Para abordar uma contista tão rica e surpreendente como Lucia Berlin, vamos fazer antes uma rápida excursão à origem do conto e a sua definição, se é que podemos defini-lo.
Determinar o que exatamente separa um conto de formatos ficcionais mais longos é problemático. A definição clássica foi dada por Poe e é bem simples: “O conto é aquilo que pode ser lido em uma sessão de leitura ou, digamos, em uma sentada”. A interpretação disto pode ser problemática hoje em dia, porque talvez, nos nossos dias, a duração de “uma sentada” possa ser mais curta do que era na época de Poe…
Então, os contos têm tamanhos vagamente definidos. Mas há pessoas que demarcam os gêneros literários em termos de contagem de palavras, como se a diferença entre uma crônica, um conto, uma novela ou um romance pudesse ser definida pelo número de palavras. Eu acho que as definições devem partir do contexto, mas tem gente que insiste em contar palavras e que diz que um conto deve ter menos de 7.500 delas.
Histórias mais longas que não podem ser chamadas de romances são às vezes consideradas “novelas”, que são normalmente publicadas como os contos, em coleções dentro de um só volume ou em pequenos livros com só uma delas.
Mas como o conto surgiu?
Vamos a uma brevíssima história. Os precursores do conto foram as lendas, os contos populares, os de fadas, as fábulas e as anedotas. Claro que estas histórias curtas existiam principalmente na forma oral e assim iam sendo transmitidas de uma geração para outra. Um grande número destes contos é encontrado na literatura antiga, desde os épicos indianos como o Ramayana e o Mahabharata até os épicos homéricos, como a Ilíada e a Odisseia. As 1001 Noites, compiladas pela primeira vez provavelmente no século VIII, também é um repositório de contos folclóricos do Oriente Médio.
Na Europa, a tradição oral de contar histórias passou para o papel no início do século XIV, principalmente com os Contos de Canterbury, de Chaucer, e o Decamerão, de Boccaccio. Ambos os livros são compostos de contos individuais — que variam de histórias de humor rasgado até ficções literárias mais elaboradas — inseridos em uma narrativa mais ampla, aliás como já eram As 1001 Noites.
Na década de 1690, os contos de fadas tradicionais começaram a ser publicados por Charles Perrault. Logo depois, apareceu a primeira tradução moderna para o francês de As 1001 Noites, a qual teria enorme influência nos contos europeus.
As primeiras coleções de contos, próximas do que hoje se conhece, apareceram entre 1810 e 1830 em vários países ao mesmo tempo. Foi o momento em que o conto começou a abandonar a necessidade de passar uma mensagem, uma moral. Notem, por exemplo, que o livro de contos de Cervantes, escrito em 1613, chama-se Novelas Exemplares.
Então veio a virada de Poe
O grande transformador do conto foi Edgar Allan Poe. Ele criou o conto psicológico, o de terror e deu um passo gigantesco na direção do que seria a literatura policial, que depois adquiriu enorme prestígio e tradição. Mas o principal é que ele iniciou a fase em que o contista narra duas histórias ao mesmo tempo. Não há mais uma moral, mas há uma segunda história subterrânea que vai sendo contada sob a superfície. Esta segunda história não é explicitada. A segunda história contada está escondida sob a primeira, que é a que você lê.
Esta tese não é minha, é do brilhante escritor argentino Ricardo Piglia: ele assegura que o segredo de um conto bem escrito é que, na realidade, todo conto conta duas histórias: uma em primeiro plano e outra que se constrói em segredo. A arte do contista estaria em saber cifrar a segunda história nos interstícios da primeira. Uma história visível esconde uma história secreta, narrada de forma elíptica e fragmentária. O efeito de surpresa se produz quando o final da história secreta nos salta aos olhos. Às vezes, o que parece supérfluo para uma história é fundamental para a outra.
Vou dar um exemplo para que fique mais claro. Acho que todos conhecem o conto Missa do Galo, de Machado de Assis, um dos contos mais perfeitos que conheço. A história da superfície mostra o narrador, Nogueira, relembrando uma noite da sua juventude e a conversa que teve com uma mulher mais velha, D. Conceição. Ironicamente, mestre Machado inicia o conto com a seguinte frase: “Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta”. Esta história é tão, mas tão perfeita, que o narrador nos confessa logo de cara que não entendeu a segunda história. E ele passa a nos encher de detalhes e diálogos. Vemos claramente, sob nossos olhos, o desenrolar da segunda história, contada muito aos pedaços e sutilmente, a de como vive D. Conceição, a de como seu marido a abandona em casa, a de sua falta de afeto, os motivos que ela tinha para tentar seduzir o menino.
Outra coisa é a maestria de Machado. Ele não apenas demonstra tudo isso, como fica claro o momento em que D. Conceição para de tentar, pois, certamente pouco conhecedora da arte da sedução, ela erra a mão e deixa passar o momento. E Machado nos demonstra tudo isso sem frases como “Conceição cansou e desistiu do menino”.
Depois, Joyce inverteu este modelo. Em Dublinenses, parece que a história 2 comenta a 1, às vezes a ataca ou duvida dela.
Lucia Berlin usa e abusa destes artifícios e de outros. Por exemplo, no conto que abre Manual da Faxineira, Lavanderia Angel`s, ela conta duas histórias de superfície. Ambas acontecem dentro de lavanderias self-services, dessas de moedas, uma em Nova York e outra em Albuquerque, no Novo México. As duas histórias estão separadas não somente geográfica como temporalmente. E ambas contam uma terceira história, a da própria autora, mãe de 4 filhos antes dos 30 anos, sempre lavando muita roupa, sempre devaneando muito e causando problemas, como o que ela causa ao apertar botões e reprogramar máquinas que estão lavando as roupas de outrem. Uma mulher inteligente, muito bonita, mas que parece um tanto inadequada ao mundo.
Agora, somos obrigados a falar da biografia de Lucia Berlin porque ela sempre escreveu sobre si mesma.
(continua com uma pequena biografia de Lucia Berlin)
Você abre Mônica vai jantar e nota que o livro só tem um parágrafo, como alguns de Thomas Bernhard. Folheia algumas páginas e se dá conta que não há pontuação — nem ponto final –, que é um jorro só como o monólogo de Molly Bloom, do Ulysses de Joyce. Porém, se no capítulo final Penélope (o tal monólogo de Molly) temos 8 frases em 70 páginas de furioso fluxo de consciência, aqui temos mais ou menos a mesma extensão do fluxo de consciência de uma mulher que deve ir a uma dessas festas noturnas chatas de fim de ano que as empresas promovem, mas cujo namorado marido andou, simplesmente, masturbando-se publicamente num ônibus e que apanhou feio na mesma tarde. Sim, o pessoal do ônibus não apreciou muito o gesto de abertura do zíper e o resto.
Há muito a elogiar no livro de Davi Boaventura. Apesar da, ops, aventura do estilo, o livro é perfeitamente compreensível, nada hermético. A leitura é fácil e ritmo do texto tão bem planejado que adquirimos rapidamente a velocidade requerida. Mais: Davi é seguro, tudo funciona muito bem na narrativa.
Mônica é uma pessoa simples, uma subgerente de loja que tem um chefe machista que a assedia. Em seu monólogo interior, ela não consegue analisar em profundidade o ato do namorado marido. Está abalada, em choque após saber do fato e fica toda atrapalhada tendo que se arrumar para o jantar. Ou seja, no dia em que descobre uma atitude repulsiva do namorado, o que a humilha e ofende, tem que ir a um jantar, a uma obrigação profissional, com a presença de um cara desagradável e do qual não sabe se conseguirá ficar sentada longe.
No olho do furacão, Mônica deve se mover. É difícil.
O livro é experimental? Sim, mas é muito acessível e de fácil leitura.
Tem pontos de parada? Absolutamente não. Li-o em três sessões de mais ou menos 30 páginas e foi bom.
Então não me venham com papinho de que é difícil, de que é exercício de estilo, punheta literária, etc.
O livro tem o estilo que cabe ao turbilhão de pensamentos que ocorrem a uma pessoa sob pressão profissional, que tem uma união estável e se sente traída da forma mais inusitada e horrível.
Há controvérsias sobre o ano em que o Bloomsday começou a ser comemorado. Alguns indicam 1925 (três anos após o lançamento do livro); outros afirmam que foi na década de 1940, logo após a morte de Joyce. A hipótese mais aceita indica que foi em 1954, na data do quinquagésimo aniversário do dia retratado em Ulysses, o célebre 16 de junho de 1904.
O Instituto Ling, claro, não poderia ficar de fora.
Neste ano, temos aqui presentes Donaldo Schüler premiado escritor e também tradutor de livros como Finnegans Wake, de James Joyce, e da Odisseia, de Homero. Donlado é doutor em Letras e Livre-Docente pela UFRGS e pela PUCRS. Patrick Holloway é escritor e tradutor, possuindo doutorado em Escrita Criativa pela PUCRS e mestrado pela Universidade de Glasgow. Seus contos e poemas foram publicados no Brasil, EUA, Reino Unido, Austrália, Canadá e Irlanda.
Temos também a presença do ator Charles Dall’Agnol no papel de Leopold Bloom e da Banda Irish Fellas, quarteto de música tradicional irlandesa, formado pelos músicos Caetano Maschio Santos (violino, banjo, flautas e voz), Alexandre Alles (teclado), Renato Muller (gaita-ponto e voz) e Kelvin Venturin (bódhran e voz).
Contrastando com tudo isso, no papel de patinho feio, há eu, Milton Ribeiro, jornalista, critico literário e proprietário da Livraria Bamboletras.
Mas iniciaremos passando a palavra ao representante do Consulado da Irlanda em Porto Alegre. Por favor, Mr. Jill Henneberry.
.oOo.
Bem, como jornalista, tenho o vício de contextualizar tudo.
O que é o Bloomsday?
Bloomsday é o dia instituído na Irlanda para homenagear o personagem Leopold Bloom, protagonista de Ulysses, de James Joyce. Em todo o mundo, é o único dia dedicado a um personagem de um livro.
O Bloomsday é comemorado no mundo inteiro, em várias línguas. É comum que pessoas — de atores profissionais a amadores — vistam-se a rigor e refaçam cenas vividas pelos personagens de Ulysses por Dublin.
Como ele foi traduzido no Brasil?
No Brasil, temos três traduções do livro. A de Antônio Houaiss, de 1966, a de Bernardina da Silveira Pinheiro, de 2005, e a de Caetano Galindo, de 2012. De forma complementar, o mesmo Galindo escreveu Sim, eu quero sim — Uma Visita Guiada ao Ulysses de Joyce.
O guia de Galindo se justifica. Ulysses é um livro difícil, que assusta e afasta muita gente.
Mas o que há nestas mais de mil páginas?
Como disse, tudo se passa num só dia, das 8h da manhã às 2h da madrugada do dia 17.
São 18 capítulos, cada um com aproximadamente uma hora de ação.
Cada um escrito em uma técnica narrativa diferente.
Cada um deles sendo uma paródia de um episódio da Odisseia de Homero.
(Há correspondência entre personagens da Odisseia e de Ulysses — Leopold Bloom seria Ulysses; Molly Bloom, Penélope; Stephen Dedalus, Telêmaco).
Cada capítulo faz referência a uma ciência ou ramo do conhecimento.
Em cada um, uma parte do corpo humano é alçada a símbolo.
Em todos os capítulos há uma infinidade de enigmas, jogos de palavras, paródias, trocadilhos, neologismos, arcaísmos, estrangeirismos e todas as operações com a linguagem que você puder imaginar e mais algumas, como escreveu o professor de literatura Idelber Avelar.
Nestas 18 horas, Leopold Bloom tem aventuras mais ou menos análogas às do herói Ulysses: ele encontra sereias, ciclopes, feiticeiras, enfrenta a ira dos deuses e consegue retornar ileso para casa. Mas em Ulysses as figuras mitológicas são substituídas por pessoas de Dublin. As batalhas épicas acabam acontecendo dentro de fatos e diálogos de um dia comum em Dublin.
A primeira versão integral foi editada na França, em 1922, depois que editoras americanas e britânicas evitaram a publicação por considerar o original pornográfico. A Justiça dos EUA só permitiu a publicação integral em 1933. A Inglaterra, só em 1936. A razão é que os personagens falam como pessoas comuns, há fluxo de consciência, então a vida interior deles está exposta, com franqueza e muitos palavrões.
E quem é Bloom?
Quando conhecemos Leopold Bloom, ele está fazendo café da manhã para sua esposa e falando carinhosamente com um gato. Se você passasse por ele na rua, talvez nem o notasse. Sua vida exterior é circunscrita pelas ruas de Dublin e pelas exigências de uma carreira modesta. Apesar da falta de perspectivas, ele parece estar à vontade com suas próprias sombras e contradições. Ele aceita o mundo e sente prazer nas menores coisas. Conheceu a tragédia — o suicídio de seu pai, a morte de seu filho recém-nascido — e conheceu a alegria, como marido de Molly e pai de Milly. Ele ama animais, abomina a violência e aceita o fato de que sua esposa está transando com outro. Esta última parte lhe causa dor, mas ele aprendeu há muito tempo que o mundo é maior do que sua dor e a posse não faz parte de sua compreensão do amor.
Bloom também é filho de um imigrante judeu e, portanto, Joyce fugiu da escolha óbvia de criar um herói típico. Bloom é Dublin, seus amigos gostam muito dele, mas ele é um mistério. Em suas mentes, ele é passivo e “feminino”. E todos sabem que sua esposa está tendo um caso. O que está errado com ele? Que tipo de homem é esse?
Ulysses é um livro quase sem enredo e Joyce ufanava-se disso. Naquele dia, Stephen Dedalus, professor de escola secundária, conversa com seu amigo Buck Mulligan, dá uma aula e passeia pelas margens do Liffey; Leopold Bloom, vendedor, não muito atormentado pelas repetidas traições de Molly, sua mulher, toma café da manhã, vai a um funeral, visita um editor de jornal, lancha num bar, olha um anúncio de jornal na biblioteca (enquanto seu amigo Dedalus discute Shakespeare com amigos), responde a uma carta, leva porrada de um anti-semita, masturba-se observando Gerty MacDowell, encontra-se com Dedalus, leva-o a um bordel e convence-o a acompanhá-lo até a sua casa. Ambos urinam no jardim. Bloom entra e se deita ao lado de Molly, que fecha o romance com um monólogo cheio de pornografia.
Ou erotismo. Pois talvez a pornografia seja apenas o erotismo dos outros, não? Enfim.
Por que o livro foi proibido e censurado à princípio?
Salman Rushdie escreveu em seu ensaio The Short Story: “É muito comum que o que é pornográfico para uma geração, seja clássico para a seguinte”. A frase parece perfeita aqui. Enquanto a censura do início do século XX considerava o texto imoral e inadequado, ele agora oferece para nós um quadro riquíssimo para a exploração e análise da sexualidade de personagens extremamente bem construídos.
Há coisas bem estranhas no Ulysses, principalmente para os contemporâneos de 1922.
Por exemplo, a Penélope de Joyce é Molly Bloom. Se a personagem de Homero esperava o retorno de seu Ulysses fielmente, embora assediada por pretendentes – sempre tão gentis, como diria Chico Buarque –, Molly não aguarda. Bloom, apesar de saber das traições de Molly com Blazes Boylan, não pretende lavar sua honra com sangue.
“Assassinato nunca, visto que dois erros não se tornam um acerto.”
A propósito, o adultério de Molly nada tem a ver com o de Capitu. Não pairam dúvidas a respeito. Bloom sabe e a própria Molly, em seu longo monólogo final de 8o páginas sem pontuação, rememora com algum detalhe os acontecimentos eróticos da tarde.
Um trecho de Ulysses (Cap. 17, Ítaca):
“Cada um que entra na cama imagina ser o primeiro a entrar nela, enquanto que é sempre o último termo de uma série precedente mesmo e o primeiro de uma outra subsequente, cada um imaginando ser primeiro, último, único e só, enquanto que não é nem primeiro nem último nem único nem só.”
Bloom não se comporta tipicamente como um homem da virada do século como o casal Molly e Leopold, está inteiramente fora dos estereótipos da virada do século XIX para o XX, que definem a masculinidade como agressiva e dominadora e a feminilidade como passiva e reservada. Bloom é muitas vezes chamado de homem feminil. Molly é decidida e toma todas as iniciativas, inclusive foi ela quem o beijou pela primeira vez.
Bloom não deseja impedir o adultério de Molly com Blazes Boylan. Ele chega a imaginar uma cena na qual entrega sua esposa. Essencialmente, ele permite a infidelidade da esposa para que esta possa experimentar o prazer enquanto ele procura a sua própria e particular satisfação.
Enquanto Ulysses lutava para voltar para sua Penélope, Bloom enrola e faz tempo na rua para não cruzar com Boylan em sua casa.
Como disse, Bloom prepara o café para Molly, arruma a cama, tem sentimentos de empatia para com a mulher grávida, preocupa-se com situação da filha, morre de saudades do filho morto, têm fantasias de que está grávido. Mais: Bloom sente-se inconformado e invejoso pela centralidade da mulher no processo dar à luz.
Seis semanas antes de seu filho Rudy nascer, é visto comprando uma lata de alimento infantil, comprovação — para seus amigos — que ele não é bem um homem. Pior: s amigos dizem que ele, uma vez por mês, fica com dor de cabeça “como uma franguinha menstruada”.
Para finalizar, digo-lhes que Ulysses é puro colorido, vivacidade e energia verbal. As pessoas não são sutis ou elegantes. Não há nada mais lindo do que Bloom se masturbando na frente de Gerty MacDowell e Molly explodindo em sua insônia, nada mais frágil do que o não-machista Bloom comprando fraldas. Nada lembro de nada literariamente mais brilhante do que Joyce fazendo pouco dos padres. Não há pose, pompa, grandiosidade, apenas um enorme amor pelo humano. Na minha opinião, é uma alegria que tal livro seja o único que mereceu um feriado até hoje. Isto fala bem de nós.
.oOo.
Este foi o esboço do meu roteiro. Na verdade, eu entremeei os parágrafos com várias perguntas ao Donaldo e ao Patrick, assim como com chamadas à excelente banda Irish Fellas. Tivemos belos momentos durante o Bloomsday do Instituto Ling. Concordamos, discordamos, ouvimos música irlandesa e tivemos a presença ‘in loco’ do próprio Leopold Bloom.
Com a minha autoestima tão retardada quanto meu cérebro, só hoje, pensando retrospectivamente, concluí que fizemos um belo trabalho juntos. Comandados pela Maira Ritter, o grupo que falou, cantou e atuou foi formado por mestre Donaldo Schüler, Charles Dall’Agnol, Patch Holloway, Irish Fellas, pela representante do Consulado da Irlanda Jill Henneberry e por mim. Ah, jamais esquecer das participações da Aurora, filha do Patrick (Patch Holloway), que aprendeu a caminhar faz uma semana e que parece estar gostando muito disso.
Com Gustavo Ventura Gomes, a Livraria Bamboletras também se fez presente com edições de ‘Ulysses’ e de ‘Sim, eu digo sim’ de Caetano W. Galindo.
E viva Joyce! Viva Ulysses! Vivam Molly e Leopold Bloom!
O primeiro e fundamental acerto de Caetano Galindo é a escolha do tom de sua visita guiada ao Ulysses de Joyce. Conhecedor dos labirintos às vezes complicadíssimos do livro, ele é um visitante cuidadoso e humilde, que limpa os pés no tapete de entrada e senta-se formalmente na sala, só que sem nunca perder o bom humor. Ele pede tacitamente que nos comportemos da mesma forma, sempre dizendo que o tópico analisado pode significar isso ou aquilo, talvez aqueloutro ou ainda algo que nem imaginamos. Assim, logo ficamos sabendo que o pote servido ao lado do café pode conter sal e que o doce pode vir antes salgado.
Galindo não deseja explicar a obra máxima de Joyce de forma completa e taxativa — tarefa praticamente impossível –, mas faz algo melhor: abre um leque de possibilidades para quem leu ou lerá Ulysses. E faz isso brilhantemente. Sabe que não pode ser completo, repito, que não poderia ser exaustivo, mas explica MUITO. Bem humorado, lamenta as pessoas que vão abrir Sim, eu digo sim para se fazerem de entendidos em bares. Neste caso, “eu tenho que lhe dizer que você estará perdendo muita coisa. Muito livro”.
De acordo.
Há muito a discutir. Afinal, Joyce, com ironia típica, disse que a verdadeira chave para a imortalidade literária era manter os acadêmicos ocupados. E encheu seu livro de mistérios, alguns aparentemente inextricáveis. Galindo não engana e chega até a nos indicar onde muita gente boa desiste de lê-lo.
Após uma excelente introdução, ele nos pega pela mão e examina cada um dos 18 capítulos de Ulysses. Traça paralelos com a Odisseia de Homero e detalha muitíssima coisa. Eu garanto que saí da leitura desta obra com alguns centímetros a mais. O livro tem 375 páginas. Começa analisando o uso e abuso do discurso indireto livre, fato que me tonteou de verdade mais de uma vez, e vai adiante analisando a amizade de Bloom e Dedalus, a sexualidade de Leopold e Molly, a variação dos estilos narrativos, a presença de Boylan, os fatos ligados à forma de pensar e agir do início do século passado, os trechos favoritos de Joyce.
Galindo sabe muito e tem muito a dizer. Suas explicações e esclarecimentos fizeram um bem danado a este leitor das três traduções do Ulysses no Brasil. Sim, sua abordagem é fascinante. E assim vamos examinando o grande livro dedicado ao homem comum durante o dia 16 de junho de 1904. Os monstros e sereias de Homero vão sendo substituídos por elementos parodísticos geniais e tão habituais que os rastros do Odisseu ficam apagados. O leitor meio dedicado meio ignorante como eu vai se surpreendendo com a riqueza de detalhes insuspeitados do livro de Joyce. E passa a amar ainda mais o livro.
Para finalizar, garanto-vos que Galindo mostra e dá acesso a muita coisa, praticamente sem interpretar. Deixemos os “interpretaços” para os divãs, né?
Há dez minutos, bêbado, estava lavando louça e pensando nos motivos que levam à imortalidade do Ulysses, de Joyce. São tantos motivos que eles montam uns por cima dos outros, procurando ganhar importância. Acho que os 18 estilos de narração têm papel fundamental. Acho que o paralelismo com a Odisseia é lindo. O labirinto das referências nem se fala. Acho que o homem feminil Leopold Bloom, cujo comportamento causa até hoje tanta discussão — um homem sensível, que fazia café para a mulher com a qual não tinha mais relações sexuais, que se preocupava com os filhos, que não trepava com a mulher após a morte de Ruby, um dos filhos, que tolerava o amante em sua cama na sua ausência, isso em 1904 –, é um tipo fundamental, mas acho que as piadas grossas, os incríveis e coloridos trocadilhos, a falta de limite entre erotismo e pornografia é ainda mais central no livro. Por exemplo, na cena com Gerty em que ele se masturba na praia, embevecido pela beleza da moça, ela vê o que ele faz (sem problemas), ele ejacula nas calças (OK), mas Joyce vai além: Bloom caminha, a coisa seca, gruda. o prepúcio fica fora do lugar, ele precisa ajeitar as coisas no púbis. Também quando Molly — à noite, sempre à noite, antes de dormir, como as mulheres gostam — faz uma DR em silêncio, num furioso fluxo de consciência, o autor não recua, usa todos os termos e diz o que até hoje evitamos. Esta é uma das razões pelas quais todos nós dizemos “sim, eu digo sim” à Ulysses. Tem muito Freud e sexo em Ulysses. Não é um livro conservador. Ele é absolutamente aberto e franco. E o mundo não evoluiu suficientemente para absorvê-lo. Enquanto não o fizer, ele estará pulando, vivo, na nossa frente.
Odisseu, rei de Ítaca, casado com Penélope, depois de ter se distinguido durante dez anos na guerra contra Troia, está voltando para casa, passando por uma série de aventuras e provações, ficando muitas vezes à mercê de feiticeiros, monstros e deuses vingativos. Penélope o aguarda fielmente, embora assediada por pretendentes – sempre tão gentis, como diria Chico Buarque — que aguardam no banco de reservas, ansiosos por entrarem em campo no lugar do marido desaparecido. Em super resumo, estas são as aventuras do herói Odisseu em sua volta à pátria.
Pois então abrimos o Ulysses de Joyce e vemos a paródia da Odisseia de Homero. A Penélope de Joyce, Molly, não é nada fiel. Bloom é um Ulisses nada heróico, é antes um judeu irlandês de vida comum, que sabe das traições de Molly e Blazes Boylan, mas não pretende lavar a honra com sangue.
Assassinato nunca, visto que dois erros não tornam um certo.
O livro, aliás, não possui situações extremas e apenas se atém a um imenso leque de experiências cotidianas.
Um trecho de Ulysses (Cap. 17, Ítaca):
Cada um que entra na cama imagina ser o primeiro a entrar enquanto que é sempre o último termo de uma série precedente mesmo que seja o primeiro de uma outra subsequente, cada um imaginando ser primeiro, último, único e só, enquanto que não é nem primeiro nem último nem único nem só.
Boa parte do enredo de Ulysses gira em torno do casal Molly e Leopold e de sua inaptidão para sentir prazer físico e emocional um com o outro. Seja através da narração onisciente, seja por monólogos interiores, o texto documenta minuciosamente abordagens sexuais inteiramente diversas de tentativas românticas do casal. E estas ocorrem sempre SEPARADAMENTE. Durante o curso do dia, Molly comete adultério com Blazes Boylan, enquanto Bloom envolve-se com práticas sexuais voyeuristas e masturbatórias. Mesmo que Bloom participe ativamente destes encontros, é curioso como Joyce obtém mantê-lo longe do estereótipo do fauno sedento por sexo e prazer. Bloom é o anti-herói, o low profile, o personagem simpático, agradável, amistoso e apagado. Mesmo o erotismo evidente de certas participações de Bloom, acaba diluído em gentileza e bonomia. Ele é mais pai e marido, possuidor de qualidades maternas, pacifistas, até femininas.
Ulysses é um texto que procura minar as noções de gênero. O romance não promove a superioridade masculina, mas sim eleva as mulheres e a feminilidade. Não só Joyce inverte a hierarquia social predominantemente masculina, como confunde a noção de gênero com a criação de um casal formado por um homem delicado e feminino e uma mulher decidida. Nesta combinação, o casal Molly e Leopold, está fora dos estereótipos da virada do século XIX para o XX, que definem a masculinidade como agressiva e dominadora e a feminilidade como passiva e reservada.
Salman Rushdie escreveu em seu ensaio The Short Story: “É muito comum que o que é pornográfico para uma geração, seja clássico para a seguinte”. A frase parece perfeita para Ulysses: enquanto a censura do início do século XX considerava o texto imoral e inadequado, ele agora oferece para nós um quadro riquíssimo para a exploração e análise da sexualidade de personagens extremamente bem construídos, sendo que um deles era “o homem comum”.
Bloom comporta-se estranhamente para um homem da virada do século. Arruma a cama, limpa o lençol, tem sentimentos de empatia para com a mulher grávida, preocupa-se com a filha, morre de saudades do filho morto, têm fantasias de que está grávido. Mais: Bloom sente-se inconformado e invejoso pela centralidade da mulher no processo dar à luz. Seis semanas antes de seu filho Rudy nascer, é visto comprando uma lata de alimento infantil, o que prova para seus amigos que ele não é bem um homem. Pior: dizem que ele, uma vez por mês, fica com dor de cabeça “como uma franguinha menstruada”. Também, como talvez uma mulher o fizesse, ele evita que Gerty o veja de perfil, quer que ela veja seu melhor ângulo. Depois, Gerty faz o mesmo.
Bloom não deseja impedir o adultério de Molly com Blazes Boylan. Ele chega a imaginar uma cena na qual entrega sua esposa a Boylan. Essencialmente, ele permite a infidelidade da esposa para que ela possa experimentar o prazer enquanto ele procura a sua própria e particular satisfação.
Em seu ensaio prévio à última edição do Ulysses, Declan Kiberd afirma que, na verdade, Bloom e sua esposa comportam-se como verdadeiros andróginos. Eles seriam “encarnações das palavras de Freud de que mulheres dominadoras e viris são atraídas e atraentes para os homens femininos”. A sensibilidade associada à feminilidade e a agressividade associada à masculinidade não funcionam para o casal. No entanto, as qualidades femininas de Bloom e as dominadoras de Molly não garantem uma vida sexual em comum e a impressão que fica é de uma incompatibilidade confortável para ambos. Antes do famoso monólogo de Molly, Bloom recapitula o primeiro encontro sexual com a mulher, em consonância com que já sabíamos: “Ela me beijou. Fui beijado. Estava à sua mercê e ela arrumou meu cabelo. Beijado. Ela me beijou.” (A simbologia adquire mais força quando ele recorda que Molly, em seu primeiro encontro, mastigou um pedaço de bolo e, beijando-o, colocou-o quente e mastigado em sua boca).
Ulysses borra a distinção entre os sexos. No episódio “Penélope”, o famoso monólogo de Molly, o leitor entra nos pensamentos dela na cama ao lado de Bloom, que dorme ao final do dia. O monólogo revela a promiscuidade de Molly, suas lembranças de relacionamentos anteriores e memórias de família. Quando lembra da amamentação da filha, ela recorda que algumas vezes amamentou simultaneamente também a Bloom: “Eu pedi para ele chupar meus seios, ele disse que o que saía era doce e mais espesso do que o das vacas”. Enquanto muitos acharam e ainda acham isso o cúmulo da pornografia, talvez seja melhor relacionar a cena à sugestão de que a mulher pode ser a provedora familiar ou que pode rebaixar o homem a uma posição infantil.
Porém, em qualquer hipótese, o texto de Joyce afunda e afunda a masculinidade.
Giacomo Joyce é um opúsculo de oito páginas (frente e verso) manuscritas, escritas em 1914. O texto esteve esquecido durante muitos anos e acabou sendo encontrado em Trieste por um irmão de Joyce, onde o escritor viveu. Hoje, pertence a um colecionador. O texto foi criado após Retrato do Artista Quando Jovem, antes de Ulysses e narra de forma muito poética a atração do autor por uma jovem aluna judia daquela cidade. Um amor, digamos, proibido. Giacomo era como os italianos chamavam o escritor, uma tradução para James. O texto surgiu em forma de livro apenas em 1968. Esta bonita edição da Bestiário é bilíngue, com excelente tradução para o português de Roberto Schmitt-Prym. Não é uma narrativa circunstanciada, trata-se de um texto para ser lido com calma, ouvindo-se sonoridades e sentindo seu indiscutível erotismo. Parecem meras anotações poéticas escritas em formas livres que escondem um texto verdadeiramente belo.
Alguns trechos:
Lanço-me numa onda fácil de fala mansa: Swedenborg, o pseudo-Areopagita, Miguel de Molinos, Joaquim Abbas. A onda gasta. Sua colega de classe, retorcendo o corpo torto, ronrona num mole italiano vienense: “Che coltura!” As longas pálpebras piscam e se alçam: uma ponta de agulha em brasa pica e palpita na íris veluda.
Saltos altos estalam secos nos ressonantes degraus de pedra. Ar invernal no castelo, cotas de malha patibular, candeeiros de ferro tosco sobre as espirais das escadas circulares. Tique-taques de saltos, ecos altos e ocos. Alguém lá embaixo quer falar com a senhorita.
(…)
Saio apressado da tabacaria e a chamo pelo nome. Ela se volta e se detém para ouvir minhas confusas palavras falando de lições, horas, lições, horas: e lentamente suas pálidas faces se iluminam de inflamada luz opalina. Calma, calma, não tenha medo!
(…)
Minha voz morrendo nos ecos de suas palavras, morre como a voz exaustissábia do Eterno chamando a Abraão através das colinas ecoantes. Ela se encosta contra a parede acolchoada: feito odalisca na luxuriante escuridade. Seus olhos beberam meus pensamentos: e na mornez úmida e submissa de sua ingênua feminidade minha alma, dissolvendo-se, fluiu e verteu e inundou uma líquida e abundante semente… Agora que a possua quem quiser!…
Todo ano é a mesma coisa. Ainda bem. Desde o final da década de 20 do século passado, sempre no dia 16 de junho, um número crescente de leitores e admiradores de James Joyce reúnem-se para celebrar o autor de Ulysses (1922), obra que se passa no dia 16 de junho de 1904. Naquelas quase mil páginas, há sexo por todo lado e, em uma palestra que dei para o Bloomsday de 2012, tratei desse assunto. Claro, não é uma palestra acadêmica e dei risadas com a primeira pergunta que surgiu após a mesma: “Já assisti mais de dez palestras em Bloomsdays, porque só me diverti nesta aqui?”.
Abaixo, está todo o texto de preparação que escrevi para aquele dia.
.oOo.
A única exigência que faço a meu leitor é que dedique a vida inteira à leitura de minhas obras.
(The only demand I make of my reader is that he should devote his whole life to reading my works).
JAMES JOYCE
Esta é uma piada de Joyce, mas tem gente que se assusta muito com ela e mais ainda com aquilo que é dito sobre Ulysses. Se quiséssemos estabelecer uma categoria de livros mais elogiados, citados, incensados e menos lidos, Ulysses, de James Joyce, talvez encabeçasse a lista. Este é um fenômeno que surpreende, pois contrariamente a, por exemplo, O homem sem qualidades, de Musil, Ulysses é um livro escandalosamente colorido, engraçado e divertido. E sexual. Uma leitura desatenta torna certamente o livro uma chatice, uma leitura interessada já basta para torná-lo um grande romance, mesmo que não se queira entrar nos enigmas e quebra-cabeças que manterão os professores ocupados durante séculos, conforme disse o autor. A leitura 100% compreensiva talvez seja inalcançável ao leitor comum, porém, como sublinhou Karen Blixen (Isak Dinesen), não há nenhum problema em não entender inteiramente um escrito poético. Obviamente, Ulysses se beneficia com outras leituras, com a crítica, com consultas e com uma vasta cultura, porém, como assegura o tradutor da última versão brasileira, Caetano Galindo, Ulysses pode ganhar mais se for apresentado sozinho, sem notas explicativas. É importante lembrar que Ulysses é, em primeiro lugar, um romance, um dos maiores de todos, não um quebra-cabeça. Isto não anula de modo algum todo o aparato que costuma cercá-lo, apenas diz que tal parafernália pode estar em outro lugar que não atrapalhando a leitura.
O habitual é que as pessoas se aproximem de Ulysses com cuidado. Livro difícil, cheio de armadilhas. Tudo se passa num só dia, em 16 de junho de 1904. São 18 capítulos, cada um com aproximadamente uma hora de ação; cada um escrito num estilo diferente; cada um deles sendo uma paródia de um episódio da Odisseia de Homero; em cada um, um sistema detalhado de referências a uma ciência ou ramo do conhecimento; em cada um, uma parte do corpo humano é alçada a símbolo; em cada um, uma infinidade de enigmas, jogos de palavras, paródias, trocadilhos, neologismos, arcaísmos, estrangeirismos e todas as operações com a linguagem que você puder imaginar e mais algumas, como escreveu o ensaísta Idelber Avelar.
Porém, a história não pode ser mais simples e Joyce ufanava-se do fato de seu romance ter quase nada de trama. Como escreve Idelber, naquele dia, hoje conhecido como Bloomsday, Stephen Dedalus, professor de escola secundária, conversa com seu amigo Buck Mulligan, dá uma aula e passeia pelas margens do Liffey; Leopold Bloom, vendedor, efetivamente muito pouco atormentado pelas repetidas traições de Molly, sua mulher, toma café da manhã, vai a um funeral, visita um editor de jornal, lancha num bar, olha um anúncio de jornal na biblioteca (enquanto Dedalus discute Shakespeare com amigos), responde a uma carta recebida, leva porrada de um anti-semita, masturba-se observando Gerty MacDowell tendo por background um ofício religioso, encontra-se com Dedalus num hospital, leva-o a um bordel e convence-o a acompanhá-lo até a sua casa; ambos urinam no jardim; Bloom entra e se deita ao lado de Molly, que fecha o romance com um monólogo cheio de pornografia. Fim.
A imagem ao lado pode ser eficaz para demonstrar as diferenças de Joyce em relação a um autor muito mais lido, Franz Kafka. Imaginem a literatura moderna dentro de um modelo matemático de abscissas e ordenadas, um modelo plano, simples e, principalmente, redutor. Considerem que a gente deva colocar os autores espacialmente e que a abscissa seria o grau de complexidade narrativa e a ordenada seria a complexidade dos temas. Pois bem, então comparemos Joyce com outro autor canônico, Franz Kafka. Enquanto Joyce cria histórias rotineiras dentro de narrativas complexas, Kafka seria sua antítese, com narrativa mais convencional, porém, com temas e histórias insólitas e — para repetir o termo e dar exatidão matemática (?) à analogia — , complexas. Em nosso modelo, eles estariam bem longe um outro. É claro que estamos desconsiderando uma importante terceira dimensão, o arsenal de referências joyceano e uma quarta, o grau de representação social. Sem esta última, certamente não omemoraríamos o Bloomsday.
No Brasil, Ulysses foi traduzido três vezes. A primeira tradução foi a que o filólogo Antônio Houaiss fez em 1966 para a Civilização Brasileira. A segunda tradução foi a da filósofa, professora emérita e tradutora Bernardina da Silveira Pinheiro. É uma tradução mais coloquial e menos pudica que o intrincado e envergonhado trabalho de Houaiss. Em 2012, tivemos a terceira tradução, do professor e doutor em linguística Caetano Galindo para a Penguin / Companhia das Letras. Esta última tradução é superior às duas anteriores. Coloca-se entre a Ítaca do coloquialismo de Bernardina e a possível Troia de Houaiss. De bônus, traz um excelente ensaio do crítico irlandês Declan Kiberd, uma das maiores autoridades em Joyce, um sujeito que escreveu um best seller de crítica literária chamado Ulysses and Us.
.oOo.
Odisseu, rei de Ítaca, casado com Penélope, depois de ter se distinguido durante dez anos na guerra contra Troia, está voltando para casa, passando por uma série de aventuras e provações, ficando muitas vezes à mercê de feiticeiros, monstros e deuses vingativos. Penélope o aguarda fielmente, embora assediada por pretendentes (sempre tão gentis, diria Chico Buarque) que aguardam no banco de reservas, ansiosos por entrarem em campo no lugar do marido desaparecido. Seu filho, Telêmaco, aconselhado pela deusa Palas Atena, sai em busca do pai. Em resumo, temos as aventuras do herói Odisseu em sua volta à pátria, a fidelidade da mulher ao marido ausente e um filho à procura do pai.
Pois então abrimos Ulysses e vemos a paródia da Odisseia de Homero. A Penélope de Joyce, Molly, cujo nome de nascimento é Marion Tweedy), não é nada fiel. Stephen Dedalus (Telêmaco), embora insatisfeito com o pai que tem, não está atrás de outro. (Na verdade, Bloom pranteia um filho morto, Rudy, e deseja que Stephen vá morar com ele e Molly). Bloom é um Ulisses nada heroico, um judeu irlandês de vida comum, que sabe de Molly e Blazes Boylan, mas não pretende lavar a honra com sangue. O livro, aliás, não possui situações extremas e apenas se atém a um imenso leque de experiências cotidianas. Sim, mas e o sexo?
Joyce refere-se a ele já no primeiro enigma do romance: a escolha da data. Por que 16 de junho de 1904? Ora, porque foi nesse dia que Nora Barnacle fez de Joyce um “homem de verdade”. Alguns críticos consideram que o livro seria uma espécie de declaração de amor que o escritor fazia a sua esposa e amante. No dia 16 de Junho de 1904, o casal saiu para um passeio pela primeira vez. Joyce não levou Nora para os cafés, teatros, nem para o centro de Dublin, mas pelas ruas que vão dar no cais. Foram até a área de Ringsend que, naquela noite, estava deserta. Nora não perdeu tempo. Desabotoou as calças de Joyce e masturbou-o com mestria, “com olhos de santa”. Era a primeira vez que Joyce tinha sexo de graça e o fato revestiu-se de grande importância.
Ulysses foi publicado no dia de aniversário de 40 anos de Joyce, em 2 de fevereiro de 1922. Antes, em 1919, alguns capítulos tinham sido publicados na revista The Egoist (Londres). Resultado: impressores e assinantes ameaçaram demitir-se em função da pornografia envolvida… Em 1921, outros capítulos foram publicados em The Little Review (Nova Iorque). Resultado: a edição foi retirada de circulação e suas editoras multadas. Acusação: grossa pornografia.
Um trecho de Ulysses (Cap. 17, Ítaca):
Se ele tivesse sorrido por que teria sorrido?
Para refletir que cada um que entra (na cama) imagina ser o primeiro a entrar enquanto que é sempre o último termo de uma série precedente mesmo que seja o primeiro de uma outra subsequente, cada um imaginando ser primeiro, último, único e só enquanto que não é nem primeiro nem último nem único nem só em uma série que se origina e se repete ao infinito.
Trad. Caetano Galindo
Este trecho jamais poderia ser admitido a escritor preso aos códigos machistas da sociedade do início do século passado. Seria improvável para um homem comum do começo do século XX chegar à conclusão que Bloom chegou a respeito do adultério de Molly, da qual ele nem cogita separar-se: Assassinato, jamais, pois que dois males não perfaziam um bem. E chegamos gloriosamente ao pensador que Joyce era e, principalmente, a um leitor de Freud.
.oOo.
Não faço ideia se o meu marido é um gênio ou não; o que sei, com certeza, é que ele tem uma mente bem suja.
NORA BARNACLE
Em Ulysses, Leopold Bloom é um cidadão irlandês, pai e marido de Molly. Teve dois filhos, Milly e Rudy, sendo que o segundo morreu onze dias após o nascimento e Milly — que está com 15 anos em 16 de junho de 1904 — estuda em outra cidade. Ela aparece no romance apenas nas saudades de Bloom, o qual também lamenta muitíssimo a perda de Rudy. Ele é um bom pai de quase quarenta anos e começa o dia de forma tipicamente irlandesa. A primeira coisa que come são rins de carneiro grelhados, eles exalam um leve e inebriante perfume de urina. Porém, não vim aqui criticar a gastronomia irlandesa e britânica. Faço referência a este quarto capítulo porque nele Bloom aparece servindo sua mulher-ninfa na cama. É importante notar que é ele quem serve o breakfast, não o contrário. Bloom, que foi confessadamente criado por Joyce para ser o homem comum, o everyman, aparece sem heroísmos, com uma dimensão inteiramente humana, sem atitudes épicas.
Em 1905, Joyce escreveu a seu irmão Stanislaus:
Você não acha a busca pelo heroísmo uma tremenda vulgaridade? Tenho certeza de que toda a estrutura do heroísmo é, e sempre foi, uma mentira e que não há substituto para a paixão individual como força motriz de tudo.
O amor de Bloom manifesta-se diferentemente, ignorando posturas machistas, nas atitudes e nos pensamentos em relação à família, mas uma das surpresas de Ulysses é como esta rotina é contraposta à sexualidade que aparece no romance. Boa parte do enredo de Ulysses gira em torno do casal Molly e Leopold e de sua inaptidão para sentir prazer físico e emocional um com o outro. Seja através da narração onisciente, seja por monólogos interiores, o texto documenta minuciosamente as abordagens sexuais inteiramente diversas e as tentativas românticas do casal. E estas ocorrem sempre SEPARADAMENTE. Durante o curso do dia, Molly comete adultério com Blazes Boylan, enquanto Bloom envolve-se com práticas sexuais voyeuristas, masturbatórias e, por que não dizer?, masoquistas. Mesmo que Bloom participe ativamente destes encontros, é curioso como Joyce obtém mantê-lo longe do estereótipo do fauno sedento por sexo e prazer. Bloom é o anti-herói, o low profile, o personagem simpático, agradável, amistoso e apagado. Mesmo o erotismo evidente de certas participações de Bloom, acaba diluído em gentileza e bonomia. Ele é pai e marido, possuidor de qualidades maternas, pacifistas, até femininas.
Os limites rígidos que compunham a prática religiosa e as normas sociais na virada do século XX são demasiadamente sufocantes para a expressão de Joyce da individualidade e do desejo carnal. No episódio em que Bloom masturba-se na praia, observando Gerty MacDowell, tendo por fundo um culto religioso, Joyce não apenas justapõe religião e erotismo, mas incorpora uma prática sexual não convencional.
Com isto, ele desafia o senso comum do que seria a sexualidade na virada do século XX e utiliza seu romance como um veículo através do qual pode expressar seu desejo de fundamentar sua crença no instinto e no físico — não esqueçam que cada capítulo do Ulysses refere-se também a uma parte do corpo humano. Para Joyce, a sexualidade é um ato de expressão da natureza. Neste sentido, concordava inteiramente com D. H. Lawrence, o qual desejava conceder ao corpo um reconhecimento igual ao que era dado à mente. É claro que tais intenções do romance iam ao encontro das teorias de Freud — o desejo sexual como energia motivacional primária da vida humana –, mas ia contra a moral vigente da virada do século. Os encontros de Bloom com mulheres no livro parecem servir de alívio para a exclusão social e a traição de Molly, são o meio utilizado por ele para adquirir o equilíbrio ou equanimidade entre sua existência e a de Molly.
Ulysses é um texto que procura minar e redefinir as noções de gênero e de hierarquia na sociedade patriarcal da época. O romance não promove a superioridade masculina, mas eleva as mulheres e a feminilidade. Não só Joyce inverte a hierarquia social predominantemente masculina, como confunde e desafia a noção de gênero na dicotomia da criação de um casal formado por um homem delicado e feminino e uma mulher decidida. Nesta combinação, o casal Molly e Leopold, desafia os estereótipos que definem a masculinidade como agressiva e dominadora e a feminilidade como passiva e reservada.
Salman Rushdie escreveu em seu ensaio The Short Story: “Comumente o que é pornográfico para uma geração, é clássico para a geração seguinte”. A frase parece ser perfeita para Ulysses: enquanto a censura do início do século XX considerava o texto imoral e inadequado, ele agora oferece para nós um quadro riquíssimo para a exploração e análise da sexualidade de personagens extremamente bem construídos, sendo que um deles era “o homem comum”.
Poderíamos definir a pornografia como a apresentação de cenas destinadas a despertar desejo sexual no observador? Assim como num filme de sexo explícito, Ulysses rastreia movimentos e sensações corporais, realizando (ou escandalizando) o desejo do leitor de observar com precisão a mecânica do corpo. No entanto, Joyce não faz pornografia: aqui, a predição de Rushdie funciona perfeitamente: apesar de possuir elementos pornográficos, Ulysses oferece a transformação da pornografia em uma forma de arte clássica. Tendo lido e estudado psicanalistas como Freud, Joyce nos oferece não apenas uma nova ficção e linguagem, oferece-nos um ponto de vista original para entender o sexo. A atitude perante a sexualidade estava mudando após a virada do século, especialmente na esfera psicanalítica, e Joyce reflete em Ulysses este novo interesse na sexualidade, o crescimento de uma ciência sexual e o desenvolvimento de novos conceitos que rompiam cabalmente a associação entre sexualidade e reprodução. Joyce pertencia ao grupo de grandes pensadores da época, que procuravam entender e redefinir a sexualidade. Declan Kiberd afirma jocosamente que “Ulysses era não apenas um exemplo de um empreendimento comercial de alto risco, mas também um manual muito particular que extrapolava em muito questões literárias”.
É importante salientar a relação de Joyce com a tradição inglesa do romance. A Irlanda estava sob o domínio inglês. Os ancestrais de Joyce abandonaram lentamente o gaélico — ainda falado em regiões rurais da Irlanda — pelo inglês. Deste modo, os irlandeses viviam a uma certa distância da literatura inglesa ou ao menos utilizavam a língua com menor respeito, muitas vezes com insolência. Deste modo, há, além das ideias de Joyce, um aspecto sociológico que torna a quebra da tradição um ato até desejável de afirmação de nacionalidade. Joyce não falava mal de Dublin e da Irlanda, como alguns afirmam, mas era, sim, contra a sentimentalização do passado, revoltava-se contra o provincianismo de achar que o passado — mesmo um inventado, como o dos gaúchos tradicionalistas — ia voltar.
.oOo.
Os monólogos interiores de Ulysses ainda eram uma novidade na época do lançamento do livro. Na verdade, o stream of consciousness não foi uma invenção de Joyce e sim do francês Édouard Dujardin, cujo livro Os loureiros estão cortados foi lançado pela editora porto-alegrense Brejo, em 2005, com prefácio explicativo de Donaldo Schüller. O monólogo interior permite ao leitor de Joyce, fazer o contraste entre a riqueza da vida imaginativa de um indivíduo contra o fundo da pobreza de suas relações sociais. Quando comparados com a vida interior dos personagens, os diálogos de Ulysses não são grandemente satisfatórios. Leopold Bloom não perdoa as traições de Molly verbalmente, porém sabemos detalhadamente, por seu íntimo, que ela está perdoada. Os personagens do Ulysses são enorme, imensamente fluentes em seus interiores, mas não são nada articulados verbalmente. Vão embora sem dizer o que têm em mente e é apenas na solidão que alcançam suas verdadeiras vozes. O que dizer do monólogo final de Molly Bloom? Ali ela expõe-se de uma forma muito transgressora — não está sozinha enquanto o marido dorme ao lado? — , tem fantasias que surpreendem mesmo um século depois. Joyce, escrevendo de dentro dos pensamentos do cérebro de Molly, constrói o gozo feminino com primeiro com liberdade e depois com humor, celebrando como nunca antes o desejo da mulher numa época em que a psicanálise ainda não o fazia.
Os encontros, como o de Bloom com Gerty MacDowell, são em geral sem palavras, conduzidos pelo corpo. Há muitas frases pela metade. Por exemplo, após masturbar-se na praia, Bloom escreve na areia “sou um”. O casamento com Molly também serve para ilustrar a falta de articulação. É uma ligação silenciosa de duas pessoas que compartilham uma casa, uma cama, quem sabe amor, mas não uma vida.
E Bloom, como dissemos, comporta-se estranhamente para um homem da virada do século. Arruma a cama, limpa o lençol, tem sentimentos de empatia para com uma mulher grávida, preocupa-se com a filha, morre de saudades do filho, têm fantasias de que está grávido. Mais: Bloom sente-se inconformado e invejoso pela centralidade da mulher no processo dar à luz. Seis semanas antes de seu filho Rudy nascer, é visto comprando uma lata de alimento infantil, o que prova para seus amigos que ele não é bem um homem. Pior: eles dizem que ele, uma vez por mês, fica com dor de cabeça “como uma franguinha com as regras”. Também como talvez uma mulher fizesse, ele evita que Gerty o veja de perfil, quer que ela o veja em seu melhor ângulo. Depois Gerty faz o mesmo.
Ulysses borra a distinção entre os sexos. No episódio “Penélope”, o leitor entra nos pensamentos de Molly enquanto ela se encontra na cama ao lado de Bloom, ao final do dia. O monólogo revela a promiscuidade de Molly, suas lembranças de relacionamentos anteriores e memórias de sua família. Quando lembra da amamentação de Milly, ela fala que algumas vezes amamentou simultaneamente também a Bloom: “Eu pedi para chupar meus seios, ele disse que o que saía era doce e mais espesso do que o das vacas”. Enquanto muitos acharam e ainda acham isso o cúmulo da pornografia, talvez seja melhor relacionar a cena à sugestão de que a mulher pode ser uma provedora familiar ou que pode rebaixar o homem a uma posição infantil. Nas duas hipóteses, o texto de Joyce subverte a masculinidade.
Em seu ensaio prévio à última edição do Ulysses, Declan Kiberd afirma que na verdade, Bloom e sua esposa comportam-se como verdadeiros andróginos. Eles seriam “encarnações das palavras de Freud de que mulheres dominadoras e viris são atraídas e atraentes para os homens femininos”. A sensibilidade associada à feminilidade e a agressividade associada à masculinidade não funcionam para o casal. No entanto, as qualidades femininas de Bloom e as dominadoras de Molly não garantem uma vida sexual em comum e a impressão que fica é de uma incompatibilidade confortável para ambos. No monólogo, Molly exibe suas características masculinas na recapitulação de seu primeiro encontro sexual com Bloom em Howth Head, em consonância com que já sabíamos de Bloom: “Ela me beijou. Fui beijado. Estava à sua mercê e ela arrumou meu cabelo. Beijado. Ela me beijou.” (A simbologia adquire mais força quando ele recorda que Molly, em seu primeiro encontro, mastigou um pedaço de bolo e, beijando-o, colocou-o quente e mastigado em sua boca), como se fosse uma mamãe pássaro.
Bloom não deseja impedir o adultério de Molly com Blazes Boylan. Ele chega a imaginar uma cena na qual entrega sua esposa a Boylan. Essencialmente, ele permite a infidelidade da esposa para que ela possa experimentar o prazer enquanto ele procura a sua própria e particular satisfação com as mulheres de Dublin.
Em Ulysses, Joyce tenta descrever outras situações da sexualidade humana, ainda não presentes em romances. Joyce não julga nem demonstra desejo de advogar como acertadas, entre aspas, determinadas práticas ou condutas sexuais, mas revela a inconsistência dos comportamentos estereotipados de gênero, ao mesmo tempo que coloca o desejo no centro de muitas, muitíssimas de nossas ações.
Além de contradizer a sociedade, Joyce igualmente contradiz a religião. A masturbação de Bloom é justaposta a um serviço religioso, claramente a fim de comentar as restrições que a religião coloca sobre as expressões sexuais pessoais. Descrevendo o Bloom onanista, com o serviço religioso ocorrendo em background, Joyce faz várias citações bíblicas, transformando Gerty num piedoso emblema de uma Virgem Maria de natureza libidinosa, que incita Bloom. Joyce parece fazer piada com a possibilidade da religião dominar o desejo carnal, apresentando a concupiscência como um componente óbvio e intrínseco a toda a existência humana. E segue desafiando modelos quando Bloom se envolve em encontros voyeuristas durante sua jornada em Dublin.
Joyce conhecia e respeitava Freud, porém Ulysses não necessariamente se encaixa nas obras dos psicanalistas da época. A incorporação da sexualidade pelo Ulysses exemplifica principalmente um não-conformismo. Durante todo aquele 16 de junho, os protagonistas do Ulysses tiveram que enfrentar muitas coisas. Porém, quando focamos uma lente crítica sobre as representações de sexo no romance, podemos notar como Joyce foi cuidadoso ao construir e apresentar os apetites sexuais de cada personagem. Ao usar o sexo como uma ligação entre seus personagens e leitores, James Joyce foi capaz de criar representações universais formadas por muitas camadas. Notem como o romance é finalizado com o orgásmico “sim” de Molly, algo que é final e evidentemente muito afirmativo. Foi certamente a primeira vez que tivemos acesso a tamanha interioridade. O recurso narrativo do fluxo de consciência, despregado das limitações dialogais, demonstra claramente cada identidade.
Segundo Álvaro Lins citado em artigo do escritor Franklin Cunha, Joyce foi “um revelador do caos num mundo em desordem”. Consciência e subconsciência, angelitude e animalidade, idéias e instintos, natureza física e natureza psíquica, é o ser humano sempre por inteiro que Joyce busca apresentar em sua obra. No imenso mar joyceânico nenhuma concepção é ignorada, elas estão no livro e nas mentes dos personagens bem como estão as realidades que as representam. Segundo Edmund Wilson, Joyce, a partir desses eventos,” edificou um quadro espantosamente vivo e fiel do mundo cotidiano, o qual possibilita uma devassa e um acompanhamento das variações e complexidades de tal mundo, como nunca foi feito antes.
Estilisticamente pantagruélico, Joyce, em Ulysses, não apenas constrói o romance moderno como o ameaça com um catálogo aparentemente interminável de temas e estilos. E, dentro deste amplo cenário, invoca Eros como metáfora universal da condição humana..
Tolstói não levou o Nobel, nem Proust, Joyce e Greene. Jorge Luis Borges não ganhou o Nobel, nem Nabokov, Virginia Woolf e Drummond. Mas todo ano são abertos os arquivos do prêmio de 50 anos atrás e descobrem-se coisas.
Agora descobriu-se as razões, certamente esdrúxulas, que tiraram o prêmio de Borges em 1967. Estava decidido que o vencedor seria um latino-americano. Então Borges era franco-favorito, só que perdeu a láurea para o guatemalteco Miguel Ángel Asturias. Os motivos? Ora, o então presidente do comitê do Nobel, Anders Osterling, achava o escritor “demasiado exclusivo ou artificial em sua engenhosa miniatura”.
A sumidade também barrou outros autores importantes. Um ano antes, em 1966, havia eliminado Samuel Beckett. Achava-o “niilista e pessimista”, fora do que considerava “o espírito da Academia”. Beckett acabou virando o jogo e recebeu o prêmio em 1969. O mesmo não aconteceu com Borges, morto em 1986 sem o Nobel.
Escrevi tanto sobre Ulysses neste blog e em outros locais, dei palestras a respeito, li e reli, admirei e readmirei tanto o livro que me sinto liberado de escrever mais longamente. Nada de textão. Hoje é o dia que dá vontade de abrir Ulysses a fim de notar mais um detalhe das centenas que ficaram para trás.
Nunca fui a uma “festa de Bloomsday”. Acho que a festa é mais uma celebração interna que pode acontecer em qualquer lugar, como fiz agora há pouco, ao voltar a pé para casa.
Fico sempre feliz de lembrar que Joyce escolheu o dia 16 de junho para ser imortalizado porque foi este o dia em que fez sexo pela primeira vez com sua futura mulher, Nora, à época uma jovem virgem de vinte anos. Na verdade, Nora teve medo de completar o coito e o masturbou “com os olhos de uma santa”, como Joyce relatou em uma carta em que relembrava o acontecido.
É um livro quase sem enredo. É pura vivacidade e energia verbal. As pessoas não são sutis ou elegantes. Não há nada mais lindo do que Bloom se masturbando e Molly explodindo em sua insônia, nada mais frágil do que o não-machista Bloom — o homem que menstruava, segundo seus amigos — comprando fraldas. Nada literariamente mais brilhante do que Joyce fazendo pouco dos padres. Não há pose, pompa, grandiosidade, apenas um enorme amor pelo humano. É uma alegria que tal livro seja o único que mereceu um feriado. Diz bem da humanidade.
Na segunda à tarde, durante um intervalo, fui pegar algumas coisas na casa de um amigo. Entrei num ônibus, sentei e abri um Simenon enquanto Anne Sofie von Otter cantava Rheinlegendchen ou Wer hat dies Liedlein erdacht? de Gustav Mahler em meus fones. Logo passou um homem que nem vi o rosto e depositou um bilhete de tamanho mínimo na minha mão:
QUERIDOS IRMÃOS PRECISO DE VOCÊS PERDI MINHA MÃEZINHA SOFRO DO VÍRUS DO HIV ESTOU ME TRATANDO COM COQITEL E ESTOU DESEMPREGADO ESTA DIFÍCIL O EMPREGO TENHO UMA FILHA DE 2 ANOS QUE ESTA PASSANDO FOME PESSO SUA AJUDA OBRIGADO MARCOS E VITÓRIA (nomes alterados)
Juntei uma nota de dinheiro ao bilhete e segui lendo o livro acompanhado de Anne. Quando senti que ele voltava, ergui a mão direita com a nota e o bilhete entre o indicador e o dedo médio um pouco acima de minha cabeça. Porém, o homem não me viu e saiu para tentar a sorte em outro ônibus.
Então, uma senhora falou em voz altíssima que era um absurdo dar R$ 10,00 a um vagabundo e que eu faria melhor doando meu dinheiro à igreja. Subitamente e ainda meio zonzo, caí de meu mundo e notei que aquilo era para mim. Fiquei surpreso. R$ 10,00? Nas vezes em que dou dinheiro para pedintes, meu máximo é R$ 2,00, o valor aproximado de um litro de leite — um critério absolutamente pessoal. Fora um engano. Sem tirar os olhos do livro, guardei a nota, o bilhete e levantei bem alto um solitário dedo médio para que a beata o visse claramente. Nem sempre sou um lord.
O ônibus achou graça e ela me chamou de mal-educado em pavoroso discurso de meio minuto, no mínimo. Lembrei do que um amigo um dia me disse:
É impressionante a quantidade de filhos-da-puta entre os crentes.
Desci na minha parada sem maiores incomodações. Mas como canta a Anne Sofie von Otter!
O Brasil sempre privilegiou o conto, mas os europeus nunca deram grande importância ao gênero. O Caderno de Cultura Babelia do jornal espanhol El País publicou uma notícia que fala sucintamente da recente valorização do conto naquele país, pedindo para que autores espanhóis citem seus contos favoritos da literatura não espanhola. Curiosamente, nenhum conto foi citado duas vezes. Depois, coloco uma relação de contos favoritos deste blogueiro.
Relatos universales que no hay que perderse
Escritores, editores y libreros que han participado en este especial sobre el renacer y la nueva valoración del cuento en España comparten con los lectores títulos de sus cuentos favoritos en español y otras lenguas.
— El llano en llamas, de Juan Rulfo, y Bartleby, el escribiente, de Herman Melville (Berta Marsé).
— Carta a una señorita en París, de Julio Cortázar, y La dama del perrito, de Antón Chéjov (Cristina Cerrada).
— La Resucitada, de Emilia Pardo Bazán, y El bailarín del abogado Kraykowsky, de Witold Gombrowicz (Cristina Fernández Cubas).
— El Aleph, de Jorge Luis Borges, y Una casa con buhardilla, de Antón Chéjov (Eloy Tizón).
— El espejo y la máscara, de Jorge Luis Borges; Una luz en la ventana, de Truman Capote, y Donde su fuego nunca se apaga, de May Sinclair (Fernando Iwasaki).
— Bienvenido, Bob, de Juan Carlos Onetti; El álbum, de Medardo Fraile; En medio como los jueves, de Antonio J. Desmonts; Alguien que me lleve, de Slawomir Mrozek; Los gemelos, de Fleur Jaeggy; La colección de silencios del doctor Murke, de Heinrich Böll, y Guy de Maupassant, de Isaak Babel (Hipólito G. Navarro).
— Un tigre de Bengala, de Víctor García Antón, y La revolución, de Slawomir Mrozek (José Luis Pereira).
— No oyes ladrar los perros, de Juan Rulfo; El veraneo, de Carmen Laforet; La corista, de Antón Chéjov, y Rikki-tikki-tavi, de Rudyard Kipling (José María Merino).
— Continuidad de los parques, de Julio Cortázar, y El nadador, de John Cheever (Juan Casamayor).
— El Sur, de Jorge Luis Borges; Parientes pobres del diablo, de Cristina Fernández Cubas; Tres rosas amarillas, de Raymond Carver, y La dama del perrito, de Antón Chéjov (Juan Cerezo).
— El infierno tan temido, de Juan Carlos Onetti, y Los muertos, de James Joyce (Juan Gabriel Vásquez).
— Las lealtades (de Largo Noviembre de Madrid), de Juan Eduardo Zúñiga, y El nadador, de John Cheever (Miguel Ángel Muñoz).
— Continuidad de los parques, de Julio Cortázar, y William Wilson, de Edgar Allan Poe (Patricia Estebán Erlés).
— Ojos inquietos, de Medardo Fraile; Noche cálida y sin viento, de Julio Ramón Ribeyro, y Míster Jones, de Truman Capote (Pedro Ugarte).
Minha relação saiu um pouco grande, apesar de ter sido escrita improvisadamente. Mas se pensasse mais, talvez não mudasse demais. Vamos a ela.
Contos estrangeiros:
— A Viagem, de Luigi Pirandello;
— O Velho Cavaleiro Andante, de Isak Dinesen (Karen Blixen);
— Ponha-se no meu lugar, de Raymond Carver;
— A Fera na Selva, de Henry James;
— Bartleby, o Escrivão, de Herman Melville;
— A Enfermaria Nº 6, de Anton Tchékhov;
— Queridinha (ou O Coração de Okenka), de Anton Tchékhov;
— A Corista, de Anton Tchékhov;
— A Dama do Cachorrinho, de Anton Tchékhov;
— Olhos Mortos de Sono, de Anton Tchékhov;
— Os Sonhadores, de Isak Dinesen (Karen Blixen);
— A Morte de Ivan Ilitch, de Leon Tolstói;
— Uma Alma Simples, de Gustave Flaubert;
— As Jóias, de Guy de Maupassant;
— Os Mortos, de James Joyce;
— O Licenciado Vidriera, de Miguel de Cervantes;
— O Artista da Fome, de Franz Kafka;
— A Colônia Penal, de Franz Kafka;
— A Queda da Casa de Usher, de Edgar Allan Poe;
— Berenice, de Edgar Allan Poe;
— William Wilson, de Edgar Allan Poe;
— O Primeiro Amor, de Ivan Turguênev;
— Três Cachimbos, de Ilya Ehrenburg;
— A Loteria da Babilônia, de Jorge Luis Borges;
— A procura de Averróis, de Jorge Luis Borges;
— O jardins dos caminhos que se bifurcam, de Jorge Luis Borges;
— Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, de Jorge Luis Borges.
Contos brasileiros:
— Missa do Galo, de Machado de Assis;
— Uns Braços, de Machado de Assis;
— Noite de Almirante, de Machado de Assis;
— Um Homem Célebre, de Machado de Assis;
— A Terceira Margem do Rio, de Guimarães Rosa;
— Meu tio, o Iauaretê, de Guimarães Rosa;
— A Hora e a Vez de Augusto Matraga, de Guimarães Rosa;
— O Duelo, de Guimarães Rosa;
— Guapear com Frangos, de Sérgio Faraco;
— O Voo da Garça-pequena, de Sergio Faraco;
— Corvos na Chuva, de Ernani Ssó;
— Contrabandista, de João Simões Lopes Neto;
— Baleia, de Graciliano Ramos (não é um conto, mas pode funcionar como tal);
— O homem que sabia javanês, de Lima Barreto;
— O Vitral, de Osman Lins;
— O Afogado, de Rubem Braga;
— Venha Ver o Pôr do Sol, de Lygia Fagundes Telles;
— Feliz Aniversário, de Clarice Lispector;
— Uma Galinha, de Clarice Lispector;
— O Japonês dos Olhos Redondos, de Zulmira Ribeiro Tavares.
Eu nunca tive insônia. Talvez, em razão de alguma dor ou febre, não tenha dormido repousadamente apenas uns dez dias em minha vida. Não é exagero. Quando me deprimo, durmo mais ainda e acordar é ruim, péssimo. O sono é meu refúgio natural. Mas há pessoas que reclamam (muito) da insônia. Saul Bellow escreveu que ela o teria deixado culto, mas que preferiria ser inculto e ter dormido todas as noites — discordo do grande Bellow, acho que ele deveria ter ficado sempre acordado, escrevendo, vivendo e escrevendo para nós. Também poucos viram Marlene Dietrich adormecida. Kafka era outro, qualquer barulho impedia seu descanso, devia pensar no pai e passava suas noites acordado, amanhecendo daquele jeito após sonhos agitados… Groucho Marx, imaginem, era insone, assim como Alexandre Dumas e Mark Twain. Marilyn Monroe sofria muito e Van Gogh acabou daquele jeito não por ser daltônico, característica que apenas gerainteligência e genitália avantajadas.
O Conde Keyserling sofria de insônia e desejava tornar suas noites mais agradáveis. Ele encomendou a Bach, Johann Sebastian Bach, algumas peças que o divertissem durante a noite. Como sempre, Bach fez seu melhor. Pensando que o Conde se apaziguaria com uma obra tranquila e de base harmônica invariável, escreveu uma longa peça formada de uma ária inicial, seguida de trinta variações e finalizada pela repetição da ária. Quod erat demonstrandum. A recuperação do Conde foi espantosa, tanto que ele chamava a obra de “minhas variações” e, depois de pagar o combinado a Bach, deu-lhe um presente adicional: um cálice de ouro contendo mais cem luíses, também de ouro. Era algo que só receberia um príncipe candidato à mão de uma filha encalhada.
A história da criação das variações foi tirada da biografia de Bach escrita por Johann Nikolaus Forkel:
(Quanto a essas variações), devemos agradecer ao pedido do ex-embaixador russo na corte eleitoral da Saxônia, o conde Hermann Karl von Keyserling, que frequentemente passava por Leipzig e que trouxe consigo o cravista Goldberg para receber orientações musicais de Bach. O conde tinha frequentes acometimentos de doenças e ficava noites sem dormir. Em tais ocasiões, Goldberg, que vivia em sua casa, tinha que passar a noite na antecâmara para tocar para ele durante sua insônia. … Certa vez, o conde mencionou, na presença de Bach, que ele gostaria de ter algumas obras para teclado para Goldberg executar, que deveriam ser de caráter suave e algo vigoroso de modo que ele pudesse ser um pouco consolado por elas em suas noites sem dormir. Bach imaginou que a melhor maneira de atender a esse desejo seria por meio de variações, cuja escrita ele considerava, até àquela data, uma tarefa ingrata devido ao fundamento harmônico repetidamente semelhante. Mas, uma vez que a essa época todos os seus trabalhos já eram padrões de arte, tais se tornaram, em suas mãos, estas variações. Mesmo assim, ele produziu um único trabalho desta espécie. Daí em diante, o conde sempre as chamava de “as suas” variações. Ele nunca se cansou delas e, por um longo período, noites sem dormir significavam: ‘Caro Goldberg toque minhas variações para mim’. Provavelmente Bach nunca foi tão bem recompensado por um trabalho quanto foi neste. O conde o presenteou com um cálice de ouro com 100 luíses de ouro. Não obstante, mesmo que o presente tivesse sido mil vezes maior, seu valor artístico nunca teria sido pago.
O Conde tinha a seu serviço um menino de quinze anos chamado Johann Gottlieb Goldberg. Goldberg era o melhor aluno de Bach. Foi descrito como “um rapaz esquisito, melancólico e obstinado” que, ao tocar, “escolhia de propósito as peças mais difíceis”. Perfeito! Goldberg era enorme e suas mãos tinham grande abertura. O menino era uma lenda como intérprete e o esperto Conde logo o contratou para acompanhá-lo não somente em sua residência em Dresden como em suas viagens a São Petersburgo, Varsóvia e Postdam. (Esqueci de dizer que o Conde Keyserling era diplomata). Bach, sabendo o intérprete que teria, não facilitou em nada. As Variações Goldberg, apesar de nada agitadas, são, para gáudio do homenageado, dificílimas. Nelas, as dificuldades técnicas e a erudição estão curiosamente associadas ao lúdico, mas podemos inverter de várias formas a frase. Dará no mesmo.
O nome da obra — Variações Goldberg, BWV 988 — é estranho, pois pela primeira vez o homenageado não é quem encomendou a obra, mas seu primeiro intérprete.
O princípio de quase toda obra de variações consiste em apresentar um tema e variá-lo. (Lembram que Elgar fez uma obra de variações sem apresentar o tema, chamando-a de Variações Enigma?). Assim, o ouvinte tem a impressão de estar ouvindo sempre algo que lhe é familiar e, ao mesmo tempo, novo. A escolha de Bach por esta forma mostrou-se adequada às pretensões do Conde. E a realização não poderia ser melhor, é uma das maiores obras disponibilizadas pela e para a humanidade pelo mais equipado dos seres humanos que habitou este planeta, J. S. Bach. O jogo criado pelo compositor irradia livre imaginação e enorme tranquilidade. A Teoria Geral das Belas-Artes, espécie de Bíblia artística goethiana de 1794, diz o seguinte sobre as Goldberg: “em cada variação, o elemento conhecido está associado, quase sem exceção, a um canto belo e fluido”. E está correto. Só esqueceu de dizer que tudo isso tinha propósito terapêutico.
As Variações Goldberg eram tidas no passado como um exercício técnico árido e aborrecido. Mas já faz quase um século que o conteúdo e a abrangência emocional da obra foi reconhecido e se tornou a peça favorita de muitos ouvintes de música erudita. As Variações são largamente executadas e gravadas.
É muito provável que o enfermo Conde concordasse com a Theorie para descrever seu prazer de ouvir aquela música, mas diria mais. Seus efeitos fizeram que Goldberg a tocasse centenas de vezes para ele. O cálice repleto de ouro significava gratidão pela diversão emocional e intelectual. Dormimos por estarmos calmos e felizes, talvez.
Não posso distribuir cálices de ouro por aí, mas talvez devesse dar alguma coisa a Pierre Hantaï, o maior intérprete da obra. (Por favor, neste momento não me venham com Gould; afinal, o som do cravo é fundamental e só aceito fazer a final contra o grande Gustav Leonhardt. Gould ficou lá pelas quartas-de-final).
Capítulos escritos em estilos variados / Capítulos escritos em estilos variados
Com personagens principais / Sem personagens principais
Vamos fazer este blog voltar ao gonzo. Então, começo dizendo que gosto muito do ser humano Luiz Ruffato, dos livros que tinha lido dele, de suas posições e artigos. Porém este Eles eram muitos cavalos, que é tão bem avaliado por aí…
Ora, nada impede que um escritor de nosso tempo vá ao menu que Joyce disponibilizou para dele fazer uso, mas a sombra do irlandês é tão imensa que fiquei na expectativa da luminosidade e dos momentos extraordinariamente belos que se repetem como superfetações em Ulysses. E eles não pintaram. Talvez, se eu não tivesse o livro de Joyce tão presente na memória, pudesse apreciar melhor Eles eram muitos cavalos.
O livro me pareceu trancado pela falta de capítulos mais extensos, pela troca constante de personagens — rápida e desconcertante entre tantas divisões –, pela formatação algo exagerada — quase escandalosa entre tantos negritos, itálicos e mudanças de fonte –, pela falta de caracterizações mais fortes, pelo especialmente tolo início do capítulo 28, enfim…
O que deu errado? Não sei. Sei que talvez, se fosse paulistano, pudesse entender melhor a teia de citações e referências do romance e me entusiasmar por ele. Sabe quando tu lês algo que parece bom, mas que tu não gosta? É o caso.
“É muito difícil subtrair-se à angústia da influência, assim como foi muito difícil para Borges ser um precursor de Kafka. Dizer que não existe em Borges ideia que já não existisse antes equivale a dizer que não há uma só nota em Beethoven que já não tivesse sido produzida antes. O que permanece fundamental em Borges é a sua capacidade de usar os mais variados detritos da enciclopédia para fazer música de ideias. Certamente tentei imitar esta lição (embora a ideia de uma música de ideias me viesse de Joyce). O que posso dizer? Que diante das melodias de Borges, tão imediatamente cantáveis (mesmo quando atonais), memorizáveis, exemplares, sinto-me como se ele tivesse tocado divinamente o piano e eu tivesse soprado uma ocarina.
Mas espero que se venha a encontrar sempre, depois da minha morte, alguém mais inábil que eu, de quem eu possa ser reconhecido com precursor.”
UMBERTO ECO (1932 – 2016)
“Borges e a minha angústia da influência”. In: Sobre a Literatura. BestBolso, 2011. pp. 131- 132.
Lembra o Paulo Timm que hoje é o Bloomsday e eu simplesmente ignorei a data. Tem razão o Timm. Esqueci que hoje é o 16 de junho de 1904, o dia em que se passa o Ulysses de Joyce. Em todo o mundo, é o único feriado – falo da Irlanda — dedicado a um personagem de livro, a uma verdade ficcional, no caso Leopold Bloom. Hoje, em Dublin, há atores e leitores refazendo cenas do livro pelas 16h e 19 ruas onde se passa o romance.
Tenho uma boa relação com o livro, que li nas três traduções brasileiras. A melhor disparada é a última, de Caetano Galindo, que saiu pela Penguin. Nos últimos dias, vi que há também uma edição de bolso da mesma editora com o lindíssimo e quente monólogo de Molly Bloom que finaliza o livro (foto abaixo). São mais ou menos 80 páginas de um só parágrafo sem pontuação, um milagre que só o genial Joyce poderia criar e tornar compreensível.
Creio que é ali que Molly conta — entre mil fantasias e recordações — como ela alimentava Bloom no ínicio do namoro, dando-lhe comida já mastigada num boca a boca ao estilo mamãe-pássaro. Pura nojeira poética, uma maravilha do ponto de vista literária.
Há inúmeras referências a Joyce e ao Ulysses neste blog, basta clicar aqui. Quase todas elas são sobre Bloom, mulher e amigos. É um romance que, se não muda uma vida, dá-lhe nova perspectiva e sensibilidades para outras realidades artísticas. Não é um livro fácil, mas dou um conselho aos futuros leitores: leiam Ulysses como se ouvissem uma música, procurem não ficar parando a toda hora para pensar no quebra-cabeças de cada frase. A tradução de Galindo é de longe a mais musical. E, gente, pensem que os escritos poéticos são normalmente inapreensíveis em sua totalidade. Como leitor de Ulysses, digo que, após a leitura, lembrei de algumas daquelas partes incompreensíveis dando-lhes significados que podem ser livres-associações, mas que… Por que não?
O livro é muito explícito e não surpreende que tenha sido acusado de pornografia. Ele é pornográfico ao mais alto e inacreditável grau. Uma de minhas maiores alegrias foi poder falar em público por duas vezes sobre a originalíssima abordagem de Joyce à sexualidade no romance. Digo mais, digo que boa parte dos jovens de hoje encontrariam nele problemas de incorreção política no livro, pois penso que vivemos dias semelhantes aos que viveu Laurence Sterne enquanto escrevia seu Tristram Shandy. Os jovens são mais conservadores do que os velhos e certamente o fato de Gerty McDowell ser coxa acabaria em problema para a dignidade — altíssima — do concupiscente e por vezes feminino Bloom.
Amo este romance e termino este improviso dizendo só mais duas palavras: leiam Ulysses!
Para mim foi um ano de acontecimentos gigantescos: enormes decepções, enormes dúvidas, enormes decisões, enormes responsabilidades, enormes bizarrices, enormes mudanças, enormes surpresas, enormes tristezas e enormes alegrias. Agradeço à vida por este ano e vou pedir ao bondoso Papai Noel só uma coisa para o ano de 2014: por favor, menos. Se for possível, claro. Feliz Natal e um ótimo 2014 para todos! Abraços!
Elena Romanov em seu Facebook
Este é o melhor resumo de 2013 também para mim, que convivi boa parte dele — infelizmente bem menos da metade — com Elena. Do ponto de vista pessoal, acrescentaria “enorme gratuidade” imediatamente após as decepções, pois houve muito disso. Com a palavra, não quero dizer que tenha sido um ano em que não paguei nada, muito pelo contrário. Uso gratuidade no sentido daquilo que não é justificado, do que é natural e espontâneo em outrem, do que é gratuito na acepção de infundado.
Mas não reclamo do ano. Afinal, todos os amigos e minha pequena família estão aí alive and kicking; o trabalho idem e a saúde surpreende após um ano tão maluco. Em junho e outubro parecia que ia me dar um piripaque, mas até o colesterol, no meu caso sempre nas nuvens, apareceu no mês passado em inéditos 169. (Obrigado, seu Lípitor!)
E 2013 foi o ano da felicidade minimalista. Nada grandiosa, nada estável, mas muito satisfatória até aqui. Tanto assim que vamos fazendo planos. Li hoje uma frase incrivelmente verdadeira e aparentemente nada a ver com o que escrevo: a de que só agora estamos aprendendo a ser contemporâneos de James Joyce. Estamos chegando cada vez mais perto dele e um dia alcançaremos e entenderemos o sublime, genial, neologista, poliestilista e desbocado autor de Ulysses. O fato acontece casual ou inexoravelmente à medida que o tempo passa. No passado, lembram?, alcançamos os últimos quartetos de Beethoven, que dizia com toda a razão a seus críticos: “No futuro, entenderão”. No meu caso, 2013 foi o ano em que aprendi muito a meu respeito — mais do que a respeito de outros. E mudei um pouco. Na base da porrada, me parabenizei por alguns méritos e quase me destruí identificando defeitos. Acho que fiquei mais silencioso, mais amante da lentidão. De alguma forma muito secreta, me aproximei alguns centímetros não sei do quê. Mas é assim mesmo, a gente vai mudando de forma contínua e imperceptível, só que as crises catalisam as alterações, mesmo que não garantam rumos. Então, sejamos lentos na vida e nos passeios de fim de tarde pela Redenção, certo, Elena?
De tudo isso, a única tristeza absoluta é a de ver menos a Bárbara, mas a gente dará um jeito, imagina se não.