Bamboletras recomenda Ernaux, Isabel Allende e a poesia de Gontijo Flores

Bamboletras recomenda Ernaux, Isabel Allende e a poesia de Gontijo Flores

A newsletter desta quarta-feira da Bamboletras.

Annie Ernaux

Olá!

Mais um livro da ficção memorialística da excelente Annie Ernaux. Este tem início em 1963, quando Ernaux, então uma estudante de 23 anos, engravida do namorado que acabara de conhecer. Sem poder contar com o apoio dele ou da própria família numa época em que o aborto era ilegal na França, ela vive praticamente sozinha o acontecimento que tenta destrinchar neste livro quarenta anos depois. Também sugerimos o último lançamento de Isabel Allende — mais uma história super bem contada de mulheres — e também a surpreendente poesia de Guilherme Gontijo Flores.

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O Acontecimento, de Annie Ernaux (Fósforo, 80 páginas, R$ 54,90)

Em 1963, Annie Ernaux, então uma estudante de 23 anos, engravida do namorado que acabara de conhecer. Sem poder contar com o apoio dele ou da própria família numa época em que o aborto era ilegal na França, ela vive praticamente sozinha o acontecimento que tenta destrinchar neste livro quarenta anos depois, quando já é uma das principais escritoras de seu país. Com a ajuda de entradas de seu diário e de memórias há muito guardadas, Ernaux reconstrói seu périplo solitário para realizar um aborto clandestino. Ao refletir sobre a onipresença da lei e seu imperativo sobre o corpo feminino, Ernaux nos apresenta mais uma face da mescla indissociável do íntimo e do coletivo tão característica de todo o seu percurso literário. A jovem acaba na ala de emergência de um hospital. Anos se passam sem que ela tenha coragem de revisitar o episódio.

Violeta, de Isabel Allende (Bertrand Brasil, 322 páginas, R$ 59,90)

Violeta nasceu em 1920, a primeira menina de uma família com cinco filhos, quando ainda era possível sentir os efeitos da Grande Guerra a da gripe espanhola, que chegara ao seu país pouco antes do seu nascimento. A família saiu ilesa destas crises, mas não conseguiu enfrentar a seguinte. A Grande Depressão transformou totalmente a vida urbana que Violeta conhecia. Sua família perdeu tudo e foi forçada a se mudar para um local remoto. Lá, ela cresceu e terá seu primeiro pretendente. Violeta narra sua história em uma carta dirigida à pessoa que mais ama, contando decepções e casos amorosos, momentos de pobreza e riqueza, perdas e alegrias, tendo por pano de fundo grandes eventos históricos: a luta pelos direitos das mulheres, a ascensão e queda de tiranos e, afinal, não uma, mas duas pandemias.

Potlatch, de Guilherme Gontijo Flores (Todavia, 128 páginas, R$ 59,90)

Potlatch é uma palavra chinook, uma família de línguas indígenas da América do Norte. Ela define uma cerimônia em que membros do grupo investiam numa troca violenta de oferendas e presentes. O título deste livro de Guilherme Gontijo Flores de alguma maneira define sua própria lírica — ao menos neste conjunto luminoso de poemas. Dividido em quatro seções — “A parte da perda”, “Colheita estranha”, “Três estáticas” e “Cantos pra árvore florir” —, Potlatch é o breviário portátil de poemas tão meditativos quanto sensuais, tão afiados quanto encantatórios; tão pessoais quanto marcados por uma visão contundente da História e da nossa relação com a natureza que insistimos em destruir.

Nem doeu (autopornografia), de Otto Guerra

Nem doeu (autopornografia), de Otto Guerra

Um livro engraçadíssimo na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, na cachaça e na cerveja. Sim, verdade!  Autopornografia? Nem tanto assim. O cineasta e escritor Otto Guerra disse que escreveu este livro de memórias antes “antes que a bebida levasse todos os seus neurônios”. Pelo descrito no livro, faz sentido. Pela lógica do autor, não. Ele disse mais, disse que seu livro “é um estudo sobre como ser álcooldidata no cinema”. OK, ele gosta de trocadilhos — eu também! –, só acho que o segundo parece ser mais verdadeiro que o primeiro.

Nem doeu tem 130 páginas. Não é, portanto, algo como Em busca do tempo perdido nem em postura nem em proporções. Otto respeita a cronologia, mas só nos apresenta os melhores e decisivos lances, refletindo, de forma sempre hilária, sobre sua vida, trabalho e amores — materiais e imateriais. Já na epígrafe, Otto dá o tom, citando o grande Domingos de Oliveira: “O humor é a única forma de falar sério da vida”. E a única forma para Otto viver seria desenhando. Desde pequeno ele fazia isso e quase apenas isso dentro de uma família onde o padrão era ser médico, advogado ou engenheiro. Só que o menino Otto conseguiu levar o quarto da infância — cheio de papel e lápis de cor — para a vida. E depois tratou de animar seus desenhos.

Otto é autor de diversas animações como Rocky & Hudson- Os Caubóis Gays (baseado nas tiras de Adão Iturrusgarai), Wood & Stock: Sexo, Orégano e Rock’n’Roll (baseado nos personagens do cartunista Angeli), Até que a Sbórnia nos Separe e A Cidade dos Piratas. Sua produtora faz tanto comerciais quanto animações para o público adulto.

As histórias contadas em Nem doeu mostram claramente uma trajetória coerente, se bem que muito alcoolizada. Sua vida artística e profissional são a mesma coisa. A pessoal também. Ele conta que desanimou nos anos 90, quando fez cerca de 600 comerciais. Mas que seu cinema embalou com Wood & Stock e não parou mais.

Bem, mas tergiverso: o que interessa no livro é o documento humano e o texto extremamente cômico para contar os sucessos e desgraças de uma vida de 65 anos. Não, isto não é para qualquer um.

O sexo? A autopornografia? OK, há bastante, mas acho que aqui ele se superestimou…

Eu gostei e recomendo!

Otto Guerra, o alcoolista lúcido / Foto de Marcelo G. Ribeiro para o JC

Bamboletras recomenda livros pra todos os gostos (ou quase todos)

Bamboletras recomenda livros pra todos os gostos (ou quase todos)

A newsletter desta quarta-feira da Bamboletras.

Elsa Morante (1912-1985)

Olá!

Nesta semana, sugerimos 3 livros muito bons e diferentes entre si. Um romance da enorme Elsa Morante, um HQ baseado em um livro de grande sucesso e um clássico de sci fi de dos anos 50. Bem, tem pra todos os gostos.

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A Ilha de Arturo, de Elsa Morante (Carambaia, 384 páginas, R$ 99,90)

Elsa Morante (1912-1985) costumava dizer que, no fundo, se sentia “um menino”. E afirmou certa vez, parodiando Flaubert, “Arturo sou eu”. Referia-se ao personagem narrador de A ilha de Arturo – memórias de um garoto, uma assombrosa evocação da infância e da puberdade. Figura fundamental e singular da vida intelectual na Itália do pós-guerra, Morante não teve, em vida, o reconhecimento merecido fora de seu país, em parte pela discrição pessoal e em parte por sua história de vida, pois as luzes eram mais dirigida a seu marido, Alberto Moravia. A ilha de Arturo se passa às vésperas da Segunda Guerra Mundial em Procida, ilha na região de Nápoles em que o personagem vive uma vida de liberdade e imaginação, sem escola, mas plena de livros e natureza selvagem. A mãe do garoto de 14 anos morreu no seu nascimento e o pai, Wilhelm Gerace, que ele idolatra acima de todas as coisas, passa grande parte do tempo em viagens misteriosas que alimentam os devaneios de Arturo. Um grande livro!

Tragédia da Rua da Praia, de Rafael Guimaraens e Edgar Vasques (Libretos, 60 páginas, R$ 45,00)

Tragédia da Rua da Praia, de Rafael Guimaraens, relata uma história real ocorrida em setembro de 1911. Quatro misteriosos estrangeiros assaltam uma casa de câmbio na Rua da Praia e se envolvem em uma fuga enlouquecida pelo Centro de Porto Alegre, a pé, de carruagem, de bonde e até a bordo de uma carrocinha de leiteiro. O episódio abala profundamente o cotidiano da cidade, suscitando pânico na população, disputas políticas e guerra de versões entre os jornais. Enquanto os ladrões são perseguidos, dois empresários produzem um filme que irá estrear dez dias após o assalto em quatro sessões diárias no Cine-Theatro Coliseu. Lançado em 2005, o livro Tragédia da Rua da Praia venceu o prêmio “O Sul, Nacional e os livros”, escolhido pela Câmara Rio-grandense do Livro como melhor narrativa longa. Aqui, a história recebe uma versão em quadrinhos, com desenhos do grande ilustrador Edgar Vasques.

A Nuvem Negra, de Fred Hoyle (Todavia, 272 páginas, R$ 76,90)

Um clássico. Cientistas do Observatório Palomar, na Califórnia, fazem trabalhos de rotina quando são surpreendidos por uma descoberta preocupante. Uma gigantesca nuvem negra de escala planetária está obliterando a luz das estrelas. E, se obliterar a luz do sol, aniquilará a vida no planeta, causando uma extinção pior do que a que extinguiu os dinossauros. Em um misto de hard sci fi com distopia, A Nuvem Negra, publicado em 1957, fala da rotina do trabalho científico e das consequências para a humanidade ao ignorar os avisos da ciência. Hoyle não hesita em tratar dos aspectos mais devastadores do evento que se avizinha, sem deixar de pensar nos tomadores de decisão e nas pessoas que serão impactadas.

Confinada, de Leandro Assis e Triscila Oliveira

Confinada, de Leandro Assis e Triscila Oliveira

Confinada é um grande livro de quadrinhos. Fran é uma influencer com milhões de seguidores que dispensa duas de suas três empregadas no início da pandemia, ficando apenas com Ju. Ou seja, do trio de servidoras, uma fica. Também conhecida como “musa gratiluz”, Fran quer parar de pagar as que foram dispensadas durante o período de confinamento… Mas vamos sem spoilers. Enquanto isso, em suas lives, instagrams, etc., ela diz estar aproveitando o confinamento para fazer “um balanço”, para “crescer” e para “tornar-se melhor”. E para vender um monte de produtos para seus seguidores, claro.

Ela anuncia, por exemplo, um “pack” com duas máscaras a 147 reais, sendo que, na aquisição, uma cesta básica irá para uma “família favelada”: “Você faz caridade, não morre e fica estilosa”, comemora. Na camufla, ela até organiza festas. Fran e seus amigos têm aquele comportamento usual de boa parte da dita elite que, pelo fato de ter dinheiro, se sente superior. Riem do que consideram piadas, embora sejam ofensas. Debocham dos mais pobres, dizem que os negros são inferiores, zombam de seus hábitos e mesmo suas características físicas, como a “cabeça chata” dos nordestinos e, obviamente, a cor. Recusam-se a cumprir regras, como mostrar a identidade na guarita que controla a entrada num condomínio, pois esta é solicitada por uma pessoa de origem humilde. É o velho e conhecido preconceito de classe misturado com racismo. Para eles, os negros só podem estar em espaços ou ambientes frequentados por brancos se estiverem a serviço. Obedientemente.

Com belos desenhos e um texto afiado e duramente atual, Confinada deixa clara a hipocrisia e o racismo da elite brasileira. Mais: as desigualdades sociais são plenamente justificadas por Fran e sua irmã em tristes (e hilariantes) “telefonemas explícitos”. Sim, é o papinho bolsonarista. Para nós não é nenhuma novidade, mas a arte potente de Assis e Oliveira deixa tudo mais cruel, divertido, e ridículo. A influencer Fran é mais daquele mesmo que temos engolido diariamente. Ela até se arrepende de ter votado no Bozo! Diz que anulou o voto no segundo turno!

Ao final, fica clara a certeza de que muitas Frans estão entre nós. Bem, se não estivessem, teríamos menos casos de racismo e um governo mais decente.

Leandro Assis e Triscila Oliveira

 

Bamboletras recomenda três livros de mulheres

Bamboletras recomenda três livros de mulheres

A newsletter desta quarta-feira da Bamboletras.

Olá!

Não foi planejado, fomos pegando na loja três livros que achávamos relevantes para divulgar e o trio final foi de pequenos livros escritos por mulheres. Seria de mau gosto usar o lugar-comum de dizer que trata-se de três pequenos grandes livros? Bem, é o caso.

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Ao pó, de Morgana Kretzmann (Patuá, 157 páginas, R$ 40,00)

Vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura, este romance de estreia de Morgana Kretzmann narra a história de Sofia, jovem nascida em uma cidadezinha do interior do Rio Grande do Sul que sofreu abusos sexuais por parte de um tio em sua infância. Já na adolescência, quando percebe que o mesmo tio também está abusando de sua irmã mais nova, Sofia decide fugir de sua cidade natal. Alternando idas e vindas no tempo, acompanhamos a trajetória de Sofia em sua juventude, em especial entre os anos de 2006 e 2014. Morando no Rio de Janeiro, consegue se aprumar, aos poucos, porém, vamos percebendo o quanto é difícil apagar as chagas do abuso sofrido no passado, sendo presa fácil para novos abusos físicos e psicológicos, sempre agarrada à esperança de acertar as contas com o passado.

Escute as feras, de Nastassja Martin (Editora 34, 112 páginas, R$ 46,00)

Estudiosa do Grande Norte subártico, a antropóloga francesa Nastassja Martin viaja em busca dos even – mais precisamente, de algumas famílias even que, tomando distância da vida na Rússia pós-soviética, preferem voltar a viver no coração das florestas siberianas. A rotina do trabalho de campo vai avançando como quer a disciplina etnográfica, com os cadernos se enchendo de anotações. Mas alguma coisa a mais parece estar em gestação, alguma coisa que por fim eclode na forma de um incidente — ou, quem sabe, de um encontro — entre a antropóloga e um urso. É a partir desse acontecimento inesperado que Martin tece a trama de Escute as feras, em que a experiência vivida alimenta uma reflexão vertiginosa sobre o humano e o natural,

O verão selvagem dos teus olhos, de Ana Teresa Pereira (Todavia, 112 páginas, R$ 54,90)

Dona de uma prosa elegante, Ana Teresa Pereira retoma a história de Rebecca de Winter imortalizada nas páginas do romance de Daphne du Maurie, no clássico filme de Alfred Hitchcock e, mais recentemente, em uma nova produção cinematográfica. A autora conta a trajetória de Rebecca antes do casamento com Max de Winter, o herdeiro empertigado de Manderley a quem a personagem conheceu e por quem se apaixonou quando muito jovem. O verão selvagem dos teus olhos constitui-se numa engenhosa peça da ficção contemporânea. É uma viagem por um tempo e um universo que sempre habitarão o coração dos leitores. Quem leu o Rebecca de du Maurier (ou viu o filme de Hitchcock) sabe do que falamos… Vale a pena.

As Intermitências da Morte, de José Saramago

As Intermitências da Morte, de José Saramago

Quando escrevemos uma resenha, dificilmente usamos a primeira pessoa do singular, mas creio que isto será impossível nesta. Eu estava de férias e resolvi ler um livro que me fosse agradável. Um daqueles cuja lembrança fosse querida e consistente. Lembrava de que rira muito ao ler a primeira parte deste As Intermitências da Morte e que achara belíssima a segunda. Só que algo parece ter mudado em mim ou algo em nosso país mudou tanto que os absurdos passaram a fazer mais sentido ou a nossa angústia ficou mais facilmente alcançável. Simplesmente, a farsa ganhou algo da realidade.

Saramago gosta de metáforas fortes. Por exemplo, em Ensaio sobre a Cegueira, todos ficam cegos à exceção de uma mulher. Já em A Jangada de Pedra, a Península Ibérica sai flanando pelo oceano até fixar-se em outro local — leiam!, leiam! Aqui, ocorre que num pequeno país de 10 milhões de habitantes (Portugal?), a morte simplesmente resolve suspender suas atividades e mesmo os moribundos quedam-se indefinidamente no estado em que se encontravam. O fato gera conflitos econômicos, filosóficos, religiosos e políticos e a corrupção ganha novos gêneros, com uma certa máphia que leva moribundos para além das fronteiras a fim de eles morram de uma vez. Ou seja, vê-se com clareza que a morte é necessária. Ou que pelo menos faz parte da vida.

No início, o país se ufana. Afinal, ali não se morre. Porém, as madeireiras e os empresários do setor funerário ficam “desprovidos de matéria-prima”, o negócio das companhias de seguros entra em crise, hospitais e geriatrias passam a conviver com a superlotação. O primeiro-ministro se faz de esperto, mas na verdade não sabe o que fazer, a não ser que deve ser condescendente com a máphia. Os religiosos se desesperam, pois “sem morte não há ressurreição, e sem ressurreição não há igreja”. As ligações entre todos os setores — do primeiro-ministro às questões domésticas — vão sendo mostradas. Porém, em sua intermitência, a morte pode a qualquer momento retomar seus trabalhos. E até utiliza a imprensa para seus comunicados. As Intermitências é uma fábula, uma fábula sobre o papel da morte e como ela altera a vida dos que (ainda) vivem.

No livro, morte é um personagem. Ela não aparece em público, pois tem o aspecto de um esqueleto, é claro. Sim, ela é como as representações da morte às quais nos acostumamos ver nas pinturas.

Arnold Böcklin, Autorretrato com a morte tocando violino (1872)

Ela, a morte, retorna, mas há uma determinada pessoa que não morre, o que — exatamente na página 135, o romance tem 206 —  dá início à segunda parte do romance, que é muito mais lírica e onde há ecos musicais, principalmente quando a morte lê a partitura da Suíte Nº 6 para Violoncelo Solo de Johann Sebastian Bach. Frente àquilo até a morte cai de joelhos e estremece.

…aí uma parte de si deteve-se a olhar o caderno que estava aberto sobre uma cadeira, era a suite número seis opus mil e doze em ré maior de johann sebastian bach composta em cöthen e não precisou de ter aprendido música para saber que ela havia sido escrita, como a nona sinfonia de beethoven, na tonalidade da alegria, da unidade entre os homens, da amizade e do amor. Então aconteceu algo nunca visto, algo não imaginável, a morte deixou-se cair de joelhos, era toda ela, agora, um corpo refeito, e por isso é que tinha joelhos, e pernas, e pés, e braços, e mãos, e uma cara que entre as mãos escondia, e uns ombros que tremiam não se sabe porquê, chorar não será, não se pode pedir tanto a quem sempre deixa um rasto de lágrimas por onde passa, mas nenhuma delas que seja sua. Assim como estava, nem visível nem invisível, em esqueleto nem mulher, levantou-se do chão como um sopro e entrou no quarto…

O livro foi publicado quando Saramago tinha 83 anos. Devia estar refletindo muito sobre a morte, que o veio buscar aos 87 anos.

José Saramago (1922-2010)

Bamboletras recomenda Pagu, Leibniz e mais Modernismo

Bamboletras recomenda Pagu, Leibniz e mais Modernismo

A newsletter desta quarta-feira da Bamboletras.

Pagu

Olá!

O olhar lânguido de Pagu — bem anos 30 — esconde uma mulher avançada para os padrões da época. Com seu comportamento considerado extravagante, foi escritora, poetisa, tradutora, desenhista, cartunista, jornalista e militante comunista. Fumava e bebia em público, usava roupas colantes e transparentes, usava cabelos curtos, manteve diversos relacionamentos amorosos, e costumava falar palavrões. Suas atitudes não eram compatíveis com sua origem familiar, conservadora e tradicional. O livro que indicamos é o recém relançado Parque Industrial — mas, vejam só, nossa introdução está por demais longa. Culpa da Pagu!

E teríamos que falar dos outros dois livros, do espetacular Os Órgãos dos Sentidos e do belo, bem escrito e maravilhosamente ilustrado Modernidade em Preto e Branco. Maiores detalhes abaixo.

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Parque Industrial, de Pagu (Patrícia Galvão) (Companhia das Letras, 112 páginas, R$ 49,90)

Romance de estreia de Pagu (Patrícia Galvão), Parque Industrial teve sua primeira edição paga por Oswald de Andrade. É o primeiro romance proletário da literatura brasileira, ou seja, o primeiro que tinha como tema personagens, problemática e ambientação ligados à classe operária. O romance, usando recursos expressivos modernistas, tem influência do estilo de Oswald. É um painel abrangendo personagens da classe operária e de classe média alta. A vida na fábrica, nos cortiços do bairro paulistano do Brás, são o cenário de pequenos dramas cotidianos centralizados no amor, no sexo e no dinheiro. Abordando as consequências da industrialização brasileira do século XX, Parque Industrial se consagrou tanto como retrato de época quanto como um manifesto em favor de seus personagens. Com habilidade sutil, Pagu denuncia as precárias condições enfrentadas pelas trabalhadoras da indústria têxtil paulistana, alinhando a isso as frustrações, traumas e vivências pessoais da mulher proletária. Este livro é passagem obrigatória não só para os leitores de Pagu, mas a quem se interessa pelo panorama social do período.

Os Órgãos dos Sentidos, de Adam Ehrlich Sachs (Todavia, 224 páginas, R$ 69,90)

Em Os órgãos dos sentidos, lançado pela Todavia, o norte-americano Adam Ehrlich Sachs combina obsessão científica e loucura ao imaginar o filósofo e matemático alemão Gottfried Leibniz (1646-1716) envolvido em uma ousada previsão astronômica. A história começa no ano de 1666, quando um astrônomo afirma que um eclipse solar vai acontecer ao meio-dia de 30 de junho, deixando a Europa na escuridão por não mais do que quatro segundos. Esse cientista, responsável por uma previsão tão certeira, seria cego? E se estivesse usando o maior telescópio do mundo? Esses rumores chegam a Leibniz, antes de ele se tornar uma referência da matemática, e assim a narrativa se desenvolve: três horas antes do possível acontecimento, o jovem gênio — em crise existencial — parte em busca do profeta. Uma deliciosa deturpação da História para os leitores da Bamboletras.

Modernidade em Preto e Branco: Arte e Imagem, Raça e Identidade no Brasil, 1890-1945, de Rafael Cardoso (Companhia das Letras, 368 páginas, R$ 99,90)

Modernidade em preto e branco oferece ao leitor não só um novo entendimento a respeito de um dos principais movimentos artísticos do país, mas também uma janela para compreender a primeira metade do século XX. Geralmente entendido como um movimento de elite, o modernismo brasileiro costuma ser associado a um seleto grupo paulistano. Contudo, desde as primeiras favelas das décadas de 1890 e 1900 até a reinvenção do carnaval nos anos 1930 e 1940, e atravessado pelo boom das novas mídias impressas e da fotografia, o modernismo perpassou diversas classes sociais e áreas geográficas. Neste livro, Rafael Cardoso oferece uma releitura radical do movimento, trazendo à luz elementos absolutamente centrais para seu desenrolar — e que não se encontram somente em terras paulistas. Ilustrado com uma centena de imagens, Modernidade em preto e branco combina extensa pesquisa com uma prosa envolvente, que guia o leitor da Bamboletras por diversos âmbitos da sociedade brasileira entre 1890 e 1945.

Vila Sapo, de José Falero

Vila Sapo, de José Falero

Foi um pouco complicado conseguir o Vila Sapo para ler. Li antes o excelente romance Os Supridores e o livro de crônicas Mas em que mundo tu vive?, mas o livro de estreia tinha passado batido. Consegui um exemplar emprestado e não me decepcionei. É um pequeno livro com 6 contos nada longos, que pode ser lido em uma ou duas sentadas, e que vale a pena. A temática é semelhante à do romance Supridores e não fica longe de várias crônicas do Mas em que mundo.

É estranho ler o primeiro livro de um autor logo após a leitura dos últimos. Tudo fica mais claro. Muitas vezes um livro muito bom como Os Supridores consegue dissimular suas intenções sob uma trama muito presente. Já Vila Sapo — sem ser ruim, de modo algum — deixa transparecer mais cruamente suas razões de ser.

O primeiro conto, Atotô, é uma joia em que três meninos observam e comentam as pessoas que flanam pela Vila até que um acontecimento faz com que eles abandonem seu posto. Dignidade-relâmpago é um sensacional thriller com direito à perseguições. Aconteceu amor é a esplêndida demonstração de coragem de uma jovem mulher e em Um otário com sorte é o narrador que flana em um ônibus contando o que vê até chegar à casa da irmã após um belíssimo primeiro parágrafo. Estes são 4 contos perfeitos. 4 em 6 — sendo que são os 4 mais longos.

Um baita livro. Falero não erra. Ou apenas erra ao vestir tanto a camiseta abaixo. Tá louco!

Quatro Peças, de Anton Tchékhov

Quatro Peças, de Anton Tchékhov

Eu sei que são textos de peças de teatro, que não são romances ou contos, mas sei também que é complicado encontrar livro melhor do que este. Vejam bem: o autor é Tchékhov, que dispensa maiores apresentações e argumentações; o tradutor é o excelente Rubens Figueiredo; há textos de contextualização para cada peça e cada uma dessas histórias está não apenas impregnada de humanidade, mas guarda o melhor Tchékhov nas linhas e principalmente nas entrelinhas de seus extraordinários diálogos. E a gente fica com a certeza de que o russo poderia realmente fazer tudo, tal seu talento.

Ricardo Piglia escreveu que o segredo de um conto bem escrito é que, na realidade, todo conto narra duas histórias: uma em primeiro plano e outra que se constrói em segredo. A arte do contista estaria em saber cifrar a segunda história nos interstícios da primeira. Uma história visível esconde uma história secreta, narrada de forma elíptica e fragmentária. O efeito de surpresa se produz quando o final da história secreta nos salta aos olhos. Às vezes, o que parece  supérfluo para uma história é fundamental para a outra. É o que Tchékhov consegue em suas peças. As pessoas falam e falam de outras coisas, muitas vezes de banalidades, mas suas banalidades escondem coisas fundamentais. As entrelinhas dos textos chegam a aparecer em negrito piscante para nós…

A sinopse de cada história é curta e, na verdade, é apenas informativo escrever sobre cada uma delas, pois há muitos personagens e o que interessa são os notáveis diálogos.

A Gaivota tem com uma peça dentro dela. Ela é montada para familiares e amigos. O autor é o filho de uma grande atriz que assiste a peça e a acha passadista e medíocre. A peça de Trepliov descreve uma harmonia estética incompatível com as pessoas que a assistem e com a frustração encarada pelo próprio autor, que é bastante ridicularizado. E mais não digo.

Tio Vânia é de enlouquecer de tão perfeita. O personagem-título passou sua vida cuidando de uma fazenda e repassando seus lucros ao dono da mesma, na esperança de garantir o futuro de um familiar. Então Serebriákov, um “acadêmico e escritor de alto mérito”, sem maiores considerações, resolve outra coisa. A peça é também um olhar sobre a velhice, tanto de Vânia como de Serebriákov, que casado com a jovem, bela e cobiçada Elena.

Três Irmãs é o mais fraco de todos, mas o profundo lirismo das aspirações das irmãs fazem dela uma peça muito bonita e triste. Olga, Irina e Macha, vivem numa província no interior da Rússia, em companhia de seu irmão André. Olga é a professora solteira que vê os anos, a oportunidade de casar e a de se mudar passarem. Macha é a esposa de um professor que aos poucos percebe a mediocridade do marido. Irina, a mais nova, que é a única que ainda acredita no futuro. Todas idealizam Moscou como a sua única salvação, o lugar onde haviam passado uma infância feliz.

O Jardim das Cerejeiras é outra maravilha tão grande quanto Tio Vânia. A emancipação dos servos assinada por Alexandre II em 1861 permitiu a eles adquirirem riqueza e status — se trabalhassem –, enquanto alguns aristocratas empobreciam, incapazes de manter suas propriedades sem o trabalho barato da escravidão — e sem o próprio trabalho, pois trabalhar seria indigno deles. O efeito dessas reformas ainda eram sentidos enquanto Tchékhov escreveu a peça quarenta anos depois. Um desses ex-servos avisa e avisa que a casa, a fazenda e o jardim das cerejeiras seriam perdidos pela família, mas ela prefere não acreditar nisso.

Anton Tchékhov (1860-1904)

Bamboletras recomenda Modernismo e Juremir

Bamboletras recomenda Modernismo e Juremir

A newsletter desta quarta-feira da Bamboletras.

Olá!

Esta semana sugerimos dois livros sobre o Modernismo brasileiro. O primeiro vem coberto de elogios e é de autoria do sociólogo e professor Sergio Miceli. O segundo é de um personagem do movimento — são inéditos do grande Oswald de Andrade. E o terceiro é a poesia Juremir Machado da Silva o que é garantia de qualidade e cultura.

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Lira Mensageira — Drummond e o grupo modernista mineiro, de Sergio Miceli (Todavia, R$ 74,90, 264 páginas)

Ninguém conhece tão profundamente os mecanismos que regem a vida intelectual do Brasil quanto Sergio Miceli. Este livro dá continuidade a seu projeto. No centro da análise estão Drummond e seus contemporâneos em Minas Gerais. Miceli mostra de forma inovadora os caminhos disponíveis para aqueles literatos que se encontravam no café Estrela. A obra traz olhares sobre o modernismo paulista e a classe política na Era Vargas. Em ensaio com foco nas obras de estreia de Menotti del Picchia, Guilherme de Almeida, Mário de Andrade, Oswald de Andrade e outros, Miceli traça um panorama do que seria a Semana de 22, cravejado de tensões que seriam posteriormente diluídas.

Diário Confessional, de Oswald de Andrade (Cia. das Letras, R$ 99,90, 560 páginas)

“Resiste/ Coração de Bronze!”, anota Oswald de Andrade em diferentes momentos nas páginas de seus diários. Os cadernos deixados pelo autor de Serafim Ponte Grande incluem uma seção intitulada “Diário confessional”, que teve início em 1948 e fim em 1954, meses antes de sua morte. Esse material – que permaneceu inédito por cerca de setenta anos – finalmente vem à luz com a publicação do presente volumeNesses registros, somos apresentados a uma figura bem distinta do personagem irreverente que se consagrou em nosso imaginário. Aqui está a mente extraordinária e inquieta, cáustica e ao mesmo tempo amorosa do escritor – mas também passamos a conhecer um homem em crise, profundamente atormentado por incertezas. Documento singular para compreender a cena artística, literária, política e histórica brasileira do período, bem como as transformações que desenharam a cidade de São Paulo na metade do século XX, Diário confessional é o retrato de uma época e de um dos mais notáveis intérpretes da nossa cultura.

Quase (Toda) Poesia, de Juremir Machado da Silva (Sulina, R$ 44,90, 280 páginas)

Conhecemos o grande radialista, jornalista e cronista, o excelente entrevistador, o ótimo romancista e ensaísta Juremir, além, é claro, do santanense. É a hora de conhecer sua poesia. “Publico este livro para marcar meus sessenta anos (29 de janeiro de 2022). Parafraseando outro poeta, já não temo, hoje faço com meus versos o meu viver. E talvez o meu morrer. Tudo é permitido quando o tempo se esvai: rimar ou não, confessar-se, revelar-se, desvelar-se, desnudar-se, recuar.”

Bamboletras recomenda Arbex e outros dois grandes livros

Bamboletras recomenda Arbex e outros dois grandes livros

A newsletter desta quarta-feira da Bamboletras.

Olá!

Três livros bem diferentes entre si são as recomendações da Bamboletras para a semana. O primeiro é mais uma baita reportagem de Daniela Arbex. Como nosso país insiste em produzir tragédias, precisamos de cronistas que as documentem e Arbex é notável nisso. O segundo livro é sobre a saudade de um pai por uma filha que não conheceu. E o terceiro narra brilhantemente um caso de gravidez adolescente.

Excelente semana com boas leituras!

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Arrastados, de Daniela Arbex (Intrínseca, R$ 59,90, 328 páginas)

Daniela Arbex é uma tremenda repórter. Dela, já tivemos livros perfeitos como Holocausto Brasileiro — sobre o Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena — e Todo o dia a mesma noite — sobre o incêndio da boate Kiss. Agora, ela retorna com Brumadinho. No dia 25 de janeiro de 2019, a B1, barragem desativada da Mina do Córrego do Feijão, explorada pela mineradora Vale na cidade de Brumadinho, MG, rompeu. Seu rastro de lama, rejeitos de minério e destruição se estendeu por mais de 300 quilômetros, levando torres de transmissão, trens de carga, pontes, casas, árvores, animais e, na contagem oficial da tragédia, a vida de 270 pessoas. Jornalista investigativa premiada, a mineira Arbex foi a campo para reconstituir em detalhes as primeiras 96 horas da tragédia. Ela entrevistou sobreviventes, familiares das vítimas, bombeiros, médicos-legistas, policiais e moradores das áreas atingidas. Arbex retornou à região para acompanhar o impacto das disputas por indenizações e contrapartidas institucionais para a reparação dos danos materiais. Além da escrita precisa da autora, que reconstitui a trajetória das vítimas e dos trabalhos de resgate com toda a brutalidade da tragédia, mas ao mesmo tempo com extrema delicadeza, o livro apresenta ainda fotografias que ajudam a dimensionar e humanizar a tragédia. Novamente, Arbex constrói memória e impede que mais uma catástrofe brasileira se perca em meio à banalidade do noticiário cotidiano.

Princípio de Karenina, de Afonso Cruz (Cia. das Letras, R$ 59,90, 200 páginas)

Uma carta de amor de um pai à filha que não conheceu, revelando distâncias e aproximações. Uma história de amor impossibilitada pelo medo. Uma reflexão sobre o que somos e o que desejamos ser. “Eu seria muito infeliz num mundo feliz. Ela seria feliz em qualquer mundo. Esta história, minha e da tua mãe, é também a tua.” Com essa referência à célebre frase que abre o romance Anna Kariênina, de Tolstói, um pai se dirige à filha que não conheceu para lhe contar a sua história – que é também a história dela –, numa longa carta que é uma entrega sincera e emotiva, mas também uma bela reflexão sobre o significado da felicidade. Há um pai que ergue muros de silêncio, uma criada muito velha, uma amante. Estes são alguns dos personagens que testemunham – ou dificultam – a busca desse homem por um amor incondicional. Afonso Cruz é um multipremiado autor português.

Em Carne Viva, de Jacqueline Woodson (Todavia, R$ 59,90, 144 páginas)

Este romance centra-se em duas famílias negras que se uniram quando Iris e Aubrey, um casal de adolescentes ainda no colégio, descobriram que seriam pais. Ao revelar esta nova família singular — e remontar ao massacre racial de Tulsa em 1921 — Jacqueline Woodson explora o desejo sexual, identidade, ambição, gentrificação, educação, classe, status e as mudanças de vida advindas da paternidade. Em Carne Viva olha para o fato de que os jovens, muitas vezes, devem tomar decisões duradouras sobre suas vidas — até mesmo antes de começarem a descobrir quem são e o que querem ser.

Daniela Arbex

Em 3 sugestões, a Bamboletras reúne passado, presente e futuro

Em 3 sugestões, a Bamboletras reúne passado, presente e futuro

A newsletter desta quarta-feira da Bamboletras.

Olá!

As sugestões da semana têm a ver com passado, presente e futuro. Passado que se reflete até hoje na obra Memórias do Esquecimento, de Flávio Tavares. Presente na discussão sobre racismo e feminismo da autoficção da grande Djaimilia Pereira de Almeida, Esse Cabelo. E futuro no livro sobre Edgar Morin que trata dos desafios multidisciplinares do século XXI — num mundo cada vez mais especializado.

Excelente semana com boas leituras!

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Esse Cabelo, de Djaimilia Pereira de Almeida (Todavia, R$ 57,90, 104 páginas)

Romance de estreia da excelente Djaimilia, Esse Cabelo é um livro amoroso e um tanto irônico. Nascida em Angola em 1982 e agora vivendo em uma nação da periferia da Europa, o romance é a história da maturidade de uma mulher negra que é considerada forasteira em seu próprio país e não consegue enxergar a possibilidade de “retornar” a uma pátria que, de fato, jamais foi sua. Obra de estreia de Djaimilia Pereira de Almeida, com pontos de contato com o romance pós-colonial, o ensaio de identidade e a autoficção, este livro traz uma contribuição única a um diálogo global cada vez mais importante sobre racismo, feminismo, colonialismo e independência.

Memórias do Esquecimento, de Flávio Tavares (L&PM, R$ 46,90, 269 páginas)

Vencedor do Prêmio Jabuti, Memórias do Esquecimento é um relato cru sobre a prisão e a tortura após o golpe militar de 1964 no Brasil. Formado em Direito e professor da UnB, o jornalista Flávio Tavares participou da resistência à ditadura e foi preso. Libertado com outros catorze presos políticos em troca do embaixador dos Estados Unidos, em 1969, iniciou longo exílio no qual foi vítima (e sobrevivente) da chamada Operação Condor. Este livro é um testemunho sobre os labirintos de uma época sombria e tortuosa. Da repressão à resistência, da dor à esperança, está tudo aqui, para jamais esquecer. Livraço!

Edgar Morin — Complexidade no Século XXI, org. de Edgard de Assis Carvalho (Sulina, R$ 39,90, 182 páginas)

O objetivo primordial deste livro é problematizar o significado da obra de Edgar Morin na busca da complexidade perdida, nestes tempos sombrios do século XXI, dominados pela fragmentação, pela especialização, pelas desigualdades e contradições da mundialização. Às vésperas de completar 100 anos em 8 de julho deste ano, Edgar Morin é um pensador polifônico, transdisciplinar, empenhado em desvendar os sentidos do futuro num mundo cada vez mais interligado, interconectado, interdependente. Sua vida e suas ideias transparecem a todo tempo em seus ditos e escritos. Daí decorre a religação entre a razão e a emoção, marca indelével da totalidade de sua extensa obra, que considera a racionalidade aberta como matriz para o desvendamento dos múltiplos sentidos. A complexidade no século XXI será necessariamente transdisciplinar, envolvendo terra, a vida, a cultura, a humanidade. Considerado como um utopia realizável, esse horizonte exigirá a formação de pesquisadores que ultrapassem suas competências disciplinares e proponham interpretações universais, ao mesmo tempo globais e locais, capazes de englobar a totalidade dos saberes.

Djaimilia Pereira de Almeida

De Alexandre Kovacs, do Mundo de K, sobre Abra e Leia

De Alexandre Kovacs, do Mundo de K, sobre Abra e Leia

Por Alexandre Kovacs, no Mundo de K.

Milton Ribeiro – Abra e Leia – Editora Zouk – 150 Páginas – Capa de Emanuelle Farezin – Lançamento: 2021.

Milton Ribeiro é uma das pessoas mais inteligentes e bem-humoradas que você vai encontrar no facebook, mesmo que este humor seja um tanto ácido ou carregado de ironia às vezes, mas não é culpa dele o crescente número de idiotas úteis que desafiam a nossa paciência, espalhando bobagens nas redes sociais. Há alguns anos acompanho os seus artigos como jornalista na mídia tradicional e também nos blogs que ele mantém desde 2003, uma inspiração para todo resenhista. Em 2018, Milton realizou um sonho de adolescência transformando-se em livreiro aos 60 anos, quando adquiriu a tradicional Bamboletras em Porto Alegre. E, no final do ano passado, mais um antigo projeto foi cumprido sob a pressão dos muitos amigos da área de literatura: a publicação de Abra e Leia, seu primeiro livro.

Os 22 contos desta antologia foram escritos ao longo dos anos e não apresentam uma unidade temática, longe disso. Contudo, percebemos em muitas das narrativas os traços biográficos do autor, o conhecimento enciclopédico sobre música erudita, assim como as referências literárias e cinematográficas, sem desmerecer dos assuntos mais populares como o futebol e a sua inusitada paixão colorada. Influenciado por autores clássicos e contemporâneos, Milton sabe como contar uma história, seja em primeira ou terceira pessoa, com uma edição precisa do texto, ele conquista a nossa atenção desde o início, construindo finais que valorizam a imaginação do leitor, sempre mantendo um texto afiado e bem-humorado, sua marca registrada.

Chama a atenção o cuidado na criação dos personagens: Marquinhos é um jogador de futebol da segunda divisão gaúcha que é subornado pelo seu ex-time – o Ipiranga de Erechim – para errar todos os escanteios, faltas e pênaltis na decisão do campeonato. Ele é um pai solteiro, coisa incomum no machismo que impera nesta área e, apesar das dúvidas sobre a paternidade, revela um amor incondicional pelo seu filho Enzo. Neste conto, Marquinhos e Enzo, o grande, a ironia fica um pouco de lado e o autor deixa a emoção correr solta pelo texto, sem clichês.

“[…] Eu sabia falar com a imprensa. Dava mais entrevistas e aparecia mais do que os outros, mesmo medindo 1,63 m. Eu era o baixinho que fazia a ligação entre o meio de campo e o ataque. Quer dizer, jogava em posição de craque, mas não era o caso. Tinha alguma habilidade e batia as faltas, pênaltis e escanteios do time, só que passava mais da metade do tempo machucado. Mas não naquele ano. Como o Enzo dizia na escolinha, aquele era o ano do seu pai. Eu ficava todo orgulhoso, pois tudo o que faço é para ele. / Ganhava cinco mil por mês no Guarany e os caras do Ipiranga me ofereceram vinte e cinco para errar todos os escanteios e faltas na decisão. Pênaltis também, se acontecessem. Eu estava em pânico com essa possibilidade – achava que era impossível errar o gol num pênalti. Se eu treinava diariamente, porra, como ia fazer para bater embaixo da bola a fim de mandá-la para fora? E eu sempre batia coladinho, com jeito. Que merda. Só sei que pedi o dinheiro adiantado, porque depois eles sumiriam, é óbvio. Como eu tinha fama de sério e confiável, me pagaram em dinheiro, um em cima do outro, ali na hora.” – Marquinhos e Enzo, o grande (pp. 15-16)

Já em Passando camisas, conhecemos Ana, uma morena bonita e sensual, daquelas que atraem os olhares masculinos e que recebe cantadas até dos amigos do marido mas, em matéria de traição, parece que é ele, o marido Daniel, que está na dianteira. Ana percebe que algo está errado quando descobre uma nota fiscal no bolso da camisa de Daniel, não de uma joia ou uma lingerie para a possível amante, mas sim de um ferro Ultragliss Diffusion 90 Arno. Nesta narrativa, o autor equilibra humor e ironia com sensibilidade em uma história simples do cotidiano mas que, quando bem contada, como é o caso, se torna um clássico.

“À noite, quando voltava para sua pequena casa na periferia, Ana seguia trabalhando. Ali, ela também preparava a comida, limpava a casa, lavava e passava suas roupas e as de Daniel. Ontem, porém, sua rotina foi quebrada. Ao pegar uma camisa de seu marido, Ana sentira um pequeno papel num dos bolsos. Retirou-o e viu tratar-se de uma nota fiscal. Ele tinha comprado um ferro Ultragliss Diffusion 90 Arno por cento e noventa e nove reais. Estranho. Daniel gostava de andar alinhado, mas era muito dinheiro por um ferro de passar. E, além do mais… Cadê o ferro? Observou melhor a data da nota: a compra fora feita há quinze dias e ela não recebera ferro novo nenhum. Faltava muito para seu aniversário e eles não tinham dado presente para nenhum amigo ou parente nos últimos dias – o que significaria aquilo? Será que ele comprara para um amigo que estava sem crédito? Voltou a olhar a nota: compra à vista.” – Passando camisas (pp. 39-40)

Mas é no conto O Violista, o maior em extensão – praticamente uma novela –, no qual encontramos personagens que só poderiam ter sido concebidos por Milton: começando por Romeu, um violista brasileiro que reside em Portugal, contratado pela Orquestra Nacional do Porto e que se prepara para interpretar a Sinfonia Concertante de Mozart para Violino e Viola, uma das poucas peças que valorizam a viola, um instrumento sempre relegado (os detalhes da comparação entre violino e viola são simplesmente deliciosos). A jovem violinista lituana, Saida Rekasiute (certamente inspirada na esposa de Milton, a violinista Elena Romanov): “alguém com 15 anos e 15 quilos a menos do que ele, e, fundamentalmente, com 15 centímetros a mais de altura”. Sebastián Rivero, um maestro prepotente que ameaça a carreira do violista e, finalmente, a moça brasileira, atendente da pizzaria, com a qual Romeu flerta ao telefone.

“Hindemith, Bartók e Mozart foram dos poucos compositores a voltarem suas luzes para a viola. O primeiro tocava vários instrumentos, dentre eles a viola, os outros dois talvez fossem bons corações que se deixaram levar por violistas pedintes, deprimidos com um repertório de terceira linha. / No dia do primeiro ensaio, Romeu foi apresentado à violinista com quem faria o duo. Ela o deixou instantaneamente irritado. Era jovem, muito jovem, alta e bonita, tinha os cabelos e olhos castanhos dos trópicos, mas a pele muito branca e o sotaque de seu inglês denunciavam a origem mais ao norte. Era báltica, lituana. Romeu não deu grande importância à beleza da moça, mas fixou-se em seus pés. Notou que ela estava de sapato baixo. Concluiu que todo seu esforço, dormindo dias e noites sobre a partitura de Mozart, seria solapado por alguém com 15 anos e 15 quilos a menos do que ele, e, fundamentalmente, com 15 centímetros a mais de altura. Ninguém veria um arredondado, pequeno e feio violista brasileiro. E, pior, ela certamente viria de salto alto no dia do concerto.” – O Violista (p. 108)

Um livro muito recomendado e que demonstra um conhecimento e habilidade para mesclar as referências musicais na trama que só encontro em Haruki Murakami na atualidade. A estreia de Milton Ribeiro na literatura nos deixa ansiosos para conhecer os seu próximos lançamentos.

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Sobre o autor: Milton Ribeiro nasceu e vive em Porto Alegre. É livreiro e jornalista da área cultural. É um melômano apaixonado por Bach, cinéfilo devoto de Bergman, proprietário da Livraria Bamboletras e leitor inveterado. Ministra cursos em Centros Culturais como o StudioClio e o Instituto Ling, além de ser colunista da Mundi | Cultura em Revista. Mantém os blogs Milton Ribeiro e PQP Bach. Também é daltônico como Van Gogh e Uderzo. Músicos amigos dizem que teria ouvido absoluto, uma característica 100% inútil, pois não toca nenhum instrumento.

Onde encontrar o livroClique aqui para comprar Abra e Leia de Milton Ribeiro

Tudo é Rio, de Carla Madeira

Tudo é Rio, de Carla Madeira

Este livro foi lançado pela primeira vez em 2014 por uma pequena editora. Depois, a Record comprou os direitos de publicação, levando Carla a ser a escritora mais lida do Brasil em 2021 logo após Itamar Viera Junior. Neste ínterim, ela lançou mais dois romances – A Natureza da Mordida e Véspera –, mas o carro-chefe, quem é um tremendo sucesso é este Tudo é rio.

Ninguém pode acusar a mineira Carla Madeira de não ser direta. Sim, ela é direta a ponto de assustar. Mas o contrário da sutileza não é necessariamente a grossura. O livro tem força e impacto e estas são indiscutíveis qualidades. E não falo apenas das descrições das cenas de sexo, mas dos vastos sentimentos à flor da pele. Ou seja, sua literatura não têm muita nuance, fala sempre com clareza. A autora não observa o tempo cronológico, fazendo com que o leitor vá lentamente construindo a situação descrita no início do livro. Como chegaram àquilo? As surpresas aguçam nossa curiosidade a cada capítulo. Aliás, estes são muitos e curtos. A narrativa envolve amores, atração sexual crua, relações familiares, amizades, amores e ódio.

Sem grandes spoilers, podemos dizer que o livro conta a história do triângulo amoroso entre uma mulher, seu marido e uma prostituta. Sabemos sobre a formação do casal, da tragédia que lhes ocorre e da barulhenta entrada do terceiro vértice. Todo o clima e as reações das pessoas parecem ser mais “antigas”. Por exemplo, quando a autora fala em ferro de passar – o romance não contextualiza época ou local –, a gente fica pensando “mas já existia isso na época desta história?”. Há suspense, erotismo e a criação de um belo e estranho clima. Há também uma pergunta que fica no ar e que Chico Buarque já fizera na letra de sua canção Almanaque: “Me diz me diz / Me responde por favor / Pra onde vai o meu amor / Quando o amor acaba”. Mas, no final, ficamos sabendo que…

Tudo é rio tem personagens que tomam atitudes extremas e tal fato fez com que muitos leitores rejeitassem o livro. Eles esperavam que a autora problematizasse mais a violência doméstica. Há agressões a mulheres e crianças, além de uma bem escondida pedofilia. Creio que não cabe à autora punir seus personagens ou fazer um ensaio a respeito. Cabe-lhe contar uma história. Mas é fato que a estrutura novelesca transformou um ato criminoso em uma coisa simples. E a frase final “Deus retornou ao lar” não parece uma ironia e sim um perdão. Ademais, o livro é como aqueles filmes de Tarantino onde os caras fazem o que bem entendem e parece que não há lei ou polícia para impedi-los. Nem vizinhos.

A baixa densidade psicológica dos personagens também leva-nos a pensar num romance antiquado. As frases às vezes parecem de auto-ajuda. As atitudes súbitas das pessoas nos remetem às novelas da Globo: a prostituta é linda, irresistível e de enorme persistência; o homem é macho, calado e violento; a mulher é bondosa e ama os animais; sua mãe é a Rainha do Bom Conselho. Ou seja, o sucesso de Carla Madeira é o mesmo de Nora Roberts, Isabel Allende e Gilberto Braga.

Mas jamais devemos esquecer que ele está calcado na sólida tradição literária de folhetins e fábulas onde o Bem vence o Mal, mesmo que haja violência e Brasil.

Carla Madeira: muita trama nos cabelos e na cabeça

Bamboletras recomenda China, Jamaica e Santiago

Bamboletras recomenda China, Jamaica e Santiago

A newsletter desta quarta-feira da Bamboletras.

Olá!

A China é enorme, a Jamaica é bem menor e Santiago é menor ainda. O livro sobre a China fala do regime político lá implantado há algumas décadas. Jamaica… Bem, Jamaica Kincaid é o nome da autora do drama familiar que é nossa segunda recomendação. E Santiago é o Santiago, nosso super premiado e talentoso vizinho aqui da Cidade Baixa. Ensaio, romance e desenho (ou desdenho), tem para todos os gostos!

Excelente semana com boas leituras!

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O Socialismo do Século XXI, de Elias Jabbour e Alberto Gabriele (Boitempo, R$ 67,00, 312 páginas)

Este livro é um meticuloso trabalho teórico e estatístico. A obra analisa a gigante República Popular da China das últimas duas décadas, locomotiva do sistema econômico mundial. Afinal, o que é o socialismo chinês? É possível afirmar que difere do capitalismo tal qual o conhecemos até aqui, embora ainda seja prematuro defini-lo como alternativa consolidada. Com uma postura crítica, os autores não desconsideram a complexidade da China e fogem de preconceitos ideológicos como enquadrar o país como mais um fracasso socialista ou, na via oposta, como um paraíso do comunismo realizado. Oferecem ao leitor uma abordagem materialista, que analisa a peculiaridade das relações de propriedade e das ferramentas de planejamento vigentes no país. Tudo isso para apontar seu papel crucial como alternativa realista.

Agora veja então, de Jamaica Kincaid (Alfaguara, R$ 69,90, 144 páginas, R$ 69,90)

O Sr. Sweet compõe em seu estúdio, enquanto a Sra. Sweet passa o tempo na cozinha escrevendo. Seus filhos correm pela grande casa. Contudo, a perfeita imagem da família tradicional americana é abalada quando o marido deixa a esposa por uma mulher mais jovem. Através dos fluxos de consciência de múltiplos personagens, Jamaica Kincaid mostra as angústias escondidas que muitas vezes estão por trás de uma aparente perfeição. Aparentemente singelo, mas potente, Agora veja então é uma análise ferina sobre as diversas maneiras como o transcorrer dos anos afeta um casamento. Os personagens, em confronto, se desesperam em situações cotidianas, suas mentes tentando entender linearmente uma realidade que, de fato, não é linear. Escrevendo no passado, no presente e no futuro, Kincaid faz da passagem do tempo sua principal ferramenta narrativa.

Caderno de Desdenho, de Santiago (Libretos, R$ 45,00, 140 páginas)

Santiago é um gênio do desenho e do pensamento. E ele apresenta, neste Caderno de Desdenho, o melhor de sua produção dos últimos 30 anos. com desenhos inéditos e outros publicados em revistas e jornais. Dentre 100 premiações em salões nacionais e internacionais. 16 cartuns vencedores selecionados constam desta obra comemorativa. Desdenhando a pompa e a circunstância, com irreverência nata, Santiago é um artista conectado às questões sociais e sempre alerta contra as injustiças e as artimanhas por parte dos poderosos. Afinal, se o rei está nu, alguém precisa registrar o fato com qualidade e excelência.

A Louca da Casa, de Rosa Montero

A Louca da Casa, de Rosa Montero

Eu não sei como este livro veio parar em minhas mãos. Trata-se de uma edição de 2005 da Ediouro e nunca o vi na Bamboletras e nem o comprei. Não lembro se alguém me deu de presente, mas agradeço muitíssimo a quem o tenha feito, pois é excelente.

A louca da casa é uma homenagem à literatura. O título do livro é extraído de Santa Teresa de Jesus, que chamou a imaginação de “a louca da casa”. E é disso que trata o romance-ensaio: de imaginação, de literatura, de processos, de invenção, de criação, do acaso. Montero aproveita todas estas e outras questões do fazer literário para refletir sobre elas e escrever capítulos cheios de referências e citações de outros autores, além de momentos autobiográficos que nem sempre precisam ser verdadeiros, pois como a própria autora aponta no post scriptum, “ toda autobiografia é ficcional e toda ficção autobiográfica, como dizia Barthes”. Por exemplo, há um caso pessoal a que é contado três vezes, mas cujo final é sempre diferente, para alegria do leitor mais, digamos, experimental, meu caso.

O livro está repleto de referências pessoais, muitas quem sabe fictícias, como o romance com o famoso ator ou a existência da irmã Martina. Seu gênero? Bem, é um romance, um ensaio, uma autobiografia. É a obra mais pessoal de Rosa Montero, uma viagem pelos meandros da fantasia, da criação artística e das memórias mais secretas.

A autora revela seu íntimo e sua relação com a escrita num jogo narrativo em que a literatura e vida pessoal se misturam em um coquetel com biografias de outras pessoas e autobiografia ficcional. Descobrimos que o grande Goethe lisonjeava os poderosos a extremos ridículos, que Tolstói era um louco, que Mark Twain talvez tenha morrido na infância — sim, verdade! –, que Montero teve um caso bizarro e hilário com um ator famoso. Mas não devemos confiar em tudo que a autora conta sobre si mesma: as memórias nem sempre são o que parecem.

É um livro delicioso sobre fantasia e sonhos, sobre os medos e dúvidas dos escritores, mas também dos leitores, mas é, antes de tudo, a quentíssima história de amor e salvação que existe entre os escritores e suas possibilidades. Ao final, como disse um resenhista espanhol, dá vontade de pagar Rosa pelo braço e dizer: “Menina, mas que histórias você acabou de me contar!”.

Este livro recebeu o prêmio Qué Leer 2004 para o melhor livro do ano, o Grinzane Cavour 2005 e o Roman Primeur 2006.

“Quando uma mulher escreve um romance protagonizado por uma mulher, todo mundo considera que está falando das mulheres; mas se um homem escreve um romance protagonizado por um homem, todo mundo considera que está falando do gênero humano”.

Rosa Montero, ao afirmar que nunca teve intenção de escrever sobre mulheres

Rosa Montero

Augusto Maurer, sobre Abra e Leia

Augusto Maurer, sobre Abra e Leia

Milton,

terminei ontem, com certo alívio, de ler teu livro. Explico. Da aquisição à conclusão da leitura, foram quase 4 meses. Não pensa, com isto, que foi uma leitura pesada, trabalhosa. Ao contrário: peguei o livro umas 4 vezes, no máximo, lendo vários contos de cada vez, cada desfecho levando a um desejo inadiável de ler o próximo. Qual meu temor ? Simples: que se tratasse apenas de mais um bom livro. É, com certeza, um grande livro! É que, sabendo de teu conhecimento literário enciclopédico, não esperava (apenas temia) que fosse diferente. Pura burrice: quem estreia nas letras depois dos 60, sabe muito bem a que veio.

Não vou, aqui, entrar em detalhes sobre cada conto. São tantas as observações que prefiro deixá-las para algum momento futuro, ao redor de uma boa mesa e levemente embriagado. Tb não vou te parabenizar – e sim agradecer pelo acréscimo de algo que valha a pena ser lido no já tão saturado universo do corpus literis. E tb, é claro, à Elena, pelo fundamental incentivo a saíres do armário ou melhor, neste caso, da gaveta.

Grande abraço,

Augusto

Como falar sobre cinema, de Ann Hornaday

Este livro tem como subtítulo Um guia para apreciar a sétima arte, o qual me parece mais adequado. Aliás, melhor mesmo é o original Talking Pictures: how to watch movies.

De forma didática, bem organizada e compartimentada, Ann Hornaday nos conduz pelos aspectos da produção de um filme – do roteiro e elenco à edição de som – e explica como avaliar cada etapa do processo. Como saber se um filme foi bem escrito, para além da qualidade dos diálogos? O que constitui uma ótima atuação? O que torna uma fotografia, edição e edição de som notáveis? E o que realmente faz um diretor? A autora — que é jornalista e importante crítica de cinema no Washington Post — nos oferece essas respostas e nos mostra como a experiência de assistir a um filme pode ser muito mais rica do que imaginamos. Os itens avaliados são roteiro, atuação, design de produção, fotografia, edição, som e música e direção. Para cada item, a autora dá boas dicas para avaliação, além de outras observações interessantes, tanto de sua lavra como das entrevistas realizadas por ela.

O problema do livro é que quase todo o referencial cinéfilo da autora é norte-americano, principalmente de filmes lançados entre 1990 e 2015 e sei que haveria exemplos até melhores fora daquela filmografia. Pois é, eu sei mais a respeito e prefiro o cinema europeu e boiei em boa parte dos “cânones”. Acho que deveriam ser utilizados apenas clássicos ou Hornaday deveria ter ampliado os exemplos.

Mas o livro tem curiosidades interessantes e observações preciosas sobre o que faz um filme ser bom ou funcionar e valeu a leitura.

Hornaday: por demais estadunidense para este que vos escreve | Foto: Divulgação

Bamboletras recomenda a “autobiografia” de Saramago e mais

Bamboletras recomenda a “autobiografia” de Saramago e mais

A newsletter desta quarta-feira da Bamboletras.

Olá!

Retomamos a nossa newsletter recomendando três excelentes livros para começar 2022. Uma autobiografia de Saramago escrita por José Luís Peixoto — sim, isto mesmo, é um romance baseado na vida de Saramago e Peixoto –, um livro sobre uma pediatra, digamos, pouco adequada a seu ofício e, agora sim, uma biografia de Roland Barthes.

Difícil começar melhor o ano de 2022, o ano de tirar o cara de lá.

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Autobiografia, de José Luís Peixoto (Cia. das Letras, 272 páginas, R$ 69,90)

Neste romance, José Luís Peixoto tem a ousadia de transformar em personagem ninguém menos que José Saramago. Na Lisboa dos anos 1990, o jovem escritor José vê seu caminho se cruzar inúmeras vezes com o de outro autor, Saramago, depois de ser contratado para escrever sua biografia. Seja em feiras de livros ou reuniões com o próprio biografado, esses encontros são o início de uma história surpreendente. José Luís Peixoto, considerado pelo autor de Ensaio sobre a cegueira “uma das revelações mais surpreendentes da literatura portuguesa”, acompanha nesta Autobiografia tanto José quanto Saramago, dois personagens distintos mas complementares. Ao explorar os limites entre a vida e a literatura com uma prosa carregada de detalhes e lirismo, e ao mesmo tempo mergulhar fundo nas obsessões, Peixoto constrói uma narrativa que leva os leitores a um final inesperado.

A Pediatra, de Andréa Del Fuego (Cia. das Letras, 160 páginas, R$ 54,90)

Com humor mordaz, o novo romance de Andréa del Fuego apresenta a história de uma personagem muito peculiar: Cecília, uma pediatra nada afeita a crianças. Cecília é o oposto do que se imagina de uma pediatra – uma mulher sem espírito maternal, pouco apreço por crianças e zero paciência para os pais e mães que as acompanham. Porém a medicina era um caminho natural para ela, que seguiu os passos do pai. Apesar de sua frieza com os pacientes, ela tem um consultório bem-sucedido, mas aos poucos se vê perdendo lugar para um pediatra humanista, que trabalha com doulas, parteiras e acompanha até partos domiciliares. Mesmo a obstetra cesarista com quem Cecília sempre colaborou agora parece preferi-lo. Ela fará, então, um mergulho investigativo na vida das mulheres que seguem o caminho do parto natural e da medicina alternativa, práticas que despreza profundamente. Em paralelo, vive uma relação com um homem casado, de cujo filho ela acompanhou o nascimento como neonatologista. E é esse menino que irá despertar sentimentos nunca antes experimentados pela pediatra.

Roland Barthes: Biografia, de Tiphaine Samoyault (Ed. 34, 616 páginas, R$ 98,00)

Figura central do pensamento francês no século XX, Roland Barthes (1915-1980) foi também um ser à margem. O pai morto na Primeira Guerra Mundial, a mãe adorada durante toda a vida, a descoberta precoce da homossexualidade logo lhe incutiram o sentimento da própria diferença. Viveu à distância os grandes acontecimentos da história contemporânea, mas nem por isso sua vida foi menos marcada pelos ímpetos violentos e intensos do século que ele ajudou a tornar inteligível. Com base em materiais inéditos (arquivos, diários, documentos pessoais), esta biografia de Barthes lança nova luz sobre suas ideias, suas recusas, seus desejos. Percorrendo os temas de eleição do autor — obras, criadores, linguagens, teorias, mitos —, Tiphaine Samoyault confere coerência e substância à figura de Barthes. Homem de sua época, ele segue falando à nossa, seja por sua prontidão perspicaz à aventura intelectual e literária, seja ainda por sua reticência íntima e irônica diante de todo discurso de autoridade.

O Museu Darbot, de Victor Giudice

O Museu Darbot, de Victor Giudice

Este é um livro de 1994 que ganhou o Jabuti do ano seguinte e que recebi de presente do leitor e cliente da Bamboletras Helion Povoa Neto — ele encontrou ecos deste Darbot em meu livro Abra e Leia… Só que eu não conhecia o livro e nem Giudice.

O Museu Darbot está há anos fora de catálogo. Sua editora, a Leviatã… Nem sei se ainda existe. Porém, após a leitura do livro, só posso me sentir lisonjeado, pois o livro de contos de Giudice é excelente!

Victor Giudice foi escritor, crítico, músico e professor que viveu de 1934 até 1997. Talvez Helion tenha visto pontos em comum em duas coisas: (1) o amor e as citações de música erudita e (2) as viradas nas histórias dos contos. O multifacetado Giudice dava aulas sobre música erudita e foi diretor da Sala Cecília Meirelles no Rio de Janeiro, mas também foi um respeitado compositor de sambas que chegou a ser convidado para integrar a ala de compositores da Escola de Samba Unidos de Vila Isabel. E ganhava a vida como bancário.

No mais, trata-se de um escritor altamente sofisticado. O melhor de todos os contos é o que dá título ao livro.  Num livro marcado pela música, este conto fala do mundo das artes plásticas, com seus enganos e enganadores. Também fala de autorias. Os texto é fluido, muito grudento e a verdade vai sendo apresentada em várias camadas que alteram as impressões anteriores. Coisa de mestre mesmo. Cavalos, a original crítica social de Jurisprudência e o censurado pela ditadura O hotel também não são nada esquecíveis.

São nove excelentes contos. Um bem diferente do outro em tema e estilo. Há sátiras e idílios, delírios e lógica, música e pintura, densidade e fluidez, conforme cada conto exige.

Agora, sempre fico triste quando vejo um escritor desta qualidade ser esquecido. Há um site sobre Victor Giudice na internet e pouca coisa mais. Quem fala nele hoje?