Manual da Faxineira, de Lucia Berlin

Manual da Faxineira, de Lucia Berlin

Um livro extraordinário. Manual da Faxineira (Cia. das Letras, 532 páginas) compila os melhores trabalhos da contista Lucia Berlin. São 43 contos com um humor que guarda certo parentesco com o de Raymond Carver, mas com melancolia e realismo próprios. Berlin faz milagres com o cotidiano, descobrindo momentos sublimes em lavanderias, em casas do meio oeste estadunidense ou da classe alta da Bay Area de San Francisco, em emergências hospitalares, entre operadoras de telefonia e mães em dificuldades, caroneiros, drogados e alcoolistas. Mas como esta brilhante escritora foi a princípio ignorada? Como puderam?

Lucia Berlin (1936-2004) trabalhou de maneira brilhante, mas esporádica, durante as décadas de 1960, 1970 e 1980. Suas histórias são inspiradas por uma infância em várias cidades da Califórnia, Novo México e Texas. Teve também uma glamourosa adolescência em Santiago do Chile, três casamentos, um problema grave com alcoolismo e quatro filhos. Para piorar, Lucia era uma moça alta que sofria de escoliose e usou um colete ortopédico de aço durante seus anos jovens. Depois, sóbria e escrevendo de forma constante na década de 1990, ela assumiu o cargo de escritora visitante na Universidade do Colorado (Boulder) em 1994 e logo foi promovida a professora associada. Em 2001, com problemas de saúde, ela se mudou para o sul da Califórnia para ficar perto de seus filhos. Morreu em 2004, em Marina del Rey. Tudo isso é muito importante porque, em suas histórias, há muito de sua biografia.

Como disse, os contos de Lucia Berlin não foram muito divulgados durante sua vida. Algumas coleções publicadas por pequenas editoras entre os anos 70 e 90 ganharam um pequeno e dedicado grupo de admiradores, como Saul Bellow. As 43 histórias reunidas em Manual da Faxineira são uma poderosa reivindicação por reconhecimento.

Realmente, Berlin pareceu ter o condão de encaixar muitas vidas em seus 68 anos. Criada nos remotos campos de mineração do Alasca e do centro-oeste, ela foi uma criança solitária e abusada no Texas dos tempos da 2ª Guerra; depois uma jovem rica e privilegiada em Santiago; uma boêmia que vivia em lofts nos anos 50, em Nova York; uma recepcionista em um pronto-socorro de emergências no centro de Oakland, nos anos 70. Quando tinha 32 anos, já se casara três vezes, tinha quatro filhos e lutava, ou não, contra o alcoolismo.

Sua vida agitada fornece assunto para suas histórias. Sua alegria também. Há sempre um fundo de bom humor em seus textos. Ela é dura e papo reto, mas a brutalidade é compensada pela compaixão à fragilidade humana e pela inteligência da narrativa. E o prazer de ler acaba sendo maior que a dor. Em Até mais, o casamento com um viciado em heroína é descrito como “tempos de intensa felicidade tecnicolor e tempos sórdidos e assustadores”. A solidão está presente em histórias ambientadas em hospitais, clínicas de desintoxicação, lares e prisões, porém, apesar do território frequentemente sombrio, a escrita de Berlin é caracterizada por um enorme apetite pela vida e de amor. Em Mordidas de tigre, uma história que detalha os horrores de uma clínica de aborto no México, é o calor e a diversão perversa do relacionamento entre a narradora e sua prima glamourosa que permanece em primeiro plano.

Como teve muitos empregos, Berlin é uma cronista aguda de instituições e do mundo do trabalho muitas vezes esquecido — em particular o trabalho de baixo prestígio e baixa remuneração de enfermarias, faxineiras e auxiliares. Em Quero ver você sorrindo, um personagem é descrito como possuindo uma curiosidade compassiva por todos, e o mesmo se aplicava claramente à autora. Algumas das histórias, como Caderno de notas do setor de emergência, 1977, têm abordagem jornalística, mas há sempre um olho no poético:

Se suas bolsas já não foram furtadas, as velhinhas parecem carregar nada a não ser a dentadura de baixo, um folheto com o horário do ônibus 51 uma caderneta de endereços e telefones em que não se acha um único sobrenome.

Berlin credita sua mãe por seus poderes de observação, escrevendo em Mamãe sobre como lembrava de suas piadas e de sua maneira de olhar, nunca perdendo nada.

Lembramos de suas piadas e do seu jeito de olhar, aquele olhar que nunca deixava escapar nada. Você nos deu isso. Essa capacidade de olhar.

Não a de ouvir, porém. Você nos dava talvez uns cinco minutos para te contar alguma coisa e depois dizia “Chega”.

São histórias que capturam o mundo quase invisível ao nosso redor, revelando o banal e o pungente. Em Mijito, uma enfermeira fala sobre as crianças doentes sob seus cuidados. A maioria das crianças não pode chorar. Há apenas lágrimas rolando e este horrível rangido do mundo, como um portão enferrujado, ao fundo.

O estilo de Berlin é direto. Mijito é de verossimilhança quase insuportável. Você pode ser enganado ao pensar que está lendo cartas de uma amiga quando ela fala em frases como “Eu sei, romantizo tudo”. Mas esse estilo coloquial é traído por brutais falas e mudanças súbitas que deixam claro que essas são histórias minuciosamente elaboradas. O narrador de Mamãe passa o tempo todo conversando, finalmente convencendo sua irmã moribunda de que a mãe insensível e bêbada merecia alguma compaixão, antes de revelar na última linha: Eu… eu não tenho compaixão.

A mesma mãe e irmã (Sally) aparecem em muitas histórias, e a natureza parcialmente autobiográfica da coleção faz desta uma experiência de leitura em densas camadas. Personagens e cenários se repetem, e certos períodos são vistos através de filtros diferentes, com o elenco principal e seus relacionamentos entrando e saindo de foco.

Em Voltando para casa, a história final, Berlin observa os hábitos dos corvos de sua varanda:

…mas o que me incomoda é que eu só reparei neles por acidente. O que mais será que deixei passar? Quantas vezes na minha vida eu estive, por assim dizer, na varanda dos fundos, e não na varanda da frente? O que será que me disseram que eu não ouvi? Que amor poderia ter existido que eu não senti?

Ponto de Vista, Mijito e Incontrolável são contos inesquecíveis. Dos melhores que li até hoje. Berlin sofreu muito, mas seu poder de observação e arrebatador virtuosismo literário farão dela um clássico, se o mundo não acabar nos próximos anos.

Com informações do The Guardian.


Luiz Ruffato escreveu:

Raros são os autores que conseguem construir uma obra homogênea, em que nós, leitores, não temos que descer de altíssimos picos para percorrer vales profundos. Mais raro ainda encontrar um autor que, sendo unicamente contista, não perca a mão e ofereça, em meio a jóias, algumas bijuterias. Por isso, é surpreendente esse livro. São 43 contos – dos 76 que a Autora escreveu entre ao longo de sua curta vida – e todos eles, sem uma única exceção, são ótimos. O mais interessante é que, no caso, é impossível separar a biografia da Autora de seus textos ficcionais. Até porque eles são declaradamente autobiográficos, ou, como ela mesma afirma: “Eu exagero muito e misturo ficção com realidade, mas nunca chego de fato a mentir” (p. 410). Quase sempre a história gira em torno de uma narradora, mãe de quatro filhos, que tem sérios problemas com bebida, e uma irmã que agoniza no México, padecendo com um câncer terminal. Os nomes dos personagens podem variar, eventualmente, mas eles são sempre reconhecíveis. E isso dá um caráter peculiar ao livro, pois é como se estivéssemos desdobrando episódios de uma biografia, preenchendo lacunas de uma vida: a infância de uma menina com sérios problemas na coluna (escoliose) em regiões mineradoras dos Estados Unidos ou no Chile, acompanhado o pai, geólogo, e a mãe, alcoólatra, e a vida adulta entre a Califórnia (Oakland), Texas (El Paso) e Novo México (Albuquerque) e a Cidade do México, em estranhas aventuras imersas em álcool e culpa. Embora haja diversas histórias sobre alcoólatras e drogados, a Autora não glamuriza esse universo (como fazem certos autores que romantizam essa tragédia), e sim mostra como todos são afetados pelo vício, uns mais outros menos, mas sem qualquer moralismo – apenas exibindo vidas que, em algum momento, descarrilharam e tombaram… Interessante também é ver estampadas nestas páginas personagens pouco presentes na literatura estadunidense – os párias do capitalismo, índios miseráveis, mexicanos ignorados, negros pobres, todos empurrados para o submundo, de onde a Autora os resgata, restituindo-lhes a dignidade, e de maneira admirável. O cerne de suas reflexões poderia ser sintetizada em suas próprias palavras: “Medo, pobreza, alcoolismo e solidão são doenças terminais” (p. 119). Para tentar elucidar essa questão – “(…) é a morte que eu não entendo” (p. 327) – que o leitor deve mergulhar em cada página e deixar-se impregnar de cada palavra. O resultado, pode ter certeza, é magnífico.

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Ônibus Serraria, de Marino Boeira

Ônibus Serraria, de Marino Boeira

O título completo do livro é Tudo pode acontecer no Ônibus Serraria e na Zona Sul (Libretos, 118 páginas, R$ 30), mas como o editor deu mais destaque na capa à linha de ônibus, fiquemos com o título resumido.

Marino Boeira costuma publicar deliciosos textos no Facebook. Sou seu leitor. Ultimamente, ele está escrevendo textos mais curtos. Uma pena. Conheço-o também de outras paragens, mas o que interessa é que este informado, culto e divertido senhor de 80 anos produziu um livro que se lê rapidamente, sem cansar. Li numa tarde de sábado e já usei a palavra “delicioso” acima. Ela é perfeita.

Por favor, não pensem no tiozão do churrasco inventando historinhas sem graça. Marino é um cara aposentando — foi professor universitário, publicitário e jornalista — que fica atrás do computador fazendo a gente rir de suas histórias e fazendo-nos pensar em como seria admirável preservarmos a inteligência e ser politizado, ateu, cético, informado e radical sendo octogenário. Além do mais, ele vê todos os filmes interessantes e lê as novidades literárias. E tem um programa de rádio onde o chamam de Mestre e de alguns outros títulos complicados que esqueci. Bem… Aqui já entramos no terreno da auto-ironia.

Sim, ele é um intelectual à antiga, uma daquelas enciclopédia ambulantes que eram mais fáceis de encontrar no passado.

Mas o que é o livro Ônibus Serraria? É uma despretensiosa e inteligente coletânea de crônicas divididas em duas partes: “As histórias que acontecem no Ônibus Serraria” e “As histórias que acontecem na Zona Sul” (de Porto Alegre). Gostei mais da segunda parte, cujas crônicas tratam de traições, sexo (ou da saudade do mesmo), fantasias loucas e filosóficas, causos e da pequena política da cidade. Também a morte está presente, mas o céu de Marino… Bem, leiam.

Achei especialmente boas as crônicas Dona Lucrécia e o Sexo, Direto do CéuCabíria ou Gesolmina e Ficantes & Significantes.

Recomendo.

.oOo.

P.S. — Sou citado e até ilustrado no livro de Marino… Sou eu ali, com uma camiseta onde está escrito Bamboletras em russo, obra do Santiago.

A citação
A imagem

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Essa gente, de Chico Buarque

Essa gente, de Chico Buarque

Não li todos os livros de Chico Buarque, mas penso que, com alguma margem de segurança, possa dizer que este é seu melhor, ao lado de Budapeste. Manuel Duarte — notem a semelhança sonora com Chico Buarque — é um escritor que gosta de caminhar pelo Leblon, cuja grande obra foi escrita no passado e ainda é muito respeitada.

O livro é escrito em pequenos capítulos como se formassem um diário. São escritos, é claro, na primeira pessoa, só que por vários personagens. (Há uma voz misteriosa que narra em terceira pessoa).  Essa gente é duro, muito carioca e inclui fatos muito recentes. Imaginem que o diário finda em 25 de setembro de 2019. Duarte é autor de diversos livros, dentre eles um sucesso estrondoso — O Eunuco do Paço Real -, mas hoje produz pouco e está na pindaíba. Tem duas ex, uma tradutora e uma decoradora que depois se especializou em procurar homens ricos e liberais do ponto de vista sexual. Com a primeira mulher, tem um filho pré-adolescente com o qual mal conversa.

Enquanto escreve um novo livro e espera pela reedição do Eunuco, Duarte anda atrás de dinheiro e de mulheres. Das suas ex e de Rebekka, uma holandesa, mulher de um salva-vidas muito considerado no morro. O autor não parece muito apaixonado por seus personagens, parece mais fixado e estarrecido pelas circunstâncias, pela conformidade das pessoas em relação à vida que levam, pela comédia que é ignorar o que se passa. É um livro que mostra o espancamento de um mendigo, o bullying sofrido por uma criança em razão de ser filho de “gente de esquerda”, a humilhação de porteiros, tudo coisa normal. É um triste cenário de decadência moral com gente preocupada em salvar sua pele em primeiro plano. É uma realidade estranha, violenta e trágica. O final é especialmente enigmático. Chico nos deixa com o pincel na mão para pintarmos o que se quisermos. E a gente só pensa em tinta preta e em vermelho sangue.

Chico Buarque: retrato do Rio de Janeiro e do Brasil | Foto: Divulgação

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O homem infelizmente tem que acabar, de Clara Corleone

O homem infelizmente tem que acabar, de Clara Corleone

Se minhas resenhas são exemplos de jornalismo gonzo, esta talvez bata meus recordes no estilo. Eu conheço Clara Corleone faz algum tempo. Leio seus textos nas redes sociais e gosto deles. Certa vez, tivemos uma dessas tretas de internet — tenho problemas reais com textos que possam levar a linchamentos virtuais — e certamente seríamos inimigozinhos se Clara não fosse tão generosa ao iniciar um papo meio bobo inbox, semanas após a confusão. Agradeço muito a ela, que tem a enorme sabedoria de não cultivar bobagens, pois eu exagerei feio na crítica. Mas fazer o quê? Ela me mostrou o caminho e eu fui. O cômico é que algumas pessoas arregalam os olhos quando digo que estamos de boas, que conversamos, que já tive a honra de participar do sarau literário que ela mantém, que uma de suas irmãs trabalhou na Bamboletras, etc. Bem, espero que ela tenha notado que não sou totalmente escroto…

O homem infelizmente tem que acabar é uma coletânea revisada das melhores crônicas de Clara. A primeira questão seria examinar se os textos suportariam a passagem para o formato livro ou se tornariam um saco vazio. Não, o papel lhes caiu muito bem.

Os temas são conhecidos de quem a lê: o sexo — início (abordagem), meio (convivência) e fim (separações) –, o feminismo, as diversas formas de assédio, o medo, o amor, com sua poesia e sacanagem, o machismo circundante e a sorte de ter uma família calorosa e sensacional, tudo pontuado com muita música e sarcasmo.

Clara não faz grandes teses, mas dá exemplos e exemplos a respeito de como (sobre)vive uma mulher solteira e sexualmente ativa numa cidade como Porto Alegre. Olha, não é fácil, não há paz nem para passear com as cachorras no bairro Bom Fim. Eu nunca assobiei ou chamei mulher de gostosa na rua, mas é óbvio que me reconheci em algumas posturas de machismo mais sutil. Só que também comemorei. Não sou 100% tosco.

Mas sabe o que é bom mesmo no livro? A autora. Ela é uma jovem na primeira metade dos 30 anos que gosta do melhor cinema, da melhor música brasileira e que sabe misturar sua enorme cultura e bom gosto em narrativas do dia a dia. Como deve ter uma jukebox em permanente funcionamento na cabeça, Clara também tem o costume de surpreender, integrando perfeitamente letras de canções em meio aos textos. O bom humor é onipresente e ele torna a crítica mais potente. Clara não tem nada do estereótipo da feminista mal-humorada — provavelmente criado por nós, homens — e está rindo e nos ridicularizando, mesmo que aprecie nosso instrumental. E os textos poéticos sobre o amor são excelentes.

Como não sou um leitor em busca de teses e penso que a ficção e os casos bem contados arranham mais a realidade do que os ensaios, gostei muito de O homem infelizmente tem que acabar. O título? Ora, leia o livro que você entenderá. Tem que acabar mesmo.

Clara Corleone em seu sarau no von Teese | Foto: Carolina Disegna

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9 Histórias, de J. D. Salinger

9 Histórias, de J. D. Salinger

Há umas quatro décadas, literalmente, li este livro na versão Nove Estórias, da Editora do Autor. Tinha uma bonita lembrança dele, principalmente do conto Um dia perfeito para peixes-banana.

A estreia de J. D. Salinger na literatura ocorreu com o clássico O Apanhador no Campo de Centeio em 1951. 9 Histórias, que li agora na nova e bela tradução de Caetano Galindo para a Todavia, foi seu segundo livro, publicado em 1953. Sete dos nove contos haviam sido antes publicados na revista The New Yorker e eles guardam alguns pontos de contato com o romance de estreia ao retratar uma boa galeria de jovens entre o inteligente e o desajustado. Trata-se de uma reunião de contos não planejada para formar um livro, mas o todo funciona muito bem ao apresentar uma corrente comum de bem humorado descontentamento.

Eu cultivo uma mania quando leio livros de contos. Costumo atribuir-lhes notas de 0 a 5. 9 Histórias alcançou a média de 4 e não lembro de outro que recentemente tenha chegado a tanto. Adorei o livro, claro.

Cada uma das histórias é um relato impreciso sobre a maneira de como os personagens se movem no mundo e interagem entre si. São basicamente diálogos e ligações telefônicas onde são articulados sentimentos e posturas. Não há divagações do autor e muito menos longas descrições. Os personagens de Salinger têm enorme capacidade para desencadearem bons diálogos. Isso geralmente toma a forma de uma criança em conversa com um adulto recém-encontrado, como Sybil e Seymour nos Peixes-banana, Esmé e o Sargento X em Para Esmé, com amor e sordidez, Teddy e Nicholson em Teddy. Os adultos costumam ser bem mais chatos, mas se surpreendem com a sabedoria despretensiosa dos mais jovens. Mas jamais podemos esquecer do sensacional diálogo adulto entre os “amigos” de Linda a boca, e verdes meus olhos

Em algumas histórias, como em O Gargalhada e em partes dos Peixes-banana e em Lá no bote, a narrativa é angulada em perspectiva oblíqua — o personagem principal está sendo descrito por outros através dos quais o leitor o vê. Mais: em todas as histórias, independentemente da perspectiva, a narrativa é cercada por fatos de significado dúbio. Nada é gritado de forma deselegante. Tudo é sugerido ou parece enfiado ali casualmente. No entanto, o leitor atento que consegue sintonizar com a frequência peculiar de Salinger, verá o que é fundamental — a inocência, o arrependimento, a esperança, a saudade, o amor e a loucura.

Isto é, 9 Histórias tem histórias simples com um leque de significados que vão variar conforme a experiência do leitor. Li o livro há muitos anos e esta leitura de agora foi muito diferente, talvez mais rica. Cada conto é digno de ser lido, relido e trêslido. Há neles sutis menções a uma crescente cultura do ego e a uma imensa e gloriosa sugestão de que falta algo no mundo de todos nós.

Um grande livro.

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Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XXVII – Dom Casmurro, de Machado de Assis

Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XXVII – Dom Casmurro, de Machado de Assis

Sim, aos poucos estou relendo Machado. E me surpreendendo, pois li Dom Casmurro na adolescência e tinha a memória de um bom livro, mas não a clara noção da autêntica obra-prima que é. Publicado em 1899, o Casmurro é o terceiro da série de 5 grandes romances finais de Machado. Os anteriores são Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) e Quincas Borba (1891) e os seguintes são Esaú e Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908). (De entremeio, também temos o desconhecido Casa Velha, de 1885). A história é contada na primeira pessoa por Bentinho. Ele é o célebre narrador não confiável, ainda mais que relata, no tom de uma longa conversa com leitor, um drama: a dupla traição que teria sofrido por parte de sua mulher, Capitu (Capitolina) e de seu melhor amigo, Escobar.

O romance começa numa situação posterior a todos os acontecimentos. Bentinho (Bento Santiago), já velho, conta ao leitor como recebeu o apelido de Dom Casmurro. A expressão fora inventada por um jovem poeta, que tentara ler para ele no trem alguns de seus versos. Como Bentinho cochilara durante a leitura, o rapaz ficou chateado e começou a chamá-lo daquela forma.

O narrador começa então a rememorar sua existência, o que ele chama de “atar as duas pontas da vida”. O leitor é apresentado à infância de Bentinho, quando ele vivia com a família num casarão da rua de Matacavalos.

Bentinho mora com a mãe amorosa, Dona Glória, o tio Cosme, a mal-humorada prima Justina e o agregado José Dias, um esplêndido modelo de chato. É uma família bem brasileira, destas que geram filhos mimados. Sua vida pode ser dividida em três fases: Bentinho, Dr. Bento Fernandes Santiago e Dom Casmurro.

Bentinho é o menino tímido e sem iniciativa que provavelmente acabará num seminário e depois padre — pois era uma promessa de D. Glória tornar seu filho padre. Mas há uma vizinha, uma vizinha de quintal, um dos maiores personagens da literatura brasileira, Capitu. Quando a ação começa, ela tem 14 anos e ele 15.

Capitu era Capitu, isto é, uma criatura muito particular, mais mulher do que eu era homem.

Os dois se apaixonam, prometem que vão se casar um com o outro haja o que houver, só que a família de Bentinho quer vê-lo padre. Capitu e Bentinho vão crescendo e não são mais aquelas duas crianças que brincavam no quintal, a coisa esquenta e eles passam aos beijos e carícias… As brincadeiras e a rotina dos quintais passam da infância para o erótico, sempre puxadas por Capitu.

— Sou homem!

Quando repeti isto, pela terceira vez, pensei no seminário, mas como se pensa em perigo que passou, um mal abortado, um pesadelo extinto; todos os meus nervos me disseram que homens não são padres. O sangue era da mesma opinião. Outra vez senti os beiços de Capitu.

Capitu é linda. Bentinho também arranca suspiros, mas só tem olhos para ela, que, por sinal, puxa-o com os belos olhos e o engole.

Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá ideia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros; mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me.

Ele vai para o seminário, o que se torna uma tortura. Bentinho gosta de mulheres. Certa vez, no caminho para o seminário, vê uma muito bonita cair na rua e…

No seminário, a primeira hora foi insuportável. As batinas traziam ar de saias, e lembravam-me a queda da senhora. Já não era uma só que eu via cair; todas as que eu encontrara na rua mostravam-me agora de relance as ligas azuis. De noite, sonhei com elas. Uma multidão de abomináveis criaturas veio andar à roda de mim, tique-taque… Eram belas, umas finas, outras grossas, todas ágeis como o diabo. Acordei, busquei afugentá-las com esconjuros e outros métodos, mas tão depressa dormi como tornaram, e, com as mãos presas em volta de mim, faziam um vasto círculo de saias, ou, trepadas no ar, choviam pés e pernas sobre a minha cabeça.

Ele consegue livrar-se do seminário e casa com Capitu. E então começa uma certa estranheza que apenas aumenta.

A alegria com que pôs o seu chapéu de casada, e o ar de casada com que me deu a mão para entrar e sair do carro, e o braço para andar na rua, tudo me mostrou que o ar de impaciência de Capitu eram os sinais exteriores do novo estado. Não lhe bastava ser casada entre quatro paredes e algumas árvores; precisava do resto do mundo também.

E depois eu deixo para você descobrir o que e como acontece.

Mais detalhes, sem spoilers decisivos. No seminário, ele tinha conhecido Escobar, de quem se tornou inseparável. Eles tinham tudo em comum, inclusive o plano de sair de lá e não como padres. Escobar casa-se com Sancha, uma amiga de Capitu. Logo têm uma filha que recebe o nome de Capitolina… Depois de alguns anos e após penosas tentativas, Capitu finalmente tem um filho, e o casal pôde retribuir a homenagem que Escobar e Sancha lhes haviam prestado: o filho é batizado com o nome de Ezequiel, como Escobar.

Só que Ezequiel vai ficando cada vez mais parecido com Escobar… E Bentinho desconfia. A temática do ciúme, abordada com brilhantismo nesse livro, provoca polêmicas em torno do caráter de uma das principais personagens femininas da literatura brasileira: Capitu.

Escobar vinha assim surgindo da sepultura, do seminário e do Flamengo para se sentar comigo à mesa, receber-me na escada, beijar-me no gabinete de manhã, ou pedir-me à bênção do costume. Todas essas ações eram repulsivas; eu tolerava-as e praticava-as, para me não descobrir  mim mesmo e ao mundo. Mas o que pudesse dissimular ao mundo, não podia fazê-lo a mim, que vivia mais perto de mim que ninguém.

Assim como o enorme afeto e amor entre Capitu e Bentinho, a história do adultério (?) é composta por poucas pinceladas. Tudo é meio vago. Machado foi um mestre absoluto e deixa enorme espaço para nossa imaginação. Ele não apenas conta a história sem grandes detalhes como deixa para nós discutirmos se houve a traição de Capitu. Mas Bentinho enxerga no filho a figura do amigo e fica convencido de que fora traído pela mulher.

Cada um acha uma coisa. Como mais ou menos escreve Hélio Guimarães no posfácio desta linda edição da Carambaia — pois escrevo de memória — o livro pode ser sobre um adultério (traiu!), sobre o ciúme masculino (não traiu!), ou ainda uma denúncia a respeito do violento comportamento dos homens detentores do poder e da narrativa (sem dúvida não traiu, seus misóginos!) ou ainda uma gloriosa afirmação e reivindicação do desejo (pfff, e daí se traiu?).

Carlos Drummond de Andrade dizia que ler Machado de Assis era uma tentação permanente, quase um vício a ser combatido. Perguntem a um drogado (ou ex) quão fácil é livrar-se de um vício.

Machado de Assis (Rio de Janeiro, 21 de junho de 1839 — Rio de Janeiro, 29 de setembro de 1908)

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Uma Temporada no Escuro (Minha Luta 4), de Karl Ove Knausgård

Uma Temporada no Escuro (Minha Luta 4), de Karl Ove Knausgård

É incrível como minha vida é regulada pelos livros. Uma série de livros mais ou menos insatisfatórios me deixaram triste. Então peguei o quarto volume da autobiografia do Knausgård e tudo melhorou. Textos bem escritos salvam, apesar de que este foi o livro mais fraco dos quatro que li da série Minha Luta.

A Noruega é um país muito diferente do Brasil, claro. Lá, um estudante de boas notas, que termina o curso secundário, pode tentar uma vaga para dar aulas para crianças em regiões remotas do país, ganhando um bom salário. Foi o que fez Knausgård. Aos 18 anos e já interessado em tornar-se escritor, ele foi mandado por um ano para Håfjord, no norte do país, onde o inverno é uma noite contínua e o verão é puro dia. Numa comunidade de pescadores com 250 habitantes e na cidade vizinha não muito maior, ele deu aulas, tomou frequentes bebedeiras, escreveu, cuidou para não manter relações sexuais com alunas — afinal, elas tinham apenas dois ou três anos a menos do que ele e eram uma grande atração –, escreveu, entrou em conflito com superiores, escreveu, tentou perder a virgindade inúmeras vezes com outras mulheres — sempre tendo que enfrentar uma vergonhosa ejaculação precoce –, escreveu, viveu e escreveu. O plano era o de ganhar dinheiro suficiente para passar o ano seguinte viajando e ter tempo livre para se dedicar à escrita em um local calmo. O plano deu certo.

Neste quarto volume, a narrativa permanece leve, franca, rápida e envolvente. Na verdade, Knausgård me faz sempre grudar no livro. Ele não se preocupa muito com a cronologia e, lá pela página 200, retorna dois anos em sua vida e permanece ali até a página 400, quando volta a Håfjord. O livro tem 495 páginas.

A história dos romances é a da vida do autor. Uma vida comum, mas narrada com tal maestria proustiana que torna-se espelho de nossa própria existência, com suas temporadas boas ou escuras. As quase quinhentas páginas são lidas como se fossem 100. Queremos saber mais de Karl Ove, porque a identificação com os seus medos, decisões erradas e contradições revelam um caráter humano. Ele parece nos mostrar o tamanho da vida, nem enorme nem desconsiderável, nem simples nem inviável.

A ideia da escuridão perpassa todo o volume — nas entrelinhas e literalmente. É uma metáfora de um momento da vida em que tudo parece decisivo, até pela imaturidade para se lidar com os problemas. E há sempre o pai, o pai. Knausgård sempre volta àquela figura violenta e opressiva que assombra sua vida. Neste volume, há a separação dos pais e primeiros sinais da devastação que a bebida faria, tão bem contada no primeiro volume, A Morte do Pai.

Minha Luta é um imenso painel — já li 2000 páginas nos 4 primeiros volumes — que mostra um homem buscando crescer e se desenvolver, livrando-se de culpas, vergonhas e da autoridade do pai, mas também é uma história sobre como a vida pode ser boa. É muito complicado não se identificar… Minha infância não teve nada em comum com a dele. Mas como temos sentimentos em comum! Quantas vezes ele fala de mim, mesmo vivendo uma realidade muito diferente!

Recomendo.

Foi bem ali, no Círculo Polar Ártico, o local onde Knausgård deu suas aulas. Sim, frio, mas ele não reclama dele, só da escuridão no inverno.

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Ilíada, de Homero (trad. de Christian Werner)

Ilíada, de Homero (trad. de Christian Werner)
A capa externa da caixa homérica da Ubu Editora

Por Leonardo Antunes (*)

Há quatro anos, Christian Werner lançava sua tradução da Odisseia pela Cosac Naify. Àquela ocasião, Guilherme Gontijo Flores escreveu uma resenha para a Folha de São Paulo louvando o trabalho e celebrando o fato de que nosso sistema literário esteja produzindo novas traduções dos clássicos: um sinal de vitalidade de nosso meio, veredito com que concordo plenamente.

Agora pela Editora Ubu, Werner não só relança sua Odisseia como também publica uma tradução inédita da Ilíada. Salvo engano, creio que essa seja a tradução de Homero de mais longo período de gestação entre aquelas de que dispomos em português.

Digo isso porque, em 2002, quando iniciei meus estudos sob a tutela do professor, a tradução já estava sendo gestada. Desde então, Werner se tornou uma das figuras mais respeitadas no campo de estudos homéricos no Brasil, tendo também publicações e repercussão no exterior. Durante esses mais de 15 anos, vem se dedicando ao estudo dos poemas épicos gregos, tendo escrito inúmeros artigos e livros acadêmicos a esse respeito.

Creio que esse seja o grande diferencial de sua tradução, que Gontijo comparou, em 2014, à de Frederico Lourenço, também professor e pesquisador de literatura grega. Além de serem ambas oriundas de um cenário acadêmico, essas traduções também têm em comum o verso livre. Porém, creio que as semelhanças terminem aí.

Enquanto o texto de Lourenço parece focar-se na fluência como critério primeiro, a tradução de Werner, por sua vez, prima pelo cuidado extremo com a linguagem de Homero. Ela é concisa, como a de Odorico Mendes e de Haroldo de Campos, mas não pelo mesmo modo que a desses poetas, que buscavam impor uma dicção própria ao texto. A tradução de Werner é concisa pela emulação da parataxe grega, das frases coordenadas uma após outra, e que são vertidas com extremo rigor palavra por palavra, de modo quase interlinear.

É o tipo de trabalho que facilmente poderia se tornar infiel ao texto de partida em uma característica importantíssima: a da legibilidade – Homero, apesar de seu vocabulário vasto, não é difícil de ser lido por quem sabe grego. Mas também nisso Werner se mantém próximo ao texto do lendário aedo, evitando palavras desnecessariamente raras. Quando elas ocorrem, são para emular a raridade de um vocábulo pouco usual no texto grego ou para dar uma potencialidade de sentido precisa a um termo-chave para a interpretação da obra.

Ainda que a ordenação pouco usual da linguagem poética emulada por Werner possa causar um pouco de dificuldade de início, justamente por sua uniformidade cuidadosamente lavrada não demora para que o leitor se acostume com essa dicção que emula características fundamentais de Homero, jamais recriadas em português de forma tão criteriosa.

Também os paratextos, em que o tradutor explica minuciosamente suas escolhas e critérios, são um excelente apoio tanto para novos leitores de Homero quanto para estudantes da área. O box com os dois poemas conta ainda com o brilhantismo de uma introdução assinada por Richard P. Martin, no início da reedição da Odisseia.

Borges, que não sabia grego, dizia que conhecia bem Homero pela quantidade de traduções que tinha em sua biblioteca. Com essa nova tradução de Werner, nós também ficamos um pouco mais próximos de conhecer melhor o grande épico grego, pelas características que ficam tão bem aclaradas em sua tradução e em contraste com as demais.

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(*) Leonardo Antunes é poeta, tradutor e professor de Literatura Grega na UFRGS.

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Os 20 Melhores Contos de Aldyr Garcia Schlee

Os 20 Melhores Contos de Aldyr Garcia Schlee

Um grupo de amigos e literatos escolheram os 20 melhores contos de Aldyr Garcia Schlee (1934-2018) através de votação. Houve 396 indicações de contos feitas por 152 leitores e o resultado foi apresentado neste livro, publicado quando o escritor completou 80 anos. Mas a edição é única e está fora do comércio. Foi uma boa ideia e os primeiros contos do volume — os mais votados — são realmente extraordinários. Só que depois a escolha meio que se perde em contos cronísticos que podem ser da preferência dos amigos, mas que… Bem, conheço outros bem melhores dentro da produção do autor. Prova de que nem sempre dá para confiar nos amigos…

Schlee foi um enorme escritor. Ele é o cantor da região fronteiriça, o homem que imortalizou literariamente Jaguarão, seu rio e sua ponte. Seus personagens não são os potentados locais, mas a chamada gente simples do campo, as moças mal amadas, prostitutas e andarilhos. Suas histórias trazem o homem da fronteira, a cultura pampeana e seu linguajar, muitas vezes ignorando o que é Brasil e o que é Uruguai. Há muita nostalgia nas histórias também.

Temos vários contos esplêndidos na coleção. Me apaixonei pelo segundo mais votado, Maria Adélia, mas também por A Última Viagem do Vapor Rio Grande, por A Viúva de Quinteros, Um Brilho nos Olhos e Luíza vinha de noite.

Mas Schlee foi um raro e grande contista de futebol. A maioria de tais contos ficaram de fora da coleção dos 20. Paciência.

Aldyr Garcia Schlee | Fructos do Paiz / Divulgação / Jornal do Comércio

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Este é o mar, de Mariana Enriquez

Este é o mar, de Mariana Enriquez

Depois do excelente livro de contos As coisas que perdemos no fogo, Mariana Enriquez retorna com o romance Este é o mar, que não chega aos pés do citado livro de contos.

Este é um romance que gravita entre o terror, o gótico e o fantástico. Helena é uma das deusas (digamos assim) que cria lendas do rock. Quem facilitou a morte de John Lennon fazendo-o caminhar sozinho na rua, criando a lenda? Ora, uma deusa como Helena. Quem fez Kurt Cobain ficar dias em casa antes de sua morte? Ora, outra deusa. E quem criou a lenda de Jim Morrison, matando-o em Paris? Outra coleguinha de Helena. E Sid Vicious? E Elvis?

Helena converte-se em secretária de James Evans, vocalista e compositor da banda Fallen, e o acompanha a toda parte. Ele é um mega sucesso mundial. E Helena vai matá-lo, claro. Após uma turnê-recorde de 350 shows, após Helena auxiliá-lo — sem ele saber, claro, porque ela tem super-poderes — a escrever lindas canções que faziam o público suspirar e as mulheres gritarem histericamente nos concertos — elas são chamadas de Enxame –, enfim, após levá-lo ao Olimpo, ela vai torná-lo uma lenda.

Enriquez adora uma historinha macabra. Também curte o fantástico. Ela penetra sem maiores problemas em um território pouco explorado pela literatura latino-americana. O livro é sombrio, mas não tão perturbador quanto deveria, apesar da enorme turnê, das overdoses, das pastas com quatro mil e quinhentas horas de arquivos cheios de imagens, shows e entrevistas, do amor doentio por uma banda e seu líder, do isolamento deste.

Há a luta para se tornar o fã mais fiel. Há meninas dispostas a morrerem com a imagem de seu ídolo e o estômago cheio de comprimidos. Há também a história do mundo dos seres que conspiraram para que Cobain, Vicious, Morrison, etc. morressem de repente, fazendo sofrer milhões da fanáticos.

A ideia é gótica. A execução é boa. O livro é médio.

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O Deserto dos Tártaros, de Dino Buzzati

O Deserto dos Tártaros, de Dino Buzzati

Este é um clássico absoluto do século XX. O milanês Dino Buzzati viu a vida como uma força silenciosa que nos arrastava para um destino trágico. Escrito em 1940, O Deserto dos Tártaros conta a história de Giovanni Drogo, que, melancólico e esperançoso, deixa sua cidade em uma manhã de setembro para chegar à fortaleza Bastiani, onde passará por quatro meses, ou por toda a vida. O forte fica na fronteira do mundo habitado de seu país, de frente para um deserto de onde sempre podem surgir inimigos. É uma antiga construção onde um misterioso torpor ataca alguns, estagnando tudo, das paredes à paisagem, do ar às pessoas.

Todos esperam pela grande batalha e pela glória militar que dará sentido a suas vidas, mas aguardando e aguardando, Drogo acabará sofrendo desta imobilidade. Esta assombração se arrasta entre os personagens. Deste modo, todos observam o deserto, mas o movimento verdadeiro só vai acontecer quando… A história tem enorme força alegórica, representa todos os homens, o significado de suas ações e sua existência.

O Deserto dos Tártaros é ambientado em um país imaginário. Como dissemos, Drogo, a partir do momento em que é tornado oficial e é designado Fortaleza Bastiani, tem certeza de uma bela carreira, no entanto, por incontáveis ​​anos nenhuma ameaça aparece e a fortaleza vai sendo esvaziada de sua importância estratégica, permanecendo apenas como uma construção empoleirada numa montanha solitária, da qual muitos até ignoram a existência.

Quando chega, Drogo tem má impressão do local. Ele confidencia o fato a seu superior, o major Matti. Este o aconselha a esperar quatro meses até o exame médico periódico, após o qual ele pode ser transferido por motivos de saúde. Sim, inventariam alguma coisa para transferi-lo. Então Drogo sabe que sairá logo de lá, só que nesse período parece sofrer o fascínio dos imensos espaços desérticos que se abrem para o norte. A vida na fortaleza Bastiani ocorre de acordo com as regras estritas que regem a disciplina militar e exerce uma espécie de feitiço sobre alguns soldados. As forças armadas apoiam-se na esperança de ver o inimigo aparecer no horizonte, só que… Enfrentando os tártaros, lutando contra eles, tornando-se heróis, seria a única maneira de devolver a eles sua importância, para finalmente haver algum sentido nos anos vividos ali.

OK, Drogo não atinge o alvo de sua existência, mas derrota seu maior inimigo: o medo de morrer. Ao final, Drogo sorri reconciliado com sua história, na qual ele finalmente encontra um significado que supera sua individualidade.

Um grande livro. Dino Buzzati (1906-1972) foi, além de escritor, jornalista do Corriere della Sera. Lá permaneceu por 44 anos. Talvez o jornal fosse seu Bastiani particular.

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A Avoada e o Distraído, de Vanessa Silla e Cláudio Levitan

A Avoada e o Distraído, de Vanessa Silla e Cláudio Levitan

Este é um livro decididamente desprogramado. Escrito a quatro mãos, cada autor escrevia um capítulo e passava ao outro, que não podia mexer no que não era seu, apenas deveria dar seguimento à história. É claro que, em algo escrito desta forma, há viradas súbitas, momentos em que notamos pequenas sacanagens feitas um para o outro, mas também vemos as deixas. Ah, os autores também não deveriam conversar um com o outro a respeito do texto. E assim foi feito durante os 80 capítulos do livro.

Vanessa Silla parece gostar de tecnologia, então vamos lá. Como se fosse um caso de inteligência artificial, um autor vai aprendendo com o outro o que cada um deseja contar e as narrativas vão se aproximando até chegarem a um belíssimo final. Realmente, aqui temos um final bonito e raro. Que não será contado por mim, é claro.

Porém, durante a narrativa, acontecem coisas verdadeiramente inacreditáveis, malucas mesmo. Tudo começa na Casapueblo. O que é o local? Ora, a Casapueblo é uma espécie de casa-escultura que fica em numa bela encosta de Punta Ballena, a 15 minutos de carro de Punta Del Este, no alto de um morro. Obra do pintor e escultor uruguaio Carlos Páez Villaró, foi construída em pedra e é imensa e meio doida. Lá há um Club Hotel e é possível visitar o ateliê do artista, assim como salas que expõem e vendem obras de arte, etc. No final de tarde acontece a Cerimônia do Sol, quando são recitados poemas de Villaró. Sua arquitetura parece privilegiar o acaso ou o imprevisível, certamente.

Que coincidência, não?

Bem, como disse antes, tudo começa na Casapueblo. Depois, a coisa decola em vários sentidos. Vai para Roma, Tel-Aviv, Cisjordânia e acaba — sem spoilers de nossa parte — novamente na Casapueblo. A atividade profissional de Bartolomeu é altamente duvidosa. Já a de Sirena é quase o mesmo. E os autores dão vazão a várias e divertidas livres-associações. O estilo avoado de Silla me pareceu uma verdadeira tempestade emocional (um abraço, Bion!), já o do distraído Levitan é mais formal. Silla arrisca-se mais em seu fluxo de ideias, Levitan puxa mais o freio. Silla é a futurista, Levitan, o passadista. Mas eles se entendem e o resultado é que li o livro (Class, 169 páginas, R$ 40) em um dia, sinal de que grudou e agradou.

Eles estarão na Bamboletras na quinta-feira (01/08), às 19h,  para um bate-papo sobre a experiência de escrever a quatro mãos, o livro, etc.

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Transiberiana, de Zizo Asnis

Transiberiana, de Zizo Asnis

Transiberiana é um bom livro, mas deve ser encarado como a visão parcial de um brasileiro sobre o que ele pensava haver de ainda soviético na Rússia de 2015. Sou casado com uma bielorrussa muito inteligente, ligada e nada ufanista de seu país. Ou seja, sou casado com uma soviética. Pois bem, ela conseguiu discordar — para melhor ou pior — de quase tudo o que ele escreveu sobre o país. E ela saiu de lá fugindo da pobreza para se estabelecer com seu violino primeiramente na Amazonas Filarmônica, em Manaus, em 1999. Sabe bem o que é soviético e o que não é.

Porém, para mim, foi interessante ler o livro de um viajante brasileiro sobre aquelas paragens exóticas. Deu para aprender bastante sobre as sensações e atrações da viagem pela terceira mais longa ferrovia do mundo — as duas maiores também se utilizam de parte da Transiberiana. E também sobre as relações humanas naquela região do mundo. Sim, invejei o viajante e comi o livro rapidamente, com o maior interesse.

Mas preferia que ele tivesse ficado mais nas diferenças, na paisagem, nos acontecimentos da viagem e nos exotismos do que na parte política. As observações de Asnis sobre a política das regiões visitadas são bem simplistas e, nestes tempos de trevas bolsonaristas, tecer comparações — muitas vezes igualando nazismo e comunismo — é pecado capital.

Pois se é claro que Stálin era um psicopata que tornou a URSS uma ditadura sanguinária, há diferenças muito importantes entre nazismo e stalinismo.

Parêntese: lembro da patética Ana Maria Braga entrevistando Petkovic… Ele disse que não era tão ruim viver na Iugoslávia de Tito. Ana foi pra cima, perguntando se não era horrível não ter liberdade nem direito de voto e ouviu o sérvio dizer com calma que todo mundo tinha um emprego e ninguém passava fome. Fim do parêntese. Ou não. Além disso, a Revolução Russa trouxe importantes conquistas sociais. Para evitar novas revoltas de trabalhadores, criaram-se em todo o mundo as garantias de direitos mínimos à população como educação, alimentação e moradia. Não foi bondade do capitalismo… Lembram de como era antes, no século XIX?

Esse negócio de demonizar gratuitamente a esquerda pode ser moda no Brasil, mas nenhum historiador leva isso à sério. Deste modo, o singelo papo sobre a “falta de liberdade” constante no livro é muito guerra fria e isto meio que me tirou o tesão. Imagino a dificuldade de Asnis para confessar que as belas estações do metrô de Moscou foram construídas em 1935, 38, 43, 50, 52, 53… Ou seja, são estações construídas sob Stálin para a população da capital… Sim, a realidade é muito mais complexa do que qualquer simplismo tipo guerra fria. Mas esse meu papo de isentão é chato, né?

Bem, mesmo com restrições às interpretações do autor, o livro vale a pena. Gostei especialmente das descrições dos trens de seu funcionamento, dos contatos sociais estabelecidos durante a viagem e das partes da Mongólia e do Baical.

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A Trilogia de Nova York, de Paul Auster

A Trilogia de Nova York, de Paul Auster

Ao finalizar a leitura deste livro, fiquei  com um sentimento de incompletude que não chegava a ser desagradável. As histórias são mais ou menos estruturadas como as de detetive, mas não tem aquele final explicativo. Bem, como o próprio título diz e a capa mostra, A Trilogia de Nova York divide-se em três novelas, Cidade de vidro, Fantasmas e O quarto fechado. Já escrevi que o estilo é o das histórias de detetives. Há sempre algo a ser desvendado, mas talvez você é quem deva escolher o final de cada uma delas. Há mistérios, escritores metidos a detetives, escritores famosos, escritores anônimos, jogos intrincados de intrigas, desaparecimentos e mortes. Há também confusões na identidade e no caráter de cada personagem, tudo isso pelas ruas de Nova York e um pouco por Paris.

O central aqui é o estilo, a construção dos personagens e a linguagem. É a elegância e a notável construção da intriga que nos faz grudar no livro. Isso vale muito mais do que o destino dos personagens descritos nas três histórias.

Em Cidade de vidro, há insistentes telefonemas para uma certa agência de detetives Auster. O sujeito do outro lado da linha procura por Paul Auster. Só que os telefonemas chegam ao apartamento de Daniel Quinn, um escritor de livros de detetives. Quinn escreve sob o pseudônimo de William Wilson (como vai você, Edgar Allan Poe?) e seu detetive chama-se Max Work. Leu bem? Pois é, e tudo vai se misturar. Aparentemente sem ter nada melhor para fazer, Quinn acaba mentindo que é Auster e, mesmo sem ter nenhuma experiência na função, parte para uma estranha investigação. Ele vai atrás de Stillman, um scholar doido varrido que anos antes mantivera seu filho Peter em cativeiro, fechado em um apartamento como um Kaspar Hauser moderno. No meio da história, Quinn conhece o próprio Auster, que tem uma bela esposa e um filho. Quinn perdera esposa e filho em um acidente. Ou seja, tudo é espelho.

Já em Fantasmas, Blue é contratado para seguir White a pedido de Black. Claro que há um Brown, um Gray e um Green na história que é a piorzinha das três boas novelas.

Na melhor, O quarto fechado, um autor de artigos sobre literatura recebe o espólio literário completo do inédito escritor Fanshawe, um talentoso amigo de infância que inesperadamente some às vésperas do nascimento do filho. Ele casa com a mulher do escritor, assume o filho e começa a publicação das obras de Fanshawe, que acaba famoso. Mas não pensem que tudo será um mar de rosas. O final extraordinariamente belo. E aberto.

Mas vejam bem: o narrador de O quarto fechado esbarra em Paris com um tal Peter Stillman — personagem de Cidade de vidro –, Fanshawe adotou o nome de Henry Dark, outro personagem da mesma novela; o mesmo Fanshawe tem um caderno vermelho decisivo e em Cidade de vidro há também um caderno vermelho. Já em Fantasmas, todo mundo têm cadernos. Ou seja, Auster abusa dos espelhamentos desde o primeiro momento e aumenta a dose na última novela.

Paul Auster é fascinado pelo acaso e pelas ficções populares de detetives. Ele dá a impressão de construir suas histórias sem saber exatamente para onde seus personagens vão levá-lo. Usa paralelismos e simetrias absolutamente intrigantes. E o que menos importa é o desfecho, o que interessa é a forma que com que tudo parece se dissolver.

Recomendo muito.

Paul Auster. Ou Quinn. Ou seria Fanshawe?

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Romeu e Julieta na aldeia, de Gottfried Keller

Romeu e Julieta na aldeia, de Gottfried Keller

O título do livro anuncia e o livro narra uma tragédia, claro. Porém, a história não é baseada em Shakespeare, mas numa notícia de jornal. Sete anos após o suicídio de dois jovens no interior da Alemanha, Keller criou esta história que foi incluída originalmente no ciclo de contos A gente de Seldvila, publicado pela primeira vez em 1856 e tido por Nietzsche como um “tesouro da prosa alemã”. O pouco falado suíço Gottfried Keller (1819-1890) foi um mestre.

Sem spoilers, tá? No centro dos acontecimentos de Romeu e Julieta na aldeia (Editora 34, 156 páginas) estão as duas famílias camponesas Manz e Marti. Ambos os agricultores têm família e cada um tem suas terras. Cada um também têm um filho — Marti tem a menina Vrenchen e Manz, Sali, um garoto. Vrenchen e Sali passam muito tempo brincando nos campos de seus pais, enquanto estes fazem seus trabalhos de lavrar, plantar, colher e limpar seus campos. Os campos aráveis​ das duas famílias ficam próximos um do outro, separados apenas pelo campo do meio, cujo dono morreu. Apesar de um suposto neto do dono estar na cidade, obstáculos burocráticos — que inclui racismo, aparentemente — impedem que o chamado violinista negro o use.

Não há cercas entre os campos, apenas algumas pedras marcam a linha limite. Isso dá aos dois agricultores a oportunidade de invadir um pedaço do campo abandonado. Depois, quando o campo do meio é leiloado, é Manz quem fica com ele. Mas o vizinho Marti se recusa a ceder sua parte ocupada. Há uma disputa acirrada entre os agricultores. Do dia do leilão em diante, Manz e Marti são devorados por ódio, inveja e ressentimento, tornando a vida cada vez mais difícil para eles e suas famílias. As crianças também sofrem com a briga e têm que ficar por anos apartadas, cada uma no seu canto. O ódio é imenso e irracional. 

Como esse conflito absorve cada vez mais suas vidas cotidianas, os agricultores negligenciam seus campos e acabam arruinando suas famílias. Como novo meio de subsistência, Marti passa a pescar — coisa de pobre na região –, enquanto o fazendeiro Manz abre na aldeia vizinha (Seldvila), um bar de bêbados. Mas como o bar é um fracasso, Manz também se volta para a pesca a fim de poder dar de comer a sua família.

Ou seja, os camponeses perderam quase tudo, de seu trabalho à reputação, de suas terras à humanidade, são desprezados pela família e por outros camponeses, mas não perderam o ódio mútuo. Durante uma pescaria em que são acompanhados pelo filhos já jovens, os dois se encontram por acaso, ofendem-se e a coisa acaba em agressão física. Os filhos os separam, mas se observam… Não se viam há muito tempo.

E Sali procura Vrechen. E o resto deixemos de lado.

Keller é um mestre, conta sua sombria história considerando não apenas o amor dos jovens como a condição de penúria financeira. Esta, a situação social de ambos, é decisiva no desenrolar de Romeu e Julieta na aldeia.

Não avançarei mais. Keller é um escritor conciso e de grande poder de evocação. Com duas ou três pinceladas já temos um cenário completo. Faz grande literatura.

Recomendo muito.

Gottfried Keller (1819-1890)

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Ingresia, de Franciel Cruz

Ingresia, de Franciel Cruz

A verdade, essa menina traquina que não salva nem liberta, é uma só: demorei a ler o livro de Franciel em razão das exigências descabidas do menino James Joyce e de seu Bloomsday. Estudar os 600 DEMÔNHOS que habitavam o SÓ DESGRÓRIAS do Leopold fizeram o tempo se dilatar. Quanto eu não sei porque não uso relógio.

Mas derivo ao tentar imitar, sem talento, o estilo de Franciel. Vamos ao livro. O seguinte é este: Ingresia (R$ 30, só a capa já vale mais, 258 páginas) são crônicas e mais crônicas uma melhor que a outra, todas muito bem escritas, todas em rigorosa forma franceliana — uma linguagem barroca e desbocada, irreverente e ateia, altamente pessoal, cheia de surpresas e beleza. Sim, beleza, esta fugidia menina. Tanto que às vezes temos que lê-las duas vezes por pensar que perdemos algo da forma no afã (recebam meu afã no peito) de não perdemos a linha do pensamento original e bêbado do autor que escrevia bêbado, mas editava sóbrio (beijinho no ombro, Hemingway).

Os temas são a cultura e o comportamento baianos — a Bahia, essa terra lambuzada de dendê e exclusão –, a política, o futebol e a imprensa de lá com suas figuras tão repulsivas e adoráveis — mais aquelas do que estas — quanto as nossas. Também adorei as crônicas que falam de música. Há igualmente os causos da infância e os problemas de Soterópolis (Salvador), que em tudo diferem dos nossos, não fosse a onipresente indiferença do poder público à população e o respeito aos grandes empresários. Ou seja, em nada diferem na origem.

Um excelente livro que RECOMENDO.

E mais não digo porque hoje é quarta-cheira véspera de feriado.

PUTAQUEPARIU A RESENHA!

Franciel Cruz na Feira Literária de Mucugê em agosto de 2018 | Foto: Lari Carinhanha / Fligê

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A literatura faz dieta e perde páginas

A literatura faz dieta e perde páginas

Relatos revelam um corte significativo na extensão dos romances durante a última década, em razão de novos hábitos de leitura

Traduzido rapidamente por mim — Fonte: El País

Estande na Feira do Livro de Madri | Foto: Jaime Villanueva

Uma mesa cheia de livros à espera de atenção. A pilha tornou-se uma coluna que continua crescendo em número e em angústia. Talvez seja a sala de um leitor, mas é também a imagem que ilustra a capa da nova edição da revista The New Yorker. O sufoco do casal, em sua cama, parece ter uma explicação na superprodução de novidades, na falta de tempo para lê-las e no surgimento de novos inimigos que competem para manter seu limitado tempo livre.

Número médio de páginas dos livros lançados nesta década

Na Espanha, o ISBN (a agência que cataloga os livros geridos pela Federação de Editores do país) descobriu uma tendência que poderia estar ligada a um movimento contra o hábito da leitura. Os editores produzem livros cada vez mais curtos. Na última década, o número de títulos lançados cresceu, mas vieram com menos páginas: a média foi, em 2017, 243 páginas na categoria ficção e poesia. Em 2009, a extensão média era 265 páginas. 20 páginas foram cortadas, de acordo com as estatísticas do cadastro que audita o setor editorial. O segmento da ficção já tem 50,8% de livros de menos de 200 páginas. Uma década atrás, eles eram 46,3%. Nós examinamos detalhes e vimos que em 2017 foram publicados 6.573 títulos com uma extensão entre 101 e 200 páginas; 3.740, entre 201 a 300 páginas; 3.816, de 301 a 500; e 1.078 de 501 a 1.000 páginas. Em 2011 houve uma recuperação, devido à superprodução de notícias (ver gráfico).

Quase 70% dos títulos de literatura são publicados por pequenos e médios editores. Luis Solano é o editor do Libros del Asteroide e reconhece ter detectado a tendência de livros mais curtos. “Eu acho que as razões são claras. Por um lado, o tempo disponível dos leitores é mais escasso do que dez anos atrás. É evidente que o entretenimento digital (da TV às redes sociais, WhatsApp, YouTube, Netflix ou outras ferramentas de comunicação) reduz o tempo de leitura, portanto, os livros que propomos devem ser melhores ou mais curtos”.

O tamanho importa

O mundo e a leitura offline adaptam suas formas à constante mobilidade das pessoas, à fragmentação dos tempos cotidianos e à multiplicação de ofertas. Por isso, ao escolher livros, reconhece Solano, os editores levam em conta que a proliferação do digital diminuiu a atenção dos leitores. “Eu não pretendo descartar os livros grandes, mas o tamanho é um fator que tem mais peso do que há alguns anos”, diz ele. Ele acredita que os autores sabem disso e se esforçam em livros que captem imediatamente a atenção do leitor, o que os compensará pelo tempo de leitura.

Raquel Vicedo, editora da Pepitas de Calabaza e sócia da livraria Cervantes y Compañía (Madri), reconhece que tem dificuldade para se dedicar a livros de mais de 250 páginas. “Se não é uma obra de arte, não vale a pena. Há muitos livros bons para serem lidos”, explica ela. Ela descreve um panorama avassalador, um mercado saturado de livreiros e leitores, incapaz de assumir o lançamento incessante de novidades. “Nestes tempos, os escritores devem nos encorajar a projetos mais curtos. É necessária muita vontade para romances longos. Mais vontade do que dinheiro”, diz a autora Lara Moreno, que acaba de publicar o livro de poemas Eu tinha uma gaiola (La Bella Varsovia). Ela, que trabalhou na editora Caballo de Troya por um ano, aponta outro fato importante: o tempo de leitura dos editores. Ela diz que os editores não gostam de analisar livros de mais de 500 páginas, só para saberem se vale a pena.

A escritora Elvira Navarro — também ex-editora do Caballo de Troya — concorda com Lara Moreno. “Talvez o fator mais importante seja a mudança de percepção da temporalidade que vivemos. Afeta a leitura e a escrita. Os tempos aceleraram e, embora no romance de entretenimento o número de páginas tenha crescido, devemos ter em mente que seus ritmos internos são rápidos. Eles são lidos em pequenos trechos”, diz Navarro. A redução de páginas também acontece em livros de ciências sociais e humanas, talvez, como diz o autor de A Ilha dos Coelhos (Random House), porque nos acostumamos a “um conhecimento parcial e superficial”. Remedios Zafra concorda com o livro Como lemos na sociedade digital?, da Fundação Telefónica, que identifica a precariedade da leitura. Na rede, flui entre a abundância, onde a leitura acontece mais pela impressão do que pela concentração.

O editor do Impedimenta, Enrique Redel, observa que “os leitores estão cada vez mais relutantes a livros volumosos. A tendência está aí. Acho que é parte de uma mudança estrutural gradual no consumo cultural, nada de novo, que afete o tempo dedicado a esse consumo”. Como Solano, Redel aponta que o tempo é limitado e que a competição é “poderosa”, entre séries, redes sociais, conteúdo online, música ou jogos. “O livro define os tempos, exige atenção total e maior envolvimento. Isso não está na moda, então o conteúdo é diluído para ser mais digerível”, acrescenta Redel, que não acredita que um leitor contumaz sofra deste problema, mas acha que o restante hesita entre um tipo de conteúdo e outro.

17 minutos de leitura por dia

O único estudo que aponta o tempo que os espanhóis dedicam à leitura foi realizado pela Comunidade de Madrid e acaba de ser publicado. Este garante que o povo de Madrid lê 10 horas por semana. Cada vez mais se lê fora de casa, como no metrô, onde 33%das pessoas leem em viagens de cerca de 40 minutos. Um recente estudo do Centro de Investigaciones Sociológicas (CIS) perguntou aos entrevistados o quanto liam. A resposta foi de dois a quatro livros por ano. Outros estudos, como o da Federação de Editores da Espanha, afirmam que são uma dúzia. Os leitores diários espanhóis são apenas 32%. 40% dos espanhóis dizem que não leem nada é porque não têm tempo. Os relatórios provenientes dos EUA são mais desanimadores, porque falam de uma queda de 19% no tempo de leitura por dia. Em 15 anos, ele baixou para 17 minutos.

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Sobre “As Academias de Sião”, conto de Machado de Assis

Sobre “As Academias de Sião”, conto de Machado de Assis

O conto completo está aqui, dentro do site Domínio Público.

As Academias de Sião, de Machado de Assis, dá pano para muitas mangas, apesar de não ser um de seus maiores contos. O pano para as mangas é tecido ao longo de um plot mais do que original para a época: as academias de Sião tentavam resolver um peculiar problema: “Por que é que há homens femininos e mulheres masculinas? O que as induziu a discutir isso foi a índole do jovem rei. Kalaphangko era virtualmente uma dama. Tudo nele respirava a mais esquisita feminilidade: tinha os olhos doces, a voz argentina, atitudes moles e obedientes e um cordial horror às armas. Os guerreiros siameses gemiam, mas a nação vivia alegre, tudo eram danças, comédias e cantigas, à maneira que o rei não cuidava de outra coisa”.

Uma das academias venceu, a que declara que a alma é sexualizada. E ela extermina (literalmente) as outras. Kinnara, a mais bela concubina do Sião era uma mulher máscula: “Um búfalo com penas de cisne”. Kinnara convence o rei para que suas almas troquem de corpo por seis meses. Cumprido o prazo, cada uma seria restituída ao corpo original. A fábula de Machado pega emprestado temas orientais, sobretudo hindus. Basta lembrar o parentesco do conto com a “história hindu” de Thomas Mann As Cabeças Trocadas, onde há um personagem belo, mas com um corpo magérrimo, e outro feio, mas de belo corpo. Em Mann, há a troca de cabeças; em Machado, a de almas.

Após a troca, Kalaphangko, ou o corpo do rei agora com alma de Kinnara cuidou da fazenda pública, da justiça, da religião e matou uns tantos que não pagavam impostos. “Sião finalmente tinha um rei”, afirma Machado. Já a alma do rei “espreguiçava-se todo nas curvas femininas de Kinnara”. Sim, Machado de Assis diverte-se sempre conosco. E nós com ele.

O conto parece indicar que a alma masculina seria mais ativa e racional, enquanto a feminina seria passiva e emocional. Mas Machado de Assis não está aqui criando teses e sim controvérsias e boas piadas. Um pouco mais sobre Kinnara. Quando há a troca de almas, ela passa a um plano secundário e Kalaphangko planeja matá-la para não desfazer a troca, porém ela revela estar grávida e o rei sente-se incapaz de matar seu próprio filho, símbolo de sua virilidade e da continuidade da linhagem real. Ou seja, primeiro Kinnara consegue fazer a troca de corpos através de um beijo e depois logra não ser morta pela maternidade, um predicado físico feminino. Neste sentido, a simples Kinnara é mais uma mulher decisiva num mundo machadiano cheio delas. As mulheres de Machado seduzem, escolhem, querem e conseguem, expelindo sensualidade tanto em lentas e inexoráveis secreções ou como em espasmos (ou jatos…).

Tenho vontade, mas reluto em fazer uma interpretação do século XXI sobre um conto que não é mais do que um scherzo de Machado. Mas há outros aspectos intrigantes neste conto cheio de curiosidades que independem do instrumental psi de nossos dias. (1) Machado não cai em momento algum nas piadas fáceis e depreciativas de uma sociedade machista — e estamos em 1884. (2) Diferentemente de Tolstói, por exemplo — um escritor absolutamente contemporâneo de Machado — , o brasileiro não está nem um pouco preocupado em explicar o mundo ou em trazer a Verdade e a Solução a seus leitores. Ele apenas narra brilhantemente os fatos e nos deixa aqui pensando… (3) Os acadêmicos consideram uns aos outros perfeitos estúpidos, mas permanecem academia, inclusive protagonizando o festivo momento final de As Academias de Sião, cantando todos juntos o hino “Glória a nós, que somos o arroz da ciência e a claridade do mundo!”.

A bela Kinnara — àquele momento já destrocada — não entendia como os membros da academia podiam ser a claridade do mundo quando reunidos e se detestarem separadamente… Mas sabemos que é assim. É notável que o fundador da Academia Brasileira de Letras nos passe uma noção tão bufa e verdadeira do comum das academias — locais que  podem ser melhor descritos como cestas de ofídios do que como clarões para o mundo.

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