se nesse conjunto a obra-prima Sobre heróis e tumbas, lançado em 1961 e com edição recente no Brasil pela editora Companhia das Letras, com tradução de Rosa Freire d’Aguiar.

O romance é dividido em quatro partes, mas antes há uma nota, supostamente tirada de um jornal de Buenos Aires, pela qual ficamos sabendo que Alejandra matou seu pai, Fernando Vidal Olmos, e depois ateou fogo no próprio quarto, se suicidando. Na primeira parte, “O dragão e a princesa”, passamos a conhecer melhor essa impressionante personagem a partir das percepções de Martín, jovem que se apaixona por ela. Misteriosa, imprevisível e de personalidade forte, Alejandra só não é mais estranha do que os parentes que habitam a casa, gente ligada à antiga aristocracia argentina, cujos antepassados participaram da luta pela independência do país. Esses antepassados podem ser os heróis do título no que seria uma interpretação político-social da obra, colocando Alejandra como metáfora para a própria Argentina. Prefiro, no entanto, a chave mais existencial, sendo que o título dessa segunda parte nos leva a esse sentido. Seria o dragão Martín e a princesa Alejandra? Ou seria a jovem uma princesa-dragão, soltando fogo através de suas duras palavras?

Na segunda parte, “Os rostos invisíveis”, a história se desenvolve com mais comentários sobre a história da Argentina, inclusive sobre a era peronista, as paixões anteriores de Alejandra e aparece pela primeira vez Fernando Vidal Olmos, esse o rosto invisível em boa parte do enredo, mas que começa a se revelar. É dele o manuscrito que seria encontrado posteriormente no quarto incendiado e que corresponde à terceira parte, talvez a mais perturbadora de todo o enredo: “Informe sobre cegos”.

O texto é uma narrativa enigmática, que reflete a mente perturbada de Fernando em sua tentativa de encontrar a Seita dos Cegos. Percorre, inclusive, os esgotos subterrâneos de Buenos Aires, como a descida de Ulisses ao Reino de Hades em busca das respostas do cego Tirésias, contada na Odisseia, de Homero. Paradoxalmente, busca a luz nas trevas. Na verdade, a busca representa a jornada nas tumbas da nossa mente, por isso as menções ao sexo desenfreado, aos canalhas de todas as estirpes, ao lixo produzido pelo homem. Tudo alegorias das questões morais do ser humano. Mais do que isso eu não falo sobre o “Informe”. Leia-o. Repito, leia-o. E mais uma vez: leia-o, mesmo que seja só essa parte. Vai te deixar perturbado durante dias, mas é esse o objetivo de todas as grandes obras literárias.

[…]

(Cassionei Petry)

Al llegar al hotel me dieron un paquete sobre que me habían dejado de parte de Sabato. Contenía un libro, Sobre héroes y tumbas, y una carta en la que me pedía disculpas por no acudir al concierto. Me explicaba que mi música le había salvado en momentos de depresión. Lo curioso es que cuando hice el servicio militar en Nis, en la época comunista, robé de la biblioteca del cuartel un ejemplar de ese libro. Lo tuve en mi casa de Sarajevo durante años y lo perdí. Con la guerra perdí todo, también mi biblioteca. Puedes empezar dos veces tu vida, pero no puedes empezar dos veces una biblioteca. Todas las cosas grandes que me han pasado están guiadas por cosas pequeñas que se vuelven grandes, como el libro de Sábato.

(Goran Bregovic)

Neste momento em que andam ensinando tantas tolices, principalmente em “oficinas” literárias que começam por duvidar da eficácia do narrador na primeira pessoa, Ernesto Sabato dá sua lição de graça: “Adotei a narrativa na primeira pessoa em O Túnel, depois de muitas tentativas, porque era a única técnica que me permitia passar a sensação da realidade externa tal como a vemos, a partir de um coração e de uma cabeça, a partir de uma subjetividade total…”

(Fernando Monteiro)

Ernesto Sabato não escreveu muitos livros de ficção, talvez tenha escrito três ou quatro, mas os que li foram muito marcantes: O Túnel e Sobre Heróis e Tumbas.

O Túnel é de 1948 e insere-se decidamente no existencialismo. Albert Camus era um entusiasta da obra e recomendou sua tradução para a Gallimard, o que tornou Sábato uma celebridade da noite para o dia. Lembro que gostei demais daquele vertiginoso monólogo escrito na primeira pessoa por um narrador que resolve contar o ato que cometeu. Traz perturbadores — esta é a palavra qiue mais descreve Sabato — debates de consciência, demonstrando as dualidades e desvios que empurram os seres humanos a pensamentos e atos nem sempre justificáveis.

Porém seu grande romance é Sobre Heróis e Tumbas de 1961. São três narrativas que se completam: a do amor algo doentio de Martín por Alejandra — esta uma das maiores personagens que já conheci — ; a da morte no exílio do general Juan Lavalle, heroi da independência argentina; e o melhor de todos: O Informe sobre Cegos, que chegou a ser publicado separadamente há alguns anos. As duas primeiras, apesar de totalmente diversas entre si, são clássicas histórias de decadência de uma certa aristocracia, contadas sob a perspectiva da morte. Já O Informe está no limite do fantástico e é a respeito de uma seita maléfica dotada de poderes esotéricos e que une todos os milhões de cegos do mundo.

[…]

(MR)

Eu tenho aqui um volume de diálogos entre o Sabato e o Borges que é delicioso, editado pela Globo. Numa das conversas, o moderador os recebe em um bar de Buenos Aires; Borges pede água e Sábato whisky. Sábato fala da mitificação inconsequente dos leitores superficiais, e cita alguém da crítica que disse ser o Dashiel Hammet tão bom quanto Faulkner. Quem diz isso, continua, só pode ser um leitor esporádico, alguém pronto para escrever para periódicos, não um leitor profissional. Mas o melhor é ver Borges tão cordial, de certa forma infantilmente indefeso, o que se vê pouco entre grandes escritores (que se preocupam em passar uma imagem de rigidez literária como se pronunciassem sentenças imortais no simples ato de irem ao banheiro). Perguntado sobre música — Borges também era compositor de tangos, reunidos nos quatro volumes da Globo numa seção de milongas — , disse que uma sobrinha ou uma outra menina de sua família, ligou o rádio para que ele escutasse uma canção. Era uma canção tão linda e tocante que ele não resistiu ao choro. Terminada, perguntou quem cantava, ao que a menina respondeu: mas valha-me deus, o senhor nunca ouviu os Beatles?

Semana passada mesmo sublinhei essa frase, de um dos Prólogos dos Prólogos: “Nada mais distante da beleza que a simetria perfeita”.

(Charlles Campos)

Professor de escola pública quando jovem na “Era Perón, Ernesto Sabato foi demitido por ter assinado documento de repúdio à violência policial contra estudantes dispostos a comemorar a vitória das Forças Aliadas sobre o nazi-fascismo. Era, então, sua única fonte de renda. Muito bem. Quando caiu o regime de Perón, e Sábato ficou sabendo que muitos peronistas (seus antigos inimigos) estavam sendo torturados em nome do movimento “libertador”, o escritor sem medo assumiu o ônus de condenar a prática da violência contra os ex-violentos. Será preciso dizer mais sobre as imposições da consciência a este “homem que lutou só”?

(Fernando Monteiro)

González recordó que en los ’40 publicó “El Túnel”, que había sido elogiada por Albert Camus en Francia, “el escritor más leído en aquella poca”. Y señaló que “también Camus veía un orden moral agredido por la civilización contemporánea tecnológica y había pensado en una suerte de estadío intermedio entre los movimientos de liberación nacional, las izquierdas y las posiciones de derecha”. “‘El Túnel’ de Sabato era una novela inspirada un poco en Camus, que también buscaba en medio de la oscuridad el sentido de la vida”, planteó.

Luego, `Sobre Héroes y Tumbas` en los 60 “fue su novela conmocionante”, definió el titular de la Biblioteca Nacional y agregó que fue “una novela sobre la Argentina, una búsqueda también del sentido de la verdad y la existencia, pero a través de distintos personajes”. “Fue una novela que realmente conmocionó la literatura argentina, también en medio de un mundo sin valores o sin sentidos, sobre todo la ciudad de Buenos Aires, que él pinta con cierto sentido metafísico interesante”. También agregó que “los personajes son como sonámbulos que se buscan a si mismos en medio de una sociedad que les da la espalda y esa novela durante muchos años fue la marca que dejaba Sabato a los nuevos lectores, y no pocas otras escrituras se inspiraron en `Sobre Héroes y Tumbas`”.

(Horacio González, no Página 12)

O poeta e jornalista Franco Mogni – um dos jovens escritores dos quais Sabato jamais se apartou, ao longo do tempo – fez-lhe justiça nesta apresentação de entrevista para a revista Che, nos anos de 1970:

“Está sentado num dos últimos cafés de ar verdadeiramente portenho, com uma camisa azul escura que reforça o seu ar de monge e de anarquista ao mesmo tempo. Sábato é o último dos moicanos da retidão que não nega encarar os dilemas. Ele os vê com os olhos ziguezagueantes atrás dos óculos, num rosto que mescla traços de Chestov e Kierkegaard. E diz: ‘Se o homem é mortal em qualquer parte do mundo, aqui é muito mais mortal’. Tira os óculos e sorri meio de lado, acentuando as linhas do rosto sofrido. Vê-se, então, que é um homem só. O último dos moicanos.”

(Fernando Monteiro)

La ardua gestación de la mejor novela del Siglo XX

Compleja y extensa como pocas resultó para Ernesto Sabato la gestación de “Sobre héroes y tumbas”, considerada por los críticos como la mejor novela del siglo XX y en la que conjura sus obsesiones autobiográficas para reflexionar sobre la historia argentina y avanzar en la investigación de la relación entre la conciencia y el mundo exterior al sujeto.

Publicada en 1961, “Sobre héroes y tumbas” mutó sus variables literarias en numerosas oportunidades desde el primer bosquejo ideado por Sabato en 1938 bajo el título de “La fuente muda”, inspirado en un poema del poeta español Antonio Machado que dice “está la fuente muda y está marchito el huerto”.

La escritura de esta novela fue abandonada durante años, hasta que el desaparecido diario Sur publicó un fragmento en el que se percibe cómo el escritor inaugura con ella un curioso experimento, con páginas a dos columnas: la izquierda utilizada para lo que el personaje va soñando y la derecha para narrar los hechos que le suceden.

De esta historia, Sabato retomó algunos elementos con los que construyó el primer bosquejo de “Sobre héroes y tumbas”, al que le anexó fragmentos de otra novela, “Memorias de un desconocido”, sobre los pensamientos delirantes de un nihilista -que sustentaron el “Informe sobre ciegos”. Y de una tercera, “El desafío”, acerca de un joven solitario que se encierra a esperar que aparezca Dios.

La versión definitiva de “Sobre héroes y tumbas” es el resultado de un proceso en el que desaparecieron capítulos enteros -además de diluirse personajes y cambiarse el nombre de familias enteras- y sufrieron transformaciones radicales los recursos narrativos: aún así, las alteraciones rindieron a favor de la historia, considerada la mejor novela argentina del siglo XX.

[…]

(Julieta Grosso)

O homem é feito não apenas de desesperança, mas também, e fundamentalmente, de fé e esperança; não somente de morte, mas também de ânsias de vida; tampouco unicamente de solidão, mas também de comunhão e amor. A obra de Saint-Exupéry mostra como a literatura pode ser profunda e, não obstante, estar impregnada de cálidos sentimentos positivos. Disse Nietzsche que um pessimista é um idealista ressentido. Se modificarmos levemente o aforismo, dizendo que é um idealista desiludido, daí poderíamos passar a sustentar que é um homem que não termina jamais de se desiludir, pois há na condição psicológica do idealista uma espécie de ingenuidade inesgotável. E assim como a desilusão nasce da ilusão, a desesperança surge da esperança; mas uma e outra, desilusão e desesperança, são curiosamente o signo da profunda e generosa fé no homem.

(Ernesto Sabato)

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Ernesto Sábato completa 99 anos / Saramago entrevista María Kodama

Ernesto Sábato não escreveu muitos livros de ficção, talvez tenha escrito três ou quatro, mas os que li foram muito marcantes: O Túnel e Sobre Heróis e Tumbas.

O Túnel é de 1948 e insere-se decidamente no existencialismo. Albert Camus era um entusiasta da obra e recomendou sua tradução para a Gallimard, o que tornou Sábato uma celebridade da noite para o dia. Lembro que gostei demais daquele vertiginoso monólogo escrito na primeira pessoa por um narrador que resolve contar o ato que cometeu. Traz tremendos debates de consciência, demonstrando as  dualidades e desvios que empurram os seres humanos a pensamentos e atos.

Mas, em minha opinião, seu grande romance é Sobre Heróis e Tumbas de 1961. São três narrativas que se completam: a do amor algo doentio de Martín por Alejandra — esta uma das maiores personagens que já conheci — ; a da morte no exílio do general Juan Lavalle, heroi da independência argentina; e o melhor de todos: O Informe sobre Cegos, que chegou a ser publicado separadamente há alguns anos. As duas primeiras, apesar de totalmente diversas, são clássicas histórias de decadência de uma certa aristocracia,  contadas sob a perspectiva da morte. Já O Informe está no limite do fantástico e é a respeito de uma seita maléfica dotada de poderes esotéricos e que une todos os milhões de cegos do mundo.

(Escrevo de memória. Li ambos nos anos 70…).

Tenho a melhor das lembranças de Ernesto Sábato, mais um grande escritor argentino.

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Kodama entre o génio de Borges e as perguntas geniais de Saramago

Obs.: Ontem, no Ciberescritas, li a estranha entrevista que José Saramago fez com (ou submeteu a) María Kodama, viúva de Jorge Luis Borges. Transcrevo-a abaixo.

Por Isabel Coutinho

José Saramago revelou-se um óptimo entrevistador. María Kodama, a última companheira de Jorge Luis Borges, riu-se às gargalhadas e lá foi respondendo às perguntas sérias, íntimas e prosaicas do Nobel português. “Como é que Borges dizia que te queria? Explica-nos, explica-nos!”.

Já José Saramago tinha lido pela primeira vez o poema Elegia (1963), de Jorge Luis Borges, e estava a dizer para a assistência que quase encheu o auditório da Biblioteca Nacional, sexta-feira à tarde em Lisboa, que se tratava de “um belo poema, quase uma autobiografia”, quando a sua mulher, Pilar del Río, irrompeu pelo palco vinda da plateia.

“É um poema belíssimo mas ninguém ouviu nada”, disse-lhe, enquanto ajustava os microfones em cima da mesa.

O prémio Nobel da Literatura ainda balbuciou que alguém tinha ido mexer no seu microfone, mas Pilar del Rio virou-se para os oradores e avisou: “Para todos e para sempre, o microfone tem que estar em frente à boca!” A plateia desatou às gargalhadas.

“Pois”, afirmou Saramago. “É a sua experiência de rádio”, justificou-se perante os seus companheiros de mesa, que eram María Kodama escritora, tradutora, companheira de Jorge Luis Borges por mais de vinte anos e Carlos da Veiga Ferreira, o editor da Teorema, onde estão publicadas em português as Obras Completas do escritor argentino que morreu em 1986.

“E então passemos a ler outra vez o poema porque não perdemos nada com isso”, rematou o autor de Ensaio sobre a Cegueira. “Oh, destino, o de Borges,/ ter navegado pelos diversos mares do mundo/ ou pelo único e solitário mar de nomes diversos (…)/ e não ter visto nada ou quase nada/ senão o rosto de uma rapariga de Buenos Aires (…)”, deu-se assim o mote para a palestra-colóquio E se falássemos de Borges?, uma conversa entre a viúva e o Nobel, organizada pela Fundação José Saramago, a que se seguirão outras dedicadas a escritores. No dia 10 de Julho, no Teatro Nacional de São Carlos, falar-se-á de Jorge de Sena.

“Não achas que os leitores ficam prisioneiros dos contos de Borges?” Saramago tem a intuição de que o acesso à obra do escritor argentino se faz pela leitura dos contos e que às vezes os leitores ficam só por aí. Esquecem que Borges foi um grande poeta.

Kodama concordou. O que deu fama internacional a Borges foi a tradução dos seus contos e da sua prosa. Mas, revelou, “ele sempre se sentiu poeta”. Mesmo a sua prosa é “uma prosa poética, tem um ritmo especial”. Ele preferia ser recordado como poeta e não como contista. Mas como era muito exigente consigo próprio e perfeccionista, sentia uma nostalgia, pensava que nunca ia conseguir chegar a escrever “o poema”. “Eu como leitora acho que muitas vezes o conseguiu, mas ele não o sentia da mesma maneira”, concluiu María.

Vida de todos os dias

Borges começou por ser poeta. Mas a determinada altura teve um acidente. Magoou-se na cabeça numa janela aberta que estava a ser pintada, quando ia para casa de uma amiga, e sofreu uma septicemia. Na época não havia antibióticos, ficou às portas da morte, com febre e pesadelos. Quando melhorou, “milagrosamente”, teve medo de ter perdido a capacidade intelectual, a capacidade para escrever poemas. “Então decide que vai escrever um conto porque se fracassasse não sentiria que estava louco ou que tinha perdido essa capacidade.” Escreve então o seu conto Pierre Menard, autor de ‘Quixote’ (onde está a frase “Não queria compor outro Quixote o que é fácil mas ‘o’ Quixote”).

A partir daí entra num longo período em que se dedica à prosa, aos contos, e escreve ensaios e crítica literária para jornais. “Quando perde a visão e percebe que lhe é difícil continuar a escrever, vai retomar a poesia. Porque era mais fácil decorar o texto por causa da rima, já que não podia passar ao papel imediatamente o que estava a pensar.” Começou pela poesia, por causa do acidente escreve prosa e mais tarde, por causa da cegueira, regressa à poesia. Na última fase, “já seguro de si”, mistura as duas coisas, poesia e prosa.

Como era Borges na vida de todos os dias?, quis saber Saramago.
“É que Borges era um génio e continua a ser apesar de já não estar entre nós como é que se comporta um génio na vida de todos os dias?” A esta “questão prosaica” o escritor quis que Kodama respondesse francamente. Aprendia-se muito, disse ela, era notória a profundidade e diversidade do seu conhecimento. Tinha um enorme sentido de humor e contava muitas histórias da sua avó inglesa, que ele adorava. “Era um ser encantador, divino”.

Por vezes eu tentava que os meus colegas de turma fossem assistir às aulas de línguas anglófonas que ele me dava. Eles diziam-me: ‘Não! Como queres que vamos contigo, ele é velho, os labirintos, os espelhos, por que é que não vens mas é sair connosco?’ Eu respondia-lhes: ‘Sim, ele é os labirintos, os espelhos, o que vocês quiserem, mas paralelamente a isso é uma pessoa divertidíssima com quem podemos passar momentos muito agradáveis e descobrir uma quantidade de coisas, intelectuais e não só, através do que nos conta.” Apesar da sua sabedoria, disse Kodama, as pessoas não se sentiam intelectualmente inferiores a Borges. Sabia guiar as conversas.

“Tinha muita consideração pelos outros. E tinha um sentido ético e de delicadeza no trato. Na sua obra também se reflecte isso: tudo está dito, mas tudo é dito de uma maneira especial.”

Aulas de línguas

Não há palavras para descrever o ar matreiro do escritor português quando anunciou a María Kodama que lhe ia colocar duas questões “muito íntimas”. Durante toda conversa, que durou mais de uma hora, Saramago fez sempre perguntas interessantes, foi dizendo também aquilo que pensava sobre a obra do autor argentino, não fugiu a perguntas difíceis como a sua ligação com a ditadura.

Estava visivelmente bem-disposto a longa doença do ano passado parece estar finalmente a ficar para trás, com 14 quilos a mais e a recuperar pouco a pouco a massa muscular. “Estavas realmente interessada em aprender inglês antigo ou foste aprender inglês antigo para conhecer Borges?”, foi a primeira. Seguiu-se a segunda: “Como é que Borges dizia que te queria?… Explica-nos, explica-nos!” Foi então quando Kodama tinha cinco anos que teve aulas com uma professora de inglês que utilizava um método de lhe ler os textos no original e depois traduzir em espanhol. Leu-lhe um poema em inglês de Borges, do qual Kodama não entendeu nada mas sentiu que havia algo ali que a fazia sentir próximo dele (a solidão).

Aos 12 anos, um amigo do pai, que era fanático de Borges, levou-a a ouvir uma conferência do escritor e ela impressionou-se com a sua timidez. Anos depois, já no colégio, viu Borges do outro lado da rua. Vai ter com ele: “Conheci-o quando era uma miúda.” Ele riu-se: “Claro, agora você é grande. Em que trabalha?” Ela respondeu-lhe: “Estou a terminar o secundário.” Quer estudar o inglês arcaico?, pergunta-lhe ele. “Shakespeare?”, arrisca ela. “Não, muito anterior, século X.” “Então se calhar é complicado”, diz-lhe ela mas ele convence-a, dizendo que vão estudar juntos. Passam a encontrar-se em cafés de Buenos Aires, ele aparecia com os dicionários debaixo do braço. “Divertíamo-nos muitíssimo”. E a vida foi-lhes dando outra história que terminou, realmente, “em amor”.

“E a segunda pergunta?”, insistia José Saramago. Kodama ria-se ao início e depois já estava às gargalhadas. “Que palavras utilizava para dizer que te queria…”, continuava o autor português. “Isso é importantíssimo. Posso não ser um bom escritor, mas a fazer perguntas sou um génio!”, brincou o Nobel, que assim pôs a sala inteira a rir à gargalhada.

María e Jorge usavam vários nomes, a maior parte ligados à literatura. “Um desses nomes era tirado de um conto que ele me tinha dedicado em segredo e que se chama Ulrica (in O Livro da Areia). Quis gravá-lo no túmulo em Genebra e em lugar de María Kodama e de Borges coloquei o epitáfio ‘De Ulrica a Javier Otárola’, porque eram nomes muito especiais para nós. Ulrica vinha também um pouco da Elegia de Marienbad, de Goethe, que ele me recitava em alemão. Ulrike von Levetzow era o nome da jovem amante de Goethe e quando ele fazia amor com ela contava as sílabas nas suas costas, acariciando-as com a mão. Bem, já está dito.” E María Kodama e José Saramago prosseguiram com outro assunto antes que a conversa ficasse mais complicada.

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