Campeões de Tudo

Eu estou no andar de cima, depois da placa do Jornal do Comércio. Cheguei em casa às 2h45.

Em 27 meses, ganhamos todos os títulos internacionais possíveis: Libertadores, Mundial, Recopa e Sul-Americana. Temos todos os campeonatos do calendário atual brasileiro e do continente: Estadual, Copa do Brasil, Brasileiro e os já citados. Nas últimas 12 decisões, vencemos 11.

E ontem, pressentindo Nilmar, publiquei este texto no Impedimento:

Ah, antes porém, publico cópia do e-mail de Luis Felipe dos Santos, colaborador do Impedimento:

Caro Joseph Blatter,

Solicitamos por meio deste autorização para disputar outros torneios continentais, na Europa, América do Norte, África e Ásia. Como nos consagramos campeões de tudo que existe, ficou muito complicado estabelecer prioridades de agora em diante. Estamos em busca de novos horizontes, portanto, achamos que você poderia nos fazer essa cortesia.

Com carinho,
S.C.I

P.S.: não temos planos de ganhar a segunda divisão, favor não insistir.

Colorados em chamas…

Horror a intermediários

No dia 7 de novembro de 2001, saí da Feira do Livro e fui direto para o Beira-Rio. Jogavam Inter x São Paulo. Pelo Inter, entravam em campo João Gabriel; Barão, Gilmar Lima, Fábio Luciano e Wederson; Leandro Guerreiro, Carlinhos, Silvinho e Jackson; Daniel Carvalho e Luís Cláudio. Pelo São Paulo vinham Rogério Ceni; Reginaldo Araújo, Émerson, Júlio Santos e Gustavo Nery; Maldonado, Fábio Simplício, Kaká e Júlio Baptista; Luís Fabiano e França. E eu estava confiante.

Começa o jogo e o Inter, cheio de entusiasmo, parte para cima do São Paulo. Dava pena de ver. Era um banho de bola. Aí Kaká puxou um contra-ataque e cruzou para França fazer 1 x 0. Um detalhe, claro, ainda mais que no minuto seguinte Silvinho empatava o jogo e nós, os trouxas que assistíamos a partida, nos preparávamos para ver a virada. Empilhávamos chances de gol, nossos gols estavam maduros, podres até, vários deles. O primeiro tempo terminou empatado. 1 x 1.

Começou o segundo tempo e Luís Fabiano cruzou para França desempatar. Uma sacanagem, jogávamos muito melhor. Continuamos perdendo gols quando Gustavo Nery cruzou para Luís Fabiano fazer o terceiro. Mas reagimos e parecia que parte da injustiça seria sanada porque nossa pressão era irresistível. Sim, chegaríamos ao empate. Só que Gustavo Nery mandou uma bomba de longe e ficou 4 x 1. Meu deus, que bosta, que injustiça.

No dia 30 de junho de 2002, entravam em campo Brasil e Alemanha. O Brasil trazia Marcos; Lúcio, Edmílson e Roque Júnior; Cafu, Gilberto Silva, Kléberson, Ronaldinho Gaúcho e Roberto Carlos; Rivaldo e Ronaldo. A Alemanha vinha com Kahn, Linke, Ramelow, Metzelder e Frings; Hamann, Jeremies, Schneider e Bode; Neuville e Klose. Eu estava em Bento Gonçalves, curiosamente com um grupo de alemães. O jogo foi igual: o que a gente fazia aqui, eles faziam lá. Era uma partida perigosíssima, mas vocês lembram muito bem como terminou. Rivaldo, Ronaldo e Kahn fizeram a toda a diferença e os alemães discutiam entre si, dizendo que seu time igual ao nosso, só que…

É por isso que gosto dos jogadores decisivos. Você pode empilhar dez Luís Cláudios no seu time que eles não farão um Luís Fabiano. Pior, o São Paulo poderia enfiar 18 Maldonados em seu meio campo que eles não chegariam à eficiência de um França. Exagero? Claro que sim, os gregos criaram a figura da hipérbole para intensificar um fato até o inconcebível e os lógicos adoram hipérboles. Por isso, digo que 23 Rivarolas não fazem um Jardel, 34 Ramelows não criam fenômeno nenhum, 52 Edmílsons não superam um Rivaldo e 61 Baideks não fariam o que um Renato fez em Tóquio.

É por isso que gosto dos jogadores decisivos. Hoje à noite, podem estar em campo 43 Edinhos, mas os importantes serão Alex, Nilmar e Lauro, nossos caras terminais. Os goleadores, com frieza de toureiro e sangue frio de assassino esquizofrênico, são sempre os mais valiosos jogadores em campo. É por saber o momento do tiro ou por aproveitarem a passagem burra do touro descontrolado a sua frente, que vimos Romário jogar e fazer gols até os 67 anos, que vemos Túlio goleador aos 84 anos e é por isso que são tolos aqueles que criticam Alex quando ele trota em campo. Alex não jogou nada na Bombonera? Ora, não me façam rir. Na hora do cruzamento de D`Alessandro, ele estava lá fazendo o que poucos sabem fazer.

E é por isso que gosto também de grandes goleiros. O cara que fica ali não pode falhar, ainda mais num jogo decisivo. O mundo não lembrará de Kahn pelos 112 campeonatos alemães que levantou, mas nunca esquecerá que, quando Rivaldo chutou aquela bola, ele a soltou e ficou nadando no ar enquanto o matador Ronaldo Fenômeno chutava a bola para as redes com a certeza do toureiro matador que sabe que ou é o touro ou é ele mesmo (então, que seja ele!). O são-paulino mais fanático sempre lembrará de Ceni no Japão, mas nunca esquecerá que ele facilitou as coisas para Fabiano Eller naquele segundo de auto-suficiência. O colorado mais fanático sabe de seus títulos, porém sempre lembrará de Clemer como um goleiro nervoso e hesitante, sabendo que só um doido varrido esquizo alucinado e viciado terá a coragem e calma de pegar um escanteio batido por Nelinho com uma mão só, pois a outra tinha, naquele dia, escondidos sob a luva, seus dedos retorcidos novamente quebrados.

Num time campeão, até o roupeiro vence, mas só alguns são decisivos. Decisiva para a vida da batata é a mão que a planta e os dentes de quem a come. O resto são contingências. Decisivo na vida da galinha é quem a choca e minha avó que, caminhando e sem deixar de conversar comigo, pegava o bicho e, para meu horror, torcia docemente o pescoço de nosso almoço. O resto é milho, cacarejos e carregadores de pianos.

Por Milton Ribeiro.

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O Dogma 95 morreu?

O movimento Dogma 95, criado por Lars von Trier e Thomas Vinterberg, produziu alguns dos melhores filmes dos últimos anos. Mas a produção de von Trier não se encaixa nos rígidos conceitos do Dogma. Dançando no Escuro, por exemplo, está totalmente fora das regras, assim como Dogville e Ondas do Destino. Ele fez apenas um filme sob o Dogma: Os Idiotas. Além deste, o Dogma 95 produziu extraordinários filmes como Mifune, Festa de Família (de Vinterberg) e Italiano para Principiantes.

Eu pensei que o movimento estivesse enterradíssimo e fui fazer uma consulta. Tomei um susto ao me deparar com uma lista de 77 filmes! Isso mesmo, 77, muitos deles recentes. Esses aqui. Onde estão??? Por que não aparecem? Estariam estigmatizados pelas distribuidoras? Ou são irremediavelmente ruins?

O movimento foi fundado em 1995 em Copenhagen e via o cinema como arte coletiva. Qualquer um poderia fazer um filme, pois o Dogma visava varrer de seus produtos toda “tempestade tecnológica”, representada por efeitos especiais, trilha sonora, iluminação, etc. Considerava que o cinema tornara-se algo artificial e apresentava um ESTATUTO OBRIGATÓRIO chamado “Voto de Castidade”. E, em seu manifesto, perguntava: é disto que nos orgulhamos? É a este resultado que nos conduziram cem anos de cinema? Das ilusões para comunicar as emoções? Uma série de enganos escolhidos por cada cineasta individualmente? Para o Dogma 95, o filme não é ilusão!

Como sempre há controvérsias acerca de quais seriam os cânones do Dogma e porque sinto saudades dos estranhos filmes produzidos sob o Dogma, transcrevo abaixo o surpreendente “Voto”.

Voto de Castidade

1. As filmagens devem ser feitas em locais externos. Não podem ser usados acessórios ou cenografia (se a trama requer um acessório particular, deve-se escolher um ambiente externo onde ele se encontre).

2. O som não deve jamais ser produzido separadamente da imagem ou vice-versa. (A música não poderá, portanto, ser utilizada, a menos que ressoe no local onde se filma a cena).

3. A câmera deve ser usada na mão. São consentidos todos os movimentos – ou a imobilidade – devidos aos movimentos do corpo. (O filme não deve ser feito onde a câmera está colocada; são as tomadas que devem desenvolver-se onde o filme tem lugar).

4. O filme deve ser em cores. Não se aceita nenhuma iluminação especial. (Se há luz demais, a cena deve ser cortada, ou então, pode-se colocar uma única lâmpada sobre a câmera).

5. São proibidos os truques fotográficos e filtros.

6. O filme não deve conter nenhuma ação “superficial”. (Em nenhum caso homicídios, uso de armas ou outros).

7. São vetados os deslocamentos temporais ou geográficos. (Isto significa que o filme se desenvolve em tempo real).

8. São inaceitáveis os filmes de gênero.

9. O filme deve ser em 35 mm, standard.

10. O nome do diretor não deve figurar nos créditos.

Copenhagen, 13 de março de 1995
Em nome do Dogma 95,
Lars von Trier

Sim, era uma maluquice. Mas os primeiros produtos do Dogma eram tão bons, realistas e contavam com tão boas histórias que fico curioso a respeito dos outros filmes. Na época, lembro ter pensado que talvez o “Voto” fosse uma saída para cineastas de países pobres como o Brasil, mas não aconteceu nada. Nosso cinema sem roteiristas sonha com o Oscar, antes mesmo de ter conquistado o público brasileiro… Mas isso já é outra história.

Atualização das 8h59 (comentário de Claudia Antonini):

Milton Luiz, my dear.

Já são 338 filmes segundo o site oficial do Dogma, não 77. Fui ver se havia alguma forma de distribuição e me deparei com este número surpreendente. Porque não chega nada??? Sei lá, uma pena mesmo. Ameeeeei “Italiano para Principiantes”.

Fui, é claro, ler e vi que tem inúmeros representantes italianos (eu sei que o filme acima nada tem a que ver com isso, que é dinamarquês), cinco argentinos e até um – único e solitário – representante brasileiro:

Dogme #209: Manter Vigilante (Brazil)
Directed and produced by J. Gabriel
Rua Santa Sofia 221/102 – RJ/RJ 20540-090 – Brazil
Phone: (21)2567-2438 – Mail: jgm.pontes@ig.com.br

Agora vou tentar descobrir como ter acesso.

Beijos.

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O Animal Agonizante, de Philip Roth x Fatal, de Isabel Coixet

Foi uma curiosa experiência ter visto primeiro o filme Fatal (Elegy) para na semana seguinte ler o livro no qual se baseia, O Animal Agonizante (The Dying Animal). Como seria de se esperar, eles contam a mesma história, mas colocam seus focos narrativos em pontos diferentes.

A situação é simples: o professor aposentado David Kepesh, de 62 anos, vive sozinho colecionando casos amorosos. Dentre eles, há um gênero de encontro que se repete. Ele sempre escolhe uma de suas alunas num curso quinzenal que ministra anualmente. Tais casos sempre começam na festa que oferece em sua casa no último dia de aula. Num desses cursos, ele encontra a belíssima Consuela Castillo, de 24 anos, que se transformará numa obsessão para o velho professor.

No livro, Roth preocupa-se principalmente com a sexualidade dos personagens. O velho fauno Kepesh fica absolutamente transtornado pela beleza e juventude da moça e Roth analisa de sua forma habitual — direta e visceral — não apenas sua sexualidade como a de seu país. Há um interessante paralelo entre o medo fóbico de separação de que sofre seu filho contra a noção de separação como libertação, defendida algo cinicamente por Kepesh. A virada final do livro dá-se quando, anos após a separação involuntária porém previsível — e que causa inédito e ENORME sofrimento ao professor –, Consuelo reaparece doente.

Trechos:

A vida de casal e a vida em família ressaltam o lado infantil de todas as pessoas envolvidas. Por que é que eles têm de dormir noite após noite na mesma cama. Por que é que precisam telefonar um para o outro cinco vezes ao dia? Por que é que tem de estar sempre um com o outro?

(…)

Sexo não é só atrito e diversão superficial. É também a maneira como nos vingamos da morte. Não se esqueça da morte. Não se esqueça da morte jamais.

(…)

… (na cidade) onde entrei na adolescência nos anos 40, só se podia ter uma relação sexual consensual com uma prostituta ou então com a garota que se namorava desde menino e que todos imaginavam que fosse acabar se casando com você.

(…)

— Por que não é legal com eles? — Eles só sabem se masturbar em cima do meu corpo. — Isso é lamentável. É uma burrice. É uma loucura.

(…)

As primeiras vezes em que me chupou, Consuela sacudia a cabeça com uma rapidez implacável, tá-tá-tá — era impossível não gozar muito antes do que eu pretendia, mas então, no momento em que eu começava a ejacular, ela parava de repente e recebia o jato como se fosse um ralo aberto. Era como gozar dentro de uma cesta de papéis. Ninguém jamais havia dito a ela para não parar naquela hora. Nenhum dos cinco namorados anteriores tinha ousado lhe dizer isto. Eram jovens demais. Eram da idade dela. Já estavam mais do que satisfeitos de estar conseguindo aquilo.

Obviamente, o segundo tema do livro é a velhice, o profundo ciúme e as fantasias causadas pelo mundo desconhecido, jovem e inatingível de Consuela em Kepesh.

E é isto que Isabel Coixet desloca para o cerne de seu filme. Não que ela tenha admitido um relato mais superficial, ela apenas o trouxe para o cinema: saíram as longas digressões sobre sexo e entrou o embate entre maturidade e juventude. Num filme que conta com atuações esplêndidas de Ben Kingsley e Penélope Cruz, Coixet realiza um grande filme acerca da finitude do ser humano. Kingsley, em atuação não menos que genial, é extremamente sedutor, mas quando conhece Consuela, sua idade e a idéia de seu fim próximo cai-lhe sobre a cabeça como uma injustiça. No filme, o sofrimento do professor Kepesh torna-o humano e o retorno de Consuela tem o efeito de torná-lo solidário. Não, não pense que o filme é moralizante, longe disso, é um filme tristíssimo sobre a degradação do corpo e de como o cérebro segue impondo suas demandas por vida e amor, ignorando a passagem do tempo.

Acho que a espanhola Coixet — grande diretora para a qual já babei em A Vida Secreta das Palavras –, deveria ter repetido o livro na cena do chapéu de Consuela, mas ela ou seus produtores não quiseram chocar um público tão delicado quanto o americano. Penso que seria uma cena absolutamente desconcertante e necessária ao relato, mas sabem como é, poderia diminuir a bilheteria…

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Uma semana, um texto: Os ateus se fazem fortes, de Abel Grau

Os não crentes se organizam para frear a beligerância das religiões e seu poder sobre o Estado – suas campanhas publicitárias recebem generosas doações e aumentam os pedidos pela apostasia.

O melhor texto que li esta semana saiu no El Pais de segunda-feira e me foi enviado pela amiga Helen Osório.

Los ateos se hacen fuertes

Reportagem de Abel Grau.

“Probablemente no hay dios, así que deja de preocuparte y disfruta de la vida”. Este eslogan lucirá en los autobuses de Londres a mediados de enero. Se trata de la primera campaña ateísta en Reino Unido financiada con donaciones de contribuyentes anónimos. Y ha sido un éxito. Preveían recaudar 5.500 libras (6.500 euros) y en tan sólo dos días reunieron 10 veces más. No es algo aislado. Esta semana se ha puesto en marcha una iniciativa similar en Washington. Los ensayos que arremeten contra la religión se convierten en superventas y, en España, aumentan las solicitudes de apostasía. Parece que la hora de los no creyentes ha llegado. ¿Está el ateísmo tomando una nueva conciencia más activa en la sociedad?

No es fácil confesar que uno es ateo, es decir, que niega la existencia de Dios, según señala el biólogo Richard Dawkins, conocido como el rottweiler de Darwin por su férrea defensa de la teoría evolucionista. “La situación de los ateos hoy en día en América es comparable a la de los homosexuales 50 años atrás”, escribe Dawkins en el ensayo El espejismo de Dios (Espasa Calpe), que ha vendido 1,5 millones de ejemplares. “Los ateos son mucho más numerosos, sobre todo entre la élite educada, de lo que muchos creen”, prosigue. El problema es que, a diferencia de otros grupos religiosos, no están organizados. “Un buen primer paso podría ser generar una masa crítica con aquellos que desean salir a la luz y así animar a otros a hacer lo mismo. Pueden hacer mucho ruido”.

Ruido considerable es el que ha conseguido la citada campaña del autobús ateísta británico. La gestiona la British Humanist Association -una organización que promueve acabar con la privilegiada posición de la religión en la ley, la educación y los medios de comunicación- a través de la web www.justgiving.com/atheistbus. Su patrocinador más ilustre es el propio Dawkins. Iniciada el 21 de octubre, se propuso recaudar 5.500 libras (6.500 euros, el coste de un mes de los anuncios en 30 autobuses) y sólo necesitó dos horas para conseguirlos. En dos días, ya tenían 58.900. La cuenta ya va por 143.200 euros.

“Los donantes sienten que no tienen voz, que el Gobierno y la sociedad presta demasiada atención a la religión y a sus líderes, mientras que a los que no son religiosos se les ignora”, señala desde la capital británica Hanne Stinson, directora de la British Humanist Association. Al otro lado del Atlántico, la American Humanist Association ya ha organizado una campaña similar para los autobuses de Washington con el lema ¿Por qué creer en un dios? Sé bueno por la propia bondad. Se puso en marcha la semana pasada con una previsión de 200 autobuses (www.whybelieveinagod.org). En España, la Unión de Ateos y Librepensadores estudia unirse a la campaña.”Aunque las condiciones en España no son las mismas que en el mundo anglosajón, donde las alternativas de ateos y agnósticos son mucho mas respetadas, y su prestigio social es consecuencia de su permanente presencia en el mundo de las ideas”, señala la asociación en su web, ateos.org.

Este nuevo ateísmo también ha irrumpido en las librerías. Una ilustre alineación de científicos e intelectuales ha emprendido la batalla dialéctica a gran escala contra la religión. Sus ensayos se han convertido en superventas. En El espejismo de Dios (10.000 ejemplares vendidos en España), Dawkins expone su hipótesis de que Dios no existe, sostiene que no necesitamos la religión para ser morales y que podemos explicar las raíces de la religión y la moralidad en términos no religiosos. El ensayista Christopher Hitchens argumenta en Dios no es bueno (Debate) que la religión da una explicación errónea del origen del ser humano y del cosmos, que causa una peligrosa represión sexual y que se basa en ilusiones. Ha vendido cerca de 150.000 ejemplares en Reino Unido y 12.000 en España. En EE UU, el filósofo Sam Harris, autor de The end of faith (W.W. Norton) pone de vuelta y media a las grandes confesiones: el judaísmo, el cristianismo y el islam. Las tacha de locuras socialmente aprobadas, cuyos credos son irracionales, arcaicos y mutuamente incompatibles (200.000 vendidos).

En Italia, el matemático Piergiorgio Odifreddi ha escrito ¿Por qué no podemos ser cristianos? (RBA), que ha colocado 200.000 ejemplares en su país. En Francia, Michael Onfray se situó en 2005 entre los más vendidos con Tratado de Ateología (Anagrama), un alegato a favor del pensamiento hedonista y contra la religión. Vendió 209.700 ejemplares. Las cifras parecen indicar que aumenta el interés por la crítica a las religiones. Odifreddi, aun así, es cauto: “Hay una buena parte de la población que valora la razón y la ciencia, pero es una minoría sin mucho acceso a los medios de comunicación”.

La razón de este nuevo movimiento está, irónicamente, en los propios fundamentalistas religiosos, según sostienen varios especialistas. “La beligerancia de las religiones lleva a la gente a tocar a rebato”, explica el teólogo de la Universidad Carlos III Juan José Tamayo. “Las religiones han despertado de un modo social y culturalmente agresivo, porque reclaman una presencia en el espacio público; quieren intervenir en la vida privada y tener un peso político. En definitiva, quieren que los Estados sean confesionales”. Una idea con la que coincide el filósofo Reyes Mate, profesor del Consejo Superior de Investigaciones Científicas (CSIC): “La crítica a la religión resurge cada vez que la religión se quiere convertir en principio moral de la democracia”.

Cuando se habla de integrismo se suele pensar en los países musulmanes, pero también se encuentra en el corazón de Occidente. “Pienso en Estados Unidos”, sigue el teólogo Tamayo. “En la campaña electoral de 2004, entre John Kerry y George W. Bush, la politización de la religión fue notable: los dos candidatos recordaban constantemente que creían en Dios”. Es el caso, por ejemplo, de las escuelas de algunas zonas de Estados Unidos que quieren introducir en las aulas la enseñanza del creacionismo y del diseño inteligente (que equivale a la interpretación literal de la Biblia). Los líderes religiosos occidentales, como el papa Benedicto XVI, o los grupos evangélicos en EE UU, pretenden influir en la política porque “consideran que necesita una legitimación religiosa”, señala Tamayo. Además exigen “que la ética se fundamente en un ser trascendente, ya que no reconocen a los políticos como guías morales”, e imponen que los textos sagrados, que son míticos y simbólicos, sean considerados como histórica y científicamente válidos.

Esa intervención de la religión en la vida privada es la que pidió el cardenal Antonio María Rouco Varela, presidente de la Conferencia Episcopal Española, en octubre en el sínodo de los obispos de Roma. Criticó el laicismo, es decir, que las personas, la sociedad y, sobre todo, el Estado, sean independientes de cualquier organización o confesión religiosa. Lo dejó claro: “El Estado moderno, en su versión laicista radical, desembocó en el siglo XX en las formas totalitarias del comunismo soviético y del nacional-socialismo”. Por eso llama a que la Iglesia participe en la vida privada e incluso en los debates legislativos.

Muchos ciudadanos en España han reaccionado. Las solicitudes de apostasía en los seis primeros meses de 2008 han sido 529, lo que supera a las de todo 2007 (287) y a las de 2006 (47), según la Agencia Española de Protección de Datos. El Ayuntamiento de Rivas, en Madrid, abrió en marzo una oficina para facilitar los trámites de apostasía. En menos de un mes recibió más de 1.100 consultas de toda España. Entre los principales motivos: la reelección de Rouco como presidente de la Conferencia Episcopal. Y no son sólo las apostasías. La práctica religiosa también desciende. Si en 1998 los españoles que se consideraban católicos eran el 83,5%, 10 años después son el 78%, según el barómetro de enero de 2008 del Centro de Investigaciones Sociológicas (CIS).

Las cifras, sin embargo, podrían quedarse cortas. “Ese 78% que dice que es católico, lo es por el bautismo y otros símbolos introducidos en la infancia”, señala el teólogo Tamayo. “Esa educación puede que continúe o que se interrumpa y dé lugar a la apostasía o a la indiferencia, que es el fenómeno mayoritario”, añade. Los datos se elevan entre los jóvenes. El 46% de los chicos entre 15 y 24 años se consideran agnósticos, ateos o indiferentes, según un informe de la Fundación Santamaría de 2005 (en 1994, eran el 22%). El 39% se define como católico no practicante y tan sólo el 10%, como católico practicante. Las razones del descenso: la “impopular” postura de la Iglesia “en temas como la ley que regula el matrimonio homosexual, el aborto o la sexualidad”, según uno de los autores del informe, el sociólogo Juan González-Anleo.

Este nuevo ateísmo lucha contra la religión en la arena dialéctica. “Esa hostilidad que yo y otros ateos expresamos ocasionalmente contra la religión está limitada a las palabras. No voy a poner una bomba a nadie, ni a decapitarlo, ni a lapidarlo, ni a quemarlo en la hoguera ni a crucificarlo ni a estrellar aviones contra sus rascacielos”, escribe Dawkins. De hecho, el propio lema del bus ateísta británico se aleja del dogmatismo. El probablemente reconoce que igual que no hay pruebas de la existencia de Dios, tampoco las hay de lo contrario. “No es necesario mantener una relación hosca con la religión”, considera el filósofo Jesús Mosterín, miembro del CSIC. “Se puede conservar sin creérsela pero con curiosidad y simpatía, como una tradición folclórica más”. Eso sí, aunque dialéctica, es una batalla sin cuartel.

La crítica a la religión es antigua pero, sobre todo desde el siglo XIX, cuenta con una aliada crucial: la ciencia. Así lo ha expuesto el premio Nobel de física estadounidense Steven Weinberg en The New York Review of Books: “Creo que entre la ciencia y la religión existe, si no una incompatibilidad, por lo menos lo que la filósofa Susan Haack ha llamado una tensión, que gradualmente ha ido debilitando la creencia religiosa, especialmente en Occidente, donde la ciencia ha avanzado más”. La ciencia, enumera el Nobel, explica mejor el funcionamiento del mundo que la religión y refuta el papel del hombre como protagonista de la creación. Otro de los físicos más prestigiosos del mundo, Stephen Hawking, lo suscribe: Las leyes por las que se rige el universo “no dejan mucho espacio para milagros ni para Dios”.

Ciencia y religión no pueden convivir en paz, añade el matemático Odifreddi. “La ciencia acepta verdades basadas en confirmaciones empíricas y deducciones matemáticas y lógicas. La religión, al menos la católica, se refiere a un libro de hace 2.000 años y a pronunciamientos dogmáticos de concilios y del Papa. Es difícil imaginar métodos más opuestos”.

Pero ¿podemos vivir sin Dios? La respuesta de los científicos, filósofos y teólogos no es unánime. El Nobel Weinberg confiesa que no es fácil no creer, pero está convencido de que la creencia declina inevitablemente en Occidente. Y añade que aunque las prácticas religiosas se mantengan durante siglos, no está tan seguro de que la creencia perviva. “Hay que distinguir la religión, que es construcción social, de la experiencia religiosa, que es personal”, matiza Tamayo. “Las iglesias son instituciones, con un atractivo político y social, que incluso hoy pocas veces implican creencias profundas”, añade Odifreddi, “por lo que pueden sobrevivir aunque la fe languidezca”. “En el futuro seguiremos creyendo, porque lo llevamos de fábrica”, argumenta el físico Jorge Wagensberg. “La psicología del desarrollo, la antropología cognitiva y la neurociencia señalan que evolutivamente estamos programados para creer”.

Otros están convencidos de que la ciencia es la respuesta. “¡Todos creemos en algo!”, concede el matemático Odifreddi. “La cuestión es qué debemos creer; yo creo que la ciencia puede ofrecer incluso una concepción espiritual del mundo, al mostrar cómo tras el aparente caos del cosmos descansa un orden profundo”. Su conclusión es clara: “La ciencia es hoy la religión verdadera, mientras que la vieja religión es sólo superstición. Así que si alguien quiere creer en algo, puede creer en la ciencia y su manera de ver el mundo”.

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A batalha de La Plata


Ah, que equipazo el inter!! por dios!! mejor que aquel campeón de America inclusive… imparables, e impasables.

O primeiro e-mail do Sr. 1:

Miltão,

estaremos, todo o STAFF colorado, assistindo a Inter e Estudiantes Boca no bar X. Trata-se de um bar sujo, fétido e mal-freqüentado, mas de muita personalidade. Fica na Rua Y, quase esquina com a Z (rua do lado da Igreja tal). Estaremos por lá a partir das 21h45.

A resposta do Sr. 2:

Creio que verei o jogo em casa. Ando precisando ECONOMIZAR um pouco.

O Sr. 1 retorna:

Eu acho temerário não ver o jogo na Estância de Dom A., sempre ganhamos lá, mas tudo bem. Aliás, 2, posso cobrir.

Eu escrevo para os dois:

Eu tb posso dar cobertura financeira… O 1 dá a outra.

O Sr. 2 torna-se épico:

2 a 1 para o Colorado. Será interrompida a seqüência de 43 jogos invictos do Estudiantes em seu estádio e mais um “copero” rastejará diante do gigante de armadura vermelha.

Cada vez mais percebo que me torno uma pessoa extremamente VOLÚVEL quando o assunto é convite para bares. Pois então vamo-nos embora pinchar aquelas ratazanas.

Já estou com uma sede enlouquecedora.

ahuahah

Abraços.

Fomos. Resultado: Estudiantes 0 x 1 Inter

Saio cedo, logo após a partida, à meia-noite. Acordo às 6h30.

Novo e-mail do do Sr. 2:

Eu tento, eu vou atrás dos times COPEROS, mas todos eles querem até a morte se abaixar pra chupar a GLANDE VERMELHA. Continuaremos, sempre e sempre, buscando uma CHINA mais difícil.

Gazela, cabrita, RATAZANA, é tudo a mesma merda.

E DÁ-LHE COLORADO!

Chamas profundas, trago infinito.

Se ganhar a Sul-Americana, o Inter terá conquistado, em 27 meses, todos os títulos internacionais da FIFA possíveis a um suda (*): Libertadores, Mundial, Recopa e Sul-Americana. Das 11 últimas finais que disputamos, vencemos 10. A única exceção foi o Campeonato Gaúcho de 2006, perdido para o Grêmio.

Não dava para escrever muito. Ainda bem que o Monólogo de toda sexta-feira já está escrito, formatado e agendado. Agora, ao trabalho!

(*) Suda: do espanhol “sudamericano”.

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O Triunfo do Tempo e do Desengano (*)

Publicado em 22 de novembro de 2005

Logo eu, de tão raras viagens, passo um novembro todo viajante. Depois dos barulhentos lançamentos de meu orgulhoso 1/14 de livro em Porto Alegre e São Paulo, depois da necessidade de ir à Goiânia para trabalhar – aproveitando a estadia para mais um lançamento -, vou agora à Madrid, Roma, Verona, Riva del Garda e Milão. É uma viagem rápida, mais determinada pelas necessidades profissionais da Claudia do que por turismo, porém dei um jeitinho de enxertar visitas (e aceitar convites) a (de) alguns amigos, como Nora Borges (Madrid) e Flavio Prada (Riva del Garda). Preciso vê-los, quanto mais não seja para levar-lhes camisetas da Verbeat – não sei vocês sabem que o Pradinha está vindo aumentar a algaravia de nosso condomínio.

O blog foi uma revolução em minha vida. Além do indiscutível prazer de ser lido, esta coisa cinza e de lay-out duvidoso, talvez homenagem a meu daltonismo, trouxe-me um leque de brilhantes e generosos amigos em quantidade nunca dantes vista. Nos últimos tempos, posso dizer resumidamente que viajei com a Stella e com a Mônica, hospedei-me na Laura-RJ e no Zadig, além de conhecer mais uns 50. Tais encontros sempre me mostraram um grau de interesse e carinho muito mais alto do que a média encontrável na rua. É uma afinidade detectada nos escritos de cada um – seja de que qualidade forem – e nunca fraudada nos encontros ao vivo. As pessoas que conheci em Goiânia e São Paulo no último final de semana foram uma overdose neste sentido. A viagem começou meio esquerda quando o pessoal da Gol me disse em Porto Alegre que eu tinha considerável excesso de bagagem e que isto me custaria R$ 106,00. Decidi que não pagaria aquilo nem morto. E, bem, como não deixaria de levar as toneladas de erva mate solicitadas e muito menos as copas (salame tipo milano, vulgo copa) no aeroporto, resolvi deixar os vinhos. De forma um tanto cronópia, ofereci os vinhos aos funcionários da companhia aérea, que negaram-se fama e profissionalmente a receber o presente; então, voltei ao ponto de táxi e perguntei aos taxistas se eles queriam vinho. Imagina se não! Primeiro ficaram desconfiados (Não tem mijo aí dentro?), depois entraram em acordo na divisão das onze garrafas. Não sei como isto repercutiu no trânsito de Porto Alegre, mas gostei de ver as caras alegres deles, convidando-me a aparecer mais vezes… (Volta sempre, tá? Amanhã a que horas?)

Depois, foi a mais tranqüila das viagens. A coisa só foi piorar na volta a Porto Alegre, quando Márcio Resende de Freitas resolveu que não seria bom marcar o pênalti sobre Tinga. Vocês sabem como são os juízes, são autoridades arrogantes em campo, mas subservientes fora dele. São obedientes aos chefes e pavlovianos quando, na dúvida, escolhem sempre beneficiar o dinheiro e o poder. É o Corínthians da MSI, o Palmeiras da Parmalat, o Flamengo da CBF, o Vasco da CBF a da truculência, etc., tudo misturado com aquele medinho de perder o lugar de árbitro da Fifa, condição que lhes rende altos ganhos que lhes é concedida pela CBF, que também gosta de dinheiro, poder, TV, etc., e assim caminha o futebol. Enfim, roubaram meu time.

(*) O nome do post: é que acho tão bonito o título deste oratório de Handel que resolvi usar. Alguma coisa contra? Do original italiano: Il Trionfo del Tempo e del Disinganno. Nesta obra filosófica, escrita por Handel aos 22 anos sobre libreto de Benedetto Pamphilj, está a famosa e espetacular ária Lascia la spina, cogli la rosa, a preferida de tantos cineastas.

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Pó de parede, de Carol Bensimon

Observação inicial: Quando peguei este Pó de parede, logo pensei: ih, autora gaúcha, lá vem confusão. Acontece que alguns comentaristas sulinos ficaram nervosos quando achei apenas correto o romance Música Perdida de Luiz Antônio de Assis Brasil ou repetitivos alguns Noll. Há pessoas que vêem política, interesse e “intenções” suspeitas nessas curtas anotações diletantes a que chamo pretensiosamente de resenhas e cuja maior motivação é, singelamente, a de não esquecer o livro. Claro que nelas revelo o maior ou menor prazer que tive ao terminá-lo, mas, pô, nada de nervos, gente.

Carol Bensimon veio recomendadíssima: aposta de Luiz Ruffatto na Bravo!, artigo na Aplauso, além de elogios ouvidos aqui e ali a uma jovem escritora e é óbvio que comprei seu belo livro de estréia na Feira, obra da também gaúcha Não Editora.

Pó de parede é formado de três novelas na tradição de alguns volumes muito queridos meus: há as três clássicas de Tolstói na tradução de Boris Schnaiderman, Sonata a Kreutzer, A Felicidade Conjugal e A Morte de Ivan Illich; as três de Turguenev, O primeiro amor, Ássia e Águas primaveris; as três de Flaubert, Uma alma simples, A lenda de São Julião Hospitaleiro e Herodíade; as três de James, A lição do mestre, O desenho no tapete e A vida privada; ou seja, parece que os autores ou os editores gostam do formato do trio de novelas. Mas vamos ao livro.

A primeira surpresa é a inventiva prosa de Carol. Ela tem um pensado trabalho de linguagem em que toda rebarba fica de fora, mas o resultado não é daquele gênero no qual a inteligência e o suor do autor acabam por sufocar quem lê; não, o resultado é leve, coloquial e poético. Seus diálogos, por exemplo, são ótimos, transcritos de forma pouco convencional, variando entre o formato utilizado por Saramago, o de Pedro Rosa Mendes e disposições que parecem poesia, soltas no ar. O texto é pontuado por analogias muito próprias e femininas, distantes de quaisquer clichês ou influências reconhecíveis. Sim, Carol Bensimon é excelente escritora.

Todas as histórias tem o ponto comum de referirem-se a casas. É como um jazzista que repete o tema tocado pelo solista anterior para dar unidade à música. A primeira história, A caixa, é muito bonita. Dividida em capítulos cujos títulos são os anos em que se passa a ação, A caixa acaba por ser um mosaico de onde emerge clara a amizade entre Laura e a narradora. Falta céu é a melhor das três novelas. É curta mas trata de um grande número de personagens contra um triste cenário de construção-desconstrução. É uma novela nada esquecível, realista, de boa história, personagens bem construídos e polifonia arrebatadora. Capitão Capivara é bem humorado e simples, possuindo o clima triste de alguns filmes de Allen e Altman, com personagens insatisfeitos vivendo num estranho Sanatório Berghof que faz marketing adoidado.

Boa escritora, poética e delicada, Carol Bensimon não fala de seu umbigo, não se apóia apenas em sexo e violência e muito menos naquela autenticidade “do caralho”. Acho que só faz parte da Nova Literatura por fazer literatura e ser bem novinha. 26 anos, imaginem.

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E-mail do Conselho Estadual de Cultura / RS

Prezado Senhor,

O Conselho Estadual de Cultura, tendo em vista a “gestão democrática da política cultural” constante de suas funções específicas (Const.do Estado, art.225) e do estabelecido na Lei 11.289/98, art.11º,§2º, tem a honra de convidar Vossa Senhoria para, em conjunto com pessoas ligadas à área cultural, comparecerem a uma reunião de caráter público com a finalidade de debater e fixar posições comuns em defesa dos interesses da comunidade cultural, da funcionalidade e transparência do Sistema LIC e da soberania do Conselho em face das distorções contidas no PL n°294/2008, que visa a instruir o “Sistema Unificado de Apoio e Fomento às Atividades Culturais – Pró-Cultura”.

Encarecemos a necessidade e importância da presença de todos.

Local: Rua Carlos Chagas nº 55, 11º andar – Auditório
Data: Quarta-Feira, 26 de Novembro de 2008
Horário: 18hs

Atenciosamente,

Mariangela Grando
Cons. Presidente

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Ufa!

Enfim, a rodada perfeita. Estamos livres de ver o Grêmio campeão brasileiro. Apoiado no excelente trabalho de um técnico que é detestado pelos torcedores e envergonha a diretoria do clube — tanto que os dois candidatos à presidência evitaram o menor elogio ao técnico antes das eleições –, o Grêmio foi muito além do esperado pelo razoável. Teve resultados que só podem ser atribuídos ao Sobrenatural de Almeida: 2 x 1 no Botafogo, 1 x 0 no Santos, 1 x 0 no São Paulo, 1 x 0 no Ipatinga, 1 x 0 no Sport, 1 x 0 no Palmeiras e 2 x 0 no Coritiba. Foram 14 pontos ganhos com gols casuais. Todas estas vitórias, foram conseguidas através de gols contra, um gol em completo impedimento e muitas bolas que batiam em zagueiros, enganando os goleiros.

Claro que tudo isto é normal — até os erros de arbitragem são normais –, não houve corrupção nem roubo e não é proibido ter sorte, só que ela estava beneficiando sempre o mesmo time. Imaginem se o time fosse bom! Ontem, o Grêmio mereceu fazer o primeiro gol, mas é óbvio que ele só aconteceu quando um zagueiro do Vitória desviou a bola de seu goleiro. Quase enlouqueci. Para ficar maluco de vez, botei o Like Evil do Miles Davis a toda altura e ainda vi o Vitória perder dois gols incríveis e bem construídos no final do primeiro tempo. Desliguei o som e fui comprar um remédio na farmácia. Levei o rádio e ouvi o comentarista Wianey Carlet, o mais imbecil do Brasil, dizer que a vitória era merecida e que o Grêmio estava “encaminhando um importante triunfo”. Acho que ele não viu o final do primeiro tempo, algo muito promissor que só poderia ser impedido por quantidades colossais de sorte.

Ainda estava na rua quando o Vitória manteve a tendência do final do tempo inicial e, em 3 minutos, o jogo já estava empatado e logo depois já estava 4 x 1. Ufa!

Mas a rodada também teve uma vitória do maior adversário do tricolor gaúcho, o tricolor paulista e, para deixar tudo mais colorido, houve um raríssimo erro de arbitragem, pois foi contra o Flamengo, instituição sempre aquinhoada pelos homens de preto sempre temerosos de críticas. Parabéns a Carlos Simon, que nos deu a alegria de ver ontem à noite a inédita película “Eu, C. R. F., 113 Anos, Roubada, Drogada e Prostituída”.

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Uma semana, um texto: E se Obama fosse africano?, de Mia Couto

Este texto circulou bastante na semana que hoje finda. Também pudera! Li-o primeiro no Azenha e acabo de receber um e-mail de um dos intelectuais que mais entendem de África no Brasil, não apenas por isto mas também por ter residido em Moçambique. É uma perspectiva diversa descrita pelo notável escritor António Emílio Leite Couto ou simplesmente Mia Couto.

E se Obama fosse africano?

Por Mia Couto.

Os africanos rejubilaram com a vitória de Obama. Eu fui um deles. Depois de uma noite em claro, na irrealidade da penumbra da madrugada, as lágrimas corriam-me quando ele pronunciou o discurso de vencedor. Nesse momento, eu era também um vencedor. A mesma felicidade me atravessara quando Nelson Mandela foi libertado e o novo estadista sul-africano consolidava um caminho de dignificação de África.

Na noite de 5 de Novembro, o novo presidente norte-americano não era apenas um homem que falava. Era a sufocada voz da esperança que se reerguia, liberta, dentro de nós. Meu coração tinha votado, mesmo sem permissão: habituado a pedir pouco, eu festejava uma vitória sem dimensões. Ao sair à rua, a minha cidade se havia deslocado para Chicago, negros e brancos respirando comungando de uma mesma surpresa feliz. Porque a vitória de Obama não foi a de uma raça sobre outra: sem a participação massiva dos americanos de todas as raças (incluindo a da maioria branca) os Estados Unidos da América não nos entregariam motivo para festejarmos.

Nos dias seguintes, fui colhendo as reacções eufóricas dos mais diversos recantos do nosso continente. Pessoas anónimas, cidadãos comuns querem testemunhar a sua felicidade. Ao mesmo tempo fui tomando nota, com algumas reservas, das mensagens solidárias de dirigentes africanos. Quase todos chamavam Obama de “nosso irmão”. E pensei: estarão todos esses dirigentes sendo sinceros? Será Barack Obama familiar de tanta gente politicamente tão diversa? Tenho dúvidas. Na pressa de ver preconceitos somente nos outros, não somos capazes de ver os nossos próprios racismos e xenofobias. Na pressa de condenar o Ocidente, esquecemo-nos de aceitar as lições que nos chegam desse outro lado do mundo.

Foi então que me chegou às mãos um texto de um escritor camaronês, Patrice Nganang, intitulado: “E se Obama fosse camaronês?”. As questões que o meu colega dos Camarões levantava sugeriram-me perguntas diversas, formuladas agora em redor da seguinte hipótese: e se Obama fosse africano e concorresse à presidência num país africano? São estas perguntas que gostaria de explorar neste texto.

E se Obama fosse africano e candidato a uma presidência africana?

1. Se Obama fosse africano, um seu concorrente (um qualquer George Bush das Áfricas) inventaria mudanças na Constituição para prolongar o seu mandato para além do previsto. E o nosso Obama teria que esperar mais uns anos para voltar a candidatar-se. A espera poderia ser longa, se tomarmos em conta a permanência de um mesmo presidente no poder em África. Uns 41 anos no Gabão, 39 na Líbia, 28 no Zimbabwe, 28 na Guiné Equatorial, 28 em Angola, 27 no Egipto, 26 nos Camarões. E por aí fora, perfazendo uma quinzena de presidentes que governam há mais de 20 anos consecutivos no continente. Mugabe terá 90 anos quando terminar o mandato para o qual se impôs acima do veredicto popular.

2. Se Obama fosse africano, o mais provável era que, sendo um candidato do partido da oposição, não teria espaço para fazer campanha. Far-Ihe-iam como, por exemplo, no Zimbabwe ou nos Camarões: seria agredido fisicamente, seria preso consecutivamente, ser-Ihe-ia retirado o passaporte. Os Bushs de África não toleram opositores, não toleram a democracia.

3. Se Obama fosse africano, não seria sequer elegível em grande parte dos países porque as elites no poder inventaram leis restritivas que fecham as portas da presidência a filhos de estrangeiros e a descendentes de imigrantes.

O nacionalista zambiano Kenneth Kaunda está sendo questionado, no seu próprio país, como filho de malawianos. Convenientemente “descobriram” que o homem que conduziu a Zâmbia à independência e governou por mais de 25 anos era, afinal, filho de malawianos e durante todo esse tempo tinha governado ‘ilegalmente”. Preso por alegadas intenções golpistas, o nosso Kenneth Kaunda (que dá nome a uma das mais nobres avenidas de Maputo) será interdito de fazer política e assim, o regime vigente, se verá livre de um opositor.

4. Sejamos claros: Obama é negro nos Estados Unidos. Em África ele é mulato. Se Obama fosse africano, veria a sua raça atirada contra o seu próprio rosto. Não que a cor da pele fosse importante para os povos que esperam ver nos seus líderes competência e trabalho sério. Mas as elites predadoras fariam campanha contra alguém que designariam por um “não autêntico africano”.

O mesmo irmão negro que hoje é saudado como novo Presidente americano seria vilipendiado em casa como sendo representante dos “outros”, dos de outra raça, de outra bandeira (ou de nenhuma bandeira?).

5. Se fosse africano, o nosso “irmão” teria que dar muita explicação aos moralistas de serviço quando pensasse em incluir no discurso de agradecimento o apoio que recebeu dos homossexuais. Pecado mortal para os advogados da chamada “pureza africana”. Para estes moralistas – tantas vezes no poder, tantas vezes com poder – a homossexualidade é um inaceitável vício mortal que é exterior a África e aos africanos.

6. Se ganhasse as eleições, Obama teria provavelmente que sentar-se à mesa de negociações e partilhar o poder com o derrotado, num processo negocial degradante que mostra que, em certos países africanos, o perdedor pode negociar aquilo que parece sagrado – a vontade do povo expressa nos votos. Nesta altura, estaria Barack Obama sentado numa mesa com um qualquer Bush em infinitas rondas negociais com mediadores africanos que nos ensinam que nos devemos contentar com as migalhas dos processos eleitorais que não correm a favor dos ditadores.

Inconclusivas conclusões

Fique claro: existem excepções neste quadro generalista. Sabemos todos de que excepções estamos falando e nós mesmos moçambicanos, fomos capazes de construir uma dessas condições à parte.

Fique igualmente claro: todos estes entraves a um Obama africano não seriam impostos pelo povo, mas pelos donos do poder, por elites que fazem da governação fonte de enriquecimento sem escrúpulos.

A verdade é que Obama não é africano. A verdade é que os africanos – as pessoas simples e os trabalhadores anónimos – festejaram com toda a alma a vitória americana de Obama. Mas não creio que os ditadores e corruptos de África tenham o direito de se fazerem convidados para esta festa.

Porque a alegria que milhões de africanos experimentaram no dia 5 de Novembro nascia de eles investirem em Obama exactamente o oposto daquilo que conheciam da sua experiência com os seus próprios dirigentes. Por muito que nos custe admitir, apenas uma minoria de estados africanos conhecem ou conheceram dirigentes preocupados com o bem público.

No mesmo dia em que Obama confirmava a condição de vencedor, os noticiários internacionais abarrotavam de notícias terríveis sobre África. No mesmo dia da vitória da maioria norte-americana, África continuava sendo derrotada por guerras, má gestão, ambição desmesurada de políticos gananciosos.

Depois de terem morto a democracia, esses políticos estão matando a própria política.

Resta a guerra, em alguns casos. Outros, a desistência e o cinismo.

Só há um modo verdadeiro de celebrar Obama nos países africanos: é lutar para que mais bandeiras de esperança possam nascer aqui, no nosso continente.

É lutar para que Obamas africanos possam também vencer. E nós, africanos de todas as etnias e raças, vencermos com esses Obamas e celebrarmos em nossa casa aquilo que agora festejamos em casa alheia.

Jornal “SAVANA” – 14 de Novembro de 2008

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Algumas reflexões irresponsáveis sobre música

Não sou tão original quanto Glenn Gould. Gosto de concertos e de gravações ao vivo. Acho as últimas quase sempre superiores às de estúdio. Frequento concertos – principalmente aqueles de preços camaradas – e creio que eles sejam experiências fundamentais tanto para o músico quanto para a platéia. Ver uma obra ser interpretada é uma experiência muito diferente de apenas ouvi-la. O jogo entre os instrumentos, a dinâmica, o trabalho dos grupos instrumentais de uma orquestra, por exemplo, é algo que enriquece muito a audição e, quando voltamos a ouvir a mesma música em nossa casa, as imagens da execução nos acompanharão.

Mas tenho restrições à escolha de repertório da esmagadora maioria dos concertos, quase conservadoras e heterogêneas. A escolha é conservadora porque o solista e o produtor não gostam de arriscar, trilhando via de regra o batido mainstream do repertório. Porém, amigos, há uma imensa distância entre o repertório destes museus sonoros que são nossas atuais salas de concerto e a variedade da oferta de música em CD ou em mp3. Tal distância não precisaria ser tão grande, até porque, excetuando-se os casos Gould-like, quem grava normalmente já apresentou a obra em concertos. Mas nos concertos terceiromundistas… Mesmo que um solista ou grupo tenha maior intimidade com determinado compositor ou período, os executantes apresentarão as obras mais óbvias e conhecidas, as de aplauso fácil. Não parece haver grande interesse em surpreender o público com algo diferente. E a heterogeneidade? Credo, dia desses fui a um concerto onde eram interpretados Mozart, Rossini, música para “trompa alpina”, Shostakovich e Bartók. Alguém pode conceber cardápio mais variado? Qual é a intenção? É a de satisfazer o maior número de ouvintes ou irritá-los?

Já no amplo mundo dos CDs existe oferta de todo o tipo de música, há a possibilidade de se ouvir 90% das obras dos principais compositores. Os catálogos das gravadoras são potencialmente sempre crescentes, podem ir se ampliando através dos anos (principalmente no caso da Naxos, que tem este objetivo). Hoje — se pudermos dispor de muito dinheiro e de um considerável limite de crédito em nosso cartão internacional –, podemos realizar qualquer desejo auditivo. Se você quiser a integral das Cantatas de Bach, por exemplo, basta pagar uns R$ 3.000,00 que logo chegarão via Sedex centenas de cantores berrando a sua casa.

A parte financeira é um tremendo problema para alguém que seja doido por música clássica. Os blogs como PQP Bach e seus congêneres resolvem parcialmente o caso. Nossa necessidade de ouvir diferentes gravações de uma obra que amamos é uma coisa que o ouvinte comum não entende. Uma vez que The White Album dos Beatles foi adquirido, o problema está resolvido. O Álbum Branco sempre será o melhor registro do Álbum Branco, creio. O resto são regravações de músicas isoladas. O mesmo não vale para uma sonata de Beethoven, até porque Beethoven não deixou quaisquer registros sonoros… Simplesmente temos uma grave compulsão por ouvir a sonata x por Pollini, Arrau, Freire, Uchida, Richter, Gould, Pires, Kissin, Gilels, etc. Amigos meus que só se interessam por literatura ficam pasmos ante a necessidade de se ouvir (ou possuir) várias gravações da mesma sonata. Para quê, perguntam eles? Eles não imaginam a nossa felicidade ao descobrirmos aquele pequeno detalhe, aquela sutil intenção do compositor que apenas Pollini ou outro regente ou solista soube mostrar. Eles não imaginam como podemos discordar alegremente elogiando ou detratando uma concepção que esteja muito perto ou longe daquilo que nosso ouvido considera o ideal.

A gente é assim, não adianta. A gente gosta é disso que transcrevo a seguir (transcrição ipsis litteris deste post, que é meu):

Numa noite fria do século XVIII, Bach escrevia a Chacona da Partita Nº 2 para violino solo. A música partia de sua imaginação (1) para o violino (2), no qual era testada, e daí para o papel (3). Anos depois, foi copiada (4) e publicada (5). Hoje, o violinista lê a Chacona (6) e de seus olhos passa o que está escrito ao violino (9) utilizando para isso seu controverso cérebro (7) e sua instável, ou não, técnica (8). Do violino, a música passa a um engenheiro de som (10) que a grava em um equipamento (11), para só então chegar ao ouvinte (12), que se desmilingúi àquilo.

Na variação entre todas essas passagens e comunicações, está a infindável diversidade das interpretações. Mas ainda faltam elos, como a qualidade do violino – e se seu som for divino ou de lata, e se ele for um instrumento original ou moderno? E o calibre do violinista? E seu senso de estilo e vivências? E o ouvinte? E… as verdadeiras intenções de Bach? Desejava ele que o pequeno violino tomasse as proporções gigantescas e polifônicas do órgão? Mesmo?

E depois tem gente que acha chata a música erudita…

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Ciências Morais, de Martín Kohan

Mais do que um livro sobre a ditadura, Ciências Morais é um livro de ditadura. Parece que Kohan resolveu investir no estilo metafórico dos livros escritos durante as ditaduras, mesmo que a Argentina viva outros dias. O livro foca sua narrativa em María Teresa, uma inspetora do tradicional Colégio Nacional de Buenos Aires. Ela vigia seus alunos, e como! Sua atuação visa tanto o bom comportamento deles como também suas roupas, cabelos, uniformes, postura, postura nas filas, etc. María Teresa tem singular tendência a reprimir as inclinações sexuais, mas parece gostar de ser alvo das mesmas. Procura sistematicamente problemas nos alunos, mas, acima dela, apenas obedece e seus pensamentos são simples. Kohan pouco acompanha sua personagem principal fora do colégio. Sabemos de uma mãe e quase nada sobre um irmão que está longe, preparando-se para a Guerra das Malvinas, mas nem isto é claro para um leitor que, por exemplo, viesse de Marte, pois muita coisa neste livro é não-dita.

As metáforas utilizadas por Kohan funcionam bem, apesar de não serem as mais elegantes ou sutis. Um dia, María Teresa, resolve pegar os alunos fumantes no banheiro masculino, o único local privado do colégio, para onde eles deveriam se dirigir a fim de darem suas tragadas. Com uma lógica muito própria, quer fazer isso para demonstrar sua competência ao chefe dos inspetores, um pequeno fascista que se interessa sexualmente por María Teresa, não obstante sua impotência. Ela passa horas escondida lá. Até gosta. Um dia, passa a receber visitas em seu ponto de observação. Há medo, até terror, mas María submete-se a tudo.

É curiosa a forma como Kohan, ao mesmo tempo que realiza descrições minuciosas de tudo o que María vê, contorna pensamentos e motivações que devem ser sempre intuídos pelo leitor.

Ou seja, tudo são metáforas e lá pela metade começamos a duvidar de sua necessidade. É muita bruma turvando o óbvio. Todavia, são esplêndidas as descrições das ocorrências no banheiro e das tentativas de María para observar quem fazia uso dele. Suas reações aos acontecimentos nos sanitários recebem tratamento luxuoso de um grande descritor, mas acho que Kohan poderia ter utilizado sua arte de forma muito mais impactante. Penso até que sei como…

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A pista de gelo, de Roberto Bolaño

Este é o primeiro romance do Bolaño, publicado em 1993. Se A pista de gelo ainda não apresenta a furiosa polifonia dos livros seguintes, já temos três narradores alternando-se para contar uma falsa história detetivesca. O livro poderia também chamar-se “Era para ser um whodunit…”. Não digo isso por achar que A pista de gelo seja um fracasso como livro policial — não se trata de um fracasso, longe disso –, mas para reforçar o tom de paródia que o romance mantém por trás de sua originalidade. Ou seja, ele não quer ser um whodunit.

É um livro leve, curto, onde se pode espreitar o grande autor que viria a seguir. Três personagens oriundos do mundo literário, o empresário com pretensões literárias Remo Morán, o poeta lúmpen Gaspar Heredia e o político filha-da-puta Enric Rosqueles contam e participam da história que se passa no balneário de Z, na Espanha, durante um verão. A ação gira em torno da patinadora Nuria para a qual Rosqueles constrói uma pista de gelo num palacete abandonado, onde ocorre um assassinato. O crime ocorre na segunda metade do livro — prova de que Bolaño diverte-se mais com as vozes e suas interações — e o responsável pela morte é revelado quase de má vontade, com se fosse uma concessão ao leitor que, afinal, há de querer saber alguma coisa sobre aquele assunto. O que sobressai no livro é a notável capacidade de Bolaño para construir personagens, as cenas sempre montadas de forma sedutora e sua prosa ágil. Mesmo não sendo um policial típico — e como seria com aqueles narradores? –, é impossível largar o livro antes da última página. Coisas de um grande autor.

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Uma semana, um texto: Cristóvão Tezza: O filho eterno, de Idelber Avelar

Esse foi fácil. O melhor post que li esta semana foi lá de terça-feira passada e o copio a seguir.

Cristovão Tezza: O filho eterno

Por Idelber Avelar

Vencedor dos prêmios Jabuti e Portugal-Telecom, entre outros, e aclamado pela crítica, O filho eterno (2007), de Cristovão Tezza, leva a representação da experiência pessoal na ficção a um nível de auto-reflexividade raramente visto na literatura contemporânea. O protagonista do romance recebe a notícia de que será pai em meio a uma profusão de golpes à sua auto-estima. Sustentado pela mulher, seu trabalho é a escrita, mas nela fracassa, acumulando cartas de recusa das editoras e notas de eliminações em concursos literários. Na profissão, por outro lado, ele também experiencia a derrota: relojoeiro, seu ofício é, por excelência, anacrônico. Como escritor, ele ainda não é, além de não dar indicação de que poderá vir a ser; como relojoeiro, já não tem razão de existir. Esse intervalo termina se desdobrando numa temporalidade suspensa entre o fantasma da paralisia que espreita, de perto, e o resquício de atividade e iniciativa que lhe resta. Assim se encontra ele quando recebe a notícia de que será pai.

A abordagem desse inominado personagem à vida é um exame hipercrítico e cínico da natureza arbitrária, absurda, lotérica, errática dos fatos (p. 49). Trata-se da história de como o protagonista lidará com a paternidade em meio um colapso de outras zonas de sua masculinidade – história que é narrada numa terceira pessoa singular, original, caracterizada pelo uso do discurso indireto livre em quase a totalidade do volume. O efeito é de proximidade ao pensamento do personagem, já que o narrador fala como se estivesse “dentro” da sua cabeça. Essa vizinhança, no entanto, se inverte na relação do protagonista com o mundo, que é marcada pela distância. Revise-se os grandes mestres do indireto livre, de Jane Austen em adiante, e se encontrará poucos exemplos de exploração tão hábil da tensão entre a hiper-proximidade entre voz narrativa e personagem e, ao mesmo tempo, o hiper-distanciamento entre personagem e mundo. Vemos de perto um homem que só sabe ver de longe. O efeito é o de uma empatia impossível, agônica, entre protagonista e leitor.

No corredor do hospital, esperando a mulher dar à luz, ele fuma, marcha descompassadamente, se angustia. Marcado pelo destempo, ele chega atrasado à cena que o constitui. Só no dia seguinte ao parto, junto aos indefectíveis parentes, ele inteira-se: a criança nascera com Síndrome de Down. O filho eterno é a meticulosa mas sucinta narração desse encontro da paternidade “fracassada” com uma masculinidade já em frangalhos, num mundo em que a Síndrome de Down vai progressivamente adquirindo o caráter de emblema, alegoria de uma outra relação com o tempo, que poderíamos chamar de presente perpétuo.

Estamos no Brasil de 1980, onde “Síndrome de Down” ainda é termo exclusivamente médico. No léxico possível de seu tempo, o seu filho era um mongolóide, vocábulo que carrega essa curiosa herança do colonialismo inglês, que batizou descapacitações com o nome de etnias. A natureza arbitrária, absurda, lotérica, errática dos fatos dera o veredito de trissomia daquele vigésimo-primeiro cromossomo, daquele em particular. A partir daí o protagonista, um pequeno burguês que solta a franga, como bem disse Ney Reis em sua resenha, está condenado ao contato com uma classe que despreza – a dos médicos – e ao mesmo tempo a viver a medicina como desdemonização do mundo por excelência, antídoto definitivo contra as explicações mágicas. A medicina entra no relato de Tezza como confirmação da natureza lotérica da existência.

Um dos primeiros devaneios que visita o personagem é o de que, por tudo o que lera, as crianças com Síndrome de Down morrem mais facilmente e, em geral, mais cedo. O pesadelo talvez não dure tanto, afinal. O leitor tem acesso a essas fantasias monstruosas através de uma voz narrativa que esvazia, de antemão, todo julgamento moral. Só uma gigantesca viseira poderia levar a uma leitura d’ O filho eterno como parábola moralizante. O texto, claramente, se recusa a submeter o personagem à prova moral, e opta pela observação da sua labuta de ir compreendendo a amoralidade essencial de todas as coisas. Ele não é, claramente, um “além-homem” nietzscheano. Não vive no mundo afirmativo da alegria. Trata-se, ao contrário, do espécime ressentido e hiper-interpretativo que em língua nietzscheana chamaríamos de “último homem.”

As matérias-primas do romance de Tezza são, portanto, uma masculinidade em frangalhos, a paternidade “fracassada” e depois lentamente reaprendida, e um tempo repartido entre o presente-intervalo (do pai) e o presente-perpétuo (do filho). Nas 220 enxutas páginas, com freqüência se alternam parágrafos que descrevem o período anterior ao nascimento de Felipe — os anos do pai em Portugal e na Alemanha, como trabalhador ilegal — e o presente em que vai crescendo o garoto, entre 1980 e 2005. Em algumas ocasiões, o deslocamento temporal se produz, habilmente, no interior do mesmo parágrafo. Os saltos ao presente retratam o aprendizado descontínuo, quebrado, capenga de Felipe, que um dia, acidentalmente descobre o futebol como imagem da contigência, da natureza pendente e inacabada do mundo.

Felipe, 20 e poucos anos, não lê, não escreve, mas viaja na seqüência interminável de páginas da internet. Constrói pastas que nomeia como ATLTEICO ou ALTLETICO, sempre com uma letra trocada (p.217). Procura no Google o ônibus do Clube Atlético Paranaense. Começa a viver as partidas de futebol como experiências que, ao contrário do joguinho da FIFA que ele roda no computador, são imprevisíveis, nesse que é o mais fatalista e contingente dos esportes. A imprevisibilidade do futebol vai dando a Felipe uma idéia de “futuro” e através do conceito de campeonato ele entende o de calendário. O encadeamento de jogos funciona como metáfora inteligível do devir, da passagem do tempo, mesmo que continue uma tremenda confusão sobre o que é Campeonato Brasileiro, Copa do Brasil, Libertadores ou Campeonato Paranaense. Na medida em que Felipe vai vislumbrando algo para além do presente-perpétuo, o próprio protagonista passa a tecer outra relação – ainda precária, mas parcialmente efetiva – com sua existência no tempo e sua condição de homem e de pai.

Esse sutil deslocamento, modesto, limitado, nada triunfante, é o irredutível gesto afirmativo d’O filho eterno, sem dúvida um dos poucos romances realmente extraordinários publicados no Brasil no século que se inicia.

P.S.: Este post é parte de um trabalho bem mais longo, sobre a masculinidade na narrativa brasileira, de Fernando Gabeira – O que é isso, companheiro? (1979) e Crepúsculo do macho (1980) – a Caio Fernando Abreu – Morangos mofados — (1988) e Cristovão Tezza. Apresento-o (em inglês) nesta quarta-feira no meu ex-lar, a Universidade de Illinois, em Urbana-Champaign, a cujos professores — especialmente o compatriota Luciano Tosta — agradeço pelo convite. U of I é uma das melhores universidades públicas dos EUA e dona orgulhosa da terceira maior biblioteca universitária americana.

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Crise na Cultura: a posição do SATED/RS (Sindicato dos Artistas e Técnicos de Espetáculos)

Acabo de receber um comentário e um e-mail dando conta de mais esta manifestação sobre a crise na Secretaria de Cultura do Estado do Rio Grande do Sul, hoje sob a irresponsabilidade da especialista Mônica Leal. Aqui, o site do SATED/RS.

A Lei de Incentivo à Cultura, nº 10.846/96 – LIC – foi criada para abrigar, financiar e fomentar, com recursos públicos, diversos segmentos da produção cultural independente. Um mecanismo de financiamento à Cultura, tão importante e necessário, no entanto, sempre funcionou com uma administração frágil, desaparelhada de recursos humanos e materiais e submetida ao caráter e aos objetivos personalistas e injunções políticas e partidárias de seus gestores. Que insistem numa tentativa de domesticar instâncias representativas gerando um uso e interpretações diferentes entre órgãos de Estado e de Governo, neste caso o Conselho Estadual de Cultura – CEC/RS e a Secretaria de Cultura – SEDAC, onde o primeiro não quer e nem deve ser subserviente ao segundo.

E agora, chegamos ao seu momento mais crítico e agudo, onde a falta de mecanismos de fiscalização, o descontrole na tomada de contas dos projetos –, que resultou num passivo de centenas de processos esperando na fila do Setor de Tomadas de Contas – da LIC, levam o Sistema a sua quase total paralisação.

Apesar da criação destes bem-vindos e modernos mecanismos de gestão compartilhada, os gestores e legisladores esqueceram o principal: a Lei não funcionaria se, a par de todos os instrumentos de financiamentos públicos às atividades culturais, não houvesse um suporte com medidas encadeadas por uma série de ações administrativas, as quais, necessariamente, devem acompanhar a execução de qualquer Política Pública, principalmente na área da Cultura, como por exemplo: a implantação de um robusto e bem estruturado sistema, que agregasse outras ferramentas de apoio e fomento aos produtores culturais servindo de estímulo e qualificação; orçamento compatível, possibilitando habilitar o Estado às condições necessárias que viabilizasse a máquina administrativa dos órgãos de apoio; que lograsse financiá-los com recursos orçamentários, qualificando-os com os investimentos necessários para ampliar a base de serviços à população e a comunidade cultural e com os instrumentos competentes para prover os aparelhos de Estado já constituídos, das condições próprias de manutenção, entre outros.

Mas, ao contrário de nossas expectativas, vimos os orçamentos da Cultura minguar a cada ano; o surgimento de dezenas de associações culturais, empresas de marketing, consultorias, etc., cujo objetivo principal era aceder aos recursos da LIC para financiar projetos e eventos de interesse dos próprios governos; o desmanche dos aparelhos culturais da capital e o abandono daqueles poucos existentes no interior e; o congelamento dos recursos destinados à LIC, que desde 1998, destina o mesmo valor aos projetos culturais financiados pela Lei, contrariando reiteradamente o princípio legal de observância do percentual ali estabelecido!

Não demorou a que os recursos oriundos do Incentivo Fiscal, concedidos aos projetos dos próprios governos, chegassem a consumir metade dos valores disponíveis ao apoio da produção independente de cultura. E lá estavam os produtores culturais a disputar com as intermináveis associações de amigos e prefeituras municipais, os restritos recursos disponíveis, numa clara demonstração de concorrência desleal.

Isso sem contar os inúmeros ataques e ameaças à sua sobrevivência, enfrentadas pela Lei, nas sucessivas mudanças de governo, através das intermináveis edições de Instruções Normativas, sem força de lei, alterando constantemente as regras para apresentação, financiamento e tomada de contas aos projetos incentivados. Criou-se um cipoal de normas contraditórias entre si que, agora se vê, escancararam as portas para fraudes e irregularidades.

O resultado aí está e não poderia ser outro: falsificações de assinatura, desvios de objetivos dos projetos, relatório de contas com notas frias, corrupção entre os agentes culturais, órgãos de governo e de Estado, produtores e empresas patrocinadoras; descredenciamento sem critérios claros de 3000 produtores culturais e a conseqüente ameaça ao funcionamento do Sistema.

No calor da crise, a Casa Civil do atual Governo anunciou um Grupo de Trabalho formado por órgãos de Governo, de Estado e da sociedade civil. No entanto, tal representação jamais se reuniu e, ao invés disso, o Governo encaminha, agora, à Assembléia Legislativa, sem haver tido diálogo algum com a classe cultural, projeto de lei para modificar o texto legal da LIC. O resultado que se espera não é mais do que um conteúdo de intuito repressor que pouco ou nada auxilie nas pesadas fráguas advindas da crise no Sistema LIC e que, tampouco, aporte soluções para a falta de políticas públicas de cultura que afeta o setor!

E, para nosso cabal estarrecimento, temos que conviver com a constrangedora realidade de que os recursos previstos para investimentos da Secretaria da Cultura são de apenas R$ 130 mil, em 2009, o menor entre todas as Secretarias de Estado. E para o Fundo de Apoio à Cultura (FAC) a destinação de escandalosos R$ 15 mil!

É chegada à hora da classe cultural e artística do RS deixar claro quais são os interesses que estão em risco com a deflagração de um desmonte na Cultura do RS, que é ao mesmo tempo, institucional e de gestão, e que tem como saldo, prejuízos irrecuperáveis ao conjunto da sociedade gaúcha.
Neste sentido, vimos a público exigir das autoridades gestoras e legisladoras a tomada imediata de ações que garantam a continuidade da produção cultural do Rio Grande do Sul, defendendo como indispensáveis as seguinte medidas a serem tomadas em caráter de emergência:

– Apuração imediata dos responsáveis pelas irregularidades e a correição de atos solidários às fraudes, praticados pela autoridade gestora;

– Implantação e dotação orçamentária robusta ao Fundo de Apoio à Cultura, com recursos próprios do Orçamento e sua imediata implantação;

– Fim do acesso a projetos e eventos de interesse dos Governos aos recursos públicos financiadores de iniciativas culturais, realizados através da Lei de Incentivo à Cultura;

– Discussão ampla e democrática sobre a criação de novas ferramentas fomentadoras da produção cultural independente;

– Dotação orçamentária própria para o financiamento de projetos e eventos de interesse governamental;

– Implantação de fundo orçamentário para o apoio ao financiamento das Políticas Públicas de Cultura no âmbito dos municípios;

– Revisão e atualização do texto legal da Lei 10.846/96, que atenda ao conjunto de interesses e diversidades dos agentes culturais por ela beneficiados;

– Inclusão, no seu Decreto Regulamentador, de regras que substituam, de forma definitiva, o manancial de Instruções Normativas, pondo fim ao tumulto institucional causado pelo excesso de instrumentos regulamentadores sem força de Lei;

– Aporte de 1% do orçamento total do Estado para financiar a estrutura governamental ligada à Cultura, gestão e manutenção dos equipamentos culturais e implantação de políticas públicas de fomento às atividades ligadas ao setor, conforme determinado pela UNESCO, em convenção internacional e;

– A nomeação, em caráter de urgência, de novo titular na SEDAC, dando à Cultura do Estado a oportunidade de ter uma política cultural pública forte e comandada por autoridade com conhecimento profundo e experiência na área, e a retomada imediata do diálogo entre Governo e Comunidade Cultural;

SATED/RS ASGADAN, FÓRUM PONTOS DE CULTURA/RS, FÓRUM PERMANENTE DE MÚSICA/RS, FÓRUM PERMANENTE DE ECONOMIA DA CULTURA, AGTB, ESCOLA DE SAMBA ACADÊMICOS DA ORGIA, ESCOLA DE SAMBA FILHOS DA CANDINHA, AXÊ ARTE E CIDADANIA, SOCIEDADE CULTURAL FLORESTA AURORA, CIRCULO DE PRODUÇÃO CULTURAL.

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Vá e veja, a obra prima absoluta dos filmes de guerra

Finalmente, Vá e Veja ganhou edição nacional em DVD. Filme que nunca foi apresentado em circuito comercial no Brasil (*), tornou-se objeto de culto de uns poucos quando de seu lançamento em VHS, na década de 80. Meu amigo S. — o mesmo deste post – disse-me que os três maiores filmes de guerra já realizados teriam sido Stalingrado, de Joseph Vilsmaier; Glória feita de sangue, de Stanley Kubrick, e Vá e veja, de Elem Klimov (1933-2003). Tenho os três em casa, vi muitos outros e creio que a escolha de S. não é apenas muito boa como inclui o maior filme de guerra de todos os tempos: o espantoso Vá e Veja.

Meu exemplar foi batalhadíssimo. Enfrentei a doída conversão de um VHS milenar para DVD no único intuito de mostrá-lo aos amigos. Quando passei o filme para eles, voltei a constatar o efeito que teve sobre mim ao vê-lo pela primeira vez. Alguns diziam: “é muito bom, é muito, mas muito forte, nunca tinha visto algo assim”. Tal efeito, meus amigos, só se consegue com uma poética muito especial, só se consegue com a narrativa de uma história focada num homem comum e que logra chegar a tal grau de realismo que o filme gruda-se a ele, ao personagem principal, um adolescente. Quando estoura uma bomba muito perto de Fliora, passamos ouvindo por momentos todos os sons distorcidos, como se estivéssemos igualmente ensurdecidos, afetados pelo estouro. Se fosse um romance, seria escrito na primeira pessoa do singular.

O filme trata da história de Fliora, o adolescente que pega o rifle da família a fim de juntar-se aos guerrilheiros soviéticos para expulsar o que sobrava do exército alemão no período final da guerra. O problema do filme é que o ódio dos soviéticos é respondido por um estranho inimigo que não tem nada a perder e que está de qualquer forma retirando-se, só que esta retirada é a de quem está desesperado por voltar a um país que não é mais aquele que deixou mas outro, totalmente destruído. Ou, pior, sabem que retornam para a morte ou para a prisão, ou seja, é uma retirada para o nada. E os nazistas vão torturando e matando o que podem à medida que vão embora de uma União Soviética a qual dedicam todo seu rancor, pois foi ela, afinal, quem lhes ganhou a guerra. Fliora, por seu lado, também perdeu tudo: familiares, amigos, juventude e chão. Esta espiral de ódio respondido por mais ódio é tal forma represada, a loucura é de tal forma armazenada por Klímov que o final do filme é a maior catarse cinematográfica que já vi e senti.

É um filme onde a loucura e a mortandade da guerra é mostrada de forma absolutamente artística e que, paradoxalmente, resulta clara, sem estilizações. Todos perdem neste épico sem heróis e inteiramente destituído de triunfalismo. Toda a arte de Klímov está trabalhando para o maior impacto sobre o espectador. Guerra é loucura, violência e raiva. O rosto do adolescente Fliora ao final do filme — um velho prematuro — é o mais inadequado rosto de vencedor que o cinema já mostrou. E o fato de apresentar documentários nazistas de trás para frente, mostrando — novamente unido ao personagem principal — toda a vontade de Fliora de desfazer a guerra e seu sofrimento é o achado final de Vá e Veja. Espero que agora o filme saia de seu restrito círculo de admiradores e seja finalmente visto, como seu nome recomenda.

Abaixo, todo o filme, mas gostaria de referir-me àquela parte que começa a 1h05min30seg, aos oito minutos finais. Tudo já aconteceu e quase nada é dito. Vale pelo significado das imagens. A música da primeira parte é, naturalmente, de Wagner, misturada a hinos nazistas e discursos; a segunda tem como trilha o Réquiem de Mozart. No ano do lançamento, Vá e Veja teve cerca de 29 milhões de espectadores na ex-União Soviética (como comparação, Titanic, o recordista do mercado brasileiro, teve 16,3 milhões). Portanto, sua relevância não é somente artística.

Vá e Veja (Idi i Smotri/Come and See URSS 1985) de Elem Klimov com Aleksei Kavchenko:

O filme ‘Vá e Veja’ é um dos mais duros e sensoriais retratos da Guerra. Ela vem pelo olhos de um menino camponês de 12 anos, convocado para a batalha entre a resistência e os nazistas pelo domínio da Bielorrússia. É o fim da Guerra, os alemães estão voltando para um país que não há mais e vão destruindo o que lhes passa pela frente. O ódio é incontrolável. Poucas vezes a Guerra no cinema foi retratada com imagens e sons tão impressionantes. Um verdadeiro filme de horror, onde toda ameaça pode surgir a qualquer momento. O roteiro são memórias da infância do próprio roteirista Ales Adamovich, um sobrevivente. ‘Vá e Veja’ pouco faz uso de imagens explícitas, mas a forma como Elem Klímov usa a câmera causa um dano emocional sem paralelos no espectador. (Aquela cena do retorno à aldeia natal onde o espectador vê o que o personagem ainda não viu… O que é aquilo?). É um pesadelo entre o surreal e o onírico, com um impressionante senso de SOM, ESPAÇO e ATMOSFERA.
É o pai dos filmes de guerra. Desde o começo, quando o filme “fica surdo” no momento em que uma bomba explode ao lado do menino, até os minutos finais. É a Sinfonia de Klímov.

(*) Informação contestada provavelmente com razão pela Helen nos comentários.

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O Imprescindível na Música Erudita – Parte I

Obviamente, isto será uma espécie de “Eu e a Música”. As opiniões que emito são perecíveis até para mim mesmo. O que posso é repassar minha grande vivência como ouvinte. Mais: ao iniciar esta série, estava em dúvida sobre o formato a escolher. Poderia estabelecer as clássicas divisões de música antiga, barroca, clássica, romântica, primeiros nacionalistas, etc. e preenchê-las com as obras principais, mas fui seduzido pelo formato cronólogico simples, pois dá maior margem a discussões e demonstra claramente os compositores tardios e os que estiveram a frente de seu tempo.

Farei uma longa lista de obras e, quando achar necessário detalhar algum fato sobre um autor importante, paro e escrevo, ora. Um blog é um exercício de liberdade e, assim como posso escolher um assunto tão impopular como a música erudita, posso mudar de idéia a qualquer momento.

IMPORTANTE: muitas das obras aqui listadas estão disponíveis na Internet. Como usuário do P.Q.P. Bach, utilizarei preferencialmente este blog.

1607 – Orfeu, de Claudio Monteverdi (1567-1643). Talvez seja a primeira ópera digna deste nome. Foi composta para um casamento na corte dos Gonzaga. Abaixo, um afresco da Camera degli sposi.

Monteverdi foi um renovador muito contestado e perseguido. Apesar de ainda submetido ao gosto da época pela mitologia grega, Orfeu é uma grande novidade. Foi a primeira vez que a música e o contexto sonoro contribuíram de forma eficiente para contar uma história. Alban Berg, que compôs duas grandes óperas e que não era exatamente um idiota, escreveu: “Monteverdi soube articular a música, de forma que ela estivesse consciente a cada instante da sua função no interior do drama”. Não é fácil. O pessoal da ópera gosta muito de DVDs – a encenação é importantíssima para eles – e há boas gravações, mas, para quem prefere música em CD, a gravação da Naxos custa uns R$ 50,00 e é muito boa. Dois CDs, OK? Aqui.

1650 – Saul, Saul, was verfolgst du mich? (Saulo, Saulo, por que me persegues?) e Freue dich des Weibes deiner Jugend (Encontra a felicidade na mulher da tua juventude), de Heinrich Schütz (1585-1672). Estas são pequenas obras-primas pinçadas dentro das muitíssimas deste barroco alemão. Cada uma delas tem duração de menos de quatro minutos, mas duvido que alguém, depois de ouvi-las, possa esquecer do desespero da primeira e da alegria da segunda. A gravação de John Eliot Gardiner para a Archiv é uma jóia. O Magnificat, também de Schütz, poderia estar nesta lista. Abaixo, a cara de louco manso deste grande compositor.

1689 – Dido e Enéas, de Henry Purcell (1659-1695). Aqui, já chego ao terreno de um de meus heróis prediletos e apesar de suas extraordinárias canções, Dido e Enéas foi sua maior obra. É inacreditável que eu, que não gosto muito de óperas, tenha iniciado esta lista com duas, mas o que fazer? A ária do lamento de Dido é de espantosa beleza e o dueto das bruxas mostra o talento cômico que Purcell fez aflorar em dezenas de canções. É considerada por muitos musicólogos a maior obra composta por um inglês até hoje. É quase incompreensível o fato de Purcell ser um fenômeno solitário, nascido num país em que os grandes homens sempre insistiram em usar as letras como meio de expressão. Aqui.

1700 – Sonatas para Violino, Op.5, de Arcangelo Corelli (1653-1713). Os italianos sempre gostaram de virtuoses, sejam vocais ou instrumentais. Nestas sonatas, Corelli demonstra que a música virtuosística pode ter conteúdo. Infelizmente, esta fórmula parece ter sido esquecida, principalmente por um certo violinista de nome Paganini, que viria no século seguinte. A gravação que conheço é muito antiga: é da Archiv com o violinista Eduard Melkus e a Capella Academica Wien. Aqui.

É chegado o momento em que as obras ficarão divididas em sua maioria entre três compositores: Johann Sebastian Bach (1685-1750), Georg Friedrich Handel (1685-1759) e Antonio Vivaldi (1678-1741). Só que Bach foi tão maior que vale uma explicação. É difícil compreender quem foi o ser humano Bach. Seu saber musical, sua capacidade de invenção e sobretudo de combinação tornam-no um real prodígio. Mas era alguém de extrema modéstia, que parecia que não estar criando obra alguma e que não interessava-se por preservá-la. Considerava-se somente um artesão que dominava sua profissão. É incrível que os originais dos Concertos de Brandenburgo tenham sido encontrados, anos depois, como papel de embrulho numa loja comercial… É que Bach não se considerava um gênio, nunca escreveu uma linha de música para exprimir-se, como farão depois os românticos e os blogueiros. Fora de seu ambiente familiar, era conhecido apenas como um virtuose do órgão, mas era um tremendo erudito que não ignorava estar numa encruzilhada de diferentes tradições musicais – a francesa, a italiana e a alemã – e tratou de fundi-las, criando uma síntese de enorme potência que resultou numa gramática própria. Telemann era considerado o maior compositor da época e Bach – fato inacreditável – concordava com isto. Foi esquecido. Esquecido e redescoberto por Haydn, Mozart e Beethoven. Desde então, tornou-se uma espécie de Deus Pai da Música. Não é um exagero, sua obra é tão grande e rica que quase todos os que vieram depois renderam-lhe homenagens. Olho para meus CDs de Bach e fico cansado, imaginando o enorme trabalho – principalmente de adjetivação – que terei pela frente. O homem viveu 65 anos escrevendo maravilhas. Vamos começar?

1711 – Cantata Nº 106 (Actus Tragicus), de Johann Sebastian Bach (1685-1750). Escrita para servir de réquiem no enterro de um reitor. Sua lenta introdução, surpreendentemente a cargo das flautas doces, trazem uma música de tristeza inconsolável. As árias que a sucedem estão entre as melhores de Bach. Aqui.

1712 – Concerti Grossi, Op. 6, Nº 1-4, de Arcangelo Corelli (1653-1713). O primeiro Allegro do Concerto Nº 4 é a mais feliz das músicas. Mas o restante dos concertos não fica nada a dever. Uma boa gravação é da Deutsche Harmonia Mundi, com La Petite Bande, regida por Sigiswald Kuijken. Aqui.

1720 – As Seis Suítes para Violoncelo Solo, de Johann Sebastian Bach (1685-1750). A prova de que talvez o mundo seja um lugar mau é que há pessoas adultas que nunca tiveram contato com as Suítes para Violoncelo e mesmo assim estão vivas e respirando. Em minha opinião, o violoncelo é o instrumento de mais belo timbre que existe e Bach, fiel a sua obsessão de explorar temas e características de um instrumento até seus limites, dá voz clara a contrapontos, a ritmos inimagináveis, a timbres inesperados, de forma que pensamos estar ouvindo a mais de um instrumento. É espantoso! A melhor gravação? Há muitas, mas a vencedora é a de Bruno Cocset. A do holandês Anner Bylsma também vale a pena. Esqueçam Rostropovich, não é sua área. Aqui.

1721 – Os 6 Concertos de Brandenburgo, de Johann Sebastian Bach (1685-1750). Quando tinha 13 anos, o Concerto de Brandenburgo Nº 3 começou a tocar no rádio. Estava tomando banho e o barulho do chuveiro me atrapalhava. Desliguei o chuveiro e, apesar do inverno, não senti muito frio, pois era vital ouvir a música até o final para saber do que se tratava. Meu pai me dava um porre de música romântica em casa e nunca tinha ouvido aquele concerto. O tema principal não era longo, mas transformava-se em outra coisa a cada repetição e tudo o que eu desejava é que tais mutações não parassem nunca. Quando perguntei a meu pai sobre este concerto, ele começou a cantarolá-lo e mostrou-me um disco. Ele não furou, sobrevivendo a incontáveis audições. É a melhor música barroca orquestral. São concertos muito diferentes entre si, cada um com personalidade própria. Há um concerto grosso no estilo de Handel (Nº 1), há um concerto para cravo e orquestra (Nº 5), há um inusitado concerto para uma orquestra sem violinos (Nº 6), etc. Cada um desses concertos é um mundo à parte, que nada deve a seus vizinhos – e que nada deve a ninguém. É difícil encontrar música mais perfeita. Aqui.

Obs.: Para esta série, consultei e consultarei algumas publicações, mas principalmente a excepcional revista Gramophone, a História de Música Ocidental, de Jean & Brigitte Massin e os úteis apêndices da Nova História da Música, de Otto Maria Carpeaux.

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Uma semana, um texto: Um impasse trágico no mundo editorial, de Chico Lopes

O melhor que li na Internet esta semana foi uma indicação de Fernando Monteiro. Transcrevo abaixo o texto retirado do Cronópios.

Um impasse trágico no mundo editorial

Por Chico Lopes

Todo escritor experimentado sabe que o refinamento estético é pouco democrático, que implica em não adular esse leitor comum, em avançar no experimento, na dificuldade, na reinvenção da linguagem. Todo escritor que refina seu instrumento sabe que está progressivamente se afastando da esfera popular. Mas, nesta seara, sob o clichê das “estórias bem contadas” que jamais deixou de ser invocado e aceito amplamente, há formas civilizadas de entretenimento literário, como os romances policiais de P.D James e outros. Pode-se, aliás, saltar dela para patamares mais elevados numa evolução natural do gosto por ler. Essa mediania não precisa ser vilanizada por autores mais arriscados que, desesperados por não serem aceitos, ressentidos, tratam de enfiar livros medianos ou apenas bons e lixo massificante num mesmo saco.

O que incomoda, hoje em dia, a quem escreve com a ambição de ir mais fundo à alma humana, não fazendo concessões demasiadas às soluções demagógicas, não é a mediania cultural bem-intencionada. É sentir-se um proscrito, um amaldiçoado, como se a liberdade intelectual, o gosto pela imaginação à solta, pela invenção estética, fossem coisas antipáticas e dignas de linchamento – muita gente fica mortalmente ofendida ao notar que está sendo levada a refletir e a passar por coisas ambíguas e inconcludentes, ao abrir um livro. O mercado é de fato liberal, pois admite que nele entre toda espécie de produto, mas joga para os porões da invisibilidade tudo que não seja tônico, utilitário, humorístico, escapista, fácil de vender.

O leitor comum não quer se sentir ameaçado pela infelicidade de alguns autores que lidam com seus abismos individuais, ainda que engenhosamente imaginativos, de maneira alguma. Mais e mais é adulado, tutelado, e não terá nunca a sua burrice questionada, para não sofrer abalos na auto-estima (e a auto-estima de um obtuso com dinheiro no bolso vale muito mais que a qualidade superior e óbvia de um pobre diabo culto sem recurso algum – George Orwell já havia notado isso com muita precisão em seu “Mantenha o sistema”). O leitor comum é, hoje em dia, contemplado com ofertas sempre mais e mais eufóricas e pode desprezar com tranqüilidade os produtos intelectuais que o obrigarão a pensar ou a, no mínimo, duvidar do que pensa, sente e vê.

Essa euforia, contrabandeada de outras formas de entretenimento (especialmente a televisão) parecia menos insidiosa e tirânica em anos recuados, talvez por a indústria cultural ser ainda menos pesada e tentacular no país naqueles tempos: ninguém que dissesse, repetindo Torquato Neto, que era preciso “desafinar o coro dos contentes”, no dever de incomodar e causar inquietação com que toda arte dita mais séria se investiu no século XX, parecia assim tão deslocado lá pelos anos 70 e parte dos 80. Hoje, os que dizem a mesma coisa, dizem-na para seus pares e sabem que serão ouvidos só entre estes. O público simplesmente não compreende uma recusa obstinada ao sucesso, um desejo de refletir sobre o mundo e não de aceitá-lo pelo que é – uma injustiça atrás da outra – e desfrutar dele o máximo possível.

A seriedade do escritor, que tenta ser aceito escrevendo de uma maneira abertamente impopular, parece imperdoável. Um número maior de gente com escolaridade não significou, de modo algum, um crescimento dos letrados. O que fez sim foi incrementar os consumidores de televisão, cada vez mais vorazes no desejo de uma vida mais e mais superficial, sem interrogações. A maquininha produz euforia ininterrupta, irrealidade constante a um preço mínimo, e para quê se preocupar com as questões sisudas que alguns livros oferecem se elas poderão afetar as ilusões nocivamente, paralisar as esperanças, a cegueira diligente? A sofisticação parece ameaçadora. É ameaçadora, inclusive e talvez principalmente, para os donos das redes, que não vão de maneira alguma se dar ao trabalho de oferecer refinamento, podendo faturar com o lixo que eles sabem ter retorno certo e, intimamente, é de lixo mesmo que seu gosto particular é feito, ao que tudo indica.

O impasse trágico que isso produz, para quem quer escrever a sério, é muito menos analisado do que deveria. Os desdobramentos vão ser mais e mais graves. Mesmo os livros destinados ao medianamente culto ficarão cada vez menos literários. Braço da indústria de entretenimento sem apelo tão maciçamente sedutor, o mercado editorial cederá cada vez mais a um imperativo de irreflexão provindo de gente que lê muito mal e não deseja se emendar de modo algum. Tristeza e sombras, senso trágico da vida ou simplesmente consciência da morte, cairão nas zonas de tabu cultural com mais e mais intensidade. Só se aceitará o que for eufórico ou totalmente digerível.

É debaixo dessa euforia – por vezes engrossada por algum membro da fileira dos escritores refinados que, ressentido demais, bandeou-se para a facilidade – que nos movemos hoje em dia, e que ninguém se iluda com a penetração dos livros mais sentidos e mais sérios: foram lidos apenas pelos poucos já capazes de acolhê-los. Legião que, ao em vez de se ampliar, só tem feito diminuir.

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Black is beautiful

Ontem, todo o dia aos berros na rádio-cérebro, Elis mandava ver na canção de Marcos e Paulo Sérgio Valle.

Hoje cedo, na Rua do Ouvidor
Quantos brancos horríveis eu vi
Eu quero um homem de cor
Um deus negro do Congo ou daqui

Que se integre no meu sangue europeu

Black is beautiful, black is beautiful
Black beauty so peaceful
I wanna a black I wanna a beautiful

Trecho da letra de Black is Beautiful

O curioso é que demorei um par de horas para descobrir o motivo.

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Bandeira e Sophia conversando

Balada das Três Mulheres do Sabonete Araxá (1931)

As três mulheres do sabonete Araxá me invocam, me bouleversam, me hipnotizam.
Oh, as três mulheres do sabonete Araxá às 4 horas da tarde!

O meu reino pelas três mulheres do sabonete Araxá!

Que outros, não eu, a pedra cortem
Para brutais vos adorarem,
Ó brancaranas azedas,
Mulatas cor da lua vem saindo cor de prata
Ou celestes africanas:
Que eu vivo, padeço e morro só pelas três mulheres do sabonete Araxá!

São amigas, são irmãs, são amantes as três mulheres do sabonete Araxá?
São prostitutas, são declamadoras, são acrobatas?
São as três Marias?
Meu Deus, serão as três Marias?
A mais nua é doirada borboleta.
Se a segunda casasse, eu ficava safado da vida, dava pra beber e nunca mais telefonava.
Mas se a terceira morresse…Oh, então, nunca mais a minha vida outrora teria sido um festim!
Se me perguntassem: queres ser estrela? queres ser rei?
queres uma ilha no Pacífico? Um bangalô em Copacabana?
Eu responderia: Não quero nada disso, tetrarca. Eu só quero as três mulheres do sabonete Araxá:

O meu reino pelas três mulheres do sabonete Araxá!

Manuel Bandeira (1886-1968)

Manuel Bandeira (1967)

Este poeta está
Do outro lado do mar
Mas reconheço a sua voz há muitos anos
E digo ao silêncio os seus versos devagar

Relembrando
O antigo jovem tempo quando
Pelos sombrios corredores da casa antiga
Nas solenes penumbras do silêncio
Eu recitava
“As três mulheres do sabonete Araxá”
E minha avó se espantava

Manuel Bandeira era o maior espanto da minha avó
Quando em manhãs intactas e perdidas
No quarto já então pleno de futura
Saudade
Eu lia
A canção do “Trem de ferro”
e o “Poema do beco”

Tempo antigo, lembrança demorada
Quando deixei uma tesoura esquecida nos ramos da cerejeira
Quando
Me sentava nos bancos pintados de fresco
E no Junho inquieto e transparente
As três mulheres do sabonete Araxá
Me acompanhavam
Tão visíveis
Que um eléctrico amarelo as decepava.

Estes poemas caminharam comigo e com a brisa
Nos passeados campos de minha juventude
Estes poemas poisaram a sua mão sobre o meu ombro
E foram parte do tempo respirado.

Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004)

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