2666, de Roberto Bolaño (3ª Parte – La parte de Fate)

Na terceira parte de 2666, abandonamos o professor Oscar Amalfitano em sua descida aos infernos da psicose para seguirmos o repórter novaiorquino Oscar Fate. Fate trabalha numa revista voltada para a população negra do Harlem. Sua mãe acaba de falecer e Oscar deve providenciar seu enterro em Detroit, depois ele vai entrevistar um ex-Pantera Negra e, quando pensa em retornar, recebe a missão de ir à Santa Teresa, uma cidade mexicana fictícia na fronteira com os Estados Unidos, a fim de fazer a cobertura de uma luta de boxe, esporte sobre o qual pouco sabe. Lá, fica curioso a respeito de outro assunto: as centenas de mulheres que ão assassinadas e que no mais das vezes aparecem mortas no deserto.

As cenas de Detroit são efetivamente esplêndidas, tanto com o ex-Pantera Negra como com um comunista americano que ainda mantém sua célula ativa. A parte mexicana do capítulo funciona mais como um portal para apresentação da cidade de Santa Teresa, seus crimes e misoginia. Enviado para cobrir uma luta de boxe, Bolaño nos enreda com a cultura local. Há drogas, submundo, alguma bizarria e há o machismo, o machismo, o machismo. Enfim, é o mundo do boxe. Nesta parte, a prosa começa a pender para o noir, com uma galeria de personagens que parecem ser culpadas de algo – mas como saberemos? – , à exceção de Rosa Amalfitano, filha do Oscar da segunda parte, e de Guadalupe Roncal, a amedrontada repórter que foi escalada para investigar e escrever sobre as mortes das mulheres.

É muito estranho como uma certa irrealidade tomou conta de mim durante a leitura. O que fará Fate? Qual é o motivo de seu sobrenome? O que ele faz lá? Por que ele não se decide a nada e deixa ser levado até que as circunstâncias o engulam ou não? Então, acontece que nós é que nos tornamos os detetives de verdade, tentando captar no mar de detalhes que nos é oferecido o atordoamento de Fate e seu, bem, destino. Bobagem sublinhar que nunca há uma resposta clara, pois no jogo de Bolaño, só não nos decepcionamos com o texto. O resto mais parece um quebra-cabeças de milhões de peças no qual uma peça não tem nada a ver com a outra.

Sigo a leitura ainda mais entusiasmado.

Preciosos linques matinais

Arte: o que dizer desta maravilha do Hupper? Achei aqui. É a papinha de Edvard Munch. Devia gritar muito.

Literatura: um blog só de entrevistas de Bolaño? Pois é. Espero que sejam postadas as entrevistas que há no YouTube e as realizadas com seus amigos a respeito do homem que foi Bolaño. Há coisas muito legais cercando o chileno. O blog é do Lucas de Sena Lima e do Daniel Fernandes Vilela.

Futebol: o Luís Felipe dos Santos chega à conclusão de que é um perfeito idiota. Nós também.

Domingo banal

Ele odiava os finais de tarde de domingo. Não havia pior hora. A semana era suportável em sua rotina de trabalho, cansaço e sono; o sábado era o dia de fazer as compras da semana, de jantar com a mãe e de ir ao cinema; porém aquele horário dominical de completo ócio, em que sentia possuir forças além da necessidade, era terrível. Sentado na sala, pôs um CD e começou a organizar mentalmente a agenda da semana. Sua angústia crescia ao notar os compromissos avolumando-se. Havia os imediatos e os outros, piores, que costumeiramente eram deixados para depois. Procurava organizar-se. Ergueu-se e, deixando o volume da música mais alto, foi ao armário de remédios procurar um calmante. Pegou o comprimido e abriu a geladeira para servir-se de água. Viu um garrafão de vinho pela metade. Largou o comprimido sobre o esmalte branco da geladeira, apanhou o garrafão, um funil e, cuidadosa e amorosamente, passou a dividir o conteúdo do garrafão em garrafas menores. Deixou os três frascos iguais exatamente no mesmo nível e procurou rolhas. Enfileirou o resultado na porta da geladeira, desligou a música e ligou a TV.

Machado de Assis e Cees Nooteboom

O grande escritor holandês Cees Nooteboom — eterno candidato ao Nobel que estará na próxima Flip — é um viajante. Não, não no sentido de ser um cara desligado da realidade, é um viajante mesmo, desses que vão de um país a outro sem parar. Então, ele resolveu escrever o livro Tumbas, onde revela sua busca por 82 túmulos de escritores e filósofos em todos os continentes. Dentre os 82 estava, é claro, o de Machado de Assis.

Então Nooteboom (seu nome diz-se “seis notebom”) chegou ao cemitério de São João Batista em Botafogo. Estava acompanhado de sua esposa e do diretor do Instituto Goethe do Rio. Queria encontrar o túmulo de Machado de Assis. Dirigiu-se à administração. O atendente disse-lhe que daquele jeito não ia dar, precisava do primeiro nome.

— Sem o primeiro nome do presunto não dá — invento eu.

Cees e sua mulher não lembravam do primeiro nome e voltaram à carga.

— Mas o senhor não conhece o grande escritor Machado de Assis, o maior do Brasil? Ele está enterrado aqui!

— Sei não… — fantasio novamente o homem do cemitério.

Demorou, mas acabaram encontrando. Assim começa o mais novo livro de Nooteboom. Depois, a mulher do autor, fotógrafa, registrou o túmulo. Céus, é mínimo, é um quase nada! Sou quase indiferente aos cemitérios, mas, cá para nós, Machado merecia um túmulo à altura. Ironia, recebeu o túmulo que receberia o Conselheiro Aires. Algo para ser esquecido.

Um dia, meu amigo Dario Bestetti disse uma frase inesquecível:

— Milton, o lugar correto de se guardar os vinhos é na memória.

Dario, acho que tua frase servirá também para o maior escritor brasileiro. O local onde estão guardadas as sobras (evito a palavra “restos”, por demais respeitosa num contexto de descaso) de Machado de Assis — que mereceria estar no centro de uma praça cheia de loucos, adúlteros, jovens inseguros, empregados do governo e senhoras concupiscentes, todos passeando sob seu irônico busto, talvez de cabeça baixa, com um leve sorriso nos lábios — é uma bosta.

Dostoiévski ou Tolstói?

Ontem, um comentarista, que se identificou apenas como Pedro, me provocou com esta pergunta clássica. Começo respondendo que não acho lógica uma comparação entre seres humanos e romancistas tão diferentes entre si — seja nas posturas, seja nas vivências de cada um — , ao mesmo tempo que sei que nada é mais lógico do que comparar dois contemporâneos importantíssimos, como hoje fazemos com Saramago e Lobo Antunes, por exemplo. Outra mania que desejo evitar é o elogio de um para desvalorizar o outro. Este gênero de mau elogio fica melhor em jornais de província. Eu posso gostar de Drummond e João Cabral e, se elogiar este, não estarei menoscabando aquele. Talvez as pessoas gostem de comparar os dois russos pelo amor de ambos aos grandes painéis. Seus romances eram tudo: psicológicos, sociais, filosóficos, picarescos, metafísicos (no caso de Dostô) e tão grandes que empurraram as fronteiras dos gêneros para poderem se acomodar dentro delas.

Gosto de ambos por motivos muito diferentes. Tolstói talvez seja o maior de todos os narradores clássicos — por que não recebeu o Nobel se faleceu em 1910, hein? Seus romances são perfeitos, têm ritmo, excelente prosa, envolvem. Se o tivesse de comparar com alguém, seria com Turguênev ou com certa parte da obra de Tchékhov. A Morte de Ivan Illich não seria uma antecipação de Thomas Mann? Em minha opinião, sua grande obra é Anna Kariênina, além dos contos e novelas. Guerra e Paz é uma obra-prima, mas aquele epílogo semi-ensaístico é um saco, atrapalha todo o livro. Porém, enquanto Tolstói chegava ao ápice da forma clássica, Dostoiévki já sinalizava que aquilo estava ultrapassado.

Sim, notem a diferença fundamental de foco narrativo utilizado pelo dois canônicos russos. Tolstói era o típico narrador onisciente que, apesar de detalhista, não era capaz de abandonar sua posição aristocrática, o senso comum de sua época e o certo e errado da concepção cristã do mundo. Já Dostô, quando comparado a Tolstói, parece um alucinado. O narrador de Dostoiévski localizava-se sob a pele dos personagens, saltando de um para outro, deixando-se reger de tal forma por suas lógicas (ou loucuras) que fazia sumir o narrador-julgador. Não se sabe muito bem quem representa Dostoiévski em seus livros. Ele é cada personagem e o livro parece andar por si.

Tolstói tinha razão ao chamar os romances de Dostoiévski de mal-acabados. O acabamento era fundamental para clássicos como ele e Mann. E Tolstói não tinha razão ao chamar os romances de Dostoiévski de mal-acabados, pois livros como Crime e Castigo e O Idiota são sôfregos, nervosos e tão viscerais que, sob o filtro de Tolstói, se transformariam em outra coisa. Quem pensa em acabamento quando quer descobrir quem matou o velho Fiódor? E quem criticaria o acabamento absolutamente impecável da Parábola do Grande Inquisidor — apenas para me referir a dois temas de Os Irmãos Karamázov? Ora, Dostoiévski não estava preocupado com o acabamento porque as regras vigentes da beleza literária o atrapalhavam; porém, quando precisou, fez uso delas brilhantemente. Na verdade, uma das últimas preocupações que temos ao ler Dostoiévski é com o acabamento. Os personagens de Tolstói sofrem com dignidade, os de Dostô berram e se escabelam. Não obstante, o horror metafísico que cresce de O Idiota não fica nada a dever ao de Ivan Illich, até pelo contrário.

Enquanto Guerra e Paz é um panorama, Os Irmãos Karamázov aponta para o fim de uma era, como Dostô já fizera em Os Demônios. Tolstói é um burguês, Dostô pensa num apocalipse. Céus, são muito diferentes. E muito bons.

Os ípsilons de Bolaño

Anteontem, estava lendo 2666 (terceira parte: La parte de Fate), de Roberto Bolaño. Na página 332 o personagem Fate chega a seu quarto de hotel para dormir. Liga a TV. A princípio, Fate fica deitado e vê um desses programas de humilhação de gente gorda, tão comuns na TV inglesa. Marido e mulher batem boca, um deles arranjou uma amante. A(o) amante intervém. Fate dorme.

O notável é que Bolaño segue impavidamente descrevendo o que passa na TV. É inusitado e é maravilhoso para a narrativa. Não tenho grandes pretensões de entender o que Bolaño quis exatamente exprimir, se é que quis. Fico com a opinião de Isak Dinensen (Karen Blixen), que defendia não ser fundamental entender tudo aquilo que os escritos poéticos — pois é poesia o que faz Bolaño com sua TV — podem ou devem significar. Depois, cansado da TV, Bolaño passa a acompanhar um sonho de Fate que, de forma enviesada, tem a ver com a narrativa. É como se a narrativa estivesse subindo, evoluindo, e repentinamente se abrisse num Y. E o Y logo é abandonado, pois Bolãno já está envolvido com outra história. Nós também.

Este insistente uso da fratura, a capacidade que Bolaño tem de sempre nos interessar por outra e mais outra narrativa é a maior característica de 2666 e Os Detetives Selvagens. É uma voz que parece saída de um sonho, sedutora e ao mesmo tempo desinteressada.

José Mindlin para as novas gerações iletradas

Por Fernando Monteiro – Enviado a mim pelo autor através de e-mail
Publicado no hoje no Substantivo Plural

No momento em que tantos estão a escrever (?) tantas “generalidades” sobre o realmente admirável José Mindlin, eu gostaria de relatar uma historinha (real) a respeito de um livro.

Um dos mais raros livros que já passaram pela mesa do meu amigo Stefan Geyerhahn, sebista que… Não, esse nome precisa, antes de mais nada, ser trocado pelo de “antiquário de livros”, que melhor se adapta ao perfil de grande livreiro especialista em obras raras e antigas (título dignamente conquistado por Geyerhahn, um dos donos da Livraria Kosmos — “sebo” que ajudou a civilizar o Brasil).

Muito bem. Vamos à historinha: estava eu, numa tarde paulista, em conversa com o Stefan na sua sala da Avenida São Luís, quando lhe anunciam que um estrangeiro, um europeu, de posse de uma obra que parece realmente rara (na avaliação inicial que era feita lá no salão da livraria, antes de alguma oferta vir para o exame especializado de Geyerhahn), tinha vindo oferecer uma obra que parecia “interessante”…

Diante do caso, eu me propus a sair, porém Stefan pediu que eu ficasse, com a generosa alegação de que, quem sabe, pudesse eu ajudá-lo a analisar a obra (pobre de mim!, um simples colecionador de pequenas raridades)…

O homem entra. É taciturno e de poucas palavras — num inglês precário. Stefan domina várias línguas, e logo estão se entendendo no francês que, um dia, já foi a língua culta do mundo.

A certa altura, o meu amigo sócio da Kosmos pede permissão ao estranho, e me passa o livro — um pequeno opúsculo do século XVII — que eu pego com infinitos cuidados, apesar de estar razoavelmente bem conservado. Sinceramente, não me lembro mais do título rebuscado (à maneira seiscentista) da raridade bibliográfica, mas conservo a lembrança da explicação do livreiro, que me esclareceu:

— “É a obra de um viajante no Brasil de meados dos 1600. Uma edição sueca, da qual eu só tinha visto, até agora, o exemplar que se encontra na Biblioteca Nacional de Estocolmo. É rara, raríssima, e esse senhor está pedindo um preço até bem razoável ( apesar de, para mim, ser um valor estratosférico, pelo que eu havia entendido da conversa deles em francês). Bem, é um livro que tem exatamente o perfil dos que interessam ao José Mindlin. Vou telefonar para ele.”

Stefan vai, e liga para o bibliófilo. É imediatamente atendido. E explica do que se trata.

Ouvindo o telefonema, percebo que Mindlin se surpreendeu, do outro lado do fio, com a aparição de tal obra em oferta no mercado, e, mais ainda, com o preço que (segundo, mais tarde, me explicou o Stefan), ele, Mindlin, considerou “muito barato”…

E aí? Você pára a leitura deste “post”, neste momento, e aposta: o que aconteceu? O livro era da área de absoluto interesse do velho Mindlin. Dizia respeito ao Brasil dos 1600, estava bem conservado e era “raro, raríssimo” – além de “muito barato”.

Ou, conforme Stefan Geyerhahn colocou, ao telefone com Mindlin:

“Dr. Mindlin, o senhor está sendo a primeira pessoa para a qual estou ligando, porque acho dificílimo que apareça outro exemplar desta obra sueca…”

Bem, o bibliófilo José Mindlin NÃO adquiriu o livro.

Não porque o livro não o interessasse, pelo contrário.

Nem porque não tivesse o dinheiro (piada!). Ou porque o livro estivesse em péssimas condições, etc. (porque Mindlin mandaria restaurá-lo de imediato, sem medir despesas) etc.

???

Resposta do enigma:

José Mindlin não comprou a raríssima obra — segundo explicou a um surpreso Stefan Geyerhahn — porque ele “jamais adquiria um livro que não pudesse ler”… E ele “não lia em sueco — infelizmente”. De onde se conclui que todos, literalmente TODOS os livros da vastíssima biblioteca do bibliófilo — por ele doada à USP — haviam sido LIDOS por Mindlin, um a um, nas muitas línguas que ele conhecia. E o sueco não estava entre elas (“infelizmente” etc etc)!

Esse foi José Mindlin — ó geração de iletrados que estão por aí. Fica o exemplo para “vosmecês”, big brothers do Oiapoque ao Chuí…

Papéis Reencontrados

O dia 24 era um domingo e, no dia seguinte, 25 de setembro de 2006, minha filha completaria doze anos. No mesmo dia 25, o mundo musical comemoraria os cem anos de nascimento de Dmitri Shostakovich. Lá pelas tantas, naquele domingo em acontecimentos, resolvi olhar os e-mails. Havia um do escritor Fernando Monteiro.

Era um poema, uma litania que Fernando escrevera e dedicara a mim — seu geograficamente longínquo amigo — e a Bárbara. Fiquei honradíssimo com a dedicatória, li o poema para minha companheira de dedicatória e aquela Litania nos cem anos de Shostakovich acabou publicada em alguns jornais. Lembro que planejei fazer referências a estas publicações, mas nunca as fiz.

Hoje, ao procurar uns papéis, encontrei a Litania grampeada a outros dois papéis: um da imagem de uma página de 23 de fevereiro de 2007 do caderno “Anexo – Idéias” do jornal A Notícia de Joinville, onde a Litania tinha sido publicada, e outro, um e-mail de Fernando, explicando-me que as alusões “venezianas” do poema — detritos, crianças, gradis, febre, scirocco –, eram uma homenagem a Mahler que, para ele, é o que Shostakovich é para mim.

Fernando, digo-te que meu coração musicalmente promíscuo também coloca Mahler antes do amado Shostakovich…

No final, antes de escrever este post, examinei demorada e amorosamente a primeira folha, a da litania sozinha, onde há a linda e enorme letra infantil de minha filha. Bem sobre o B.R., ela escreveu Bárbara Ribeiro.

Litania nos cem anos de Shostakovich

Fernando Monteiro

Para M.R. e B.R.

O torso de beleza afastando-se
Como se afasta um afogado
Das margens da praia
Também recuada para trás
De onde o Mediterrâneo
Vinha beijar os pés das sílfides,
Debaixo do sol silencioso.

Abandonados pelas crianças,
Os brinquedos da marina
Zunem de calor no metal
Aquecido como as águas.

O planeta está mais quente
E mais enlouquecido
Entre os pios nublados
Do pássaro escondido
Em árvores molhadas
Da chuva ácida que se filtra
De um céu de tempestade.

Aviões caíram nesta manhã,
Levando passageiros
Para o fundo de uma laguna
E o nenhum lugar da selva
Remota que irá retomar
Seu espaço sobre azulejos
Encardidos e embalagens
Não-degradáveis
Num mundo que prefere o desastre.

Tudo o prenuncia, de certa forma,
E nada está perdoado
Nem foi esquecido
Com todas as coisas que já foram
E com aquelas que ainda serão
Ou que apenas dormem na tarde
À espera dos anos sem emoção.

Os humanos repousam
No sono da sombra de toldos
Estalando na Veneza insalubre
Deste lado do Atlântico
De exímios nadadores
que não viram as crianças
Se afogando.

Sim, eu prefiro estar
Por apanhar um resfriado
Antes da peste
No limite da cerca-viva
De mato e detritos do lixo
Avançando até o antigo gradil
De gladíolos brancos.

É minha a opção de não manter
A saúde, fumar e perder esperança
Na vigilância sem objeto,
Exposto ao vento da tarde,
Ao siroco da mente
Igualmente desistindo
Das perguntas a ninguém
Muito depois de Pã
Anunciado como morto
Antes da morte dos mares.

Então, não importa molhar
Os sapatos da espuma de solfejos
Rumorejando as queixas do Adriático
Como outrora o mar dos gregos
Deixava leve gosto de salgado
Entre os artelhos limpos
De náiades banhando-se
Nos oceanos mitológicos
Que hoje são de plástico
Cor de chumbo.

Haydn para blefadores

A série de livros de “Manual do Blefador” (Ediouro) dá dicas a pessoas que não querem passar vergonha entre entendidos. Há vários desses livrinhos: sobre música, vinhos, literatura, arte moderna, filosofia, teatro, etc. Eles são ótimos, engraçadíssimos, como demonstra este verbete sobre Haydn:

Haydn.

O pai da sinfonia. Ao contrário do normal, ninguém soube quem foi sua mãe. Haydn decidiu que as sinfonias deviam ter princípio, meio e fim, primeiros movimentos nas sonatas, nas missas e nos trios. Beethoven, em seu estilo grosseiro, desconsiderou e estragou esse belo modelo convencional.

O sentimento geral é de que Haydn podia ser tão bom quanto Mozart se não tivesse sido tão incuravelmente feliz durante a vida. Esse espírito de contentamento insinuou-se por toda sua música e diluiu-se. As últimas sinfonias foram compostas em Londres para ganhar dinheiro vivo, e a sombra do contrato que pairava sobre ele acrescentou-lhe aquela pitadinha de desgraça que tanto lhe faltara antes. Talvez somente um homem verdadeiramente sem coração poderia ter composto algo tão assombrosamente feliz quanto o final da Sinfonia Nº 88.

Existem muitas e muitas sinfonias que praticamente não são tocadas e que você pode considerar suas favoritas, mas o excelente comentário sobre Haydn é afirmar que o melhor de suas músicas foram as missas — e não haverá necessidade de falar sobre isso.

Peter Gammond — Manual do Blefador: Música

O caso do blog "Não gosto de plágio"

O excelente e combativo Não gosto de plágio foi processado por ter acusado… mais um plágio. Há um gênero de trapaça pouco conhecida e muito, mas muito sacana. É o plagiador (ou copiador) de traduções alheias. Imaginem que o plagiador, normalmente o próprio editor ou um funcionário, faz a tradução de uma obra de, digamos, Philip Roth; porém, em vez de traduzir a obra, pega uma edição portuguesa, dá uma “tropicalizada” e manda bala.

Denise Bottmann foi processada por denunciar uma tradução suspeita. Trata-se de uma tradutora  profissional que apenas deseja manter o espaço que é dos tradutores autênticos, daqueles que suam para compreender e mimetizar um autor. Minha mulher faz traduções do italiano e já me mostrou livros que continham 10 erros — de todo gênero — por página. Erros incríveis, que talvez fossem herança de um mau tradutor de primeira mão. O que Denise apontou afeta muito a mim: uma versão da editora Landmark para Persuasão, de Jane Austen…

Neste post, Denise nos dá detalhes sobre o que seria um indiscutível crime. O tradutor é o Sr. Fábio Cyrino, um dos proprietários da Landmark; sua versão do clássico apresentaria grandes semelhanças com a tradução portuguesa de Isabel Sequeira, publicada pelas edições Europa-América em 1996. Ao que tudo indica seria mais um caso de editor que rouba mercado de trabalho de quem sabe traduzir — e cobra adequadamente por isto. A Landmark costuma editar principalmente obras sobre maçonaria, mas também gosta de ornamentar seu marasmático catálogo com coisa mais divertidas e inteligentes como A volta do parafuso e O morro dos ventos uivantes. Espero que James e Brontë estejam tranquilos em seus túmulos. Tenho pena de Jane Austen, que deve estar louca por um chá de camomila, preocupada com o destino de nossa heroína Anne Elliot.

Como vocês sabem, tenho alguma vivência nestas coisas de processos contra a blogosfera. Já digo que não vai dar em nada e peço a quem concordar comigo que dê o devido destaque ao caso. Também sugiro à Denise que publique ipsis litteris a inicial em seu blog. Afinal, o juiz declarou o processo como público — contra a posição do advogado do Sr. Cyrino — e penso que as pessoas ainda podem amparar-se em pressupostos morais como este: quem processa outrem deve estar pronto para sustentar e defender os motivos alegados em qualquer lugar e ocasião.

P.S. — A blogueira Raquel Sallaberry, do Jane Austen em Português, também está sendo processada pela editora.

P.P.S. — Sabem o que o Sr. Cyrino pediu? A retirada imediata do blog, além de uma indenização de 400 salários mínimos por calúnia e difamação. 400 mínimos? Retirada do blog do ar? O pior é que Denise vai perder tempo, gastar uma grana em advogado, etc. Tudo para nada.

Últimos livros lidos

O tradutor americano deu o nome de In Concert Performance para este Em Ritmo de Concerto de Nikolai Dejnióv. Lendo o livro, vê-se que o americano saiu-se muito melhor. O inventivo e amalucado livro deste escritor e físico russo é mesmo aparentado a uma enorme improvisação. Vagamente inspirado no realismo mágico, o romance conta a história de Lucário, um anjo que volta à terra ao apaixonar-se por Ana, o que o impedirá de seguir seu caminho em direção à purificação total. Claro, nada de terrivelmente original, mas o livro é delicioso, anticlerical e anti-stalinista. Ah, por falar em Stálin, ele quase foi assassinado por Lúkin – o Lucário em terra. Quase.

Eu queria gostar deste livro emprestado por uma querida amiga, mas não foi possível. O Duelo de Batman contra a MTV, além de um título apelativo, é uma série de poemas de Sérgio Capparelli baseados na relação entre um pai e um filho. A estrutura é interessante, são cinco seções: na primeira o pai fala ao filho, depois temos o filho sozinho, seguido pelo que diz o filho ao pai e pelo solo do pai, terminando com uma espécie de homenagem aos que os antecederam. Sem dúvida, uma boa idéia, não fosse o fato dos poemas mostrarem-se muitas vezes fora do foco do livro, como se tivessem sido primeiro escritos para depois entrarem à fórceps na estrutura inventada. O leitor tem que ter muito boa vontade para entender que aquela voz é a do pai ou a do filho, pois elas são muito parecidas. Há raros momentos em que são mostradas as diferenças e pontos em comum entre pai e filho assim como as dificuldades ou não de comunicação entre eles. Não há profundidade nem drama sincero. Um pasmo: a mãe, que se bem me lembro morreu durante o parto do filho, não parece ser uma falta muito importante para nenhum dos dois. O filho não é um mamífero.

Os Novos, romance de Luiz Vilela, foi comprado num balaio da Feira do Livro do ano passado. O exemplar que levei já tinha até tomado banho, suas folhas têm aquelas ondas que denunciam muita água. Deve ter custado uns R$ 2,00, mas pela diversão vale muito mais. Pode-se dizer que a história dos amigos candidatos a escritores é datada, pode-se garantir que é obra de um Vilela iniciante, pode-se reclamar que os caras não param de beber cerveja, mas, por favor, os diálogos são maravilhosos, vivos, humanos. E aqui há, de forma muito intensa, o conflito entre gerações que faltou no livrinho aí de cima. Outro pasmo: por que o livro não foi censurado se os caras cagam sobre os milicos? Ora, certamente porque nenhum censor deu importância a um livro editado pela obscuríssima e carioca “Edições Gernasa” em 1971… Agora, é um mistério como ele, depois de tanta água, foi chegar a mim num balaio da Feira do Livro de 2006.

Uma escola para a vida (The finishing school), de Muriel Spark

Eu sou um cara que costumo andar sempre com um livro na mão, no bolso, na bolsa ou na pasta. Qualquer oportunidade, saco do livro e leio onde estiver. Porém, achei tão ridícula a tradução do título deste romance de Muriel Spark que tinha certo constrangimento de lê-lo em público. E a capa é um horror. Parece um troço militar… Mas o livro é de uma das autoras com as quais mais me divirto. Memento Mori, A Primavera da Srta. Jean Brodie, O Banquete e Realidade e Sonhos não mudaram minha vida, mas me deixaram muito feliz de lê-los, principalmente a Srta. Brodie. Finishing School é um gênero de escola particular muito comum na Europa. É onde os alunos recém saídos do colegial fazem um hiato e tem aulas de idiomas, cultura geral, cultura artística, boas maneiras, leem os livros sem os quais não se pode viver…, etc. É neste ambiente que Muriel Spark desenvolve o tal Uma escola para a vida (2004). A Finishing School em questão chama-se Sunrise e é itinerante. A cada ano aluga um local paradisíaco diferente e lá dá suas aulas. Os donos são jovens — Nina Parker e seu marido Rowland Mahler têm menos de 30 anos. Ela cuida da parte burocrática da instituição e ele leciona redação criativa, uma das matérias mais concorridas do colégio. Nos intervalos, Rowland tenta escrever seu primeiro romance. Paralelamente, um de seus alunos — Chris Wiley, de apenas 17 anos — , também está escrevendo o seu. Só que enquanto o texto do rapaz avança, Rowland entra em crise de criatividade; sim, logo ele, o professor de “redação criativa”. Se Chris alimenta-se da crise e da inveja de Rowland; Rowland deseja todo o mal àquele desgraçado que parece não padecer de nenhuma dificuldade com seu livro.

Sim, é um belo plot e Muriel Spark (1918-2006), que escreveu a novela aos 86 anos, não perde a elegância nem a segurança. Não seu melhor texto, mas ainda assim fica muitíssimos furos acima da média. E, por favor, a octogenária escritora não merecia este título de auto-ajuda… Nada a ver! Eximo o tradutor, que fez excelente trabalho, mas o editor merece a nota zero sem perdão. Faltou-lhe uma finishing school, sem dúvida!

Sem Rumo, de Cyro Martins

Cyro Martins (1908-1995) é uma instituição gaúcha. Foi importante escritor e talvez médico ainda maior. Sem Rumo (1937) é o primeiro livro da chamada Trilogia do Gaúcho a Pé, que é completada por Porteira Fechada (1944) e Estrada Nova (1954). Li detidamente Porteira Fechada no ano passado. Na verdade, digitei o romance por inteiro a fim de fosse convertido para o Braille, pois é de leitura obrigatória para o vestibular da UFRGS. Fiquei entusiasmado e pensei em ler toda a trilogia, essa desconhecida.

O primeiro volume é decepcionante: achei Sem Rumo quase ilegível, tal o número de antigas expressões gauchescas utilizadas. E olha que, apesar de urbano, sou gaúcho e costumo entender com facilidade tudo o que me cai em mãos, mas as expressões fronteiriças de Cyro acabaram por me incomodar. OK, a história é boa, Cyro tem uma dimensão social inencontrável em Erico, por exemplo, mas penso que ele exagerou a mão em seu romance de 30. Suas primeiras páginas são quase impenetráveis e não são exageradas as 233 notas explicativas que o “tradutor” coloca ao longo das 140 páginas. Chiru é um projeto daquilo que seria o grande João Guedes no segundo romance da trilogia. Indicado apenas para estudiosos da região fronteiriça do início do século e para nascidos em Quaraí.

P.S. — Ah, a edição da CORAG, comemorativa dos cem anos de nascimento do escritor, é uma joia. Os livros — comprei toda a trilogia por quase nada — são belíssimos.

Estive em Lisboa e lembrei de você, de Luiz Ruffato

Excelente novelinha bipartite de Luiz Ruffato. Serginho (Sérgio de Souza Sampaio) vive em Catagueses uma vida simples de cerveja, trabalho mal remunerado e fofocas. Repentinamente, acaba sendo obrigado a casar com Noemi por causa de uma gravidez, tem problemas financeiros e pensa resolvê-los emigrando para Portugal. Lá, enriqueceria.

A primeira parte da novela trata das idas e vindas de Serginho até decidir-se pela viagem; a segunda é a experiência portuguesa. Ruffato é excelente escritor e conta a história “sobrando”. Não é um livro alegre. Ver o personagem passar de cidadão de segunda classe em Catagueses para a terceira classe portuguesa não é das coisas mais motivadoras que tenho lido, mas a graça e a fluidez do autor deixam tudo mais leve, escapando dos excessos de verossimilhança e das teses sociológicas. A ingenuidade do personagem e a estranheza com o falar português são muito bem mostrados. É um bom livrinho de 83 páginas. Vale a leitura.

García Márquez e Fidel na última Bravo

A última Bravo! traz uma grande matéria de capa a respeito de um tema muito importante: “O Escritor e o Ditador — O Fascínio dos Intelectuais por Líderes Autoritários”. A matéria é centrada na relação Gabriel García Márquez com Fidel Castro. A amizade é não muito considerada e sim o fascínio, a obediência, o apoio incondicional. Está correto. Depois, o artigo avança na direção de outras relações de fascínio — o de Jorge Amado por Stálin, o de Ezra Pound por Mussolini e Mussolini , o de Camilo José Cela por Francisco Franco. Todos verdadeiramente escreveram odes a seus musos, algumas bastante constrangedoras. O autor do artigo, André Lahóz, procura manter um equilíbrio entre os políticos de direita e de esquerda, mas acho que perdeu uma bela oportunidade de falar no Brasil quando tocou levemente no tema da questão moral da complexa relação entre governantes e intelectuais. Também, coitado, Lahóz é editor-chefe da Exame…

Em nosso país de compadres, parece ser difícil falar nos escritores que buscam e buscaram cargos junto a governos ditatoriais. Mais importante do que o fascínio ou apoio que escritores destacados dão isolada e publicamente, talvez fosse analisar o mar de intelectuais que trabalham e trabalharam silenciosa e vergonhosamente para esses governos. No Brasil, meus caros, a coisa é disseminada até hoje. Eu mesmo conheço um importante escritor gaúcho que arranjou uma boquinha com a Yeda e, olhando mais para trás, quem não sabe que o ministro Gustavo Capanema tinha em seu time de assessores gente célebre e trabalhadora como Carlos Drummond de Andrade, Mário de Andrade, Cândido Portinari, Manuel Bandeira, Heitor Villa-Lobos e Vinícius de Morais, entre outros? Ora, isso ocorre até hoje, é só prometer um cargo que nossos intelectuais aceitam ou dobram-se com a maior facilidade. Sim, poucos morrem em revoluções no Brasil… Por isso, acho absolutamente sem sentido o final do artigo no qual Lahóz declara que, hoje, passados os dias dos seguidores de Marx e Lênin, abençoadamente substituídos pelo seguidores de John Stuart Mill e Alexis de Tocqueville — repito aqui o ato falho de Lahóz ao citar o Karl Marx da primeira dupla (a dos esquecidos) apenas pelo sobrenome, enquanto que a segunda (a dos triunfantes) pelo nome completo, como se fosse necessário esclarecer quem fossem esses “famosos faróis” — , então,como dizia, passados os dias do seguidores de Marx e Lênin, hoje seria complicado para Hugo Chavéz, Evo Morales ou Kirschner (?) laçarem escritores que os bajulem e legitimem (mas ele acha mesmo que GGM legitimou Castro?). O final foi 100% Veja. Viva o Admirável Mundo Neoliberal!

Mas vale a leitura.

Logo após o artigo de Lahóz, há outro de Sérgio Rodrigues. Este faz uma excelente resenha sobre o livro Gabriel García Márquez: Uma Vida, notável investimento de 17 anos do inglês Gerald Martin, a ser lançado no Brasil em março. A biografia, apesar de autorizada, não contorna fatos embaraçosos — dentre os quais Omar Torrijos e Andrés Pastrana seriam os maiores, em minha opinião… — que foram descritos pelo inglês, segundo Sérgio, com compreensiva economia de adjetivos. Porém Sérgio também comete um pecado crasso.

(Certa vez, li um longo ensaio sobre a história do maxixe. Lá pela metade, o autor escrevia en passant que Pixinguinha era o maior compositor brasileiro de todos os tempos. A curta afirmativa parecia prescindir de quaisquer argumentos, pois era matéria transcorrida em julgado, assim como dizer que a água molha… Ora, sugeri educadamente ao autor que retirasse aquela frase que forçava uma verdade não tão clara assim. Houve concordância.)

A historinha acima adequa-se a Sérgio Rodrigues quando ele dá a entender que o conceito ou a ideia de “esquerda”, na política, está morto. Sem maiores explicações, ele decide que GGM tem uma atuação pública de esquerda que “sobreviveu à própria ideia de esquerda” (as aspas são minhas). Ora, este é um falso truísmo (Def.: Verdade trivial, tão evidente que não é necessário ser enunciada). Agora mesmo, a fim de ver se a matéria já tinha transcorrido em julgada, consultei teses contemporâneas de Ciências Políticas e vi que a validade de tais conceitos é efetivamente debatida, só que a maioria das teses, mesmo as de direita, reafirma que são conceitos válidos e mais, sugerem que dizer isso é uma espécie de vezo da direita mais truculenta.

Não sei exatamente o que Lahóz e Rodrigues escreveram. Ás vezes vem um editor e altera o texto, sei disso. Mas penso que a ideologia da Veja está pegando fundo em toda a Editora Abril. Ou a ideologia da Abril pegou na Veja, deu lucro e agora está sendo repassada, sei lá.

A Mulher do Tenente Francês, de John Fowles (resenha e reconstrução, um show!)

Na Inglaterra, este romance de 1969 possui status de clássico. Quando foi passado para o cinema, recebeu roteiro do respeitadíssimo dramaturgo Harold Pinter (1930-2008), Nobel de Literatura de 2005, e que tem dentre suas maiores influências Samuel Beckett e Frank Kafka. Já John Fowles (1926-2005), o autor do romance, escreveu poucos livros mas tem obra consistente e é até popular.

A Mulher do Tenente Francês é excelente. A história é contada a partir de um curioso foco narrativo: o autor, longínquo, examina os atos de seus personagens vitorianos a partir do instrumental em uso nos anos 60, quando o livro foi escrito. Tal instrumental é basicamente freudiano, marxista e gramsciano. Não, não, nada de discursos políticos. Só observações aqui e ali. Ao estilo de Machado de Assis, o autor às vezes conversa conosco, realizando uma bem-humorada interface entre a ação e o leitor. Costuma também brincar com o fato de estar “perdendo o controle” sobre os personagens e, lá pela página 100, explica que está alterando o planejamento inicial do romance por causa dos personagens, que decidiram outra coisa. Para completar, dá ao leitor a chance de escolher entre três finais distintos. É delicioso investimento ler estas 484 páginas.

Considerando-se a estrutura narrativa, não é de estranhar que Harold Pinter tenha sido convidado para escrever o roteiro cinematográfico. Para alegria da Caminhante (just a private joke), o filme de Karel Reisz, com Meryl Streep e Jeremy Irons, é um fiasco quando comparado com o livro. Ela, a Caminhante, acaba de marcar 2 x 0.

Mas tergiverso. No último domingo, procurando algo inteligente na Internet — ainda que zonzo pelo calor insuportável – , encontrei uma divertida série de Digested Classics no Guardian. Então armei uma espécie de jogo. Tenho certa vergonha de contar, mas vamos lá: copiei o texto no Open Office e escrevi minha versão por cima. Não fiz alterações substanciais, mas mexi num monte de detalhes. O tom destes “clássicos recontados” é mais do que jocoso, é decididamente uma profanação e, como meus sete leitores sabem, profanação das especialidades que mais aprecio.

Arriscaria dizer que ri muito do resultado. E, OK, vou dar a fonte por uma questão de honestidade. Por favor, não cliquem nela!

Observando a baía de Lyme, em 1867, podemos notar um casal muito bem vestido caminhando pela praia, se é que podemos chamar de praia aquela bela paisagem cheia de penhascos que acabavam no mar da Cornualha. Estavam tão à vontade longe de casa que não podemos chegar a outra conclusão que não seja a de que estavam noivos ou eram casados. E então ambos viram uma mulher toda de preto olhando o mar.

– Eu espero que você não tenha falado sobre as ideias tolas do Sr. Darwin novamente — criticou Ernestina. – Você sabe que papai não suporta a ideia de ser descendente de um macaco.

Monotemático, certamente Charles falara em novamente em Darwin, assim como hoje falamos sobre o aquecimento global ou as próximas eleições quando temos pouco assunto com nossos sogros. No entanto, a realidade é que Charles não tem nenhum direito a escolher seus temas de conversação, pois ele é uma construção da minha, apenas existe em minha mente, por isso, agora, quero que ele se fixe na mulher de preto que corre perigo na posição em que está.

– Quem é aquela? – , pergunta ele.

– Chamam-na de A Mulher do Tenente Francês – responde Ernestina. – Ela se apaixonou por um capitão náufrago que a abandonou. Ela caiu em desgraça e agora é empregada da Sra. Poulteney.

– Eu não desejaria saber nada dela nem desta história horrível, mas não creio que ela esteja segura naquela ponta. Pode cair e há pedras lá embaixo.

Charles dirigiu-se à mulher de preto e pediu-lhe que saísse daquele local perigoso, mas o olhar triste, frio e profundo que recebeu de volta avisava-lhe para se afastar.

Mas como este é o meu livro, vamos deixar esta cena introdutória e fazer algumas observações sarcásticas sobre ambos os personagens e seus valores vitorianos. Charles Smithson, podemos concluir, é um homem comum, ainda que nobre. Com uma renda que o libera da necessidade de trabalhar, ele é uma alma perdida de 32 anos, com ideias tão avançadas quanto pode ter um homem que deixa-se torturar pelas lembranças de suas ligações com prostitutas.

Sua noiva, Dona Ernestina Freeman, é o que agora nos anos 1960 chamamos de pequeno-burguesa. Seu pai ganha dinheiro no comércio. Ora, o comércio! Ele é o dono de algumas lojas de departamentos em Londres. Coisa estranha, enriqueceu trabalhando. Sua filha, apesar da baixa extração, pode, portanto, casar com Charles, de maior categoria, mas com menos grana. Está tudo perfeito. São dignos um do outro. O único inconveniente é que Ernestina é, como dizemos agora em 2010, uma cabeça oca ou uma loira burra.

Já Sarah Woodruff, ou A Vagabunda do Tenente Francês, como alguns de Lyme Regis a descreveriam… Bem, falemos dela depois. Há também a Sra. Poulteney, uma viúva que tomou Miss Woodruff para si, a fim de protegê-la das maledicências e assim aumentar suas chances de entrar no reino dos céus.

E depois há Sam e Mary. Como o amor dos empregados era mais alegre! E era mesmo. Livres das contorções românticas de seus chefes, Sam e Mary são personagens encantadores. A chefe de Mary é Ernestina e Sam é mordono de Charles. É um contraste bem útil para o romancista, que pode assim, criar uma superfetação de metáforas.

Mudemos o cenário. Muitas páginas depois, estamos em Undercliff, um mundo pré-histórico onde o desocupado Charles procura um fóssil – coisa de vitorianos confusos, apaixonados por Darwin, imaginem! E lá encontra Sarah Woodruff.

– Miss Woodruff –, diz ele.

– Senhor Smithson – , responde ela.

– Eu me preocupo com sua saúde.

– Minha saúde não significa nada.

Nossa! Após alguns minutos de conversa, ela diz que sua situação com o Tenente Francês desaparecido é o que a define como ser humano. Ela é aquilo. Se tivesse nascido 100 anos depois, Charles poderia ter reconhecido isto como uma expressão da angústia existencial sartreana. Porém, vejam como são as coisas, o que ele sentiu foi um desconcertante inchaço nas calças. Então, beijou-a na pálpebra.

Miss Woodruff olhou para toddos os lados.

Se formos vistos juntos, serei expulsa da casa da Sra. Poulteney.

Mais um discurso sobre a ciência vitoriana e hipocrisia religiosa? Mais encontros entre Charles e Sarah até que alguém os veja e cumpra-se a necessidade freudiana de ser expulsa da casa da Sra. Poulteney?

No entanto, damos mais um salto e vamos agora para Exeter, onde Sarah está hospedada no hotel Endicott. Charles vai até ela e aqui tenho um dilema, pois preciso manter o artifício que os meus personagens têm vidas próprias e que não sei como a história termina. Ousadamente, então, abandono-os.

Agora Charles nega a si mesmo a noite com Sarah e retorna a Ernestina, com quem viverá feliz para sempre pelos próximos 173 anos. Mas eu não quero fazer isso. Portanto, faremos com que ele retorne ao hotel, onde dou de cara com Charles desabado sobre o corpo nu de Sarah após 17 segundos de cópula intensa.

– Meu Deus, mas você virgem. Então, o tenente francês não…

– Na verdade não, mas eu precisava do mundo para imaginar que eu tinha para mim, para explorar minha vergonha e solidão.

Se Charles tivesse lido algum livro de psicologia moderna, ele teria concluído que Sarah estava precisando de uma terapia urgente. Mas como isso era 1867, ele simplesmente falou: “Eu te amo”.

Tudo se complica quando o mundo descobre a traição. Sam não entrega uma carta de Charles a Sarah e o mal-começado romance é subitamente extinto. Ela, Sarah, some. Charles é instado a terminar seu noivado, cai em ostracismo light e dorme com prostitutas enquanto cria mais mil metáforas em sua busca por Sarah.

Se eu soubesse que me obrigaria a escrever mais de 100 páginas, poderia ter ficado com o primeiro final. Mas não. Vou deixá-los com mais dois. Afinal, quero dormir com Meryl Streep novamente.

Ele a reencontra dois anos depois, vivendo como modelo de Dante Gabriel Rossetti. Aqui, um choque, pois Dante Gabriel Rossetti é um dos pintores preferidos de minha ex e, portanto, é um idiota. Criador de um grupelho que seus fãs gostam de chamar de pré-rafaelitas, mas que se chama Pre-Raphaelite Brotherhood ou Irmandade pré-rafaelita, é autor de pinturas, poemas e de conceitos que alardeavam a arte pela arte. Seu poema mais importante diz uma imbecilidade digna das maiores carolices “.pps”:

O pior momento para o ateu é quando ele realmente está agradecido e não tem ninguém para agradecer.

Você não precisa se preocupar com isso, Dante, eu organizaria uma festa. Mas voltemos. Ele a reencontra dois anos depois, vivendo como modelo de Dante Gabriel Rossetti.

– Eu não posso me casar com você. Ainda quero estar sozinha. Mas nós temos uma filha — diz Sarah.

Ou.

– Eu vou casar com você, mas será apenas platônico.

Você provavelmente vai escolher o segundo final. Eu fico com o primeiro, em que há sexo casual e variado. De qualquer maneira, Charles e Sarah acabaram pós-modernos.

Entrevista com Ingo Schulze

Edney Silvestre é um cara esperto. Tentou conduzir as primeiras respostas, mas como Ingo Schulze não foi pelo caminho sugerido, tirou o time e acabou fazendo uma boa entrevista. Ninguém vai acreditar, mas para mim foi uma surpresa ver a participação ativa de meu grande amigo Marcelo Backes na coisa. O final da entrevista… Só na Alemanha, Ingo!

Tchékhov – 150 anos

Na última sexta-feira, 29 de janeiro, comemorou-se os 150 anos de nascimento de Anton Pavlovich Tchékhov. Eu sabia da data, mas talvez a morte de J. D. Salinger tenha me atrapalhado e deixei-a passar em branco. Hoje, seus biógrafos sempre citam a viagem à Sacalina como o verdadeiro divisor de águas entre o Tchékhov leve e o pesado, o brincalhão e o sério e — por que não dizer? — o sadio e o doente. O que faz uma pessoa de saúde não muito boa sair de Moscou a 21 de abril, atravessar toda a Sibéria até o mar do Japão, para chegar a Aleksandrovsk (na ilha de Sacalina) somente no dia 11 de julho? Estes quase três meses de viagem quase acabaram com a saúde do escritor. Apesar disso, ficou cinco meses na ilha de Sacalina, entrevistando 10.000 pessoas entre moradores e detentos — explico: Sacalina servia, assim como regiões da Sibéria, como local de desterro para criminosos, comuns ou “políticos”. Dentre estes, havia um grande amigo seu, Vladimir Korolenko. Voltou por Vladivostok e ainda foi ao Sri Lanka, no sul da Índia. A 8 de Dezembro regressou a Moscou. Sim, este ano, li uma biografia de Tchékhov e as datas já não fechavam muito bem. As versões para sua morte também não fecham. A esposa contou assim; o médico, assado; até Raymond Carver escreveu sua versão. Em comum, apenas o fato do escritor agonizante ter pedido uma champanhe.

Suas origens são humildes, o pai era um servo que conseguiu comprar a liberdade. Nasceu pobre e morreu rico, principalmente em função das peças teatrais. Foi uma pessoa extraordinariamente ativa e solidária. Era médico — exerceu a profissão por uma década — , escreveu imensa obra, desenvolveu campanhas de prevenção à disseminação do cólera, financiou pessoalmente a construção de escolas em aldeias, não gostava muito de intelectuais passadistas (apesar de admirar Tolstói) e ensinou a como escrever um conto através de técnicas até hoje repassadas pelas “oficinas literárias”. Tudo isso em apenas 44 anos, quando morreu de tuberculose.

No ano passado, revi A Gaivota e não vou resistir a copiar a bela capa da última edição brasileira, com o escritor ao centro e sua mulher Olga Knipper à direita.

Em 2004, escrevi o texto a seguir em homenagem aos 100 anos de morte de Tchékhov:

Quando era menor, meu filho Bernardo às vezes perguntava: “Pai, qual é o teu escritor preferido?”. Minha resposta era que meu escritor preferido eram uns 100 caras. Quando ele insistia citava algo por volta de 10. Quem? Acho que Cervantes, Dostoiévski, Balzac, Kafka, George Eliot, Machado, Döblin, Stendhal, Virginia Woolf, Sterne, Thomas Mann, Tchekhov, mais ou menos isto. Mas, se meu inquisidor fosse implacabilíssimo como Fernando Monteiro em suas listas (vocês deveriam ler a RASCUNHO, repito!) e me ordenasse escolher um e somente um, eu – talvez estranhamente – escolheria Anton Pavlovitch Tchekhov.

Acho que gosto se discute sim. Em meu caso com Tchekhov, creio saber parcialmente de onde vem meu fascínio por suas histórias e peças de teatro. Estou consciente de algumas coisas que aprovo nele: o realismo, a clareza, o humor, a leveza, a abordagem compreensiva dos personagens, a pouca ênfase a coisas que outros escreveriam cheios de exclamações (ele parece dizer: não te ajudarei, descubra sozinho o que há de importante aqui), a imaginação para criar cenas e situações significantes, uma visão um pouco diferente do amor – o qual é visto sem muitas ilusões – e a total falta de preconceitos que o permite transitar por toda a sociedade russa do século XIX. Talvez ele não fale a todos da forma como fala a mim. Sei que Dostoiévski, Mann, Cervantes, etc. são melhores, porém insisto: Tchekhov é o meu escolhido. É também uma questão de convivência agradável, preferimos ficar com alguém cuja presença e essência nos seja amiga.

Era o verão de 1978, tinha 20 anos e passava férias na casa de minha irmã, que fazia pós-graduação no Rio de Janeiro. Lembro do dia: manhã chuvosa, temperatura amena, não ia dar praia. Voltei para a cama e peguei O Beijo e Outras Histórias. Pensava que, tendo lido quase todos os livros de Dostoiévski, Tolstói, Gogol e Turguênev traduzidos na época, me restava conhecer aquele Tchekhov. Amava os russos e, naqueles anos, também os soviéticos… Então, comecei a ler O Beijo – uma boa história – indo depois para o conto da cachorrinha Kaschtanka. Gostei. Almocei no centro e, quando passeava pela Cinelândia, resolvi entrar na Biblioteca Nacional e pedir para ver o que eles tinham de meu novo escritor. Eles trouxeram poucos livros, mas, dentre eles, estava O Beijo.

Peguei o livro e continuei a lê-lo na BN. Passei a uma história que estava no final do livro: Enfermaria Nº 6. Em minha vida, li-a umas 4 vezes, a última deve fazer uns 15 anos. Talvez tenha sido minha maior experiência literária. Fiquei estupefato com a quantidade de humanidade que me era repassada, com a economia do autor, com a poesia condensada de sua prosa. Ali não havia teses a defender, nem grande enredo, mas havia uma sinceridade, uma nitidez nos personagens que me causou enorme impressão. Continuei a ler as histórias de trás para diante e conheci a irônica Uma História Enfadonha, na qual descobri que Tchekhov podia criar diálogos tão bons quanto os de Jane Austen. Voltei para a casa diferente.

Tchekhov viveu apenas 44 anos e era médico. Até os 26 anos, publicou 300 histórias em jornais russos, quase todas cômicas. Vivendo em Moscou, era obscuro. Porém, sem que soubesse, estava tornando-se famoso em São Petersburgo, onde tinha numerosos leitores. Isto perdurou até o dia em que recebeu uma carta do severíssimo crítico Grigorovitch:

“Os atributos variados de seu indiscutível talento, a verdade de suas análises psicológicas, a maestria de suas descrições (…) deram-me a convicção de que está destinado a criar obras admiráveis e verdadeiramente artísticas. E o senhor se tornará culpado de um grande pecado moral, se não corresponder a estas esperanças. O que lhe falta é estima por este talento, tão raramente conhecido por um ser humano. Pare de escrever depressa demais…”

Tchekhov mudou e, sem perder a graça e a leveza mozartiana de seu texto, tornou-se realista. O novo estilo custou-lhe críticas violentas, que o acusavam de “mau gosto” e de utilizar “detalhes sujos e grosseiros”. Ele respondeu: “Pensar que a literatura tem como finalidade descobrir as pérolas e mostrá-las livres de qualquer impureza, equivale a rejeitá-la.”

Rubens Figueiredo, tradutor e prefaciador de O Assassinato e outras histórias faz outras observações sobre Tchekhov:

“No ambiente intelectual russo, o debate só parecia fazer sentido quando tomava formas extremadas. A fama crescente de Tchekhov e a expectativa em torno de seus textos obrigaram-no a defender-se dos mal-entendidos, cada vez mais numerosos.”

“Os leitores russos se haviam acostumado a tomar os escritores como campeões de credos políticos e religiosos mas, no caso de Tchekhov, esbarravam em textos obstinadamente inconclusivos. Mais grave ainda, suas entrelinhas pareciam indicar que tanto as grandes sínteses intelectuais quanto os padrões de pensamento herdados pelos costumes serviam antes para encobrir a realidade.”

“O desconcertante é que Tchekhov consegue munir sua prosa de uma sutileza capaz de sugerir outras camadas de experiência, como se a realidade nunca se esgotasse.”

E, mais desconcertante: “Para Tchekhov, a religião era moralmente indiferente. Ou seja, a crença, seus conceitos, seus símbolos e rituais eram ineficazes para deter a crueldade e o egoísmo, mas tampouco constituíam suas causas.”

Tchekhov: “Não cabe ao escritor a solução de problemas como Deus ou o pessimismo; seu trabalho consiste em registrar quem, em que circunstâncias, disse ou pensou sobre Deus e o pessimismo.”

Há muitos livros de Tchekhov que indicaria. Tenho 22 na minha frente. Como ele era contista, novelista e dramaturgo, há muitas coletâneas e, nelas, muitos contos e novelas repetidas. Vamos começar pelas peças teatrais: acho que As Três Irmãs, A Gaivota, Tio Vânia e O Jardim das Cerejeiras são tão extraordinárias que prescindem dos atores e podem ser lidas como uma novela de diálogos. A novela Enfermaria Nº6 está em vários livros, assim como os contos Inimigos, A Dama do Cachorrinho e um conto clássico que os tradutores deveriam se reunir a fim de estabelecer um nome, pois ele pode se chamar Queridinha aqui, O Coração de Olenka ali, Dô-doce (?) acolá, assim como Amorzinho ou qualquer outra coisa.

Os melhores livros são as duas traduções de Bóris Schnaidermann:

A Dama do Cachorrinho e outros contos. Editora 34. 1999 Trad. de Bóris Schnaidermann ou
Contos. Civilização Brasileira. 1959.
(O segundo é o mesmo livro reeditado e revisado por Schnaidermann 40 anos depois. Mas quem encontrar a edição de 59 num sebo pode comprá-lo de olhos fechados. As duas versões são espetaculares.)

Outros livros que indico:
Contos e Novelas. Edições Ráduga (Moscou). 1987. Um primor de tradução para o português realizada por Andrei Melnikov.
O Assassinato e outras histórias. Cosac & Naify. 2002. Trad. de Rubens Figueiredo.
O Beijo e outras histórias. Círculo do Livro. 1978. Trad. de Bóris Schnaidermann.
A Enfermaria Nº 6 e outros contos. Editorial Verbo. 1972. Trad. de Maria Luísa Anahory.
Os mais brilhantes contos de Tchekhov. Edições de Ouro. 1978. Trad. de Tatiana Belinky.
Histórias Imortais. Cultrix. 1959. Trad.de Tatiana Belinky.

Filmes:
Há dois esplêndidos filmes de Nikita Mikhálkov baseados “em qualquer coisa de Tchekhov” (palavras do próprio diretor e roteirista): Peça Inacabada para Piano Mecânico (1977) e o famoso Olhos Negros (1987) com Marcello Mastroianni detonando no papel principal atrás da Dama do Cachorrinho.

Em vida, Anton Tchekhov já era conhecido, respeitado e até popular, mas não era uma celebridade. Após sua morte, Tolstoi disse: “Creio que Tchekhov criou novas – absolutamente novas – formas de literatura que não encontrei em parte alguma. Deixando de lado falsas modéstias, afirmo que Tchekhov está muito acima de mim”.

Naquele tempo, os contemporâneos não deram atenção a esta opinião. Pensavam que o conde já idoso estava a superestimar Anton Tchekhov, atribuindo-lhe características acima das que merecia. Passados cem anos, vemos agora que Tolstoi não estava tão equivocado. Atualmente, na Rússia, Anton Tchekhov encontra-se ao lado dos grandes clássicos: Púchkin, Gogol, Dostoiévski e Tolstói. E, como dramaturgo, está entre os mais célebres e montados autores mundiais.

“Anton Pavlovitch Tchekhov sentou-se na cama e de maneira significativa disse, em voz alta e em alemão: ´Ich sterbe´ – estou morrendo. Depois, segurou o copo, voltou-se para mim, sorriu seu maravilhoso sorriso e disse: ´Faz muito tempo que não bebo champanhe´. Bebeu todo o copo, estendeu-se em silêncio e, instantes depois, calou-se para sempre. E a pavorosa calma da noite foi apenas alterada por um estampido terrível: a rolha da garrafa não terminada voou longe.”
Olga Knipper, esposa de Anton Tchekhov.

Faz pouco mais de 100 anos que o fato narrado acima ocorreu. Tchekhov faleceu em 15 de julho de 1904 em Badenweiler, Alemanha.

Adendo: E-mail de Fernando Monteiro:

Você tem toda a razão sobre Tchekov: ele tem uma “redondez”, uma satisfação tão total e plena do que esperamos encontrar num escritor… que mereceria, sim, ser o escolhido, entre todos, como o preferido de um leitor super-exigente.

Das histórias de AT, eu gosto especialmente de “A Estepe”, uma novela relativamente curta e genial, que narra a viagem de uma criança como uma metáfora (a novela toda) da viagem que atravessamos sem saber porque e para quê.

Assim é que o meninozinho russo (o próprio Anton, é claro) viaja — e a travessia da estepe vasta, com todos os seus incidentes, se torna o núcleo mesmo da impressão estranha da novela, como naquele filme (Olhos Negros) de Michalkov, em que Mastroianni recorda “as névoas da Rússia num passeio de carruagem, na infância, há muito tempo”…

Creio até que Nikita Michalkov faz uma alusão mais ou menos direta à novela, porque o argumento de “Olchie Chiorne” foi criado a partir da fusão duas narrativas clássicas de AT.
Para mim, Tchekov é o Machado de Assis da pátria de Dostoiévsky.

Bom final de semana!
Fernando