As narrativas de denúncia de racismo e violência podem ter o formato que quiserem e puderem ter. Há os que argumentam aos gritos e há os que o fazem com calma e sensibilidade, ambos com razão. Sei, há que ter sangue de barata, mas eu acho muito mais potente o que é dito com voz pausada, sem desviar ou atenuar fato nenhum. Ouço e leio com muito maior profundamente assim. Melhor ainda se for escrito com arte. Tenório é assim. Seus textos não gritam, recebem o trabalho de linguagem adequado ao assunto, não são exaltados e sempre demonstram enorme riqueza de conteúdo. São, na verdade, de um virtuosismo arrebatador. A violência e o preconceito estão lá. E Tenório sabe como contá-los.
O Avesso da Pele nos envolve pela interessante história familiar e nos leva lentamente a uma tragédia. Ignoro o que há de verdade naquilo que é contado, mas sei que Tenório é professor como o pai de O Avesso, que conhece profundamente a falência educacional de nosso país — o que nos põe no fundo do poço como país –, que é negro e que mora na racista Porto Alegre.
Em capítulos curtos, indo e vindo no tempo, o narrador preenche lacunas da história de seus pais. O racismo é o que mais nos choca — ou o que mais me chocou — mas as relações familiares e a dor estão tão presentes quanto o preconceito racial. Elegantemente, como um Paulinho da Viola escritor, Tenório avança por vicinais que sempre acabam na figura paterna. O pai de Pedro, Henrique, foi morto em uma absurda e rotineira abordagem policial em Porto Alegre. É dessas coisas que “têm que acabar”, mas que não acabam nunca. Os negros podem ser abordados como suspeitos e ai dos que não se comportem com absoluto respeito, educação e subserviência. Em caso de insubmissão, a violência física e os tiros à queima-roupa são a regra. Dentro deste arcabouço, Tenório narra fatos sobre Pedro, sua mãe Martha e seu pai Henrique que devem, de alguma forma, ser conhecidos por todos os não brancos de nossa sociedade.
Ao final do livro, Pedro, ao revirar as coisas de seu pai, diz:
Acho que vocês nunca se preocuparam em organizar uma narrativa para mim. Sei que o tempo foi passando e o que foi dito por vocês, antes de minha memória, foi dito em retalhos. Então precisei juntar os pedaços e inventar uma história. (…) Para isso, não me limito ao que vocês me contaram, nem ao que estes objetos me dizem sobre você. Não acho que devemos lidar apenas com a lógica dos fatos. Prefiro uma verdade inventada, capaz de me pôr de pé. Eu sei que esta história pode estar apenas na minha cabeça, mas é ela que me salva.
Um livro autobiográfico? Provavelmente, mas antes de tudo um grande romance que recomendo fortemente.
Tive que parar pra respirar depois dessa declaração de amor à tua filha. Quem te conhece pelo menos um pouco consegue identificar claramente as histórias autobiográficas.
Não desgrudei do livro desde que comecei. Pega a gente imediatamente e é variado, vai pra qualquer direção, escapa do que pode ser cansativo às vezes nos livros de contos, que é ficar tudo meio igual
Dá pra entender porque a editora o quis imediatamente. Meus parabéns, você realmente chegou lá ❤️ .
Quando o Milton me convidou para escrever a orelha, respondi: finalmente esse livro vai sair. Caramba, Milton! Já merecia há anos!
Começa assim o texto que escrevi para a orelha do livro de contos do Milton Ribeiro. Chegou aqui em casa hoje. Todo mundo conhece o Milton. Livreiro dono da Bamboletras, jornalista, blogueiro e desde sempre escritor. Só agora publicado. Tá mais que na hora da gente poder aproveitar esses contos.
Um livro desses. Finalmente vindo a público. E o convite pra escrever a orelha. Tô feliz demais.
Milton Ribeiro, seu livro esta sendo um oásis pra mim. Minha gatinha de estimação sumiu e ler seu livro está me desligando um pouco do problema.
As histórias desse livro são boas demais. Você não tentou arrumar um final feliz. Apenas a vida como ela é. No seu caminhar, sem ter a obrigação de terminar arrumadinha. Nas histórias do livro, os personagens não tem controle sobre nada que irá acontecer em suas vidas, assim como na vida real. E traz esse choque de realidade bem diante dos olhos. Só quero agradecer, obrigada!
Um livro absolutamente hilariante! Thomas Bernhard era um mal-humorado e nem quando era laureado agia com delicadeza. Na verdade, parecia amar sincericídios, o que, se não é doença, é grave falha no trato social. O fato é que Bernhard tinha problemas com prêmios — ele os odiava, mas sempre precisava do dinheiro. Ele adorou quando alguém o chamou de “um pássaro que suja o próprio ninho”. Receber um prêmio de entidades nas quais não acreditava — como o estado austríaco, por exemplo — era para Bernhard pior do que ler uma crítica negativa, o que não raro lhe acontecia. Este livro reúne textos sobre nove prêmios que recebeu, bem como seus discursos inflamados de aceitação para três deles e sua carta de demissão para a Academia de Língua e Poesia de Darmstadt.
Aceitar os prêmios apenas pelo dinheiro, causava-lhe conflitos morais: “Sempre pensei, meu caráter revela uma grande mácula. Eu desprezava aqueles que concediam os prêmios, mas não me recusava seriamente a receber os prêmios em si”. O dinheiro aceito ajudou a pagar a casa onde morou até o fim da vida, um carro (que se espatifou num acidente dias após a compra) e tratamentos de saúde.
O livro não inclui a peça mais violenta de Bernhard contra a Áustria: seu testamento. Ele estipulou que suas peças nunca mais seriam encenadas nem seus livros publicados na Áustria — chamando o testamento de “emigração literária póstuma” — e especificou que mesmo que a Áustria fosse invadida e não fosse mais um Estado-nação, os termos de sua vontade se aplicariam às suas antigas fronteiras.
Acho que Meus prêmios não é um livro para conquistar novos leitores para o prazer peculiar de ler Bernhard. Se eu recomendasse um livro para começar a conhecer este grande autor, sugeriria Extinção, Árvores Abatidas ou O sobrinho de Wittgenstein.
O que torna Bernhard moralmente significativo é que, para todo o ódio que ele lança sobre a sociedade austríaca, reserva uma medida igual para si mesmo. Ele está totalmente ciente de si. Há uma cena em O sobrinho de Wittgenstein em que o filósofo começa a chorar por causa de uma criança que mendiga na rua. Bernhard fica igualmente horrorizado, mas só começa a chorar quando percebe que a criança enganou os dois. Essa clareza de visão tipifica sua sátira. Muito poucos escritores hoje possuem sua integridade satírica e sua humanidade absoluta.
Em Meus prêmios, temos alguns de seus discursos mais mordazes. Em particular, o discurso por ocasião da entrega do Prêmio Nacional Austríaco de Literatura. Ele começa dizendo “Ilustre senhor ministro, ilustres presentes…” e então manda chumbo grosso: “Não há nada a louvar, nada a amaldiçoar, nada a condenar, mas muito há de ridículo; tudo é ridículo quando se pensa na morte”. E depois começa a falar da sociedade austríaca. O “ilustre senhor ministro” sai furioso, quase quebrando uma porta em sua retirada apressada… O que jamais é explicado no livro é que a “tia” que o acompanha invariavelmente é na verdade sua amante, Hedwig Stavianicek, 37 anos mais velha.
A raiva de Bernhard é lendária e ele estava no caminho certo, me parece. Havia algo na Áustria, talvez haja ainda. A desnazificação do país foi lenta, apesar de ser o berço de Hitler. Até hoje a Áustria tem um governo de direita com coalizões com partidos de extrema-direita. O país é rico e uma maravilha do ponto de vista material, mas é um horror e um perigo político. Imagino o que Bernhard escreveria — ele não viveu para ver — sobre o fiasco de Jack Unterweger — um prisioneiro que supostamente “se reformou” por meio da escrita criativa, que era o queridinho dos literatos austríacos e, ao ser solto em 1990, assassinou dez mulheres… Um país assim merece um cronista raivoso.
Sim, todos os três livros recomendados passam pelo Sul. Um ensaio sobre o homem da campanha, um romance de uma argentina falando sobre o interior daquele país e um livro cuja ação ocorre na Europa, mas que foi escrito por um gaúcho, são as três excelentes sugestões da Bamboletras nesta semana. Confiram abaixo.,
Boa semana com boas leituras!
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Esta obra, traduzida para o português a partir de uma tese de doutorado defendida em inglês, tardou trinta anos para vir à tona. A autora fez uma pesquisa de campo por dois anos cujo resultado é uma verdadeira caverna de Ali Babá aberta à visitação e reflexão, tantos são os tesouros que ali reluzem. A riqueza do trabalho etnográfico conduzido na campanha gaúcha sobre os homens da região é notável, sobretudo se pensarmos o quanto envolveu de coragem a aventura de enfrentar e adentrar um mundo masculino de fronteiras rígidas, ciosamente defendidas por seus membros. O livro de Ondina Fachel Leal se deixa ler de modo agradável, envolvente e fluente, descrevendo a vida que ela encontrou na fronteira sul do Brasil, entre o Rio Grande do Sul e o Uruguai pampeanos.
Com sua prosa precisa e econômica, a argentina Selva Almada é uma das vozes mais originais da literatura de língua espanhola contemporânea. Seu universo também é peculiar: a autora não fala da cosmopolita Buenos Aires. Seu ambiente é o mundo interiorano, onde vilarejos quase esquecidos no mapa abundam em histórias em que a violência, os laços familiares e velhos costumes ainda são importantes. É o caso deste novo romance, um livro que trata da amizade e de seus segredos. Enero Rey e Negro levam Tilo, o filho adolescente de Eusébio — o amigo morto dos dois –, para pescar. Enquanto bebem vinho, cozinham, falam e dançam, eles lutam com os fantasmas do passado e do presente. Esse momento íntimo e peculiar que conecta a trajetória desses três homens também os liga à vida dos habitantes locais nesse ambiente cercado de água e regido por suas próprias leis. Há perdas e mortes prematuras. Mas há também a teimosa vitalidade da natureza. Este romance flui como uma conversa entre seres que se amam.
Em uma narrativa tanto introspectiva quanto brutal, Antônio Xerxenesky nos faz encarar os traumas do passado, mas, principalmente, o medo do futuro. Nicolas, um jovem psiquiatra francês, é convidado para trabalhar na Suíça logo após o fim da Segunda Guerra Mundial. Junto da esposa Anna, ele se muda para um pequeno vilarejo, próximo ao hospital psiquiátrico onde vai trabalhar. O lugar, conhecido por seus métodos humanizados de tratamento, recebe internos de toda a Europa. Resistindo a prescrever tratamentos como o eletrochoque, Nicolas conversa com seus pacientes até que algo seja descoberto — tanto no inconsciente do doente quanto no do próprio médico. Assim, diversas feridas de guerra vêm à tona, em um jogo delicado que mistura confiança e loucura. Tendo como pano de fundo o contexto de desenvolvimento das primeiras drogas contra a depressão e outras doenças psíquicas, Antônio Xerxenesky constrói um romance tocante sobre os traumas, o passado e a possibilidade de ser feliz apesar do sofrimento.
A triste operação de encaixotar sua biblioteca na França inspirou uma das obras mais pessoais de Alberto Manguel. Este é daqueles livros deliciosos, para os quais a gente sempre terá um belo lugar em nossa memória. O que ele diz é óbvio para nós, devotos da leitura, e dá até pena de abandoná-lo após a leitura, tantos são os bons motivos e razões que ele apresenta para sermos como somos. O livro nos explica, eleva e é maravilhosamente informativo, além de demonstrar que, bem, não somos loucos.
Alberto Manguel é um daqueles argentinos geniais que não dá para desconhecer, ainda mais que foi amigo de Borges e — como Borges — também diretor da Biblioteca Nacional da Argentina. Encaixotando minha biblioteca (Cia. das Letras, 175 páginas, R$ 44,90) fala sobre a importância dos livros em nossa vida e conta como o autor se preparou para a mudança: ele sairia de sua casa medieval no Loire para morar em um apartamento em Nova York. Sua biblioteca pessoal, com cerca de 35 mil volumes, teria que ser guardada. Nesse momento, em apaixonada elegia, o escritor começa a relembrar sua relação com os livros e com as bibliotecas (públicas e privadas) que já passaram por sua vida. Suas reflexões variam amplamente, indo desde as adoráveis idiossincrasias dos bibliófilos a análises mais profundas de eventos históricos, como o incêndio da antiga Biblioteca de Alexandria.
O livro me causou alguma angústia. Desde que me separei em 2013, não vi mais meus livros. Os 3 mil livros que reuni até aquele ano estão em um guarda-móveis. É certo que nestes 8 anos, outra bela biblioteca começou a se formar e, quando li o livro de Manguel, percebi que havia pelo menos outra pessoa no mundo (snif) que entendia minha dor e angústia de separação. A obra tem o subtítulo “Uma elegia e dez digressões”. Ou seja, há muita coisa além da mudança e alguns trechos ecoaram demais em minha experiência pessoal. Depois de falar sobre a “geografia” de sua biblioteca (como ele organizou seu acervo), ele afirma que seus livros faziam parte de quem ele era e que a biblioteca o explicava. Sua coleção seria uma “espécie de autobiografia em várias camadas” e sua própria memória estaria “menos interessada em mim do que em meus livros”.
Voltando a Milton Ribeiro, digo que, ao entregar minha biblioteca para o guarda-móveis, estive em próximo contato com minha mortalidade. Manguel capta isso à perfeição: “Se toda biblioteca é autobiográfica, sua colocação em caixas numeradas parece uma espécie de obituário”. O livro traz palavras de sabedoria de sua avó: “Com o tempo, você aprende a desfrutar não o que você tem, mas o que você lembra” e, de forma semelhante, Manguel também dá a Dom Quixote — o herói que perdeu sua biblioteca — o crédito por ajudá-lo a compreender melhor a perda: “A perda ajuda você a se lembrar e a perda de uma biblioteca ajuda a lembrar quem você realmente é. A biblioteca segue existindo na mente do leitor na forma de associações e memórias”.
Espero arrumar minha biblioteca em poucos anos. Um livro que certamente estará lá é este Encaixotando minha biblioteca. Será parte de minha coleção e espero que permaneça valioso quando eu não estiver mais por perto.
Encaixotando minha biblioteca, como já disse, talvez seja a mais pessoal de Alberto Manguel. Ela se conclui com sua posse no cargo de seu admirado Jorge Luis Borges, o de diretor da Biblioteca Nacional da Argentina.
Existem leitores — grandes leitores — que não desejam formar bibliotecas e que possuem relativamente poucos livros. Borges, como lembra Manguel, seria o exemplo definitivo. Alguém poderia imaginá-lo rodeado de livros em casa, mas não era o caso. Ele doava quase tudo. Eu admiro tal despojamento, mas o quero para mim. Talvez o leitor mais sábio seja aquele que lê muitos livros (ou, melhor ainda, poucos, mas profundamente) e que não se importa em possuir nenhum, porque sabe que os verdadeiramente importantes foram incorporados ao seu ser. Talvez seja um sinal de fraqueza e até mania de colecionar livros que não necessariamente nos tornarão melhores ou mais inteligentes. Aceito totalmente essa possibilidade. Mas, foda-se, vou seguir armazenando livros.
Porto Alegre domina as sugestões desta semana de clima estranho, que anuncia o Forno Alegre dos próximos meses. Vários dos contos de Milton Ribeiro se passam na cidade e o que dizer do livro sobre o Bar Escaler? De quebra, sugerimos a obra-prima da Laerte.
Abaixo, mais detalhes.
Boa semana com boas leituras!
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Final de semana em Porto Alegre, uma mulher ouve um estranho chegar ao corredor do prédio quase vazio e pedir ajuda, um pedaço de pão que seja. Ainda com a porta fechada, os dois iniciam uma conversa cujas consequências não se pode prever. Trinta anos depois do final de um relacionamento, um homem encontra um bilhete que o coloca diante de uma perspectiva totalmente diferente. Um músico solista sente-se pressionado em meio à falsas gentilezas do maestro e chefe. Marquinhos joga por um time da segunda divisão gaúcha. Em meio a uma partida decisiva, ele precisa escolher se arrisca tudo o que tem de seu. Estas histórias estão entre os 22 contos deste Abra e Leia. Há ironia e intensidade. As referências à música erudita, ao cinema e à literatura cumprem funções que vão além do meramente figurativo. A solidão emerge por toda parte. Sobretudo, os personagens e as situações em que se envolvem são complexos. As surpresas, porém, não se dão por meio de reviravoltas bruscas ou finais surpreendentes. Diferente disso, em vários dos contos deste livro, sem que nos demos conta a princípio, a narrativa nos coloca frente a uma perspectiva inesperada. São histórias que nos tiram do conforto das certezas e abrem um campo de possibilidades. Entrever essas possibilidades, imaginar. Eis o que fica em nós por um tempo que se estende para além da leitura.
Livraço! Nestas mais de 1500 tiras publicadas entre 2004 e 2015 e reunidas pela primeira vez em livro, temos o privilégio de seguir a evolução artística que confirma a alta qualidade da artista Laerte como das mais interessantes nos quadrinhos do mundo. Laerte já tinha mais de três décadas de cartunismo e era uma das profissionais mais festejadas do Brasil quando decidiu reinventar tudo. Por volta de 2004, sua série Piratas do Tietê abandonou os personagens recorrentes e os arremates cômicos para explorar uma mistura de filosofia, metafísica, poesia, poucas certezas e muitas dúvidas. Piratas virou o Manual do Minotauro e entramos, junto a Laerte, no labirinto do ser mitológico. O desenho é o mesmo, exato na economia. O jogo entre nanquim, cor, forma e quadros ainda é referência de design. O texto continua enxuto, preciso. As narrativas é claríssima, muitas vezes muito cômica. E, ao mesmo tempo, a humanidade vibra por baixo da aparente simplicidade. Deixem toda lógica e ordem cotidiana do lado de fora e preparem-se para uma das grandes aventuras do quadrinho contemporâneo.
Poucos lugares simbolizaram tão bem a efervescência dos anos 1980 em Porto Alegre quanto o bairro Bom Fim, principal reduto boêmio e cultural da capital gaúcha nas últimas décadas do século XX. E, no Bom Fim, havia um ponto de convergência – o Escaler, bar fundado em 1982 por um marujo às margens do Parque da Redenção, em meio a jacarandás e sob o brilho da lua. Inscrito na memória afetiva de duas ou três gerações como espaço privilegiado de diversão e arte, o Escaler acumulou milhares de histórias na lembrança e na imaginação dos que por lá aportaram. Já estava na hora de contá-las e revivê-las. É o que faz neste livro o dono do bar, Antônio Carlos Ramos Calheiros, o Toninho do Escaler – antes de tudo, um agitador cultural, que soube direcionar energias plurais sem retirar-lhes a fluidez e a espontaneidade –, em depoimento ao jornalista Paulo César Teixeira, autor de Esquina maldita, Nega Lu – Uma dama de barba malfeita e Rua da Margem – Histórias de Porto Alegre.
Este livro estava no setor de Arte da Bamboletras. Acabo de transferi-lo para o de Biografias. Pois trata-se de uma muito boa e sedutora biografia de um falsário. Han van Meegeren (1889-1947) foi um habilidosíssimo artista plástico holandês que virou as costas ao modernismo. Ele amava e queria criar quadros como os da Idade de Ouro dos grandes mestres holandeses, gente como Vermeer, Rembrandt, Hals, Rubens, Ter Borch, Lievens, De Hooch, Baburen, só para citar os preferidos de van Meegeren. Ao ser desprezado pelos críticos, que queriam obras contemporâneas, ele, que conhecia todos os métodos utilizados pelos pintores seiscentistas, foi picado pela vontade de enganar os especialistas. Tudo começou com uma brincadeira do tipo “vou criar um Vermeer” para se transformar num negócio tão lucrativo que van Meegeren não sabia mais onde enfiar o dinheiro em espécie que recebia. O autor, Frank Wynne, escreve que van Meegeren “tinha talento técnico, mas nada a dizer com sua própria arte”.
Mas o falsário não era um mero copiador de quadros. No início do século XX, a reputação de Vermeer não parava de crescer, mas pouco se sabia da vida do artista e da verdadeira extensão de sua obra. A história, assim como a natureza, tem horror ao vácuo. Apenas 35 de suas obras chegaram a nós e há uma enorme disparidade entre as primeiras obras do mestre e os trabalhos maduros. Faltam as pinturas intermediárias, aquelas que fazem a ligação, unindo a fase inicial e a final. E foi neste vazio que van Meegeren entrou. Ele tratou de encontrar tais quadros, ou melhor, de criá-los. Quem os apresentava eram sempre laranjas, “representantes de uma decaída família holandesa que encontrou um tesouro em seu sótão, olha só”, etc. Vocês podem imaginar o valor que estas descobertas tiveram, não?
E Meegeren comprou propriedades e castelos, até os tubos de calefação tinham notas de dinheiro. Ficou milionário. Mesmo com a qualidade da sua produção decaindo literalmente a olhos vistos, ninguém notava as imposturas. Ele chegou a vender obras para nazistas durante a Segunda Guerra Mundial.
O livro é sensacional. Depois que a guerra acabou, o holandês ficou numa situação difícil e foi preso. Ou tinha realmente vendido quadros para os nazistas (crime gravíssimo), ou confessava a falsificação e se assumia como escroque. Acabou confessando — sua confissão foi comemorada na Holanda em razão dos quadros vendidos serem falsos –, mas daí precisou convencer os próprios críticos, que pouco antes tinham saudado e autenticado com convicção os Vermeers redescobertos, de seus equívocos e de sua incompetência…
Afinal, em 1940, os os especialistas e os jornais chamavam de descoberta sensacional a soberba Ceia em Emaús, obra da fase intermediária de Vermeer que saíra dos pincéis de van Meegeren… Natural, portanto, que a história desse holandês bon-vivant e viciado em morfina tenha virado um problema também para a crítica. O caso van Meegeren desestabilizou a autoridade dos especialistas e que ameaçou o rico mundo dos leilões e dos mercados de arte. O caso é saboroso.
Ao final do livro, sabemos até onde estão os ex-Vermeer e os verdadeiros.
Todo começo de mês vem acompanhado da tradicional lista dos mais vendidos da Livraria Bamboletras! Nela você encontra as escolhas dos clientes de nossa livraria, ou seja, só excelentes livros. Ah, não acredita? Então, confira:
1. Torto Arado, de Itamar Vieira Júnior (Todavia)
2. Duas Formações, Uma História: Das ideias fora do lugar ao perspectivismo ameríndio, de Luís Augusto Fischer (Arquipélago)
3. Os Supridores, de José Falero (Todavia)
4. Cartas para minha avó, de Djamila Ribeiro (Cia. das Letras)
5. O deus das avencas, de Daniel Galera (Cia. das Letras)
6. Doramar ou a Odisseia: Histórias, de Itamar Vieira Júnior (Todavia)
7. Correntes, de Olga Tokarczuk (Todavia)
8. Encaixotando minha biblioteca: Uma elegia e dez digressões, de Alberto Manguel (Cia. das Letras)
9. Vista Chinesa, de Tatiana Salem Levy (Todavia)
10. O Avesso da Pele, de Jeferson Tenório (Cia. das Letras)
Um pouco melhor que outras listas, né? Pois é, nossos clientes são os melhores e isto não é apenas uma frase de efeito.
Um ensaio de Jessé Souza sobre racismo, um romance de Flavio Cafiero sobre uma separação e um livro de poesias de Roberto Bolaño. Vai ser complicado encontrar algo em comum os livros recomendados desta semana, até porque são de diferentes gêneros, comprovando que a Bamboletras é a “Livraria de Todos os Gêneros”…
Vamos lá. Abaixo, mais detalhes.
Boa semana com boas leituras!
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Jessé é autor de mais de 30 obras e de uma centena de artigos e ensaios em vários idiomas. Entre seus ensaios mais lidos estão A elite do atraso e A classe média no espelho. Neste livro, o tema do racismo é reconstruído desde o início da civilização ocidental até nossos dias, de modo a permitir uma compreensão fundamental: a de que todo processo de desumanização e animalização do outro assume as formas intercambiáveis de racismo cultural, de gênero, de classe e de raça. Perceber as diferentes facetas do racismo possibilita ver quando ele assume outras máscaras: guerra contra o crime, como se a vítima não fosse sempre negra, ou luta contra a corrupção, usada contra qualquer governo popular no Brasil que lute pela inclusão de negros e pobres. Apenas uma abordagem multidimensional permite efetivamente perceber como o racismo sempre esteve no comando da iniquidade da sociedade brasileira, da escravidão até hoje.
Estudo contundente do ressentimento amoroso, o romance de Flavio Cafiero fascina e atordoa. Ferido pelo fim da relação com Fabiano, Tato se muda de bairro e vai viver num prédio no centro de São Paulo. Enquanto luta para superar a desilusão, ele trava amizade com vizinhos do edifício. Eles formam uma singular comédia humana. Tato não aceita o fim do relacionamento — e cenas tristes giram em sua memória, fustigando-o tanto quanto a exposição da nova e (aparentemente) luminosa vida de Fabiano nas redes sociais. Numa escrita lancinante, a um só tempo lírica e realista, este livro de ritmo forte deixa clara a perícia do autor.
Importante começar dizendo que este é um livro bilíngue. Ao lado dos poemas traduzidos, há os originais em espanhol. Bem, pela primeira vez no Brasil, os leitores têm acesso à poesia de Roberto Bolaño. A Universidade Desconhecida traz poemas reunidos pelo autor pouco antes de sua morte e oferece um panorama completo e complexo de uma obra encantadora e radical. Roberto Bolaño se tornou um fenômeno mundial graças aos seus romances, em especial 2666 e Os detetives selvagens. No entanto, o autor chileno sempre se viu, em primeiro lugar, como um poeta. Escrevia versos desde cedo, em sua adolescência no México, onde se aliou a outros jovens sem rumo e formou o grupo “infrarrealista”. Aqui estão compilados poemas que ele criou — da juventude à maturidade. Mas só depois de sua morte é que esta coleção veio à público. “Na formação de todo escritor, existe uma universidade desconhecida que guia seus passos”, escreveu. “Ela não tem sede fixa, é uma universidade móvel, mas comum a todos.” A Universidade Desconhecida é muito mais do que o embrião de suas grandes obras. Os poemas aqui não apenas complementam a visão de mundo do autor, mas sobrevivem por conta própria pela sua dicção única, seu senso de melancolia, suas imagens apocalípticas e solidão.
Na minha opinião, é difícil encontrar em toda a literatura algo melhor do que isso. É difícil encontrar melhores e mais transcendentes diálogos. Talvez seja impossível encontrar tanta concisão e tantos significados em prosa teatral.
Eu sou apaixonado pelos contos e novelas de Tchékhov, mas essas peças são muito especiais dentro de sua obra, certamente estão dentre os principais trabalhos do mestre.
Comprei estes dois volumes da Veredas na Estante Virtual e, no mesmo dia em que os recebi, li que a Penguin-Companhia iria lançar essas 4 peças em nova tradução de Rubens Figueiredo, o que é garantia de alta qualidade. O livro está em pré-venda e estará disponível em 23 de setembro. Oh, vida! A tradução da Veredas é satisfatória, mas Figueiredo é um notável tradutor — quem leu sua tradução de Anna Kariênina para a Cia. das Letras sabe disso — e a Penguin costuma acrescentar boas e interessantes introduções a seus livros.
Anton Tchékhov, filho de um pequeno comerciante falido, formou-se em medicina, mas, ainda na faculdade, começou a contribuir para revistas literárias. Escreveu muito durantes seus parcos 44 anos de vida. Entre 1896 e 1904, ano de seu falecimento, escreveu as quatro peças que compõem estes volumes da Veredas e o da Penguin – e que se tornaram clássicos do repertório teatral.
A Gaivota mostra os conflitos de um grupo numa propriedade rural da Rússia no fim do século XIX. Numa tarde de verão, um jovem dramaturgo apresenta uma peça protagonizada por Nina, atriz por quem está apaixonado. As opiniões dos convidados sobre a obra divergem e a mãe do autor, uma importante atriz, desencoraja-o a seguir escrevendo. Logo, Nina decide ir a Moscou atrás de fama e de um célebre romancista.
Tio Vânia é o meu preferido dentre estes textos. Numa propriedade rural, moram o professor aposentado Serebriakov; sua jovem e linda esposa, Helena; a filha do primeiro casamento, Sônia; a mãe da falecida esposa, Maria; e o irmão da falecida, Ivan, conhecido na família como tio Vânia. Serebriakov foi sempre considerado um gênio, um grande literato. Sempre conseguiu que todos o admirassem e fizessem tudo por ele. Entretanto, com o passar dos anos, o gênio revelou-se um engodo. Agora, velho, hipocondríaco e rabugento, só faz chatear e perseguir os familiares que, sem outra saída, suportam-no, principalmente sua esposa Helena. O tio Vânia trabalha como um louco para manter a fazenda e sente-se explorado pelo professor. Também questiona o poder do velho sobre a família. Principalmente, Vânia inveja o casamento do velho, pois, há dez anos, é louco por Helena.
As Três Irmãs conta a história de três mulheres que moram numa cidade do interior da Rússia. Elas acham tediosa a vida na província e sonham em voltar para Moscou, onde haviam passado uma infância feliz. Olga é uma professora solteira que vê os anos passarem e também a oportunidade de casar; Macha, esposa de um professor de liceu, aos poucos percebe a mediocridade do marido; e Irina, a mais nova, é a única que ainda acredita no futuro. Todas idealizam Moscou como a sua única salvação e anseiam voltar para lá. Porém, o projeto é sempre adiado.
O Jardim das Cerejeiras… Bem, vou colocá-lo ao lado de Tio Vânia nas minhas preferências. É a última peça escrita por Tchékhov e conta sobre uma família aristocrata em decadência que resiste em vender o seu jardim de cerejeiras, ao qual atribui valor afetivo, apesar de improdutivo nos últimos tempos. Eles retornam de Paris cheios de ideias disparadas e irrealistas sobre a propriedade. Um velho amigo da família, Lopákhin, cujo pai fora servo da fazenda nos velhos tempos, dá-lhes um banho de realidade e propõe uma saída: o jardim podia ser desmatado e a terra dividida em lotes para veranistas. Imagina!
Se você achou misterioso o nosso título, aqui vai a explicação. Nossa primeira sugestão é um livro da portenha María Gainza, que é uma tremenda escritora e crítica de arte. O segundo é de Céli Pinto, que fala de todas as mulheres, mas com foco nas de Bagé. Já o terceiro, de César Lascano, é um raro livro que gira sobre um time de futebol, o Brasil de Pelotas. E é tudo livro bom! Confira!
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Deve haver alguma coisa na água de Buenos Aires… O que sai de escritor bom de lá! María Gainza é escritora e crítica de arte. Em O nervo óptico, livro de contos, sentimos a fina linha que percorre as histórias, um tênue fio que confunde as delicadas fronteiras entre a arte e a vida, a beleza e o êxtase, as retinas e o mundo. E como é gostoso quando um escritor faz a ligação entre o cotidiano e a arte, entre o banal e o transcendente. A autora nos faz repensar, nestas onze narrativas sagazes que articulam memória e ensaio, as muitas formas de ver uma obra de arte; e, mais do que isso, nos ensina que também somos inadvertidamente vistos pelas imagens, somos atravessados — invadidos por elas. Com perspicácia ensaística, ironia e um lirismo incidental, María Gainza aguça a própria vocação da arte: “escrevemos algo para contar outra coisa”.
Vejam só que boa ideia a da Céli Pinto. Este livro reúne 16 relatos de pessoas comuns, situadas em diferentes lugares da constelação social: donas de casa, escriturárias, professoras, faxineiras, dentistas. Têm em comum a idade superior aos 70 anos, a localidade de Bagé e o sexo feminino. São pessoas invisíveis na cena pública, pessoas sem expressão, a quem é dada a oportunidade de se exprimir. Essas mulheres idosas, que acreditam não terem nada para contar, ficam gratas pelo reconhecimento, falam muito, narram seu passado privilegiando a juventude, os pais e a infância, relegando a um segundo plano maridos e filhos, como se o casamento representasse uma cisão em suas vidas. Vidas anódinas cerceadas de restrições, constrangimentos e sujeições em razão do sexo. Neste exercício de história da vida cotidiana feminina na campanha rio-grandense do início do século XX, Céli Pinto lança um olhar crítico e às vezes enternecido de pesquisadora experiente.
Vocês conhecem as paixões que movem o Brasil de Pelotas, o Xavante? Se não conhecem, digo que é algo como um vendaval daqueles bem fortes, pra derrubar mesmo. Agora imaginem um livro de ficção que traga a voz do torcedor raiz e que misture personagens e histórias reais a invenções sobre o clube de futebol mais carismático do mundo. Sim, do mundo, ou vocês queriam um torcedor raiz equilibrado? Contos Da Arquibancada é o primeiro livro do músico, compositor, escritor e torcedor apaixonado César Lascano. É um livro escrito por quem conhece o cimento e o grito do Bento Freitas. Mais do que isso, Lascano traz doses lirismo e drama à história do clube, vistos a partir de seu ângulo mais autêntico.
A Editora Zouk largou na frente e começou a pré-venda do livro deste que vos escreve. Então, quem quiser garantir seu exemplar autografadinho — já aviso que minha letra é péssima –, basta ir lá no site de Zouk e fazer a compra, mas, sabem, acharia muito mais legal vocês comprarem na Bamboletras ou em alguma das nossas corajosas pequenas livrarias. Porém, agora, antes do lançamento, só tem na editora e na Livraria Bamboletras, OK?
Nesta semana, sugerimos três livros encharcados de Brasil. O primeiro tem o foco em nossa cultura, o segundo no racismo e na pobreza e o terceiro no aniquilamento e destruição que estamos vivendo. Ah, pois é, não fácil, mas há que seguir. E com os pés bem firmes no chão e no conhecimento.
Abaixo, mais detalhes.
Boa semana com boas leituras!
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Dedicado ao tema há quatro décadas, Luís Augusto Fischer oferece um novo jeito de contar a complexa história da literatura brasileira, criando um modelo que dê lugar aos autores contemporâneos, à canção, à tradução, às redes sociais, à voz indígena, ao feminismo, à diferença. Falando das virtudes e limitações dos modelos estabelecidos por nomes exemplares da crítica literária, recorrendo aos historiadores e antropólogos recentes, contando a história dos livros que até hoje tentaram abarcar a trajetória da literatura do Brasil, o autor mostra um caminho. Uma obra fundamental para quem conhece bem o jardim em que floresceram Machado e Rosa, e imperdível para quem quer conhecê-lo melhor.
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Casa de Alvenaria, Volume 1 (Osasco) e Volume 2 (Santana), de Carolina Maria de Jesus (Cia. das Letras, 224 e 512 páginas, R$ 39,90 e R$ 59,90)
Esta é a edição integral dos diários de Carolina Maria de Jesus e contém material inédito. O Volume 1 registra os meses em que a escritora morou em Osasco (SP), em 1960, após deixar a favela do Canindé. Através deste testemunho que borra as fronteiras dos gêneros literários, acompanhamos a recepção de Quarto de Despejo, as viagens de divulgação, o contato frequente com a imprensa e os políticos, o desenvolvimento de seu projeto literário e seu desejo de ser reconhecida como escritora. Dessa narrativa do cotidiano, entremeadas às contradições de seu tempo, emergem reflexões que permanecem atuais. O Volume 2 de Casa de Alvenaria inclui diários que se estendem até dezembro de 1963. Através dele, acompanhamos a nova vida de Carolina, a movimentação em sua casa, as viagens e, sobretudo, a dificuldade de transpor as barreiras do racismo e a dificuldade para ser reconhecida como escritora. O livro inclui introdução de Conceição Evaristo e Vera Eunice de Jesus e pode ser lido independentemente do volume anterior.
Uma coletânea de escritos que retrata a loucura e a tragédia da realidade brasileira, um país deixado em ruínas. Os aliados de Sant’Anna nessa missão são o humor absurdo e um trabalho de linguagem radical — as únicas ferramentas capazes de captar nossa grotesca realidade. No romance O paraíso é bem bacana (2006), vale lembrar, André parece ter dado o pontapé inicial na radicalização de sua linguagem literária — com muitas repetições, gírias, obsessões, ironia — ao contar a história do tímido jogador de futebol Mané, um menino que se explode feito homem-bomba e vai viver as mil e uma maravilhas que o título da obra sugere. Aqui, ele dobra a aposta, convencendo-nos de que somente a catarse gerada por uma comédia absurda, enfatizada por uma linguagem caricata e grotesca, será capaz de expressar o que sentimos em nosso país.
Esta será uma resenha estranha, escrita em formato gonzo. Gonzo é um estilo de texto jornalístico ou cinematográfico no qual o autor abandona qualquer pretensão de objetividade e se mistura com o que é contado.
Pois bem, o romance A Nota Amarela — primeira parte do livro de Czekster — é narrado pela violoncelista Jacqueline du Pré. Trata-se de seus pensamentos durante sua célebre interpretação do Concerto para Violoncelo de Elgar. Claro que tudo o que ela pensa foi criado e (muito) pesquisado por Czekster. Du Pré foi uma grande figura inglesa da música erudita. Linda, cheia de vida, verdadeiramente fulgurante, ela era recém casada com o pianista e regente Daniel Baremboim — até hoje uma figura referencial na área musical. Há um filme de uma interpretação de du Pré para este concerto que foi gravado em 1967 e que serviu de base para boa parte do trabalho. Eu conheço este filme há muitos anos. Acho que o vi pela primeira vez ainda adolescente em alguma TV Educativa e fiquei fascinado. Afinal, uma linda música, tocada com muita emoção por uma bela mulher, o que poderia haver de melhor? O fato é que jamais esqueci dele e tratava de rever o filme a cada reapresentação. Aqui está ele:
Uma vez, nos anos 80, levei uma moça muito bonita, graciosa e radical, pela qual estava me apaixonando, para ver a Ospa tocar este concerto. O programa finalizava com a Sinfonia Nº 9 de Schubert, a Grande. Não é que tenha dado errado, mas… O fato é que fiz enorme propaganda do concerto de Elgar e, no final, ouvi ela dizer que o inglês fora humilhado por Schubert e… Como é que eu tinha dito que detestava autores do século XX que escreviam como se estivessem no XIX se, já de cara, no primeiro concerto em que íamos juntos, eu elogiava um desses “horrores”? E me perguntou ironicamente qual era a obra de Rachmaninov que eu amava. Nenhuma, eu respondi, já perdendo o entusiasmo. Ela gostava da música moderna, divertia-se com Stockhausen, Xenakis, com a Segunda Escola de Viena, etc. Minha história com a moça não interessa, mas ela tinha razão. Costumo não gostar destes autores, contudo há exceções e uma delas é este concerto.
Me deu vontade de bater nela com a enorme batuta de Elgar, mas acabamos passando uns bons seis meses juntos, não obstante meu gosto por aquela “vulgaridade”. Então, desde que soube que Czekster se dedicara a esmiuçar a famosa interpretação de du Pré, fiquei encantado e meio enciumado, porque o Concerto era meu e de Jacqueline e fim!
Mais: como se não bastasse, o livro de Czekster tinha outra característica perturbadora. Eu sou uma pessoa avessa a ler filósofos, não gosto. Também sou totalmente hostil a romances-ensaios como, por exemplo, O homem sem qualidades, de Robert Musil. (OK, estou aqui desfiando perigosamente alguns de meus vários desvios de caráter). Só que amo profundamente um filósofo e ele se chama Michel de Montaigne. A forma com que Montaigne aborda seus temas me deixa inteiramente envolvido. Além de possuir um texto maravilhoso, ele mistura histórias pessoais e observações sobre temas menores, partindo para conclusões que às vezes admite duvidosas. É um escritor glorioso. Para cúmulo, ainda tem muito humor e uma capacidade argumentativa absolutamente anormal. É agradável lê-lo. Ele conversa com o leitor como faz Machado. E Czekster escolheu-o para escrever um ensaio “à moda de”. É muita coisa em comum.
Desta forma, mesmo sem abrir o livro, mesmo observando de longe o volume, eu sabia que ele era para mim.
(Desculpe, Czekster, mas me senti como o personagem de A Vida do Outros, o capitão Gerd Wiesler (Ulrich Mühe) que termina o filme dizendo “É para mim”).
Mas demorei uns dois meses para abrir A Nota Amarela. Olha, gostei demais.
Czekster dividiu a narrativa em 31 capítulos, que é aproximadamente o número de minutos de duração do Concerto. Numerou-os em ordem descendente, sublinhando os minutos faltantes da execução do mesmo — o autor não faz isso de forma arbitrária, tem suas razões. Como disse, o livro é escrito na primeira pessoa do singular e, no ensaio, o autor deixa claro que leu todos os livros e entrevistas disponíveis de du Pré. Eu li muito menos e é claro que as coisas batem. Jamais saberemos o quanto o texto é du Pré, mas eu creio que é muito. Para nossa sorte, Czekster não fala sobre a doença que vitimou a carreira da violoncelista e a própria. A carreira de du Pré foi curta em razão da esclerose múltipla, que a forçou deixar os palcos aos vinte e oito anos de idade. Ela viveu apenas 42 anos.
Em determinado momento, Jacqueline vê, na plateia, uma mulher com um lenço amarelo, e aquilo a perturba. Ela se pergunta o motivo disso, pensando até se em seu guarda-roupa esta cor aparece ou não. Até que ela lembra que seu professor de violoncelo, o grande William Pleeth, presente ao concerto, um dia lhe dissera que os chineses acreditavam que uma nota amarela seria “a partícula de som perfeito que deu origem ao Universo”. Ela seria a nota perfeita, aquela que o músico deveria alcançar ou se aproximar ao máximo. Porém, toda vez que ela sente que a tal supernota está iminente, sobrevém-lhe enorme angústia e medo.
Escrever sobre os pensamentos de um artista conhecido durante a execução de um concerto é um enorme desafio, uma verdadeira proeza. A coisa poderia ficar realmente chata com constantes referências a ensaios, acelerações, desacelerações, dificuldades técnicas, relação com o palco, olhares do maestro, erros, etc., mas Gustavo mostra-se realmente criativo e não nos entrega — para usar uma expressão da moda — mesmice. O livro é feérico e Jacqueline está dentro de um drama que envolve angústia, dores, digressões, autocrítica, crítica e até certo descolamento daquilo que está fazendo.
E o ensaio sobre a escrita é brilhante, belíssimo. E também quase um thriller. A questão pessoal — penso que real — confessada pelo autor “a la Montaigne” é absolutamente grave e angustiante. Daquelas coisas de fazer a gente engolir o livro.
Em 2014, antes de uma reunião de trabalho, a arquiteta Júlia, responsável por uma das obras da Olimpíadas de 2016, foi correr até a Vista Chinesa, que é um mirante em estilo chinês localizado no bairro do Alto da Boa Vista, Rio de Janeiro. O mirante está localizado na Floresta da Tijuca. Os seis quilômetros que ela percorreria em 40 min foram interrompidos por um homem armado que a levou para a floresta a fim de cometer um estupro.
Trata-se de um romance, pois o texto de Tatiana Salem Levy utiliza-se do variado instrumental romanesco, mas Vista Chinesa narra um caso verdadeiro. É óbvio que não é uma leitura fácil, mas também não é a bigorna que poderia ser. Não pensem que a autora desvia-se dos detalhes do estupro. Não, ela descreve claramente a violência sofrida e suas consequências. Descreve os sentimentos da abusada em todo o seu horror, mesmo durante a agressão. Porém, em capítulos curtos e habilmente escritos, desorganiza o tempo cronológico, mostrando a vida de Júlia antes e depois do estupro, a ruptura, o que era a vida antes e o que será depois, assim como o doloroso processo de reconhecimento do estuprador.
É um livro corajoso, resultado de entrevistas feitas pela autora com “Júlia”, cujo nome real aparece no final do livro. As vítimas de estupro — compreensivelmente — não gostam de falar nem de lembrar do fato. Aliás, as pessoas também não amam ouvir a respeito. A forma encontrada por Levy foi a de escrever seu livro como se fosse uma carta de Júlia para seus dois filhos, nascidos após o crime. O formato é engenhoso, porque permite um tom muito sutil, ao mesmo tempo brando e extraordinariamente franco, o que deixa o romance ainda mais impactante.
Nossas sugestões para esta semana gelada são quentes. Ah… Duvida? Pensa que é só uma má frase de efeito? Pois então veja só.
Sugerimos a bela edição de todos os contos de Cortázar e um clássico da literatura brasileira, a obra-prima Crônica da Casa Assassinada. De quebra, uma surpresa: o livro Camaradas, de Jodi Dean. Quem o leu voltou elogiando muito.
Abaixo, mais detalhes.
E cuide-se com o frio. Além dos cuidados com a Covid, agasalhe-se. E, se puder, doe aquele capotão velho e fora de uso porque as ruas estão cheias de sem-teto.
Boa semana com boas leituras!
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Precisamos mesmo descrever este tesouro? Pela primeira vez no Brasil, são publicados todos os contos de Cortázar, reunidos em dois volumes de capa dura, numa caixa com projeto gráfico especial. A verdadeira revolução de Cortázar, sabemos, está nos seus contos e histórias curtas. Mas não se trata de uma reedição de todos os livros de contos do escritor, mas de novas traduções feitas por Heloisa Jahn e Josely Vianna Baptista. (Cá pra nós, aqueles velhos livros da Civilização Brasileira às vezes tinham traduções de cortar os pulsos, né?). Então gente, Bestiário, Todos os fogos o fogo, As armas secretas, Octaedro, Fim do jogo, Histórias de cronópios e de famas, todos os livros fundamentais de Cortázar estão aqui e mais. A edição conta ainda com os dois célebres ensaios do autor argentino sobre a escrita de contos, Alguns aspectos do conto, de 1963, e Do conto breve e seus arredores, de 1969, além de um estudo do crítico argentino Jaime Alazraki sobre o Cortázar contista.
Este livro é um clássico absoluto da literatura brasileira. Publicado pela primeira vez em 1959, Crônica da casa assassinada conta a história da decadência de uma família tradicional mineira: cada geração se vê mais pobre que a anterior, dilapidando o patrimônio para sobreviver. Os Meneses, porém, continuam sendo respeitados na pequena comunidade onde vivem. A Chácara, a grande casa que gera orgulho mas que também aprisiona, é vista com reverência e desconfiança por todos que conhecem o clã. A história dos Meneses é contada através de diferentes narradores, que se enfrentam e se contradizem, mas que constroem com maestria um retrato profundo da vida familiar. A chegada de Nina — jovem carioca que se muda após se casar com Valdo, um dos irmãos — vai abalar a relação difícil entre eles. É uma história densa, não linear, cheia de ciúmes, rancores e perversões. Como dissemos, é narrado por várias vozes, incluindo membros da família Meneses e habitantes de Vila Velha, cidade onde vivem. Não devemos acreditar em tudo o que lemos ali. Fantasmagórico e envolvente, Crônica da casa assassinada surpreendeu em 1959, por trazer temas pouco comuns à época, como a homossexualidade e as relações incestuosas.
No século XX, milhões de pessoas se dirigiram umas às outras como “camarada”. Hoje, em círculos de esquerda é mais comum ouvir falar em “aliados”. Neste livro, Jodi Dean insiste no fato de que essa mudança exemplifica o problema fundamental da esquerda contemporânea: a sobreposição da identidade política a uma relação de pertencimento político que precisa ser construída, sustentada e defendida. Neste ensaio com recortes e análises bastante originais, Dean nos oferece uma teoria da camaradagem. Camaradas são pessoas que se encontram de um mesmo lado de uma luta política. Unindo-se voluntariamente por justiça, sua relação é caracterizada por disciplina, coragem e entusiasmo. Analisando o igualitarismo da figura do camarada à luz das diferenças de raça e gênero, Dean recorre a um leque de exemplos históricos e literários. Eis um livro curto que articula história, psicanálise e filosofia num texto prazeroso de ler como ensaio de interesse geral.
Quem não sabe quem foi Caim, o que matou Abel e que foi uma espécie de anti-herói bíblico? É dele que trata este romance de Saramago.
Bem, podemos facilmente dividir a obra de Prêmio Nobel José Saramago (1922-2010) entre os livros sérios e os divertimentos. Caim está decididamente entre os divertimentos. Narrativa leve, constantemente cômica e fluida, é uma road novel a pé e em jumento pelo Velho Testamento. Talvez melhor fosse chamar o romance de picaresco, “diz-se picaresco dos romances e das peças de teatro cujo herói é um aventureiro ou um vadio que vai de um lugar a outro, sem destino determinado”. O surpreendente capítulo final — que não será contado aqui — dá uma inesperada grandeza à sucessão de boas piadas contidas no romance.
Como fez em O Evangelho segundo Jesus Cristo, aqui Saramago retoma a Bíblia como base e o faz com graça e inteligência extremas. O livro começa com a história com Adão e Eva no paraíso. Após os eventos que levam à expulsão deles, Caim nasce, cresce, mata o irmão Abel e logra convencer deus de ser Ele o culpado pelo fato de ver e não interferir. Admitindo em parte sua culpa, deus poupa Caim mas dá-lhe uma punição: ele será um errante. E aqui inicia-se o que chamei de road novel: as andanças de Caim pelas histórias do Velho Testamento: Lilith, Jó, Abraão, Noé, etc. O efeito muitas vezes é cômico, mas há um compromisso complexo e indignado além da paródia. Profundas questões morais alternam-se com fatos rotineiros.
Caim chama a atenção da bela e casada (e rica) Lilith e se torna o amante dela. Mas, é dispensado após fazer-lhe um filho e decide seguir pelo mundo. A falta de contentamento parece ser um castigo divino. Errante, sobre um burrinho, Caim começa a viajar por diferentes tempos e lugares.
Em seu caminhar, Caim passa pelas histórias mais conhecidas (só the best of) do Velho Testamento. Saltando no tempo, pois há estradas que apresentam “presentes diferentes”, Saramago dedica um olhar mais do que debochado a cada uma delas. E todas elas possuem um elemento comum além da presença de Caim: um deus mau ou pior do que isso, um deus que parece desejar apenas punir ou vingar-se de sua criação — Caim, Abraão, Jó… — ou que se compraz com limpezas étnicas (expressão minha) — Sodoma e Gomorra, o episódio da arca de Noé…
Com humor corrosivo e paradoxal leveza, Caim não é leitura indicada para carolas ou quetais. Ou é, pois os católicos costumam ignorar o Velho Testamento. Um livro que redime Caim e acusa deus de ser o autor intelectual dos crimes mais hediondos deveria talvez irritar mais os judeus do que os católicos? Não sei e, para dizer a verdade, nem me interessa. O que me importa é a alta diversão proporcionada por Saramago neste romance despretensioso e de final arrebatador.
Entre seus episódios, Saramago vai filtrando heresias como a ideia de que, se antes deus aparecia aos homens, agora ele deixou de fazê-lo pela vergonha gerada por algumas de suas tristes atitudes ou, numa frase do português com destino ao Citador: “A história dos homens é a história de seus desacordos com deus, nem ele nos entende nem nós o entendemos.”
Caim é, enfim, o personagem que Saramago encontrou para levar ao extremo sua ideia de que onde há movimento também há inconformismo e, portanto, uma história que valha a pena contar. E além de revisar o Antigo Testamento, este romance analisa aquela outra fonte de nossa tradição cultural que é a Odisseia. Como Ulisses, Caim também muitas vezes esconde seu nome verdadeiro e se propõe a viver seu destino errático, não sem esconder um ás na manga.