Os ossos da noiva, de Charles Kiefer

Uma novela pode ter uma história envolvente, trabalhar com teses sedutoras ou provocar nossa fantasia. A gente pode se apaixonar por personagens, pelas situações, por cenas ou ficar na expectativa do que acontecerá depois. Porém, creio que em Os ossos da noiva, de Charles Kiefer, o grande motor da história é o esmerado, detalhista e perfeito trabalho de linguagem. A história está lá, claro. Estamos novamente em Pau d`Arco, o ano é o de 1958, quando Kiefer nasceu. José Cármio é um caixeiro-viajante negro, casado, dois filhos. Ele e Circe Brechen, a loira herdeira das Ferragens Brechen apaixonam-se. Parece que tudo vai acabar em tragédia e acaba.

As mudanças de foco narrativo, a aparente desordem regida por um autor que invoca temas e fatos que contam a história ao lado de outros que não contam nada — mas que servem para aclarar o contexto — são o verdadeiro cerne da narrativa. Que a sociedade de Pau d`Arco era simpática ao negro vendedor, que depois passa a combatê-lo pela ousadia, que Circe fez sua escolha e que ninguém foi passivo — apesar da calma e da lendidão do adágio de Kiefer — , tudo isso é contado como se o autor nos jogasse cartas cuja interpretação depende de nós. O cuidadoso jogo de cartomante (agorinha cometi o ato falho de escrever cartomEnte) comandado por Charles Kiefer é o principal e volátil personagem desta pequena joia.

Admiro Kiefer há muito tempo. Consultando minha anotações, descobri que minha última leitura de romances ou contos seus datava de 1997. Fiquei feliz de voltar a lê-lo. Ele evoluiu e, professor de literatura que é, mandou um recado claro. Nada de mais do mesmo. Nada de permanecer na zona de conforto de três Jabutis e de uma reputação consolidada. Há que ousar mesmo nos tranquilos adágios que ligam um Allegro a um tempestuoso Presto.

Minha arbitragem para o jogo "O videogame do rei x O homem proibido"

Aqui. O jogo faz parte do Campeonato Gaúcho de Literatura que este ano contempla apenas romances. Ao todo são 48 livros e o resultado de meu jogo foi um tanto escandaloso:

6 X 2

Dickens, rest (and laugh) in peace

A obra de Charles Dickens está agonizando. Não a vejo mais por aí e não posso afirmar que esteja estar preocupado com o fato. Mas acho que dois de seus livros são muito bons: o livro de estreia Pickwick Papers e um dos últimos de sua enorme obra, Grandes Esperanças. Mas ele é mais conhecido pelo xaroposo Oliver Twist e pelo bom David Copperfield.

Seus livros demonstram a longa decadência de uma verve cômica para dar lugar à pieguice. Se os Pickwick Papers podiam rivalizar com Swift e Fielding, Dickens foi pouco a pouco aderindo às lágrimas até ficar um tio chato que chora por cada tristeza social e pessoal vitorianas. A exceção é o esplêndido e simbólico Great Expectations.

Hoje me acordei com um nome na cabeça: Samuel Weller. Li os Pickwick na casa da praia de meus pais, lá em 1972-3, tinha 15 ou 16 anos. A lembrança que tenho desta personagem é a melhor possível. Ignoro se era mesmo tão engraçado. Dando uma pesquisada rápida na Wikipedia, dou de cara com esta frase: A recepção do público a Pickwick não foi calorosa desde o início. Só quando aparece a personagem de Sam Weller, o criado de Pickwick e que acompanha as aventuras do seu amo ao jeito de um Sancho Pança ao lado de Dom Quixote, é que as vendas sobem de 400 exemplares para 40 000!

Lembro que há uma cena de caçada no livro na qual, durante a leitura, eu dava gragalhadas que me impediam de ler o livro. Tenho a impressão de que isto nunca voltou a acontecer, mesmo que eu tenha a maior admiração pelo escritos cômicos de muita gente, desde Sterne, Swift e Fielding até John Kennedy Toole, LF Verissimo e Cláudia Tajes.

Menos mal que tenho (ou tive) outros companheiros de leitura que também admiram o incrível mordomo do chefe do Clube Pickwick. Quando colocamos Sam Weller no Google Images, damos de cara com um monte de canecos de cerveja, bibelôs e pratos representando o personagem. Não sei que valor terá em antiquários.

Como diz o samba em homenagem: "Vinícius, velho, saravá!"

O poeta Vinícius de Moraes

Há 31 anos, num 9 de julho, morria o poeta Vinícius de Moraes. O poetinha – apelido dado por Tom Jobim – era um boêmio, fumante, amante dos bons uísques e das mulheres. Casou-se nove vezes. Apesar disso, teve tempo de criar obra literária, musical e teatral. Foi parceiro de toda uma geração de grandes músicos brasileiros como o citado Tom, além de Chico Buarque, Toquinho, Baden Powell, Carlos Lyra, Edu Lobo e João Gilberto, dentre outros.

Marcus Vinícius da Cruz de Mello Moraes nasceu em 1913 no Rio de Janeiro, na Gávea, filho de um funcionário da prefeitura e de uma dona de casa que era também pianista amadora. Em 1930, ingressou na Faculdade de Direito do Catete, hoje integrada à UERJ. Na chamada “Faculdade do Catete”, conheceu o romancista Otavio Faria, que o incentivou na vocação literária. Vinícius de Moraes graduou-se em Ciências Jurídicas e Sociais em 1933, aos 20 anos. Após um período na Inglaterra, fez concurso para o Ministério das Relações Exteriores. Na primeira vez foi reprovado, mas na segunda tentativa acabou aprovado, sendo enviado para Los Angeles como vice-cônsul.

Chico Buarque, Tom Jobim e Vinícius de Moraes

Depois, Vinícius de Moraes atuou no campo diplomático em Paris e em Roma, onde costumava realizar animados encontros na casa do escritor Sérgio Buarque de Holanda. A carreira de diplomata fui subitamente interrompida pelo AI-5, através de uma aposentadoria compulsória. O motivo alegado foi a boemia. Em entrevista, o presidente João Figueiredo explicou as causas da demissão: “O Vinícius diz que muita gente do Itamaraty foi cassada por motivos políticos, por corrupção ou por pederastia. É verdade. Mas no caso dele foi vagabundagem mesmo. Eu era o chefe do Serviço Nacional de Informações, o SNI, e recebíamos constantemente informes de que ele, servindo no consulado brasileiro de Montevidéu e ganhando 6 000 dólares por mês, não aparecia por lá havia três meses. Consultamos o Ministério das Relações Exteriores, que nos confirmou a acusação. Checamos e verificamos que ele não saía dos botequins do Rio de Janeiro, tocando violão, se apresentando por aí, com copo de uísque na mão. Nem pestanejamos. Mandamos brasa.”

Hoje, ninguém se incomoda com seu mau comportamento funcional. Afinal, o ganho cultural foi muito mais importante.

Vinícius de Moraes é conhecido pelo grande público muito mais por sua música e por seu trabalho como letrista do que por sua obra literária. Porém, estes estão de tal forma interligados com a vida do autor que certamente não é muito inteligente separá-los. Nos anos 40, Vinícius era um poeta lírico de linguagem simples que muitas vezes enveredava pelo social. Os poemas desta época certamente não lhe garantiriam nenhuma “imortalidade”e ele era mais conhecido por sua atuação como jornalista e crítico de cinema.

O manuscrito de “Soneto da Separação”

Só em 1953 o poeta começou a abrir espaço para o letrista e músico. Naquele ano, Aracy de Almeida gravou “Quando Tu Passas Por Mim”, primeiro samba de sua autoria. Escrito com Antônio Maria, o samba marcava, na vida pessoal do poeta, mais um fim de casamento. No ano seguinte, Aracy de Almeida voltou a gravar outra música com letra de Vinícius.

Em 1954, foi publicada sua coletânea Antologia Poética, ao mesmo tempo em que finalizava sua peça teatral Orfeu da Conceição, premiada no concurso associado ao IV Centenário de São Paulo, cidade por ele apelidada de “o túmulo do samba”. Dois anos depois, quando andava atrás de alguém para musicar a peça, um amigo indicou-lhe um jovem pianista e arranjador chamado Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, de 29 anos. O encontro entre Vinícius e Tom, entre Tom e Vinícius, deveria ser saudado com fanfarras não fosse a bossa nova tão avessa a estas barulheiras. Ali nascia uma das mais fecundas parcerias da música brasileira, uma que a marcaria definitivamente. Os dois compuseram a trilha sonora para Orfeu e seguiram compondo uma vertiginosa sucessão de clássicos que acabaram na criação da bossa nova juntamente com João Gilberto. Se Todos Fossem Iguais A Você, Eu e Você, A Felicidade, Chega de Saudade, Eu sei que vou te amar, Garota de Ipanema, Insensatez, entre outras belas canções canônicas.

A pedra fundamental da bossa nova veio com o LP Canção do Amor Demais, gravado por Elizeth Cardoso. Além da faixa-título, o LP trazia ainda com outras músicas da parceria, como Luciana, Estrada Branca, Outra Vez e a indiscutível Chega de Saudade, em interpretações vocais intimistas, bastante estranhas ao comum da época — o da voz empostada e do berro. No ano seguinte, era lançado o LP João Gilberto que trazia como música de abertura a mesma Chega de saudade gravada por Elizeth e abria definitivamente o período da bossa nova. Aliás, é importante dizer que a famosa batida do violão de João Gilberto já se fazia presente no disco de Elizeth.

Tom e Vinícius

Mas Vinícius ainda teria outras participações fundamentais na história da MPB. Em 1965, o “I Festival Nacional de Música Popular Brasileira” (da extinta TV Excelsior) consagrou Arrastão (composta em parceria com Edu Lobo) como vencedora. O segundo lugar foi a Valsa do Amor que Não Vem , do mesmo Vinícius com Baden Powell, defendida por Elizeth Cardoso.

Em 1966, uma nova parceria com Baden Powell gerou “Os Afro-Sambas”, uma brilhante coleção de canções de influência africana que recebeu sua maior homenagem há poucos anos, com a regravação feita por Mônica Salmaso e Paulo Bellinati. No mesmo ano, lançou o livro de crônicas Para uma menina com uma flor.

Entre um parceiro e outro, eram criadas uma série de obras-primas da MPB. Samba da Bênção, com Baden; Marcha da Quarta-feira de Cinzas, com Carlos Lyra; Valsinha e Gente Humilde, com Chico Buarque; a lista é imensa.

Toquinho e Vinícius

Depois de 1970, foi a vez de encetar outra longa parceria, talvez a mais duradoura e prolífica delas, aquela com o violonista e compositor Toquinho. Formavam uma dupla bem diferente em qualidade das atuais. Também era diversos na postura: Toquinho empunhava um violão e Vinícius um copo de uísque. O primeiro LP já trazia Na Tonga da Mironga do Kabuletê, Testamento, Tarde em Itapoã, Morena Flor e A Rosa Desfolhada. Em 1972, eles lançaram o álbum São Demais os Perigos Dessa Vida, contendo — além da faixa-título — grandes canções como Cotidiano nº 2, Para Viver Um Grande Amor e Regra três.

Em 1979, participou de leitura de poemas no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo (SP), a convite do líder sindical Luiz Inácio Lula da Silva. Voltando de viagem à Europa, sofreu um derrame cerebral no avião. Perderam-se, na ocasião, os originais de Roteiro lírico e sentimental da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.

No dia 17 de abril de 1980, é operado para a instalação de um dreno cerebral. Morre na manhã de 9 de julho, de edema pulmonar, em sua casa na Gávea, em companhia de Toquinho e de sua última mulher.

O poetinha em 1977

A poesia de Vinícius, seja na música ou nos livros de poesia, transpira paixão. Paixão pela mulher, paixão pelo divino, paixão pelo prazer transitório e pela dignidade humana. Outra palavra fundamental de seu léxico é a busca. Busca da religião que logrou encontrar na África, busca das inumeráveis musas — mulheres reais ou inventadas — e a busca do perdão para tantas infidelidades. Poeta entre o viril e o terno, entre o metafísico e o carnal, fez de sua poesia um local de encontros e de despedidas. Morreu como uma reeencarnação de Dioniso. Era o rei das festas, o mais saudado, o poeta do fumo, das religioões afro-brasileiras num tempo em que isso era quase escandaloso, da irresponsabilidade, da insânia e, sobretudo, da intoxicação — através do amado uísque — que une o bebedor com a deidade. E, para nossa alegria, ainda deixou-nos uma grande obra que, se não chega a ser a de um Drummond, a de um João Cabral, a de um Murilo ou a de uma Cecília, chegou mais facilmente ao coração do povo através da música. Vinícius, velho, saravá!

~o~

O dia da criação

Macho e fêmea os criou.
Gênese, 1, 27

I

Hoje é sábado, amanhã é domingo
A vida vem em ondas, como o mar
Os bondes andam em cima dos trilhos
E Nosso Senhor Jesus Cristo morreu na Cruz para nos salvar.

Hoje é sábado, amanhã é domingo
Não há nada como o tempo para passar
Foi muita bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo
Mas por via das dúvidas livrai-nos meu Deus de todo mal.

Hoje é sábado, amanhã é domingo
Amanhã não gosta de ver ninguém bem
Hoje é que é o dia do presente
O dia é sábado.

Impossível fugir a essa dura realidade
Neste momento todos os bares estão repletos de homens vazios
Todos os namorados estão de mãos entrelaçadas
Todos os maridos estão funcionando regularmente
Todas as mulheres estão atentas
Porque hoje é sábado.

II

Neste momento há um casamento
Porque hoje é sábado.
Há um divórcio e um violamento
Porque hoje é sábado.
Há um homem rico que se mata
Porque hoje é sábado.
Há um incesto e uma regata
Porque hoje é sábado.
Há um espetáculo de gala
Porque hoje é sábado.
Há uma mulher que apanha e cala
Porque hoje é sábado.
Há um renovar-se de esperanças
Porque hoje é sábado.
Há uma profunda discordância
Porque hoje é sábado.
Há um sedutor que tomba morto
Porque hoje é sábado.
Há um grande espírito de porco
Porque hoje é sábado.
Há uma mulher que vira homem
Porque hoje é sábado.
Há criancinhas que não comem
Porque hoje é sábado.
Há um piquenique de políticos
Porque hoje é sábado.
Há um grande acréscimo de sífilis
Porque hoje é sábado.
Há um ariano e uma mulata
Porque hoje é sábado.
Há um tensão inusitada
Porque hoje é sábado.
Há adolescências seminuas
Porque hoje é sábado.
Há um vampiro pelas ruas
Porque hoje é sábado.
Há um grande aumento no consumo
Porque hoje é sábado.
Há um noivo louco de ciúmes
Porque hoje é sábado.
Há um garden-party na cadeia
Porque hoje é sábado.
Há uma impassível lua cheia
Porque hoje é sábado.
Há damas de todas as classes
Porque hoje é sábado.
Umas difíceis, outras fáceis
Porque hoje é sábado.
Há um beber e um dar sem conta
Porque hoje é sábado.
Há uma infeliz que vai de tonta
Porque hoje é sábado.
Há um padre passeando à paisana
Porque hoje é sábado.
Há um frenesi de dar banana
Porque hoje é sábado.
Há a sensação angustiante
Porque hoje é sábado.
De uma mulher dentro de um homem
Porque hoje é sábado.
Há a comemoração fantástica
Porque hoje é sábado.
Da primeira cirurgia plástica
Porque hoje é sábado.
E dando os trâmites por findos
Porque hoje é sábado.
Há a perspectiva do domingo
Porque hoje é sábado.

III

Por todas essas razões deverias ter sido riscado do Livro das Origens, ó Sexto Dia da Criação.
De fato, depois da Ouverture do Fiat e da divisão de luzes e trevas
E depois, da separação das águas, e depois, da fecundação da terra
E depois, da gênese dos peixes e das aves e dos animais da terra
Melhor fora que o Senhor das Esferas tivesse descansado.
Na verdade, o homem não era necessário
Nem tu, mulher, ser vegetal dona do abismo, que queres como as plantas, imovelmente e nunca saciada
Tu que carregas no meio de ti o vórtice supremo da paixão.
Mal procedeu o Senhor em não descansar durante os dois últimos dias
Trinta séculos lutou a humanidade pela semana inglesa
Descansasse o Senhor e simplesmente não existiríamos
Seríamos talvez pólos infinitamente pequenos de partículas cósmicas em queda invisível na terra.
Não viveríamos da degola dos animais e da asfixia dos peixes
Não seríamos paridos em dor nem suaríamos o pão nosso de cada dia
Não sofreríamos males de amor nem desejaríamos a mulher do próximo
Não teríamos escola, serviço militar, casamento civil, imposto sobre a renda e missa de sétimo dia,
Seria a indizível beleza e harmonia do plano verde das terras e das águas em núpcias
A paz e o poder maior das plantas e dos astros em colóquio
A pureza maior do instinto dos peixes, das aves e dos animais em cópula.
Ao revés, precisamos ser lógicos, freqüentemente dogmáticos
Precisamos encarar o problema das colocações morais e estéticas
Ser sociais, cultivar hábitos, rir sem vontade e até praticar amor sem vontade
Tudo isso porque o Senhor cismou em não descansar no Sexto Dia e sim no Sétimo
E para não ficar com as vastas mãos abanando
Resolveu fazer o homem à sua imagem e semelhança
Possivelmente, isto é, muito provavelmente

Anotações para o jogo Orgulho e Preconceito x Middlemarch

A estreia do Sport Club Literatura do StudioClio foi, acredito, um sucesso. Estavam lá uns 50 malucos, talvez mais, divertindo-se com pessoas que falavam sobre livros. Foi o cúmulo da civilização, com muito bom humor e as Corujas brilhando pelo auditório de caras sorridentes. O primeiro jogo foi duríssimo e acabou com 2666 (Roberto Bolaño) 1 x 0 Liberdade (Jonathan Franzen), sob a arbitagem de Antônio Xerxenesky e Carlos André Moreira. No jogo final, o placar que atrubuí a Orgulho e Preconceito x Middlemarch prevaleceu, apesar da tentativa de Joana Bosak de anular um gol de Jane Austen, escaramuça abortada pela plateia… Eu e Joana não nos conhecíamos, mas acho que nossa palestra conjunta acabou funcionando. Ela muito é bonita e não é mole — tem formação e mestrado em história e doutorado em literatura comparada pela UFRGS, onde já deu aulas nas duas áreas. Tinha tudo para acabar comigo, mas teve pena. Abaixo, minhas anotações para o evento.

Os árbitros de Middlemarch x Orgulho e Preconceito: eu e Joana Bosak

Boa noite.

A missão impossível que me pedem é a de realizar uma partida de futebol entre dois dos maiores romances da grande literatura inglesa – Middlemarch e Orgulho e Preconceito. Comparar dois livros que amo é, guardadas as proporções, fazer uma Escolha de Sofia, decidindo qual de meus filhos – tenho dois aos quais amo incondicionalmente – deve ser encaminhado para a câmara de gás. Então, para afastar os critérios meramente afetivos, criei regras próprias. Em primeiro lugar, elegi cinco itens que seriam caros à literatura que ambas as autoras praticam. Em segundo lugar, procurei deixar longe de mim a afirmativa do mestre E. M. Forster, outro britânico, no seu ensaio Aspectos do Romance: “O teste final de um romance será a nossa afeição por ele, como é o teste de nossos amigos e de qualquer outra coisa que não possamos definir”. Também desconsiderei o fato de que, para meu gosto, alguns quesitos têm importância superior a outros. Os quesitos:

0. (Zero, porque aqui as autoras não marcam gols). Notícia biográfica das equipes.
1. Linguagem, foco narrativo
2. Construção de conflitos e estrutura do romance
3. Construção de personagens
4. Relevância sociológica
5. Análise psicológica (relevância ontológica)

O número de quesitos que marcam gols é ímpar por um motivo muito simples: queria evitar o empate.

Começo então por uma notícia biográfica de ambas:

Jane Austen nasceu em 1775 e morreu em 1817. Viveu, portanto, 41 anos. Orgulho e Preconceito foi publicado em pela primeira vez em 1813, quando autora tinha 38 anos. É seu romance mais conhecido e popular. Austen escreveu apenas outros cinco, todos excelentes: Razão e Sensibilidade (1811), Mansfield Park (1814), Emma (1815) e os póstumos A Abadia de Northanger (1818) e Persuasão (1818). Austen nunca casou, sempre morou com os pais. Escrevia seus romances em seu quarto e tinha pudor de quando alguém abria a porta — escondendo imediatamente os cadernos. A vida de Jane Austen é um deserto de grandes acontecimentos. O fato mais próximo a um caso amoroso, foi um breve amor juvenil finalizado por problemas financeiros do pretendente.

Em comparação com a vida de Jane, a existência de George Eliot foi espetacular. Ela nasceu dois anos após a morte de Austen e viveu 20 anos mais, chegando aos 61. Middlemarch foi publicado quando ela tinha 53. George, que na verdade chamava-se Mary Ann Evans, apaixonou-se e fugiu com um homem casado, George Henry Lewes, com o qual viveu por quase vinte e cinco anos, até a morte do amante. Sete meses antes de falecer, George Eliot casou-se com seu primeiro biógrafo, John Walter Cross, vinte anos mais moço. Sua vida parece a de uma mulher moderna. Se Austen escreveu seis romances, Eliot produziu apenas um a mais.

Equivoca-se quem pensar que elas tinham pouco em comum. O jogo, apesar de reunir dois estilos muito pessoais e únicos, é duríssimo.

Então comecemos a peleja pela linguagem e foco narrativo:

Quem leu Orgulho e Preconceito ou outros de seus livros, sabe que Austen é leve e enganadora, a gente pensa que está numa tranquila mesa de chá quando, com a maior graça, ela nos apresenta abismos que, pensando bem, já estavam ali, mas dos quais não pressentíamos a profundidade. Austen não faz comédia, mas nos obriga a gargalhadas; expõe dramas, mas não é trágica; é grave, porém leve; é clássica, apesar de ousada. O romance não deixa transparecer claramente seu esquema por trás de diálogos absolutamente fluentes e de uma narradora de tom zombeteiro. Num espaço rural limitado, as pessoas fazem visitas, vão à bailes, tomam chá, iludem umas às outras, armam situações e divagam sobre suas vidas e planos. O refinado humor da escritora abrange tudo. É o próprio time do Barcelona. Troca passes em diálogos ininterruptos, seduz a todos, inclusive aos adversários, para depois vencê-los.

Milton Ribeiro, dizem

Enquanto isso George Eliot aposta numa vitória baseada em rigoroso esquema defensivo. Ela tece com obsessiva minúcia os panos de fundo de cada cena e, nesta particularidade, é menos moderna que Austen. Podemos dizer que tem alma de socióloga, o que poderá render-lhe gols mais à frente. É importante dizer que Orgulho e Preconceito tem aproximadamente 300 páginas, enquanto que Middlemarch tem quase 1000. As torcidas presentes hoje ao StudioClio dirão que isso não tem a menor importância, mas este árbitro discorda: tem tudo a ver pelo simples fato de que George Eliot enrola e joga no erro do adversário. Quando menos se espera, a tragédia econômica de Fred Vincy, por exemplo, fica-nos clara com tal riqueza de detalhes financeiros e psicológicos que adquirimos a certeza de que não lhe resta saída, se não houvesse uma boa moça para o salvar.
Porém, como estamos aqui para julgar e não para ficar na arquibancada comendo picolés ou bebendo cerveja sem álcool – pois o Estatuto do Torcedor criminosamente não permite o consumo de álcool nos estádios – decidimos que a linguagem de Jane Austen acaba de fazer um belo gol na impecável defesa de George Eliot, que não contava com uma falha individual. Pois na página 162, a autora, sim, ela mesmo, começa inesperadamente a falar na primeira pessoa do singular, deitando teses e atrapalhando a narrativa. Em contraposição, temos em Austen trechos de virtuosismo quase inalcançável como a cena em que Lydia fala besteiras sem parar, fazendo a atenção do leitor ir embora, para depois descobrimos confortavelmente que fomos acompanhados na fuga por Elizabeth, que também não faz a menor ideia do que Lydia falara. Virginia Woolf: escreveu: “Ali estava uma mulher, por volta de 1800, escrevendo sem ódio, sem amargura, sem medo, sem protestos, sem pregação. Orgulho e Preconceito 1 x 0 Middemarch.

Construção de Conflitos: Como já disse, Jane Austen, de modo hábil, cria conflitos que logo tornam-se abismos. O problema onde Elizabeth Bennet e Fitzwilliam Darcy equilibram-se até o final é muito rico. A forma como Austen coloca ambos em posição de vencer orgulho e preconceito através da rebeldia é digno de várias avalanches da torcida – calma, sou colorado. Também a posição do sarcástico Mr. Bennet como catalisador de conflitos é brilhante e Mrs. Bennet… Bem, Mrs. Bennet nem é catalisadora. Mrs. Bennet é dinamite pura. Podemos considerá-la uma chata, mas apelo à opinião de meu amigo historiador e escritor Luís Augusto Farinatti para defender sua posição no romance. Ela tem uma missão fundamental. Afinal, num regime sucessório onde as mulheres não herdam, é imprescindível ter um filho varão. É ele que vai herdar a propriedade, ajudar o pai a organizar os rendimentos, dotar uma ou mais irmãs para que possam casar e acolher as irremediavelmente rejeitadas. Ou seja, não ter um filho homem era uma catástrofe (imaginem que Mrs. Bennet, por única e exclusiva culpa sua, como se pensava na época, tinha cinco filhas). Então, “colocar” as filhas era uma obsessão. Mrs. Bennet é a maior das chatas, mas só queria resolver o problema que criara. Ou seja, é um tremendo problema que ela tenta resolver de sua maneira atrapalhada, quase vendendo as filhas.

Agora vejamos Middlemarch. George Eliot escrevia dois livros – um dedicado ao caso da grande personagem Dorothea Casaubon, que casa com um homem mais velho em busca de “conhecimento” e “erudição”, e outro ao caso de Rosamond Vincy, que casa com o Dr. Lydgate à espera de uma vida rica que acaba por levar a família à bancarrota – quando decidiu juntá-los em apenas um romance. A encruzilhada que une ambos os livros fica clara no Capítulo XI, página 110 na edição da Record, quando subitamente entra Lydgate e começa um segundo romance com outro set de personagens.

Os conflitos em Middlemarch são tantos que seria longo citá-los um por um , mas é absolutamente notável o fato de que Dorothea e Rosamund – as personagens principais do livro – passem 900 páginas sem trocar uma palavra, coisa que apenas fazem no final. Isso é tão espetacular, cria tamanha expectativa que, bem, o jogo fica empatado em 1 x 1.

Construção de personagens: Comecemos por Austen, já que acho difícil vencê-la neste quesito. Minha amiga e também historiadora e escritora Nikelen Witter uma vez escreveu, fazendo uma descrição de alguns personagens de Orgulho e Preconceito:

Elizabeth é uma das mais fantásticas heroínas que conheço. Ela não é uma mocinha romântica – esse papel é da sua irmã Jane – , sabe ser maliciosa, dura, debochada, tudo isso sem deixar de ter um bom coração. Envergonha-se de sua família, mas ama-os a ponto de defendê-los mesmo com seus imensos defeitos. O que poucos notam é quão revolucionário é este romance para a época e as pessoas para quem foi escrito. Ele é a reivindicação de uma possibilidade de escolha que nem as mulheres, nem os homens, tinham em sua época. Embora publicado no início do século XIX, o romance é de fins do século XVIII e está ancorado numa moral em que a família e as convenções ditam as escolhas e os destinos. Então Austen pega seus dois personagens principais – cheios de dúvidas, incapazes de um comportamento retilíneo – e os faz inteiramente rebeldes para o mundo em que vivem. Elizabeth é uma rebelde nata. Não quer se submeter a um homem apenas para ter um marido. Ela quer alguém que a respeite como o pai o faz (um Édipo bem resolvido, eu diria), e tem o apoio deste – que a considera acima de todas as filhas por ver nela uma mente irmã. E Darcy? Darcy é aparentemente convencional, preso aos costumes e a sua posição. E, então, de repente, Darcy também se rebela (contra si mesmo, como ele afirma) e passa a desejar o que não lhe seria permitido. O romance não é apenas uma aula sobre o convencionalismo inglês, mas também sobre a revolução nos costumes, marca desta virada de século. Os personagens são perfeitos para demonstrar como a família nuclear deixa de ser vista como uma entidade reprodutora de seres humanos com a finalidade de abastecer linhagens, passando a um núcleo formativo de indivíduos. Nisso, as ideias de harmonia e amor conjugal começam a aparecer. Daí o elemento revolucionário do romance e das personagens bem construídas de Austen.

Já em Middlemarch, a única personagem que realmente rivaliza com as de Orgulho e Preconceito é Mr. Casaubon, um intelectual que merece como poucos o epíteto de “pseudo”. Incapaz de dar atenção a nada que não seja a sua obra imortal teológica que ofereceria à eternidade, chamada simplesmente de “A chave de todos os mitos”, é o mais estéril dos seres humanos. Apesar disso, é admirado e respeitado por todos por seu conhecimento e rendimentos. Explico melhor: em Middlemarch, Edward Casaubon passa sua vida numa tentativa inútil de encontrar um quadro abrangente que sirva para explicar toda a mitologia. Ele mostraria que todas as mitologias do mundo são fragmentos de um antigo e corrupto corpus do conhecimento, para o qual só ele tem a chave. Dorothea deslumbra-se com seu brilhantismo e erudição para descobrir, no leito de morte do marido, que todo o plano era absurdo e que ela não pode fazer nada com os fragmentos do livro ao qual se propunha organizar.

Bem, já viram. Orgulho e Preconceito 2 x 1 Middlemarch.

Joana Bosak

Relevância sociológica: Aqui é o terreno de George Eliot. Middlemarch é um imbatível painel social. O romance nos oferece um completo, compreensível e sutil panorama de uma Inglaterra em transição. É o poder dos velhos proprietários de terra (Mr. Featherstone) passando para os capitães da indústria (Mr. Vincy). É o poderoso símbolo do trem que ameaça cortar as terras de Middlemarch ao meio. Os pobres seguem pobres, claro, e atormentam o coração de Dorothea. Os novos profissionais, personificados pelo médico Lydgate e pelo artista Ladislaw esculhambam a rotina. Além disso, há os negociantes espertalhões, os juizes inconsequentes, os médicos venais defensores de métodos antiquados por interesse, etc. Há muita astúcia, muitas palavras belas e vazias, cujo maior representante é o banqueiro Bulstrode. Porém, na literatura de Eliot, não há maniqueísmo em nenhuma análise. Todos têm méritos e defeitos, ninguém é bom ou mau por completo. Tudo isso é descrito com rigor e precisão, sem cansar o leitor com digressões “eruditas”, como fez, por exemplo, Tolstói no final de Guerra e Paz.

E estamos com o placar de 2 x 2.

Análise psicológica ou relevância ontológica

Virgínia Woolf dizia que Middlemarch fazia com que a maior parte dos outros romances ingleses de seu tempo parecessem destinar-se a um público juvenil. É um romance sério, absolutamente sério, e a psicologia dos personagens é esmiuçada até o último pensamento antes da frase ser pronunciada. Isto nos torna íntimos de todos eles, conhecendo seus raciocínios tortuosos e suas esquisitices. A seu modo, ainda lógico e organizado, Eliot inaugura o fluxo de consciência. Em razão disso é que o gol decisivo é de Jane Austen, pois ela faz o mesmo sem o apoio da miríade de detalhes necessários a George Eliot. Meu placar final é Orgulho e Preconceito 3 x 2 Middlemarch.

Lasciate ogni speranza, voi ch'entrate ou Abandonai toda esperança, vós que ficastes

Abandonai toda esperança, vós que entrastes, escreveu Dante Alighieri em A Divina Comédia, Canto III do Inferno, 9º verso.

O site Publishnews me dá a compreensão de que talvez o mundo já tenha acabado, que todas as ameaças de fim dos tempos e de arrebatamento realmente ocorreram de forma muito mais sutil do que alcança nossa vã compreensão, de que os desígnios de Deus são mesmo super-inescrutáveis e que nossa terrível punição foi a de ter permanecido para ver isso. Isto é, enquanto os puros foram para o céu, nós ficamos aqui para queimar lendo a Veja e a Época, para nos consumirmos com jabores, políbios, mônicas e reinaldos, naquilo que os religiosos chamam de inferno. Dante teria errado seu verso. O correto seria Abandonai toda esperança, vós que ficastes.

Mas o pior de tudo nem são as publicações ou os celetistas citados, o pior é a lista de livros mais vendidos de nosso inferno. Isso acaba com qualquer esperança. A lista dos 20 livros mais vendidos de 2011 é decididamente demoníaca e estou pensando seriamente em salvar minha alma de modo mais eficiente da que fez o pobre Hans Castorp. Confira a lista e reflita. Não imagino em que círculo do inferno estamos, mas o calor já é demasiado. Leia e queime.

Lista de livros mais vendidos em 2011:

1 Ágape, Padre Marcelo, 302763 exemplares vendidos em 2011
2 A cabana, William P. Young, 47839
3 Querido John, Nicholas Sparks, 44005
4 1822, Laurentino Gomes, 39837
5 Diário de uma paixão, Nicholas Sparks, 37485
6 Comer, rezar, amar, Elizabeth Gilbert, 33451
7 A última música, Nicholas Sparks, 32268
8 O pequeno príncipe, Antoine Saint-Exupéry, 29979
9 Por que os homens amam as mulheres poderosas?, Sherry Argov / Andrea Holcbeg, 29876
10 Deixe os homens aos seus pés, Marie Forleo, 29758
11 1808, Laurentino Gomes, 28050
12 Guia politicamente incorreto da história do Brasil, Leonardo Narloch, 25242
13 O monge e o executivo, James Hunter, 22267
14 Água para elefantes, Sara Gruen, 20781
15 O semeador de idéias, Augusto Cury, 20459
16 Diário de um banana – Dias de cão, Jeff Kinney, 20106
17 50 anos a mil, Lobão, 19167
18 O milagre, Nicholas Sparks, 18606
19 Comprometida, Elizabeth Gilbert, 18210
20 Os segredos da mente milionária, T. Harv Eker, 15930

O Horla, A Cabeleira, A Mão, O Colar, de Guy de Maupassant

A editora Artes e Ofícios acaba de lançar uma excelente coletânea de contos de Guy de Maupassant (1850-1893), autor injustamente esquecido por estas plagas. Autor de romances, peças de teatro e principalmente de cerca de 300 contos, Maupassant foi um imenso escritor. Começou como discípulo de Gustave Flaubert (1821-1880), de quem foi efetivamente um aprendiz. Flaubert teria ensinado o futuro escritor a observar. Fazia-o olhar, por exemplo, para uma determinada árvore até que esta se distinguisse das outras por alguma característica que a fizesse merecer ser descrita literariamente. Porém, se Flaubert ensinou e viveu mais do que Maupassant, o discípulo logo deixou de observar tanto as árvores e escreveu em quantidade muito maior que o mestre. E, se parte da obra de Maupassant é realista, de grande apuro psicológico e extraordinariamente bem escrita como o faria Flaubert, o autor tinha bastante desenvolvida outra faceta cuja maior influência era a do americano Edgar Allan Poe (1809-1849).

Os três contos iniciais desta coletânea — O Horla, A Cabeleira e A Mão — focam este labo B, não flaubertiano, do escritor francês. O Horla é uma bela narrativa sobre o tema do duplo e da loucura aos moldes do William Wilson de Poe. A Cabeleira é escrito num clima peculiar de necrofilia erótica. Este conto, lido na adolescência e relido trinta anos depois, cresce muito pelos significados que apenas ficam a nossa disposição com a idade, infelizmente. Já A Mão é uma daquelas histórias de terror ao estilo das que escreveria anos depois H. P. Lovecraft (1890-1937), mas sem utilizar a adjetivação pesada e exagerada do americano. Um flaubertiano é elegante até, e principalmente, no terror.

Sem trocadilhos, a grande joia deste livro é O Colar. Além de ter criado uma grande história sobre o comportamento e submissão social, Maupassant chega aqui a uma execução perfeita. Um clássico irretocável que as dezenas de tentativas de adaptação para o cinema e a televisão tornaram ainda maior. O drama de Mathilde Loisel, ao dedicar sua vida ao pagamento de uma dívida, possui uma carga de humanidade e emoção que o tornam um dos melhores já escritos, valendo até trocadinhos de mau gosto.

Pontos de Vista de um Palhaço, de Heinrich Böll

Como disse recentemente, li pela primeira vez este Pontos de vista de um palhaço (Editora Estação Liberdade, 308 páginas) ao final dos anos anos 70 numa edição em espanhol — Opiniones de un payaso — e tinha ficado apaixonado pelo livro. Quando vi casualmente em uma vitrine a tradução brasileira, da qual ignorava a existência, me veio uma grande saudade daquela época e do livro de Heinrich Böll (1917-1985). Há 30 anos atrás, tinha chegado ao romance através da mais adolescente das lógicas: ora, se o cara ganhou o Nobel (Böll recebeu o prêmio em 1972) tem que ser bom. E, por sorte, era.

Pontos de vista de um palhaço conta a história de Hans Schnier, de 25 anos, um palhaço profissional em precoce decadência. Abandonado pela namorada, a católica Marie, seu grande amor, e com uma lesão no joelho que o fará parar de trabalhar por uns seis meses, Schnier é um ateu com forte propensão à monogamia… Então, vendo o trabalho afastar-se lentamente — antes da lesão já estava recebendo críticas cada vez mais hostis — e sem Marie, começa a beber e a perder a inspiração. O joelho machucado o faz voltar para sua casa em Bonn a fim de reconstruir sua vida sob alguma nova forma. Porém, antes precisa de algum dinheiro.

A belíssima e triste história é narrada na primeira pessoa através da voz sarcástica e ressentida do palhaço Schnier. Ele telefona, fala com muita gente, mas quem não foge é afugentado com seu mau humor e o deboche. Os amigos ligados à ex-mulher vão sumindo ou o ignoram; seu pai, um homem de posses que é o único a fazer-lhe uma visita em seu apartamento, é quase enxotado após uma discussão esplendidamente descrita do ponto de vista humano e literário. De forma lenta e sistemática, Schnier simplesmente inviabiliza a ajuda que financeira que receberia. E assim vai Schnier.

Böll é um autor e uma consciência à antiga. Trata-se de um católico extremamente crítico à igreja. Sua agressividade e anticlericalismo não pode ser comparada a um ataque de um ateu. É alguém que vem do seio da igreja e este seu romance, assim como outros que escreveu, é perfeito.

Indico fortemente.

P.S. para Juliana Szabluk e Vanya Sant`Anna, em razão de uma discussão no Facebook: No livro de Böll, os mesmos personagens que caçavam judeus e armavam crianças, tornaram-se pessoas de respeito. Logo após a guerra, já estavam a postos, cheios de religião, ética e prontas para erguerem a nova Alemanha limpinha e democrática. Eram os mesmos sob outro contexto. A forma sutil como o autor liga catolicismo e nazismo é uma lição para artistas que se utilizam de simbologias deselegantes, demasiado escarradas ou truculentas. Nos anos 70, Pontos de vista de um palhaço gerou imensa repercussão na imprensa, tendo a igreja católica alemã em seu cerne. Prova de que a hipocrisia é um grande tema.

Meus dez livros preferidos

Novamente me pedem para fazer uma lista de meus dez melhores livros. Já fiz várias dessas e acho até que outra(s) por aí no blog. Mas vamos lá, vou escrever a listinha de um jato, em um minuto, e vocês prometem não lê-la, certo?

  • Dom Quixote, Cervantes.
  • Moby Dick, Melville.
  • Doutor Fausto, Thomas Mann.
  • Uma Confraria de Tolos, John Kennedy Toole.
  • Grande Sertão: Veredas, Guimarães Rosa.
  • Entre Heróis e Tumbas, Ernesto Sabato.
  • Berlim Alexanderplatz, Alfred Döblin.
  • Ulysses, James Joyce.
  • Middlemarch, George Eliot.
  • Os Irmãos Karamázov, Dostoiévski.
  • Ana Karênina, Tolstói.
  • A Vida e as Opiniões de Tristram Shandy, Laurence Sterne.
  • A História Maravilhosa de Peter Schlemihl, Adelbert Von Chamisso.

Cheguei aos 10? Tem 13? Kafka e Machado de Assis fora? E Virginia Woolf? E meu amado Jonathan Swift? Putz. Não, é sem revisão. Deixa assim. Quem quiser que retire três deles.

To the Solar da Gaurama

Nesta data, em 1927, o marido de Virginia Woolf publicava To the Lighthouse (Ao Farol ou Passeio ao Farol ou ainda Rumo ao Farol) por sua Hogarth Press. Dizem que as primeiras resenhas foram mornas, pricipalmente se as compararmos com a visão moderna de que o romance é um dos melhores do século. Lembro de tê-lo lido em Tramandaí no início dos anos 80. Está no mesmo nível e gaurad semalhanças com Mrs. Dalloway e Orlando.

Olha, nada aconteceu naquela estranha casa cheia de gente legal, mas ainda assim tudo parece ocorrer: a futilidade trágica, o absurdo, a beleza patética da vida que vivemos — tudo isso nas sete horas da existência desperdiçada ou não pela Sra. Ramsay. Vemos a vida e o mundo através das letras do romance.

Enquanto o escrevia, Virginia experimentava grande agitação e euforia, tanto que o produziu com grande rapidez. “Nunca, nunca tinha escrito nada com tamanha facilidade, nunca imaginei tão profusamente”. Apesar de ser uma revisora ultra minuciosa — tanto que Leonard Woolf costumava “roubar-lhe” os originais quando achava que a revisão já fora excessiva… — , ela sempre achou que estava produzindo “simplesmente o melhor dos meus livros” e anos depois ainda dizia: “Meu Deus, quão boas algumas partes do farol são!”. Mas Virginia tinha receio de ser julgada como suave, rasa, insípida ou sentimental”.  Nunca vi medos mais bobos.

Grande parte do livro é autobiográfico. Sua irmã Vanessa foi profundamente tocada por “um retrato da mãe, que é mais parecida com ela do que qualquer coisa que eu jamais poderia ter imaginado possível. É quase doloroso tê-la assim ressuscitada dentre os mortos”. (Só falta alguém vir corrigir Nessa, dizendo que todos os ressuscitados estavam mortos). Mais tarde, Virginia Woolf escreveu que a escrita foi um ato terapêutico de efeito oposto: “Deixei de estar obcecada com a minha mãe. Já não ouço a voz dela, não mais a vejo”.

E o excelente Ao Farol completa 84 anos hoje.

~o~

É mais do que a idade que atribuí ao Guto (ou Luís Augusto Farinatti) e a Nikelen (Witter), que estiveram lá em casa na última segunda-feira, para profundo desespero desta aqui e menos desta aqui, muito mais racional… Foram 3 encontros em nossa casa, muitas mensagens trocadas, e pronto, parece que nos conhecemos há anos.

Há a pose de encomenda para a Caminhante, dona dos dois últimos links:

Atenção, Curitiba: os comensais em pose especial para Fernanda (Foto: Bárbara Ribeiro)

E há mais. Poucas, porque queríamos comer e conversar, conversar e comer. E beber vinho.

Com galhardia,a intelectual suporta a exposição enquanto sonha com a comida (Foto: Milton Ribeiro)
Com as mãos contraídas e o superego em alerta a fim de não atacar o prato antes das fotos, Guto sorri (Foto: Milton Ribeiro)
Na tentativa de fotografar o repasto e os convidados, o fotógrafo pega o copo da filha Bárbara, a desorganização dos livros lá atrás e o Guto já ligeiramente alcoolizado (Foto: Milton Ribeiro)

Uma Noite do Palácio da Razão, de James R. Gaines

Comprei Uma Noite no Palácio da Razão, de James R. Gaines (Record, 334 páginas) por dois motivos: (1) minha desconfiança sobre a história — a meu ver estranha — contada e recontada a respeito da visita de Bach a Frederico, o Grande, e (2) minha curiosidade sobre o enigma Johann Sebastian Bach. Leio quase tudo o que se publica sobre o homem.

O livro de Gaines não apenas satisfaz o que buscava como é muito mais. É um grande livro de história e um documento humano da melhor qualidade. Uma Noite conta a vida de Frederico e de Bach antes e depois de seu único encontro de uma noite. Durante a reunião, Bach foi desafiado a improvisar sobre um tema escrito por Frederico — mas que provavelmente era de autoria de um dos muitos compositores da corte. O tema era dificílimo, uma evidente sacanagem, porém Bach improvisou uma fuga a três vozes sobre o mesmo. Diante da admiração incontida dos ouvintes, Frederico, um notório sádico, propôs uma fuga a seis vozes. Agastado, Bach respondeu-lhe que era impossível fazê-lo assim de improviso. Ficou furioso com a derrota, porém, duas semanas depois, enviou a Frederico uma partitura com a fuga a três vozes, outra a seis, acompanhadas de diversos cânones e de uma sonata-trio, totalizando treze movimentos cuja ordem correta, se há, é até hoje um desafio oara os musicólogos. Ou seja, enviou-lhe a chamada Oferenda Musical (Das Musikalische Opfer), uma das mais importantes composições de todos os tempos. Frederico não deu a menor importância, o jogo já tinha sido jogado. E não mandou nenhuma nota de agradecimento ao “Velho Bach”.

Se fosse apenas isso, Gaines poderia ter escrito uma narrativa curta. Mas, como escrevi, o autor faz um longo, documentado e por vezes cômico relato da vida de seus dois personagens.

A vida de Frederico é interessantíssima e dramática. Seu pai, no século XVIII, pensava igual ao deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ) e procurou impedir o homossexualismo do filho aplicando-lhe intermináveis séries de surras. Elas eram tantas e tão frequentes que vários amigos de Frederico lhe propuseram a eliminação de seu pai — ação à qual Frederico não cedeu — , assim como seu pai pensou várias vezes em matar o filho. A maldade era o tom do relacionamento. Frederico aprendeu a tocar flauta e tinha apreciável habilidade ao instrumento? Tirem-lhe a flauta. Frederico gosta de vestir-se de um modo um tanto gay para tocar? Queime-se a roupa. Frederico arranjou um namoradinho? Primeiro prenda-se Frederico e depois enforca-se o namorado bem na frente da janela de sua cela. Era assim.

Ignora-se como não se mataram, ainda mais que Frederico frequentemente aparecia machucado nas recepções palacianas. Nunca revidou um ataque paterno, nunca. Quando o pai morreu, Frederico não apenas sentiu-se aliviado como passou a colecionar casos no exército. De quebra, mostrou-se um talentoso administrador e um belicoso guerreiro, tendo conquistado outros principados para a Prússia a fim de merecer “o Grande”, com o qual costumamos ornamentar seu nome. Frederico, o Grande, era um iluminista amigo de Voltaire que defendia a tolerância religiosa e até certa democracia, que se preocupava com a fome e com a economia do país durante as muitas guerras. Era tão original e bom para o povo — a seu modo — que sempre foi dito que uma Revolução Francesa seria impossível na Prússia. Mas trocava de ministros a toda hora, fazia fofocas e enganava todo mundo, fazendo amigos e inimigos brigarem entre si, inclusive Voltaire. Era o Rei da cizânia. Além disso, bastante culto, só falava francês e, para terminar nosso breve retrato, digo o mais importante para o livro: não gostava da música do passado, como a representada por …

Bach era totalmente diferente. Pai de 20 filhos, era um chefe de família exemplar. Foi empregado a vida inteira e pelo mesmo tempo passou em lutas burocráticas com seus chefes por melhores condições e salários. Mesmo informadíssimo e curioso a respeito de toda a cena musical europeia, preferia ignorar os modismos — ou antes retirava-lhe o que achava que tinham de melhor — e aplicava-lhe a sua própria e pessoalíssima arte, advinda dos mestres que conhecera na juventude. Bach fazia uma música antiga para sua época, fato que atrasou por quase cem anos seu reconhecimento como maior compositor de todos os tempos e base para todos os que viriam depois de Beethoven.

Um era moderno, o outro era passadista. Um era jovem, o outro era velho (Bach). Um tinha conquistado a Saxônia e a Turíngia, o outro era turíngio e vivia na Saxônia. E, para piorar, Bach era pai de Carl Philipp, músico da corte de Frederico. Isto é, o brigão Johann Sebastian, se fosse ofendido, teria de ficar quieto para manter o emprego do filho. Foi o que fez quando notou que Frederico o encarava como um gênero de espetáculo circense.

Opfer significa oferta e oferenda, mas também sacrifício e vítima, cumpre lembrar.

O maravilhoso do livro de Gaines é que ele nos dá todo o contexto desta luta entre Bach e Frederico. E depois vai mais adiante, esclarecendo sobre o destino de ambos logo após a famosa noite. O compositor cego e o Rei alquebrado e deprimido. Para quem gosta de música ou história, uma obra imperdível. Recomendo fortemente.

P.S.- É óbvio que se trata da obra de um jornalista e crítico de arte. Nem imagino o que a Nikelen Witter e o Luís Augusto Farinatti, professores de história, achariam do livro do qual gostei tanto.

Às vezes penso o mesmo

Vou ler este livro, imagina se não. O tema do pai que aceita tirar o filho da escola para educá-lo vendo filmes é maravilhoso. O post abaixo, com foto, título e tudo, foi retirado daqui. (Acho que a blogosfera portuguesa é melhor que a nossa, a amplitude de assuntos é maior. Fazer o quê?)

Hoje em dia, quando vou ao cinema, estou sempre a prestar atenção a tantas coisas, ao marido que fala com a mulher umas filas mais à frente, a alguém que acaba as pipocas e atira o balde para o corredor. Estou atento à montagem, aos maus diálogos e aos maus actores; às vezes, vejo uma cena com muitos figurantes e dou por mim a pensar: serão actores de verdade, estarão a gostar de ser figurantes ou tristes por não estar na ribalta?

Por exemplo, aparece uma rapariga no centro de comunicações no início de ‘007 – Agente Secreto’. Tem uma ou duas falas, mas nunca mais volta a aparecer no ecrã. Pergunto-me o que terá acontecido a todas aquelas pessoas que aparecem nas cenas de multidões, nas cenas de festas: o que é que acabaram por fazer na vida? Terão desistido de representar e escolhido outra profissão qualquer?

Todas estas coisas perturbam a maneira como vejo um filme; antigamente, podiam disparar uma pistola ao meu lado que não me teriam desconcentrado das imagens que se desenrolavam no ecrã à minha frente. Por isso revejo filmes antigos – não apenas para os ver novamente, mas também na esperança de voltar a sentir o mesmo que da primeira vez.

David Gilmour, no livro “O Clube do Cinema” (Pergaminho, 2011)

A entrevista, de Millôr Fernandes

Millôr Fernandes está naquela estreita e admirada faixa de humoristas cultos que podem falar de cultura com grande conhecimento e vivência. Só por isso uma longa entrevista sua já seria motivo de curiosidade, mas há mais, pois Millôr põe generosas pitadas de provocação onde pisa e neste livrinho é bem provocado. Porém, vamos por partes. A entrevista (L&PM, 2011, 100 páginas) é uma — surpresa! — entrevista com Millôr Fernandes concedida em 1981 aos editores da extinta e saudosa da revista cultural em formato de livro Oitenta, também da L&PM. Os entrevistadores foram Ivan Pinheiro Machado, José Onofre, Paulo Lima, José Antonio Pinheiro Machado e Jorge Polydoro. A revista com o texto foi publicada em julho de 1981. Esta edição separada foi lançada há poucos dias e é outra surpresa.

Sem dúvida, os 30 anos que nos separam fazem diferença, quanto mais não seja pelo fato de que em 81 estávamos na fase final da ditadura militar, só que Millôr não se fixa apenas nos fatos da época, partindo para digressões sobre seus temas prediletos: imprensa, infância, ética, psicanálise, Shakespeare, teatro, sucesso, trabalho, feminismo, ditadura, mulheres e amigos. E, de forma típica, Millôr faz provocações em quase todos os quesitos citados. Suas opiniões sobre psicanálise e feminismo estão vencidas ou já estavam na época, mas acho lindo quando alguém altamente inteligente esgrime argumentos desconcertantes. Suas posições a respeito de religião e independência política, porém, não têm nada de perecíveis. Outra das seduções do livro é o contato com o frasista. Millôr, autor de famosas e citadas frases, deixa várias declarações lapidares em suas respostas. Trata-se de um inventor natural de aforismos, aquilo brota sem esforço de suas palavras, fazendo com que a gente leia as 100 páginas do livrinho numa sentada e que acabe sublinhando um monte de coisas “que seriam boas de lembrar”. Foi o que fiz.

48 Variações sobre Bach, de Franz Rueb

O número 48 é um pouco surpreendente. Esperava os 30 das Variações Goldberg, mas Franz Rueb escolheu os 48 Prelúdios e Fugas (Livros I e II somados) de Bach, certamente em razão de ter assunto demais. E é isso o que surpreende — assunto demais, 375 páginas sobre alguém do qual se sabe tão pouco. Explico melhor: este livro é formado por 48 capítulos (flashes) — que têm de 5 a 10 páginas cada um — sobre a obra e principalmente sobre a vida de Bach.

A abordagem do escritor Rueb é basicamente histórica. 48 Variações sobre Bach parte da família de Bach em direção ao ambiente dos principados e das igrejas daquilo que hoje é a Alemanha. Aprofunda-se no estudo do que era a educação da época e procura compreender um artista absolutamente brilhante e original nascido naquele contexto e que ficou órfão aos 10 anos de idade, indo de casa em casa, de instituição em instituição, até aprender seu ofício e alcançar vários cargos em principados. A tarefa não é nada simples, mas se fizer a comparação deste livro com outras biografias que li, a de Rueb parece das mais honestas. A conclusão de que Bach provavelmente não entenderia a divisão que hoje se faz entre sua música sacra e secular é uma tese bastante sólida. A certeza de que Bach era um tipo de homem que não tinha a compreensão do próprio gênio e de que era adogmático na área musical são certezas. A descrição de suas muitas lutas contra as autoridades são bem conhecidas, mas aqui são descritas com riquezas de detalhes que as tornam interessantes. O único defeito que encontro neste livro cheio de qualidades e de tão engenhosa feitura são certos exageros na vontade de dar sempre razão a Bach, o qual, cumpre lembrar, era um ser humano. (OK, quando ouço algumas de suas obras, parece-me sobre-humano, porém o ouvinte normalmente é um e o biógrafo outro menos arrebatado, de preferência).

Nunca li descrições tão completas e convincentes do entorno do compositor, nunca o final de sua vida em Leipzig foi mostrada com tanta crueza e tristeza. Então, o livro, que termina com a afirmação de que os ossos que estão no túmulo de Bach são de outra pessoa, vale a pena. E como.

Ferreira Gullar, uma triste figura no Roda Viva

Ferreira Gullar, uma triste figura no Roda Viva

Ferreira Gullar foi o entrevistado de ontem no Roda Viva. O programa, agora capitaneado por Marília Gabriela, é parecido com o Manhattan Connection, ou seja, parece uma sucursal televisiva da Veja. Gullar, aos 80, é ainda uma figura sedutora, fluente, de ar jovial, com a qual é complicado não estabelecer imediatamente empatia.

Além disso, também não sou indiferente a sua poesia. Como tenho 53 anos, pude comprar a primeira edição do Poema Sujo e também a primeira versão do Toda Poesia, onde havia por inteiro toda sua obra poética de antes dos anos 80. Li aquilo com devoção. Gullar era um de meus deuses por suas qualidades de poeta e não pretendo atacar o que considero inatacável. Após Barulhos (1988?, 87?), começou a decadência. O homem ficou cada vez mais crítico de arte e menos poeta.

É óbvio que tenho vontade de ligar seu direitismo tardio à decadência da poesia. Acho que há ligações mesmo, pois quem se une à direita mais truculenta (Augusto Nunes e amigos), dificilmente terá uma produção que faça sombra ao ex-Gullar, atual José Ribamar Ferreira, simplesmente. Porém, também sei que há Pound e Céline com seus Mussolini e Hitler e que Augusto Nunes não poderia comparar-se a estes, pois está abaixo em realizações — não consegue nem obter votos para o Serra, imaginem.

Então, minha afirmativa de ontem no twitter de que “Ferreira Gullar preservou pouca coisa daquilo que o levou a ser Ferreira Gullar” é baseada não apenas numa posição política, mas numa sensilidade de leitor. Principalmente depois de Muitas vozes, mas já clara em O Formigueiro (acho que é este o nome do livro do início dos anos 90), o poeta já tinha abandonado o barco para dar lugar a um bom crítico de arte.

Então, fiquei realmente deprimido ao ouvir a multidão de lugares comuns do programa de ontem. Fui dormir cedo para esquecer.

P.S. — Ah, eu sempre brincava com meus amigos dizendo que eu cantara em casa O Trenzinho do Caipira de Villa-Lobos com a letra de Gullar antes do Edu Lobo gravar a música. E era verdade! A letra está no Poema Sujo com uma ordem mais ou menos assim: leia os versos a seguir cantando sobre a melodia do Trenzinho Caipira das Bachianas Brasileiras Nº 2. Este é um de meus orgulhos mais bobos da juventude…

O desfile de Páscoa, de Richard Yates (sem spoiler)

O Desfile de Páscoa (Alfaguara, 221 páginas), do estadonidense Richard Yates (1926-1992), é a segunda grande surpresa deste autor tardiamente publicado no Brasil. No ano passado, trazido pelo filme com Kate Winslet e Leonardo di Caprio, já tinha sido lançado o extraordinário Foi apenas um sonho (Revolutionary Road).

O romance começa pela seguinte frase: “Nenhuma das irmãs Grimes teria uma vida feliz e, olhando em retrospecto, sempre pareceu que o problema começou com o divórcio de seus pais”. E é notável a forma como Yates segue este pequeno apontamento durante todo o romance. Ele pontua cada ato importante da vida das irmãs Sarah e Emily em seu caminho rumo à infelicidade — uma casa jovem e logo tem três filhos, a outra busca a realização no trabalho. O desfile de Páscoa trata da condição da mulher na época pré-feminismo dos anos 1950, quando as opções pareciam ser as tomadas pelas irmã: ou o jugo sob um marido ou a solidão interrompida por pequenos casos com homens casados ou desinteressados.

Tanto a forma como as Sarah e Emily se relacionam quanto suas vidas em separado demonstra uma crudelíssima impotência frente a uma sociedade hostil à mulher. O grande destaque do romance é a forma como Yates trata a violência contra a mulher nos anos 50.

Um livro estarrecedor. Um grande livro.

"Charla" com Pilar del Río sobre o filme José e Pilar

O El País proporcionou um chat de seus leitores com Pilar del Río. Eu achei interessante. Poderia corrigir os erros de digitação dos leitores e de Pilar, mas apenas acertei os mais evidentes. Admiro seu feminismo duro e articulado, se me entendem.

~o~

Leitor do El País: Hola Pilar, te escribo desde Euskadi. Un par de preguntas: ¿cuando dejaras de ser para los medios la viuda de José Saramago y pasarás a ser la Presidenta de la Fundación José Saramago (tengo el recuerdo del pie de foto del 50 aniversario de Santillana)?. Es conocido tu cariño y preocupación por la situación en Euskadi. ¿Cómo la ves en este momento? Pacto PSE-PP, tregua de ETA, movimientos de la izquierda abertzale… Gracias.

Pilar del Río: Fermín, no me dejan hacer un ensayo en esta sección… Espero que los medios de comunicación dejen de llamarme ‘La viuda de Saramago’ ya porque soy la mujer de Saramago o la novia de Saramago y desde luego soy la presidenta de la Fundación Saramago, cosa que no sé si por machismo o por frivolidad, algunos prefieren ignorar. En cuanto a lo de la paz en Euskadi y los pactos, hijo, a ver si os ponéis de acuerdo, lo solucionáis de una vez por todas que estamos hartitos todos de vuestros problemas y de vuestros sufrimientos. Solidarios, pero también hartitos. Vamos a hacer el futuro y a dejar de pensar en el pasado. El de Franco y el que no hemos sabido solucionar los que hemos venido después de Franco.

Leitor do El País: ¿Cómo recordará Saramago a Castril?

Pilar del Río: ¿No será mejor cómo recordará Castril a Saramago? ¿Se darán cuenta en el pueblo de mi madre que tuvieron el privilegio de compartir momentos de belleza y de intimidad, como nuestra boda en España, con uno de los hombres que más ha dignificado el siglo XX?

Leitor do El País: ¿Con qué cosas (actividades) se divertía más don José? ¿Qué cosas le causaban risa?

Pilar del Río: Todos los días se reía con el programa de El Gran Wyoming (‘El intermedio’). Le divertía el buen cine (Fellini o Bergman o Almodóvar, por ejemplo), las buenas series de televisión, vimos ‘El ala oeste de la Casa Blanca’ de principio a fin, le gustaban lo libros de ciencia ficción, la buena literatura también, nuestros perros, los solitarios, la música:sus últimos días, cuando ya no podía casi seguir una película veía y oía ópera en la sala de proyección que tenemos en nuestra casa. La belleza de Mozart y de Beethoven le dieron refugio en esos malos momentos.

Leitor do El País: ¿De qué manera cree que los años vividos en Lanzarote han influído en la obra y en la forma de ver la vida de su marido? Gracias

Pilar del Río: Sí. El dijo que hasta ‘El evangelio según Jesucristo’, había tratado de describir la estatua, que tal vez influído por la aridez de Lanzarote ahora lo que le interesaba era la piedra de la que estaba hecha la estatua.

Leitor do El País: He leido una hermosa entrevista suya al Subcomandante Marcos. ¿Sigue escribiendo?

Pilar del Río: No. No tengo medio donde publicar.

Leitor do El País: ¿Qué opinas de la reciente victoria de Cavaco Silva en Portugal?

Pilar del Río: Prefiero opinar del 53% de abstención. ¿Qué tipo de sociedad estamos haciendo para que el 53% de las personas se queden en su casa y no se tomen la molestia en emitir un voto que a su vez es una opinión?

Leitor do El País: En Cuadernos de Lanzarote, Saramago escribe sobre las intromisiones de EEUU en Portugal. ¿Que podríamos haber leido en el Cuaderno de Saramago acerca de Wikileaks? Un abrazo, y mi admiración por Saramago.

Pilar del Río: Nunca me atrevería a interpretar a Saramago. Lo siento, no puedo contestar a esta pregunta.

Leitor do El País: ¿Quiénes eran los escritores de cabecera de Saramago, los que más le marcaron?

Pilar del Río: Kafka, en el siglo XX, Borges y Pessoa. Cervantes, Gogol y el padre Vieiras, un jesuíta portugués, parecido a nuestro Bartolomé de las Casas, del que Saramago decía que nunca el portugués sonó tan bello y tan armonioso de como él lo escribió.

Leitor do El País: Por qué está exhibición de su vida personal que no interesa, o no debería interesar? Yo que José Saramago ha dejado una obra maravillosa que no necesita de esta publicidad como si se tratara de Angelina y Brad Pitt….

Pilar del Río: Me parece bien que a usted no le interese la vida de José Saramago, yo daría lo que no tengo por ver una película así de Cortazar, Proust, Borges… He visto ‘La última estación’ de Tolstoi emocionada y eso que Tolstoi estaba interpretado por un actor. Hay personas a las que sí nos interesan los autores que escriben los libros. Saramago abrió su casa en un gesto de generosidad, no su intimidad, sí su cotidianidad. Es una película para los amigos de Saramago. Simplemente.

Leitor do El País: He leido y visto en la pagina de la Fundacion Saramago q todos los 18 de cada mes se hace un homenaje hasta el noveno mes. ¿Que significado tiene eso? Gracias

Pilar del Río: Saramago decía que una persona no está muerta del todo hasta pasado nueve meses, como los nueve meses primeros no está vida del todo, por eso los días 18 de estos 9 meses nos reunimos amigos en distintos continentes y de distintas maneras pero siempre para brindar por la vida de Saramago. Hay música, hay lecturas de textos, se cuentan experiencias, y siempre, siempre, terminamos brindando por la vida de Saramago. El reunirnos con Saramago los 18 está sacado de una complicidad entre Pessoa y Ricardo Reis que Saramago cuenta en ‘El año de la muerte de Ricardo Reis’.

Leitor do El País: Hola Pilar! Pude ver el estreno del documental en el Maestranza. Sólo puedo decirte que me emocionasteis. No decaigas, que no te vengan los momentos de desánimo, que la palabra de José no puede caer en el silencio. Gracias a tí y a José.

Pilar del Río: ¡Qué bien que entendieras la película! Porque es una película de amor, el amor que se proyecta desde la pantalla y que abarca a los espectadores y el amor de los espectadores hacia Saramago. En todas las sesiones en las que he estado he sentido la emoción a parte de las muchas risas y alguno que otro sollozo contenido.

Leitor do El País: En mi opinión la obra de José Saramago, de la que soy un ávido lector y admirador, tiene una fuerte influencia del Quijote, especialmente podría decir en El Evangelio según Jesucristo, La intermitencias de la muerte o Caín. En ellas alcanza una maestría y una libertad en la escritura admirables, pero también un juego en la estructura, así del papel del que me recuerdan a la gran novela de Cervantes. Cuál es su criterio al respecto? gracias. Saludos Pilar, como si se dijera agua.

Pilar del Río: Lázaro Carreter, que fue presidente de la RAE, escribió un día que Saramago era el escritor más ‘cervantiano’ que existía en estos momentos. Es más, dijo que ‘La balsa de piedra’ era como un ‘El Quijote’ de ahora, esos personajes recorriendo La Mancha que es España, luchando con molinos de viento, llendo hacia América como Don Quijote iba hacia Dulcinea. Yo solo soy una periodista de provincias, nunca diría que Lázaro Carreter estaba equivocado.

Leitor do El País: Pilar , era Saramago feminista ????, Te seguía en tus ideas feministas que las percibo en la pelicula ???He visto la película y además de descubrir a Saramago que a través de sus libros lo intuía , te he descubierto a ti , una gran mujer .Que buena respuesta en Portugal , cuando te preguntan por la legalización del matrimonio entre parejas del mismo sexo , y el peligro de la familia ,y que grande tu respuesta en contra de la homofobia ……Saludos Y felicidades por la película .

Pilar del Río: Respondo a un periodista portugués que la legalización de los matrimonios homosexuales era la correción de un deficil democrático. Lo creo firmemente. En cuanto a si Saramago era feminista, respóndame usted. Mire como son los personajes femeninos en su obra. Y ya me dirá. En cuanto a la discusión sobre Hillary Clinton no deja de ser una anécdota. De la que, por cierto, no me apeo.

Leitor do El País: Siempre Saramago. Hola Pilar. Al final de su vida José apoyo pronunciadamente al juez Baltasar Garzón. ¿Cómo veía él lo que le está ocurriendo al juez?

Pilar del Río: El último artículo que José Saramago escribió en su vida fue sobre Baltazar Garzón y decía que ese juez era de los que demostraban que la justicia no ha muerto. El penúltimo artículo que José Saramago dictó porque ya no podía escribir fue viendo en el Telediario salir a Baltasar Garzón de la Audiencia Nacional expulsado por sus pares. Entonces dijo: “Las lágrimas de Baltasar Garzón son mis lágrimas.” Era un amigo, en Argentina consolaron juntos a las madres que les habían matado a sus hijos, en España recibieron juntos a los nietos que buscaban a sus abuelos para enterrarlos juntos a sus abuelas. Le respetaba y le quería. Garzón me acompañó la primera vez que entré en casa ya sin Saramago y ese gesto de amistad no lo olvidaré nunca. Quiero añadir también que lo último que Saramago dictó fue el 2 de junio, el murió el 18. Fueron solo dos palabras: “Gracias Mankell.” Cuando lo vio en la flotilla de la paz a la que Saramago estaba invitado pero que la enfermedad le impidió ir. Que un compañero de letras estuviera ahí le reconfortó en sus últimos días.

Leitor do El País: ¿Qué más le da fuerza para vivir hoy sin Saramago?

Pilar del Río: ¿Quién le ha dicho que vivo sin Saramago?

Leitor do El País: Esta pregunta va desde el cariño. Nunca he leido a José Saramago. Por favor, dígame una razón para ser su lector. Gracias.

Pilar del Río: Porque cuando acabe de leer a Saramago se sentirá más listo, más alto, más guapo, más rubio, más bueno. Porque se sentirá respetado como lector, porque tendrá que poner mucho de su parte para entender y se dará cuenta que usted es más sabio de lo que creía.

Leitor do El País: ¿Por qué ha pedido usted la nacionalidad portuguesa? Saramago es para nosotros algo más que un escritor ibérico, es “uno de los nuestros” sentimos mucho que se haya ido y ahora también nos apena que usted se vaya ¿Qué´va a ser del legado de Saramago en nuestro país? ¿No tendrá continuidad su obra? ¿No hay ninguna propuesta institucional para mantener su legado aquí?

Pilar del Río: No hay ninguna propuesta institucional para mantener el legado de Saramago en España, pero está mi firme voluntad de abrir la casa de José Saramago en Lanzarote el 18 de marzo para quien quiera entrar y respirar el aire de Saramago. Con toda la humildad que caracterizó Saramago y que nos caracteriza a su entorno pero con toda la ambición de quienes sabemos que solamente uniendo voluntades podremos conseguir objetivos grandes. He pedido la nacionalidad portuguesa, y ya me la han dado, porque era una forma de continuar a Saramago y porque quiero pertenecer al país que dio a un hombre tan cercano y tan maravilloso. Claro que todos somos ibéricos pero la tentación de ser portuguesa no me la he querido evitar.

Leitor do El País: Como periodista, ¿qué piensas de la profesión hoy en día?

Pilar del Río: Que la hemos prostituído entre todos. Las empresas convirtiéndose en negocio multimedia, los periodistas bajando la cabeza y siendo cínicos o sumisos. El periodismo ya difícilmente dará un García Márzquez o nos dará una satisfacción cívica tan grande como cuando a las seis de la tarde del 23F El País sacó una edición especial ‘El País con la democracia’. Hoy, todos los medios juegan con nosotros como si los ciudadanos fueran mercancían. No nos respetan y por ello venden menos.

Leitor do El País: Con todo lo que han viajado juntos, ¿qué han aprendido de nosotros, los humanos?

Pilar del Río: Hay una frase que Saramago repetía continuamente: “El otro es como yo y tiene derecho a decir yo.” Eso es lo más importante que he aprendido. Que todos somos iguales pertenezcamos al continente que sea, a la etnia que sea, a la clase social que sea, independientemente del nivel intelectual que tengamos. En cuanto personas, ningún tipo de Wall Street, ningún Presidente de Gobierno, ningún sabio, es más que el minusválido que está pidiendo limosna en la puerta de la FNAC.

Leitor do El País: ¿Eres atea, al igual que José Saramago?

Pilar del Río: Lamentablemente, no podría ser otra cosa que atea. Porque si pensara que existe un Dios tendría que llevarlo a los tribunales por permitir que pasen las cosas que pasan. Prefiero pensar que no existe a que sea tan malo.

Leitor do El País: Si el cielo no existe, tal y como comenta Saramago en el documental, ¿dónde está Saramago ahora?

Pilar del Río: En los libros, que el decía que cuidáramos cada libro que abrieramos porque contenía dentro a una persona, está en la música que oyó, en los cuadros que miró, en los libros que acarició y, con perdón, también está en mi cuerpo.

Leitor do El País: ¿Cómo logró el realizador llegar a ese nivel de complicidad con vosotros? ¡A veces parece que no existe la cámara!

Pilar del Río: Es que la cámara no existía. Hicimos un pacto: ellos no interferirían en nuestra vida y nosotros tampoco en la suya. Acabamos amigos pero cada uno en su casa.

Leitor do El País: Una de las escenas que más me impactó del documental es cuando José está rodeado de bailarines saltarines y de fotógrafos. Te busca con la mirada y grita tu nombre medio asustado. ¿Cuál es tu escena favorita de la película?

Pilar del Río: José me busca en esa escena porque estaba débil y sentía que las piernas le fallaban. Pero nadie se dio cuenta. Y yo esto ahora lo quiero compartir para que se vea el valor de ese hombre. A mí la escena que más me gusta es cuando estamos leyendo simultáneamente, él en portugués y yo en castellano, el fina del ‘El evangelio según Jesucristo’ y la Montaña Blanca de Lanzarote está al fondo…

Leitor do El País: En el documental, el verdadero descubrimiento eres tú Pilar. Me hiciste pensar en los personajes femeninos de Pedro Almodóvar. ¿Te molesta la comparación?

Pilar del Río: En absoluto, los personajes femeninos de Pedro Almodóvar son grandísimos personajes con más profundidad de la que pueden aparantar en una primera lectura. Son los que sostienen el mundo.

Leitor do El País: Tuvo alguna vez celos del otro gran amor de Saramago : la escritura?

Pilar del Río: Nunca he tenido celos de nada ni de nadie. Saramago y yo nos encontramos en la edad madura y sabíamos compartir admiraciones, afectos, pasiones… eramos cómplices. No había lugar para los celos.

Leitor do El País: ¿Le puedes decir algo a una mujer casada con un hombre veintisiete años mayor que ella, al que no solo ama, sino admira, comparte, etc. pero inexorablemente condenada a la diferencia biolóca/temporal? Gracias, contestes o no.

Pilar del Río: Que nadie tenemos el futuro escrito. Lo importante es vivir en cada momento la oportunidad que tenemos y que muchas veces las diferencias de edad están solamente en el carnet de identidad y no en la vida. Porque hay jóvenes mucho más viejos que algunas personas mayores.

Leitor do El País: En su crítica de hoy Javier Ocaña dice sobre el documental: “Perdón por verla, perdón por disfrutarla, maestro.” ¿Qué pensaría José de la película?

Pilar del Río: Que dijo: Que le gustó, que era una película sobre la vida, más interesante en el resultado final de lo que le iba pareciendo durante el rodaje. Que era una declaración de amor a la vida, a la persona con la que vivía. Lástima que el crítico de El País no se haya dado cuenta de esto y haya pensado que Saramago se dejaba llevar por una persona calculadora. Pilar del Rio era la que frenaba y Saramago es el que termina la película diciendo: “Quiero ir a Tokio, quiero ir a la India.”

Os Funerais da Mamãe Grande, de Gabriel García Márquez

Ganhei este livro do casal mais legal do mundo: Nikelen Witter e Luiz Augusto Farinatti. A capa não é a que está ao lado, é uma bem novinha, daquelas bem desinteressantes com as quais costumam ser agraciados os Prêmios Nobel. Os oito contos do volume  — A sesta de terça-feira, Um dia desses, Nesta cidade não existem ladrões, A prodigiosa tarde de Baltazar, A viúva de Montiel, Um dia depois do sábado, Rosas artificiais e Os funerais de Mamãe Grande — passam-se em ou próximas a Macondo, a habitual e visitadíssima cidade ficcional do autor.

Apesar de ser um admirador do colombiano, ainda não tinha lido a Mamãe e o fiz pelo Método Milton Ribeiro de leitura, isto é, em ônibus, salas de espera, banheiros e refeições. Sei lá, estou passando por um período severamente musical e minha cabeça anda muito sinfônica, não obstante estar ouvindo agora as Triosonatas para órgão solo de J. S. Bach. E o órgão não é quase sinfônico? Bem, não há muito espaço para muita coisa. Mas voltemos ao que interessa.

Há belos contos aqui. Minha preferência total vai para o que título ao livrinho. A história da soberana de Macondo é contada com enorme talento e ironia. Tudo, mas tudo serve para empurrar a vertiginosa narrativa que mais não faz do que demonstrar a estrutura de um poder feudal nada afastado de algumas regiões latino-americanas.

Os seus bens, que datavam da época da conquista, eram incalculáveis. Abarcavam cinco municípios, 352 famílias e também a riqueza do subsolo, as águas territoriais, as cores da bandeira, a soberania nacional, os partidos tradicionais, os direitos do homem, as liberdades dos cidadãos, o primeiro magistrado, a segunda instância, o terceiro debate, as cartas de recomendação… Demorou três horas a enumeração dos bens terrenos da Mamãe Grande.

Eu me apaixonei, assim como também pelo estupendo e minimalista conto de abertura A sesta de terça-feira. Nesta cidade não existem ladrões, A prodigiosa tarde de Baltazar, A viúva de Montiel ficam um degrau abaixo talvez apenas pelo gosto pessoal deste leitor um tanto desorganizado.

Pássaros que caem mortos, viúvas ressentidas contra quem não entende os méritos do marido morto, ladrões que não têm o que fazer com o produto roubado, o dentista que arranca dentes de poderosos, a belíssima gaiola de Baltazar, Cem Anos de Solidão, La Mala Hora,  tudo isso serviu para gravar Macondo na memória de milhões de leitores e para que alguns habitantes de Aracataca, cidade natal do autor, tentassem mudar o nome da cidade. Gente sem graça, gente sem graça. Macondo é uma catetral imaginária. OK, também é uma cidade em Angola, mas isso é casual. A Macondo latino-americana é ficcional e  assim deve permanecer em sua glória.

A Espécie Fabuladora, de Nancy Huston

Autran Dourado é um raro caso de escritor em que sua qualidade como cantor é muito superior à música interpretada. A qualidade de sua escritura bate fácil os temas escolhidos. Tal característica talvez seja fatal para a sobrevivência de seus romances. Conheço casos como o de Naipaul, em que o escritor é tão, mas tão inteligente e arguto, que lhe falta texto para organizar a superfetação de temas e interpretações. Posso ser burro demais para ele, claro; tanto que — à exceção de Uma Casa para Sr. Biswas — costumo ficar meio zonzo. O caso de Nancy Huston parece ser outro. Intuo uma grande escritora e uma grande capacidade que é dobrada pela necessidade de ser simples.

É efetivamente complicado comentar este ensaio sobre a Necessidade da Ficção. De forma sintomática, faço uma analogia ao clássico A Necessidade da Arte, de Ernst Fischer, pois o ensaio de Huston trata de forma menos poética e menos geral dos mesmos temas. Porém, se é menos geral, avança muito mais na forma de pensar e de fantasiar do ser humano.

O livro foi escrito a fim de dar uma resposta à pergunta que uma presidiária fez à autora:

— Para que inventar histórias quando a realidade já é tão extraordinária?

Em resposta à pergunta, a canadense Nancy Huston comprova como o fato de acreditar em coisas irreais nos faz suportar a melhor vida real. Ela comprova que a inserção no mundo ficcional começa quando nascemos, com o sentimento de pertencimento a um grupo, com deus, com os primeiros relacionamentos e a gloriosa busca para encontrar um sentido naquilo que estamos vivendo — instinto básico à condição humana, a única espécie que sabe que nasceu e morrerá. Então, já que a realidade humana é tão repleta de ficções pobres e incompletas, é preciso inventar ficções mais ricas, com situações que façam sentido.

Por que disse que era complicado comentar o ensaio sobre um tema tão fundamental e interdisciplinar? Ora, porque, repito, acho que Nancy Huston é maior do que o resultado. Acredito que a autora tenha facilitado seu texto para que este ficasse mais acessível. Não pretendo colocá-la no pelourinho por isto, mas fiquei com a forte impressão de que, por trás daqueles parágrafos encurtados à fórceps, havia o desejo de ser mais e mais simples num assunto que não é nada trivial e que trata de assuntos que partem do atavismo para chegar à arte mais sofitiscada.

Porém, o grande mérito do livro é o da divulgação de verdades complexas de uma forma perfeitamente organizada e simples. E seu problema é exatamente o mesmo; isto é, o de levar ao paroxismo esta característica. Mas vale a leitura, garanto.

Nancy Huston escreve em francês, vive na França e é autora de Marcas de Nascença, vencedor do Prêmio Femina e finalista do Prêmio Goncourt e do recém lançado Dolce Agonia, além de uma dezena de livros. Me deu vontade de conhecê-la melhor.