Ufa!

Enfim, a rodada perfeita. Estamos livres de ver o Grêmio campeão brasileiro. Apoiado no excelente trabalho de um técnico que é detestado pelos torcedores e envergonha a diretoria do clube — tanto que os dois candidatos à presidência evitaram o menor elogio ao técnico antes das eleições –, o Grêmio foi muito além do esperado pelo razoável. Teve resultados que só podem ser atribuídos ao Sobrenatural de Almeida: 2 x 1 no Botafogo, 1 x 0 no Santos, 1 x 0 no São Paulo, 1 x 0 no Ipatinga, 1 x 0 no Sport, 1 x 0 no Palmeiras e 2 x 0 no Coritiba. Foram 14 pontos ganhos com gols casuais. Todas estas vitórias, foram conseguidas através de gols contra, um gol em completo impedimento e muitas bolas que batiam em zagueiros, enganando os goleiros.

Claro que tudo isto é normal — até os erros de arbitragem são normais –, não houve corrupção nem roubo e não é proibido ter sorte, só que ela estava beneficiando sempre o mesmo time. Imaginem se o time fosse bom! Ontem, o Grêmio mereceu fazer o primeiro gol, mas é óbvio que ele só aconteceu quando um zagueiro do Vitória desviou a bola de seu goleiro. Quase enlouqueci. Para ficar maluco de vez, botei o Like Evil do Miles Davis a toda altura e ainda vi o Vitória perder dois gols incríveis e bem construídos no final do primeiro tempo. Desliguei o som e fui comprar um remédio na farmácia. Levei o rádio e ouvi o comentarista Wianey Carlet, o mais imbecil do Brasil, dizer que a vitória era merecida e que o Grêmio estava “encaminhando um importante triunfo”. Acho que ele não viu o final do primeiro tempo, algo muito promissor que só poderia ser impedido por quantidades colossais de sorte.

Ainda estava na rua quando o Vitória manteve a tendência do final do tempo inicial e, em 3 minutos, o jogo já estava empatado e logo depois já estava 4 x 1. Ufa!

Mas a rodada também teve uma vitória do maior adversário do tricolor gaúcho, o tricolor paulista e, para deixar tudo mais colorido, houve um raríssimo erro de arbitragem, pois foi contra o Flamengo, instituição sempre aquinhoada pelos homens de preto sempre temerosos de críticas. Parabéns a Carlos Simon, que nos deu a alegria de ver ontem à noite a inédita película “Eu, C. R. F., 113 Anos, Roubada, Drogada e Prostituída”.

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Uma semana, um texto: E se Obama fosse africano?, de Mia Couto

Este texto circulou bastante na semana que hoje finda. Também pudera! Li-o primeiro no Azenha e acabo de receber um e-mail de um dos intelectuais que mais entendem de África no Brasil, não apenas por isto mas também por ter residido em Moçambique. É uma perspectiva diversa descrita pelo notável escritor António Emílio Leite Couto ou simplesmente Mia Couto.

E se Obama fosse africano?

Por Mia Couto.

Os africanos rejubilaram com a vitória de Obama. Eu fui um deles. Depois de uma noite em claro, na irrealidade da penumbra da madrugada, as lágrimas corriam-me quando ele pronunciou o discurso de vencedor. Nesse momento, eu era também um vencedor. A mesma felicidade me atravessara quando Nelson Mandela foi libertado e o novo estadista sul-africano consolidava um caminho de dignificação de África.

Na noite de 5 de Novembro, o novo presidente norte-americano não era apenas um homem que falava. Era a sufocada voz da esperança que se reerguia, liberta, dentro de nós. Meu coração tinha votado, mesmo sem permissão: habituado a pedir pouco, eu festejava uma vitória sem dimensões. Ao sair à rua, a minha cidade se havia deslocado para Chicago, negros e brancos respirando comungando de uma mesma surpresa feliz. Porque a vitória de Obama não foi a de uma raça sobre outra: sem a participação massiva dos americanos de todas as raças (incluindo a da maioria branca) os Estados Unidos da América não nos entregariam motivo para festejarmos.

Nos dias seguintes, fui colhendo as reacções eufóricas dos mais diversos recantos do nosso continente. Pessoas anónimas, cidadãos comuns querem testemunhar a sua felicidade. Ao mesmo tempo fui tomando nota, com algumas reservas, das mensagens solidárias de dirigentes africanos. Quase todos chamavam Obama de “nosso irmão”. E pensei: estarão todos esses dirigentes sendo sinceros? Será Barack Obama familiar de tanta gente politicamente tão diversa? Tenho dúvidas. Na pressa de ver preconceitos somente nos outros, não somos capazes de ver os nossos próprios racismos e xenofobias. Na pressa de condenar o Ocidente, esquecemo-nos de aceitar as lições que nos chegam desse outro lado do mundo.

Foi então que me chegou às mãos um texto de um escritor camaronês, Patrice Nganang, intitulado: “E se Obama fosse camaronês?”. As questões que o meu colega dos Camarões levantava sugeriram-me perguntas diversas, formuladas agora em redor da seguinte hipótese: e se Obama fosse africano e concorresse à presidência num país africano? São estas perguntas que gostaria de explorar neste texto.

E se Obama fosse africano e candidato a uma presidência africana?

1. Se Obama fosse africano, um seu concorrente (um qualquer George Bush das Áfricas) inventaria mudanças na Constituição para prolongar o seu mandato para além do previsto. E o nosso Obama teria que esperar mais uns anos para voltar a candidatar-se. A espera poderia ser longa, se tomarmos em conta a permanência de um mesmo presidente no poder em África. Uns 41 anos no Gabão, 39 na Líbia, 28 no Zimbabwe, 28 na Guiné Equatorial, 28 em Angola, 27 no Egipto, 26 nos Camarões. E por aí fora, perfazendo uma quinzena de presidentes que governam há mais de 20 anos consecutivos no continente. Mugabe terá 90 anos quando terminar o mandato para o qual se impôs acima do veredicto popular.

2. Se Obama fosse africano, o mais provável era que, sendo um candidato do partido da oposição, não teria espaço para fazer campanha. Far-Ihe-iam como, por exemplo, no Zimbabwe ou nos Camarões: seria agredido fisicamente, seria preso consecutivamente, ser-Ihe-ia retirado o passaporte. Os Bushs de África não toleram opositores, não toleram a democracia.

3. Se Obama fosse africano, não seria sequer elegível em grande parte dos países porque as elites no poder inventaram leis restritivas que fecham as portas da presidência a filhos de estrangeiros e a descendentes de imigrantes.

O nacionalista zambiano Kenneth Kaunda está sendo questionado, no seu próprio país, como filho de malawianos. Convenientemente “descobriram” que o homem que conduziu a Zâmbia à independência e governou por mais de 25 anos era, afinal, filho de malawianos e durante todo esse tempo tinha governado ‘ilegalmente”. Preso por alegadas intenções golpistas, o nosso Kenneth Kaunda (que dá nome a uma das mais nobres avenidas de Maputo) será interdito de fazer política e assim, o regime vigente, se verá livre de um opositor.

4. Sejamos claros: Obama é negro nos Estados Unidos. Em África ele é mulato. Se Obama fosse africano, veria a sua raça atirada contra o seu próprio rosto. Não que a cor da pele fosse importante para os povos que esperam ver nos seus líderes competência e trabalho sério. Mas as elites predadoras fariam campanha contra alguém que designariam por um “não autêntico africano”.

O mesmo irmão negro que hoje é saudado como novo Presidente americano seria vilipendiado em casa como sendo representante dos “outros”, dos de outra raça, de outra bandeira (ou de nenhuma bandeira?).

5. Se fosse africano, o nosso “irmão” teria que dar muita explicação aos moralistas de serviço quando pensasse em incluir no discurso de agradecimento o apoio que recebeu dos homossexuais. Pecado mortal para os advogados da chamada “pureza africana”. Para estes moralistas – tantas vezes no poder, tantas vezes com poder – a homossexualidade é um inaceitável vício mortal que é exterior a África e aos africanos.

6. Se ganhasse as eleições, Obama teria provavelmente que sentar-se à mesa de negociações e partilhar o poder com o derrotado, num processo negocial degradante que mostra que, em certos países africanos, o perdedor pode negociar aquilo que parece sagrado – a vontade do povo expressa nos votos. Nesta altura, estaria Barack Obama sentado numa mesa com um qualquer Bush em infinitas rondas negociais com mediadores africanos que nos ensinam que nos devemos contentar com as migalhas dos processos eleitorais que não correm a favor dos ditadores.

Inconclusivas conclusões

Fique claro: existem excepções neste quadro generalista. Sabemos todos de que excepções estamos falando e nós mesmos moçambicanos, fomos capazes de construir uma dessas condições à parte.

Fique igualmente claro: todos estes entraves a um Obama africano não seriam impostos pelo povo, mas pelos donos do poder, por elites que fazem da governação fonte de enriquecimento sem escrúpulos.

A verdade é que Obama não é africano. A verdade é que os africanos – as pessoas simples e os trabalhadores anónimos – festejaram com toda a alma a vitória americana de Obama. Mas não creio que os ditadores e corruptos de África tenham o direito de se fazerem convidados para esta festa.

Porque a alegria que milhões de africanos experimentaram no dia 5 de Novembro nascia de eles investirem em Obama exactamente o oposto daquilo que conheciam da sua experiência com os seus próprios dirigentes. Por muito que nos custe admitir, apenas uma minoria de estados africanos conhecem ou conheceram dirigentes preocupados com o bem público.

No mesmo dia em que Obama confirmava a condição de vencedor, os noticiários internacionais abarrotavam de notícias terríveis sobre África. No mesmo dia da vitória da maioria norte-americana, África continuava sendo derrotada por guerras, má gestão, ambição desmesurada de políticos gananciosos.

Depois de terem morto a democracia, esses políticos estão matando a própria política.

Resta a guerra, em alguns casos. Outros, a desistência e o cinismo.

Só há um modo verdadeiro de celebrar Obama nos países africanos: é lutar para que mais bandeiras de esperança possam nascer aqui, no nosso continente.

É lutar para que Obamas africanos possam também vencer. E nós, africanos de todas as etnias e raças, vencermos com esses Obamas e celebrarmos em nossa casa aquilo que agora festejamos em casa alheia.

Jornal “SAVANA” – 14 de Novembro de 2008

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Algumas reflexões irresponsáveis sobre música

Não sou tão original quanto Glenn Gould. Gosto de concertos e de gravações ao vivo. Acho as últimas quase sempre superiores às de estúdio. Frequento concertos – principalmente aqueles de preços camaradas – e creio que eles sejam experiências fundamentais tanto para o músico quanto para a platéia. Ver uma obra ser interpretada é uma experiência muito diferente de apenas ouvi-la. O jogo entre os instrumentos, a dinâmica, o trabalho dos grupos instrumentais de uma orquestra, por exemplo, é algo que enriquece muito a audição e, quando voltamos a ouvir a mesma música em nossa casa, as imagens da execução nos acompanharão.

Mas tenho restrições à escolha de repertório da esmagadora maioria dos concertos, quase conservadoras e heterogêneas. A escolha é conservadora porque o solista e o produtor não gostam de arriscar, trilhando via de regra o batido mainstream do repertório. Porém, amigos, há uma imensa distância entre o repertório destes museus sonoros que são nossas atuais salas de concerto e a variedade da oferta de música em CD ou em mp3. Tal distância não precisaria ser tão grande, até porque, excetuando-se os casos Gould-like, quem grava normalmente já apresentou a obra em concertos. Mas nos concertos terceiromundistas… Mesmo que um solista ou grupo tenha maior intimidade com determinado compositor ou período, os executantes apresentarão as obras mais óbvias e conhecidas, as de aplauso fácil. Não parece haver grande interesse em surpreender o público com algo diferente. E a heterogeneidade? Credo, dia desses fui a um concerto onde eram interpretados Mozart, Rossini, música para “trompa alpina”, Shostakovich e Bartók. Alguém pode conceber cardápio mais variado? Qual é a intenção? É a de satisfazer o maior número de ouvintes ou irritá-los?

Já no amplo mundo dos CDs existe oferta de todo o tipo de música, há a possibilidade de se ouvir 90% das obras dos principais compositores. Os catálogos das gravadoras são potencialmente sempre crescentes, podem ir se ampliando através dos anos (principalmente no caso da Naxos, que tem este objetivo). Hoje — se pudermos dispor de muito dinheiro e de um considerável limite de crédito em nosso cartão internacional –, podemos realizar qualquer desejo auditivo. Se você quiser a integral das Cantatas de Bach, por exemplo, basta pagar uns R$ 3.000,00 que logo chegarão via Sedex centenas de cantores berrando a sua casa.

A parte financeira é um tremendo problema para alguém que seja doido por música clássica. Os blogs como PQP Bach e seus congêneres resolvem parcialmente o caso. Nossa necessidade de ouvir diferentes gravações de uma obra que amamos é uma coisa que o ouvinte comum não entende. Uma vez que The White Album dos Beatles foi adquirido, o problema está resolvido. O Álbum Branco sempre será o melhor registro do Álbum Branco, creio. O resto são regravações de músicas isoladas. O mesmo não vale para uma sonata de Beethoven, até porque Beethoven não deixou quaisquer registros sonoros… Simplesmente temos uma grave compulsão por ouvir a sonata x por Pollini, Arrau, Freire, Uchida, Richter, Gould, Pires, Kissin, Gilels, etc. Amigos meus que só se interessam por literatura ficam pasmos ante a necessidade de se ouvir (ou possuir) várias gravações da mesma sonata. Para quê, perguntam eles? Eles não imaginam a nossa felicidade ao descobrirmos aquele pequeno detalhe, aquela sutil intenção do compositor que apenas Pollini ou outro regente ou solista soube mostrar. Eles não imaginam como podemos discordar alegremente elogiando ou detratando uma concepção que esteja muito perto ou longe daquilo que nosso ouvido considera o ideal.

A gente é assim, não adianta. A gente gosta é disso que transcrevo a seguir (transcrição ipsis litteris deste post, que é meu):

Numa noite fria do século XVIII, Bach escrevia a Chacona da Partita Nº 2 para violino solo. A música partia de sua imaginação (1) para o violino (2), no qual era testada, e daí para o papel (3). Anos depois, foi copiada (4) e publicada (5). Hoje, o violinista lê a Chacona (6) e de seus olhos passa o que está escrito ao violino (9) utilizando para isso seu controverso cérebro (7) e sua instável, ou não, técnica (8). Do violino, a música passa a um engenheiro de som (10) que a grava em um equipamento (11), para só então chegar ao ouvinte (12), que se desmilingúi àquilo.

Na variação entre todas essas passagens e comunicações, está a infindável diversidade das interpretações. Mas ainda faltam elos, como a qualidade do violino – e se seu som for divino ou de lata, e se ele for um instrumento original ou moderno? E o calibre do violinista? E seu senso de estilo e vivências? E o ouvinte? E… as verdadeiras intenções de Bach? Desejava ele que o pequeno violino tomasse as proporções gigantescas e polifônicas do órgão? Mesmo?

E depois tem gente que acha chata a música erudita…

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Ciências Morais, de Martín Kohan

Mais do que um livro sobre a ditadura, Ciências Morais é um livro de ditadura. Parece que Kohan resolveu investir no estilo metafórico dos livros escritos durante as ditaduras, mesmo que a Argentina viva outros dias. O livro foca sua narrativa em María Teresa, uma inspetora do tradicional Colégio Nacional de Buenos Aires. Ela vigia seus alunos, e como! Sua atuação visa tanto o bom comportamento deles como também suas roupas, cabelos, uniformes, postura, postura nas filas, etc. María Teresa tem singular tendência a reprimir as inclinações sexuais, mas parece gostar de ser alvo das mesmas. Procura sistematicamente problemas nos alunos, mas, acima dela, apenas obedece e seus pensamentos são simples. Kohan pouco acompanha sua personagem principal fora do colégio. Sabemos de uma mãe e quase nada sobre um irmão que está longe, preparando-se para a Guerra das Malvinas, mas nem isto é claro para um leitor que, por exemplo, viesse de Marte, pois muita coisa neste livro é não-dita.

As metáforas utilizadas por Kohan funcionam bem, apesar de não serem as mais elegantes ou sutis. Um dia, María Teresa, resolve pegar os alunos fumantes no banheiro masculino, o único local privado do colégio, para onde eles deveriam se dirigir a fim de darem suas tragadas. Com uma lógica muito própria, quer fazer isso para demonstrar sua competência ao chefe dos inspetores, um pequeno fascista que se interessa sexualmente por María Teresa, não obstante sua impotência. Ela passa horas escondida lá. Até gosta. Um dia, passa a receber visitas em seu ponto de observação. Há medo, até terror, mas María submete-se a tudo.

É curiosa a forma como Kohan, ao mesmo tempo que realiza descrições minuciosas de tudo o que María vê, contorna pensamentos e motivações que devem ser sempre intuídos pelo leitor.

Ou seja, tudo são metáforas e lá pela metade começamos a duvidar de sua necessidade. É muita bruma turvando o óbvio. Todavia, são esplêndidas as descrições das ocorrências no banheiro e das tentativas de María para observar quem fazia uso dele. Suas reações aos acontecimentos nos sanitários recebem tratamento luxuoso de um grande descritor, mas acho que Kohan poderia ter utilizado sua arte de forma muito mais impactante. Penso até que sei como…

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A pista de gelo, de Roberto Bolaño

Este é o primeiro romance do Bolaño, publicado em 1993. Se A pista de gelo ainda não apresenta a furiosa polifonia dos livros seguintes, já temos três narradores alternando-se para contar uma falsa história detetivesca. O livro poderia também chamar-se “Era para ser um whodunit…”. Não digo isso por achar que A pista de gelo seja um fracasso como livro policial — não se trata de um fracasso, longe disso –, mas para reforçar o tom de paródia que o romance mantém por trás de sua originalidade. Ou seja, ele não quer ser um whodunit.

É um livro leve, curto, onde se pode espreitar o grande autor que viria a seguir. Três personagens oriundos do mundo literário, o empresário com pretensões literárias Remo Morán, o poeta lúmpen Gaspar Heredia e o político filha-da-puta Enric Rosqueles contam e participam da história que se passa no balneário de Z, na Espanha, durante um verão. A ação gira em torno da patinadora Nuria para a qual Rosqueles constrói uma pista de gelo num palacete abandonado, onde ocorre um assassinato. O crime ocorre na segunda metade do livro — prova de que Bolaño diverte-se mais com as vozes e suas interações — e o responsável pela morte é revelado quase de má vontade, com se fosse uma concessão ao leitor que, afinal, há de querer saber alguma coisa sobre aquele assunto. O que sobressai no livro é a notável capacidade de Bolaño para construir personagens, as cenas sempre montadas de forma sedutora e sua prosa ágil. Mesmo não sendo um policial típico — e como seria com aqueles narradores? –, é impossível largar o livro antes da última página. Coisas de um grande autor.

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Uma semana, um texto: Cristóvão Tezza: O filho eterno, de Idelber Avelar

Esse foi fácil. O melhor post que li esta semana foi lá de terça-feira passada e o copio a seguir.

Cristovão Tezza: O filho eterno

Por Idelber Avelar

Vencedor dos prêmios Jabuti e Portugal-Telecom, entre outros, e aclamado pela crítica, O filho eterno (2007), de Cristovão Tezza, leva a representação da experiência pessoal na ficção a um nível de auto-reflexividade raramente visto na literatura contemporânea. O protagonista do romance recebe a notícia de que será pai em meio a uma profusão de golpes à sua auto-estima. Sustentado pela mulher, seu trabalho é a escrita, mas nela fracassa, acumulando cartas de recusa das editoras e notas de eliminações em concursos literários. Na profissão, por outro lado, ele também experiencia a derrota: relojoeiro, seu ofício é, por excelência, anacrônico. Como escritor, ele ainda não é, além de não dar indicação de que poderá vir a ser; como relojoeiro, já não tem razão de existir. Esse intervalo termina se desdobrando numa temporalidade suspensa entre o fantasma da paralisia que espreita, de perto, e o resquício de atividade e iniciativa que lhe resta. Assim se encontra ele quando recebe a notícia de que será pai.

A abordagem desse inominado personagem à vida é um exame hipercrítico e cínico da natureza arbitrária, absurda, lotérica, errática dos fatos (p. 49). Trata-se da história de como o protagonista lidará com a paternidade em meio um colapso de outras zonas de sua masculinidade – história que é narrada numa terceira pessoa singular, original, caracterizada pelo uso do discurso indireto livre em quase a totalidade do volume. O efeito é de proximidade ao pensamento do personagem, já que o narrador fala como se estivesse “dentro” da sua cabeça. Essa vizinhança, no entanto, se inverte na relação do protagonista com o mundo, que é marcada pela distância. Revise-se os grandes mestres do indireto livre, de Jane Austen em adiante, e se encontrará poucos exemplos de exploração tão hábil da tensão entre a hiper-proximidade entre voz narrativa e personagem e, ao mesmo tempo, o hiper-distanciamento entre personagem e mundo. Vemos de perto um homem que só sabe ver de longe. O efeito é o de uma empatia impossível, agônica, entre protagonista e leitor.

No corredor do hospital, esperando a mulher dar à luz, ele fuma, marcha descompassadamente, se angustia. Marcado pelo destempo, ele chega atrasado à cena que o constitui. Só no dia seguinte ao parto, junto aos indefectíveis parentes, ele inteira-se: a criança nascera com Síndrome de Down. O filho eterno é a meticulosa mas sucinta narração desse encontro da paternidade “fracassada” com uma masculinidade já em frangalhos, num mundo em que a Síndrome de Down vai progressivamente adquirindo o caráter de emblema, alegoria de uma outra relação com o tempo, que poderíamos chamar de presente perpétuo.

Estamos no Brasil de 1980, onde “Síndrome de Down” ainda é termo exclusivamente médico. No léxico possível de seu tempo, o seu filho era um mongolóide, vocábulo que carrega essa curiosa herança do colonialismo inglês, que batizou descapacitações com o nome de etnias. A natureza arbitrária, absurda, lotérica, errática dos fatos dera o veredito de trissomia daquele vigésimo-primeiro cromossomo, daquele em particular. A partir daí o protagonista, um pequeno burguês que solta a franga, como bem disse Ney Reis em sua resenha, está condenado ao contato com uma classe que despreza – a dos médicos – e ao mesmo tempo a viver a medicina como desdemonização do mundo por excelência, antídoto definitivo contra as explicações mágicas. A medicina entra no relato de Tezza como confirmação da natureza lotérica da existência.

Um dos primeiros devaneios que visita o personagem é o de que, por tudo o que lera, as crianças com Síndrome de Down morrem mais facilmente e, em geral, mais cedo. O pesadelo talvez não dure tanto, afinal. O leitor tem acesso a essas fantasias monstruosas através de uma voz narrativa que esvazia, de antemão, todo julgamento moral. Só uma gigantesca viseira poderia levar a uma leitura d’ O filho eterno como parábola moralizante. O texto, claramente, se recusa a submeter o personagem à prova moral, e opta pela observação da sua labuta de ir compreendendo a amoralidade essencial de todas as coisas. Ele não é, claramente, um “além-homem” nietzscheano. Não vive no mundo afirmativo da alegria. Trata-se, ao contrário, do espécime ressentido e hiper-interpretativo que em língua nietzscheana chamaríamos de “último homem.”

As matérias-primas do romance de Tezza são, portanto, uma masculinidade em frangalhos, a paternidade “fracassada” e depois lentamente reaprendida, e um tempo repartido entre o presente-intervalo (do pai) e o presente-perpétuo (do filho). Nas 220 enxutas páginas, com freqüência se alternam parágrafos que descrevem o período anterior ao nascimento de Felipe — os anos do pai em Portugal e na Alemanha, como trabalhador ilegal — e o presente em que vai crescendo o garoto, entre 1980 e 2005. Em algumas ocasiões, o deslocamento temporal se produz, habilmente, no interior do mesmo parágrafo. Os saltos ao presente retratam o aprendizado descontínuo, quebrado, capenga de Felipe, que um dia, acidentalmente descobre o futebol como imagem da contigência, da natureza pendente e inacabada do mundo.

Felipe, 20 e poucos anos, não lê, não escreve, mas viaja na seqüência interminável de páginas da internet. Constrói pastas que nomeia como ATLTEICO ou ALTLETICO, sempre com uma letra trocada (p.217). Procura no Google o ônibus do Clube Atlético Paranaense. Começa a viver as partidas de futebol como experiências que, ao contrário do joguinho da FIFA que ele roda no computador, são imprevisíveis, nesse que é o mais fatalista e contingente dos esportes. A imprevisibilidade do futebol vai dando a Felipe uma idéia de “futuro” e através do conceito de campeonato ele entende o de calendário. O encadeamento de jogos funciona como metáfora inteligível do devir, da passagem do tempo, mesmo que continue uma tremenda confusão sobre o que é Campeonato Brasileiro, Copa do Brasil, Libertadores ou Campeonato Paranaense. Na medida em que Felipe vai vislumbrando algo para além do presente-perpétuo, o próprio protagonista passa a tecer outra relação – ainda precária, mas parcialmente efetiva – com sua existência no tempo e sua condição de homem e de pai.

Esse sutil deslocamento, modesto, limitado, nada triunfante, é o irredutível gesto afirmativo d’O filho eterno, sem dúvida um dos poucos romances realmente extraordinários publicados no Brasil no século que se inicia.

P.S.: Este post é parte de um trabalho bem mais longo, sobre a masculinidade na narrativa brasileira, de Fernando Gabeira – O que é isso, companheiro? (1979) e Crepúsculo do macho (1980) – a Caio Fernando Abreu – Morangos mofados — (1988) e Cristovão Tezza. Apresento-o (em inglês) nesta quarta-feira no meu ex-lar, a Universidade de Illinois, em Urbana-Champaign, a cujos professores — especialmente o compatriota Luciano Tosta — agradeço pelo convite. U of I é uma das melhores universidades públicas dos EUA e dona orgulhosa da terceira maior biblioteca universitária americana.

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Crise na Cultura: a posição do SATED/RS (Sindicato dos Artistas e Técnicos de Espetáculos)

Acabo de receber um comentário e um e-mail dando conta de mais esta manifestação sobre a crise na Secretaria de Cultura do Estado do Rio Grande do Sul, hoje sob a irresponsabilidade da especialista Mônica Leal. Aqui, o site do SATED/RS.

A Lei de Incentivo à Cultura, nº 10.846/96 – LIC – foi criada para abrigar, financiar e fomentar, com recursos públicos, diversos segmentos da produção cultural independente. Um mecanismo de financiamento à Cultura, tão importante e necessário, no entanto, sempre funcionou com uma administração frágil, desaparelhada de recursos humanos e materiais e submetida ao caráter e aos objetivos personalistas e injunções políticas e partidárias de seus gestores. Que insistem numa tentativa de domesticar instâncias representativas gerando um uso e interpretações diferentes entre órgãos de Estado e de Governo, neste caso o Conselho Estadual de Cultura – CEC/RS e a Secretaria de Cultura – SEDAC, onde o primeiro não quer e nem deve ser subserviente ao segundo.

E agora, chegamos ao seu momento mais crítico e agudo, onde a falta de mecanismos de fiscalização, o descontrole na tomada de contas dos projetos –, que resultou num passivo de centenas de processos esperando na fila do Setor de Tomadas de Contas – da LIC, levam o Sistema a sua quase total paralisação.

Apesar da criação destes bem-vindos e modernos mecanismos de gestão compartilhada, os gestores e legisladores esqueceram o principal: a Lei não funcionaria se, a par de todos os instrumentos de financiamentos públicos às atividades culturais, não houvesse um suporte com medidas encadeadas por uma série de ações administrativas, as quais, necessariamente, devem acompanhar a execução de qualquer Política Pública, principalmente na área da Cultura, como por exemplo: a implantação de um robusto e bem estruturado sistema, que agregasse outras ferramentas de apoio e fomento aos produtores culturais servindo de estímulo e qualificação; orçamento compatível, possibilitando habilitar o Estado às condições necessárias que viabilizasse a máquina administrativa dos órgãos de apoio; que lograsse financiá-los com recursos orçamentários, qualificando-os com os investimentos necessários para ampliar a base de serviços à população e a comunidade cultural e com os instrumentos competentes para prover os aparelhos de Estado já constituídos, das condições próprias de manutenção, entre outros.

Mas, ao contrário de nossas expectativas, vimos os orçamentos da Cultura minguar a cada ano; o surgimento de dezenas de associações culturais, empresas de marketing, consultorias, etc., cujo objetivo principal era aceder aos recursos da LIC para financiar projetos e eventos de interesse dos próprios governos; o desmanche dos aparelhos culturais da capital e o abandono daqueles poucos existentes no interior e; o congelamento dos recursos destinados à LIC, que desde 1998, destina o mesmo valor aos projetos culturais financiados pela Lei, contrariando reiteradamente o princípio legal de observância do percentual ali estabelecido!

Não demorou a que os recursos oriundos do Incentivo Fiscal, concedidos aos projetos dos próprios governos, chegassem a consumir metade dos valores disponíveis ao apoio da produção independente de cultura. E lá estavam os produtores culturais a disputar com as intermináveis associações de amigos e prefeituras municipais, os restritos recursos disponíveis, numa clara demonstração de concorrência desleal.

Isso sem contar os inúmeros ataques e ameaças à sua sobrevivência, enfrentadas pela Lei, nas sucessivas mudanças de governo, através das intermináveis edições de Instruções Normativas, sem força de lei, alterando constantemente as regras para apresentação, financiamento e tomada de contas aos projetos incentivados. Criou-se um cipoal de normas contraditórias entre si que, agora se vê, escancararam as portas para fraudes e irregularidades.

O resultado aí está e não poderia ser outro: falsificações de assinatura, desvios de objetivos dos projetos, relatório de contas com notas frias, corrupção entre os agentes culturais, órgãos de governo e de Estado, produtores e empresas patrocinadoras; descredenciamento sem critérios claros de 3000 produtores culturais e a conseqüente ameaça ao funcionamento do Sistema.

No calor da crise, a Casa Civil do atual Governo anunciou um Grupo de Trabalho formado por órgãos de Governo, de Estado e da sociedade civil. No entanto, tal representação jamais se reuniu e, ao invés disso, o Governo encaminha, agora, à Assembléia Legislativa, sem haver tido diálogo algum com a classe cultural, projeto de lei para modificar o texto legal da LIC. O resultado que se espera não é mais do que um conteúdo de intuito repressor que pouco ou nada auxilie nas pesadas fráguas advindas da crise no Sistema LIC e que, tampouco, aporte soluções para a falta de políticas públicas de cultura que afeta o setor!

E, para nosso cabal estarrecimento, temos que conviver com a constrangedora realidade de que os recursos previstos para investimentos da Secretaria da Cultura são de apenas R$ 130 mil, em 2009, o menor entre todas as Secretarias de Estado. E para o Fundo de Apoio à Cultura (FAC) a destinação de escandalosos R$ 15 mil!

É chegada à hora da classe cultural e artística do RS deixar claro quais são os interesses que estão em risco com a deflagração de um desmonte na Cultura do RS, que é ao mesmo tempo, institucional e de gestão, e que tem como saldo, prejuízos irrecuperáveis ao conjunto da sociedade gaúcha.
Neste sentido, vimos a público exigir das autoridades gestoras e legisladoras a tomada imediata de ações que garantam a continuidade da produção cultural do Rio Grande do Sul, defendendo como indispensáveis as seguinte medidas a serem tomadas em caráter de emergência:

– Apuração imediata dos responsáveis pelas irregularidades e a correição de atos solidários às fraudes, praticados pela autoridade gestora;

– Implantação e dotação orçamentária robusta ao Fundo de Apoio à Cultura, com recursos próprios do Orçamento e sua imediata implantação;

– Fim do acesso a projetos e eventos de interesse dos Governos aos recursos públicos financiadores de iniciativas culturais, realizados através da Lei de Incentivo à Cultura;

– Discussão ampla e democrática sobre a criação de novas ferramentas fomentadoras da produção cultural independente;

– Dotação orçamentária própria para o financiamento de projetos e eventos de interesse governamental;

– Implantação de fundo orçamentário para o apoio ao financiamento das Políticas Públicas de Cultura no âmbito dos municípios;

– Revisão e atualização do texto legal da Lei 10.846/96, que atenda ao conjunto de interesses e diversidades dos agentes culturais por ela beneficiados;

– Inclusão, no seu Decreto Regulamentador, de regras que substituam, de forma definitiva, o manancial de Instruções Normativas, pondo fim ao tumulto institucional causado pelo excesso de instrumentos regulamentadores sem força de Lei;

– Aporte de 1% do orçamento total do Estado para financiar a estrutura governamental ligada à Cultura, gestão e manutenção dos equipamentos culturais e implantação de políticas públicas de fomento às atividades ligadas ao setor, conforme determinado pela UNESCO, em convenção internacional e;

– A nomeação, em caráter de urgência, de novo titular na SEDAC, dando à Cultura do Estado a oportunidade de ter uma política cultural pública forte e comandada por autoridade com conhecimento profundo e experiência na área, e a retomada imediata do diálogo entre Governo e Comunidade Cultural;

SATED/RS ASGADAN, FÓRUM PONTOS DE CULTURA/RS, FÓRUM PERMANENTE DE MÚSICA/RS, FÓRUM PERMANENTE DE ECONOMIA DA CULTURA, AGTB, ESCOLA DE SAMBA ACADÊMICOS DA ORGIA, ESCOLA DE SAMBA FILHOS DA CANDINHA, AXÊ ARTE E CIDADANIA, SOCIEDADE CULTURAL FLORESTA AURORA, CIRCULO DE PRODUÇÃO CULTURAL.

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Vá e veja, a obra prima absoluta dos filmes de guerra

Finalmente, Vá e Veja ganhou edição nacional em DVD. Filme que nunca foi apresentado em circuito comercial no Brasil (*), tornou-se objeto de culto de uns poucos quando de seu lançamento em VHS, na década de 80. Meu amigo S. — o mesmo deste post – disse-me que os três maiores filmes de guerra já realizados teriam sido Stalingrado, de Joseph Vilsmaier; Glória feita de sangue, de Stanley Kubrick, e Vá e veja, de Elem Klimov (1933-2003). Tenho os três em casa, vi muitos outros e creio que a escolha de S. não é apenas muito boa como inclui o maior filme de guerra de todos os tempos: o espantoso Vá e Veja.

Meu exemplar foi batalhadíssimo. Enfrentei a doída conversão de um VHS milenar para DVD no único intuito de mostrá-lo aos amigos. Quando passei o filme para eles, voltei a constatar o efeito que teve sobre mim ao vê-lo pela primeira vez. Alguns diziam: “é muito bom, é muito, mas muito forte, nunca tinha visto algo assim”. Tal efeito, meus amigos, só se consegue com uma poética muito especial, só se consegue com a narrativa de uma história focada num homem comum e que logra chegar a tal grau de realismo que o filme gruda-se a ele, ao personagem principal, um adolescente. Quando estoura uma bomba muito perto de Fliora, passamos ouvindo por momentos todos os sons distorcidos, como se estivéssemos igualmente ensurdecidos, afetados pelo estouro. Se fosse um romance, seria escrito na primeira pessoa do singular.

O filme trata da história de Fliora, o adolescente que pega o rifle da família a fim de juntar-se aos guerrilheiros soviéticos para expulsar o que sobrava do exército alemão no período final da guerra. O problema do filme é que o ódio dos soviéticos é respondido por um estranho inimigo que não tem nada a perder e que está de qualquer forma retirando-se, só que esta retirada é a de quem está desesperado por voltar a um país que não é mais aquele que deixou mas outro, totalmente destruído. Ou, pior, sabem que retornam para a morte ou para a prisão, ou seja, é uma retirada para o nada. E os nazistas vão torturando e matando o que podem à medida que vão embora de uma União Soviética a qual dedicam todo seu rancor, pois foi ela, afinal, quem lhes ganhou a guerra. Fliora, por seu lado, também perdeu tudo: familiares, amigos, juventude e chão. Esta espiral de ódio respondido por mais ódio é tal forma represada, a loucura é de tal forma armazenada por Klímov que o final do filme é a maior catarse cinematográfica que já vi e senti.

É um filme onde a loucura e a mortandade da guerra é mostrada de forma absolutamente artística e que, paradoxalmente, resulta clara, sem estilizações. Todos perdem neste épico sem heróis e inteiramente destituído de triunfalismo. Toda a arte de Klímov está trabalhando para o maior impacto sobre o espectador. Guerra é loucura, violência e raiva. O rosto do adolescente Fliora ao final do filme — um velho prematuro — é o mais inadequado rosto de vencedor que o cinema já mostrou. E o fato de apresentar documentários nazistas de trás para frente, mostrando — novamente unido ao personagem principal — toda a vontade de Fliora de desfazer a guerra e seu sofrimento é o achado final de Vá e Veja. Espero que agora o filme saia de seu restrito círculo de admiradores e seja finalmente visto, como seu nome recomenda.

Abaixo, todo o filme, mas gostaria de referir-me àquela parte que começa a 1h05min30seg, aos oito minutos finais. Tudo já aconteceu e quase nada é dito. Vale pelo significado das imagens. A música da primeira parte é, naturalmente, de Wagner, misturada a hinos nazistas e discursos; a segunda tem como trilha o Réquiem de Mozart. No ano do lançamento, Vá e Veja teve cerca de 29 milhões de espectadores na ex-União Soviética (como comparação, Titanic, o recordista do mercado brasileiro, teve 16,3 milhões). Portanto, sua relevância não é somente artística.

Vá e Veja (Idi i Smotri/Come and See URSS 1985) de Elem Klimov com Aleksei Kavchenko:

O filme ‘Vá e Veja’ é um dos mais duros e sensoriais retratos da Guerra. Ela vem pelo olhos de um menino camponês de 12 anos, convocado para a batalha entre a resistência e os nazistas pelo domínio da Bielorrússia. É o fim da Guerra, os alemães estão voltando para um país que não há mais e vão destruindo o que lhes passa pela frente. O ódio é incontrolável. Poucas vezes a Guerra no cinema foi retratada com imagens e sons tão impressionantes. Um verdadeiro filme de horror, onde toda ameaça pode surgir a qualquer momento. O roteiro são memórias da infância do próprio roteirista Ales Adamovich, um sobrevivente. ‘Vá e Veja’ pouco faz uso de imagens explícitas, mas a forma como Elem Klímov usa a câmera causa um dano emocional sem paralelos no espectador. (Aquela cena do retorno à aldeia natal onde o espectador vê o que o personagem ainda não viu… O que é aquilo?). É um pesadelo entre o surreal e o onírico, com um impressionante senso de SOM, ESPAÇO e ATMOSFERA.
É o pai dos filmes de guerra. Desde o começo, quando o filme “fica surdo” no momento em que uma bomba explode ao lado do menino, até os minutos finais. É a Sinfonia de Klímov.

(*) Informação contestada provavelmente com razão pela Helen nos comentários.

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O Imprescindível na Música Erudita – Parte I

Obviamente, isto será uma espécie de “Eu e a Música”. As opiniões que emito são perecíveis até para mim mesmo. O que posso é repassar minha grande vivência como ouvinte. Mais: ao iniciar esta série, estava em dúvida sobre o formato a escolher. Poderia estabelecer as clássicas divisões de música antiga, barroca, clássica, romântica, primeiros nacionalistas, etc. e preenchê-las com as obras principais, mas fui seduzido pelo formato cronólogico simples, pois dá maior margem a discussões e demonstra claramente os compositores tardios e os que estiveram a frente de seu tempo.

Farei uma longa lista de obras e, quando achar necessário detalhar algum fato sobre um autor importante, paro e escrevo, ora. Um blog é um exercício de liberdade e, assim como posso escolher um assunto tão impopular como a música erudita, posso mudar de idéia a qualquer momento.

IMPORTANTE: muitas das obras aqui listadas estão disponíveis na Internet. Como usuário do P.Q.P. Bach, utilizarei preferencialmente este blog.

1607 – Orfeu, de Claudio Monteverdi (1567-1643). Talvez seja a primeira ópera digna deste nome. Foi composta para um casamento na corte dos Gonzaga. Abaixo, um afresco da Camera degli sposi.

Monteverdi foi um renovador muito contestado e perseguido. Apesar de ainda submetido ao gosto da época pela mitologia grega, Orfeu é uma grande novidade. Foi a primeira vez que a música e o contexto sonoro contribuíram de forma eficiente para contar uma história. Alban Berg, que compôs duas grandes óperas e que não era exatamente um idiota, escreveu: “Monteverdi soube articular a música, de forma que ela estivesse consciente a cada instante da sua função no interior do drama”. Não é fácil. O pessoal da ópera gosta muito de DVDs – a encenação é importantíssima para eles – e há boas gravações, mas, para quem prefere música em CD, a gravação da Naxos custa uns R$ 50,00 e é muito boa. Dois CDs, OK? Aqui.

1650 – Saul, Saul, was verfolgst du mich? (Saulo, Saulo, por que me persegues?) e Freue dich des Weibes deiner Jugend (Encontra a felicidade na mulher da tua juventude), de Heinrich Schütz (1585-1672). Estas são pequenas obras-primas pinçadas dentro das muitíssimas deste barroco alemão. Cada uma delas tem duração de menos de quatro minutos, mas duvido que alguém, depois de ouvi-las, possa esquecer do desespero da primeira e da alegria da segunda. A gravação de John Eliot Gardiner para a Archiv é uma jóia. O Magnificat, também de Schütz, poderia estar nesta lista. Abaixo, a cara de louco manso deste grande compositor.

1689 – Dido e Enéas, de Henry Purcell (1659-1695). Aqui, já chego ao terreno de um de meus heróis prediletos e apesar de suas extraordinárias canções, Dido e Enéas foi sua maior obra. É inacreditável que eu, que não gosto muito de óperas, tenha iniciado esta lista com duas, mas o que fazer? A ária do lamento de Dido é de espantosa beleza e o dueto das bruxas mostra o talento cômico que Purcell fez aflorar em dezenas de canções. É considerada por muitos musicólogos a maior obra composta por um inglês até hoje. É quase incompreensível o fato de Purcell ser um fenômeno solitário, nascido num país em que os grandes homens sempre insistiram em usar as letras como meio de expressão. Aqui.

1700 – Sonatas para Violino, Op.5, de Arcangelo Corelli (1653-1713). Os italianos sempre gostaram de virtuoses, sejam vocais ou instrumentais. Nestas sonatas, Corelli demonstra que a música virtuosística pode ter conteúdo. Infelizmente, esta fórmula parece ter sido esquecida, principalmente por um certo violinista de nome Paganini, que viria no século seguinte. A gravação que conheço é muito antiga: é da Archiv com o violinista Eduard Melkus e a Capella Academica Wien. Aqui.

É chegado o momento em que as obras ficarão divididas em sua maioria entre três compositores: Johann Sebastian Bach (1685-1750), Georg Friedrich Handel (1685-1759) e Antonio Vivaldi (1678-1741). Só que Bach foi tão maior que vale uma explicação. É difícil compreender quem foi o ser humano Bach. Seu saber musical, sua capacidade de invenção e sobretudo de combinação tornam-no um real prodígio. Mas era alguém de extrema modéstia, que parecia que não estar criando obra alguma e que não interessava-se por preservá-la. Considerava-se somente um artesão que dominava sua profissão. É incrível que os originais dos Concertos de Brandenburgo tenham sido encontrados, anos depois, como papel de embrulho numa loja comercial… É que Bach não se considerava um gênio, nunca escreveu uma linha de música para exprimir-se, como farão depois os românticos e os blogueiros. Fora de seu ambiente familiar, era conhecido apenas como um virtuose do órgão, mas era um tremendo erudito que não ignorava estar numa encruzilhada de diferentes tradições musicais – a francesa, a italiana e a alemã – e tratou de fundi-las, criando uma síntese de enorme potência que resultou numa gramática própria. Telemann era considerado o maior compositor da época e Bach – fato inacreditável – concordava com isto. Foi esquecido. Esquecido e redescoberto por Haydn, Mozart e Beethoven. Desde então, tornou-se uma espécie de Deus Pai da Música. Não é um exagero, sua obra é tão grande e rica que quase todos os que vieram depois renderam-lhe homenagens. Olho para meus CDs de Bach e fico cansado, imaginando o enorme trabalho – principalmente de adjetivação – que terei pela frente. O homem viveu 65 anos escrevendo maravilhas. Vamos começar?

1711 – Cantata Nº 106 (Actus Tragicus), de Johann Sebastian Bach (1685-1750). Escrita para servir de réquiem no enterro de um reitor. Sua lenta introdução, surpreendentemente a cargo das flautas doces, trazem uma música de tristeza inconsolável. As árias que a sucedem estão entre as melhores de Bach. Aqui.

1712 – Concerti Grossi, Op. 6, Nº 1-4, de Arcangelo Corelli (1653-1713). O primeiro Allegro do Concerto Nº 4 é a mais feliz das músicas. Mas o restante dos concertos não fica nada a dever. Uma boa gravação é da Deutsche Harmonia Mundi, com La Petite Bande, regida por Sigiswald Kuijken. Aqui.

1720 – As Seis Suítes para Violoncelo Solo, de Johann Sebastian Bach (1685-1750). A prova de que talvez o mundo seja um lugar mau é que há pessoas adultas que nunca tiveram contato com as Suítes para Violoncelo e mesmo assim estão vivas e respirando. Em minha opinião, o violoncelo é o instrumento de mais belo timbre que existe e Bach, fiel a sua obsessão de explorar temas e características de um instrumento até seus limites, dá voz clara a contrapontos, a ritmos inimagináveis, a timbres inesperados, de forma que pensamos estar ouvindo a mais de um instrumento. É espantoso! A melhor gravação? Há muitas, mas a vencedora é a de Bruno Cocset. A do holandês Anner Bylsma também vale a pena. Esqueçam Rostropovich, não é sua área. Aqui.

1721 – Os 6 Concertos de Brandenburgo, de Johann Sebastian Bach (1685-1750). Quando tinha 13 anos, o Concerto de Brandenburgo Nº 3 começou a tocar no rádio. Estava tomando banho e o barulho do chuveiro me atrapalhava. Desliguei o chuveiro e, apesar do inverno, não senti muito frio, pois era vital ouvir a música até o final para saber do que se tratava. Meu pai me dava um porre de música romântica em casa e nunca tinha ouvido aquele concerto. O tema principal não era longo, mas transformava-se em outra coisa a cada repetição e tudo o que eu desejava é que tais mutações não parassem nunca. Quando perguntei a meu pai sobre este concerto, ele começou a cantarolá-lo e mostrou-me um disco. Ele não furou, sobrevivendo a incontáveis audições. É a melhor música barroca orquestral. São concertos muito diferentes entre si, cada um com personalidade própria. Há um concerto grosso no estilo de Handel (Nº 1), há um concerto para cravo e orquestra (Nº 5), há um inusitado concerto para uma orquestra sem violinos (Nº 6), etc. Cada um desses concertos é um mundo à parte, que nada deve a seus vizinhos – e que nada deve a ninguém. É difícil encontrar música mais perfeita. Aqui.

Obs.: Para esta série, consultei e consultarei algumas publicações, mas principalmente a excepcional revista Gramophone, a História de Música Ocidental, de Jean & Brigitte Massin e os úteis apêndices da Nova História da Música, de Otto Maria Carpeaux.

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Uma semana, um texto: Um impasse trágico no mundo editorial, de Chico Lopes

O melhor que li na Internet esta semana foi uma indicação de Fernando Monteiro. Transcrevo abaixo o texto retirado do Cronópios.

Um impasse trágico no mundo editorial

Por Chico Lopes

Todo escritor experimentado sabe que o refinamento estético é pouco democrático, que implica em não adular esse leitor comum, em avançar no experimento, na dificuldade, na reinvenção da linguagem. Todo escritor que refina seu instrumento sabe que está progressivamente se afastando da esfera popular. Mas, nesta seara, sob o clichê das “estórias bem contadas” que jamais deixou de ser invocado e aceito amplamente, há formas civilizadas de entretenimento literário, como os romances policiais de P.D James e outros. Pode-se, aliás, saltar dela para patamares mais elevados numa evolução natural do gosto por ler. Essa mediania não precisa ser vilanizada por autores mais arriscados que, desesperados por não serem aceitos, ressentidos, tratam de enfiar livros medianos ou apenas bons e lixo massificante num mesmo saco.

O que incomoda, hoje em dia, a quem escreve com a ambição de ir mais fundo à alma humana, não fazendo concessões demasiadas às soluções demagógicas, não é a mediania cultural bem-intencionada. É sentir-se um proscrito, um amaldiçoado, como se a liberdade intelectual, o gosto pela imaginação à solta, pela invenção estética, fossem coisas antipáticas e dignas de linchamento – muita gente fica mortalmente ofendida ao notar que está sendo levada a refletir e a passar por coisas ambíguas e inconcludentes, ao abrir um livro. O mercado é de fato liberal, pois admite que nele entre toda espécie de produto, mas joga para os porões da invisibilidade tudo que não seja tônico, utilitário, humorístico, escapista, fácil de vender.

O leitor comum não quer se sentir ameaçado pela infelicidade de alguns autores que lidam com seus abismos individuais, ainda que engenhosamente imaginativos, de maneira alguma. Mais e mais é adulado, tutelado, e não terá nunca a sua burrice questionada, para não sofrer abalos na auto-estima (e a auto-estima de um obtuso com dinheiro no bolso vale muito mais que a qualidade superior e óbvia de um pobre diabo culto sem recurso algum – George Orwell já havia notado isso com muita precisão em seu “Mantenha o sistema”). O leitor comum é, hoje em dia, contemplado com ofertas sempre mais e mais eufóricas e pode desprezar com tranqüilidade os produtos intelectuais que o obrigarão a pensar ou a, no mínimo, duvidar do que pensa, sente e vê.

Essa euforia, contrabandeada de outras formas de entretenimento (especialmente a televisão) parecia menos insidiosa e tirânica em anos recuados, talvez por a indústria cultural ser ainda menos pesada e tentacular no país naqueles tempos: ninguém que dissesse, repetindo Torquato Neto, que era preciso “desafinar o coro dos contentes”, no dever de incomodar e causar inquietação com que toda arte dita mais séria se investiu no século XX, parecia assim tão deslocado lá pelos anos 70 e parte dos 80. Hoje, os que dizem a mesma coisa, dizem-na para seus pares e sabem que serão ouvidos só entre estes. O público simplesmente não compreende uma recusa obstinada ao sucesso, um desejo de refletir sobre o mundo e não de aceitá-lo pelo que é – uma injustiça atrás da outra – e desfrutar dele o máximo possível.

A seriedade do escritor, que tenta ser aceito escrevendo de uma maneira abertamente impopular, parece imperdoável. Um número maior de gente com escolaridade não significou, de modo algum, um crescimento dos letrados. O que fez sim foi incrementar os consumidores de televisão, cada vez mais vorazes no desejo de uma vida mais e mais superficial, sem interrogações. A maquininha produz euforia ininterrupta, irrealidade constante a um preço mínimo, e para quê se preocupar com as questões sisudas que alguns livros oferecem se elas poderão afetar as ilusões nocivamente, paralisar as esperanças, a cegueira diligente? A sofisticação parece ameaçadora. É ameaçadora, inclusive e talvez principalmente, para os donos das redes, que não vão de maneira alguma se dar ao trabalho de oferecer refinamento, podendo faturar com o lixo que eles sabem ter retorno certo e, intimamente, é de lixo mesmo que seu gosto particular é feito, ao que tudo indica.

O impasse trágico que isso produz, para quem quer escrever a sério, é muito menos analisado do que deveria. Os desdobramentos vão ser mais e mais graves. Mesmo os livros destinados ao medianamente culto ficarão cada vez menos literários. Braço da indústria de entretenimento sem apelo tão maciçamente sedutor, o mercado editorial cederá cada vez mais a um imperativo de irreflexão provindo de gente que lê muito mal e não deseja se emendar de modo algum. Tristeza e sombras, senso trágico da vida ou simplesmente consciência da morte, cairão nas zonas de tabu cultural com mais e mais intensidade. Só se aceitará o que for eufórico ou totalmente digerível.

É debaixo dessa euforia – por vezes engrossada por algum membro da fileira dos escritores refinados que, ressentido demais, bandeou-se para a facilidade – que nos movemos hoje em dia, e que ninguém se iluda com a penetração dos livros mais sentidos e mais sérios: foram lidos apenas pelos poucos já capazes de acolhê-los. Legião que, ao em vez de se ampliar, só tem feito diminuir.

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Black is beautiful

Ontem, todo o dia aos berros na rádio-cérebro, Elis mandava ver na canção de Marcos e Paulo Sérgio Valle.

Hoje cedo, na Rua do Ouvidor
Quantos brancos horríveis eu vi
Eu quero um homem de cor
Um deus negro do Congo ou daqui

Que se integre no meu sangue europeu

Black is beautiful, black is beautiful
Black beauty so peaceful
I wanna a black I wanna a beautiful

Trecho da letra de Black is Beautiful

O curioso é que demorei um par de horas para descobrir o motivo.

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Bandeira e Sophia conversando

Balada das Três Mulheres do Sabonete Araxá (1931)

As três mulheres do sabonete Araxá me invocam, me bouleversam, me hipnotizam.
Oh, as três mulheres do sabonete Araxá às 4 horas da tarde!

O meu reino pelas três mulheres do sabonete Araxá!

Que outros, não eu, a pedra cortem
Para brutais vos adorarem,
Ó brancaranas azedas,
Mulatas cor da lua vem saindo cor de prata
Ou celestes africanas:
Que eu vivo, padeço e morro só pelas três mulheres do sabonete Araxá!

São amigas, são irmãs, são amantes as três mulheres do sabonete Araxá?
São prostitutas, são declamadoras, são acrobatas?
São as três Marias?
Meu Deus, serão as três Marias?
A mais nua é doirada borboleta.
Se a segunda casasse, eu ficava safado da vida, dava pra beber e nunca mais telefonava.
Mas se a terceira morresse…Oh, então, nunca mais a minha vida outrora teria sido um festim!
Se me perguntassem: queres ser estrela? queres ser rei?
queres uma ilha no Pacífico? Um bangalô em Copacabana?
Eu responderia: Não quero nada disso, tetrarca. Eu só quero as três mulheres do sabonete Araxá:

O meu reino pelas três mulheres do sabonete Araxá!

Manuel Bandeira (1886-1968)

Manuel Bandeira (1967)

Este poeta está
Do outro lado do mar
Mas reconheço a sua voz há muitos anos
E digo ao silêncio os seus versos devagar

Relembrando
O antigo jovem tempo quando
Pelos sombrios corredores da casa antiga
Nas solenes penumbras do silêncio
Eu recitava
“As três mulheres do sabonete Araxá”
E minha avó se espantava

Manuel Bandeira era o maior espanto da minha avó
Quando em manhãs intactas e perdidas
No quarto já então pleno de futura
Saudade
Eu lia
A canção do “Trem de ferro”
e o “Poema do beco”

Tempo antigo, lembrança demorada
Quando deixei uma tesoura esquecida nos ramos da cerejeira
Quando
Me sentava nos bancos pintados de fresco
E no Junho inquieto e transparente
As três mulheres do sabonete Araxá
Me acompanhavam
Tão visíveis
Que um eléctrico amarelo as decepava.

Estes poemas caminharam comigo e com a brisa
Nos passeados campos de minha juventude
Estes poemas poisaram a sua mão sobre o meu ombro
E foram parte do tempo respirado.

Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004)

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Esculpir o tempo, de Andrei Tarkovski, ou Escrevendo sobre uma coisa, refiro-me a outra

Só a indiferença é livre. O que tem caráter distintivo nunca é livre; traz a marca do próprio selo; é condicionado e comprometido.

THOMAS MANN, citado por Andrei Tarkovski

Quando peguei o livro de Esculpir o Tempo, obra escrita pelo cineasta soviético Andrei Tarkovski (Martins Fontes, 1998, fácil de encontrar) numa estante da Livraria Bamboletras em Porto Alegre, fui direto à contracapa. Li isto:

O meu mais fervoroso desejo sempre foi o de conseguir me expressar nos meus filmes, de dizer tudo com absoluta sinceridade, sem impor aos outros o meu ponto de vista. No entanto, se a visão do mundo transmitida pelo filme puder ser reconhecida por outras pessoas como parte integrante de si próprias, como algo a que nada, até agora, conseguira dar expressão, que maior estímulo para o meu trabalho eu poderia desejar? Este livro amadureceu durante todo o período em que minhas atividades profissionais estiveram suspensas… Seu principal objetivo é ajudar-me a descobrir os rumos da minha trajetória em meio ao emaranhado de possibilidades contidas nesta nova e extraordinária forma de arte – em essência, ainda tão pouco explorada – para que nela eu possa encontrar a mim mesmo, com plenitude e independência.

Gostei. Abri o livro e comecei a lê-lo a partir da primeira página, só parando quando chegou a hora de entrar no cinema. Quando devolvi o livro à estante, lembro de ter pensado se veria algo melhor do que ele; difícil. Alguns dias depois, voltei à Bamboletras, procurei o livro e recomecei a leitura do ponto onde havia parado. Fiz isto várias vezes consecutivas sem nunca comprá-lo, já estava lá pela página 100 das 306 que ele possui.

Então, talvez na quinta sessão de leitura, quando empreendia a procura do livro nas estantes, notei que a responsável pela livraria saía sorridente de trás de seu balcão. Olhei para ela.

— Procurando o livro do Tarkovski?
— Sim, como é tu sabes? – disse, meio sem jeito.

Ela exibiu todos os dentes num sorriso e falou:

— Pô, tu estavas sempre mergulhado nele! Eu o vendi ontem, mas já pedi mais dois.
— Por quê? Este livro deve ser complicado de vender. É de interesse restrito.
— Não é não, é de interesse geral. Vou acabar indicando e vendendo para alguns dos meus clientes. Eu também comecei a lê-lo. É muito bom mesmo. E, se eu não trouxesse mais…, como tu ficarias?

É claro que deixei meu telefone para que a Bamboletras me avisasse quando da chegada do livro e o comprei. Não, caros leitores, não fiquei nem casei com a moça da livraria. Esta história bonitinha, comercial e verdadeira serve apenas para demonstrar quão envolvente é o livro de Tarkovski.

Tenho uma admiração distante por seus filmes. Vi Andrei Rublev nos anos 70 e saí do cinema Vogue eufórico, pois o Milton adolescente nunca tinha cogitado sobre a possibilidade de existirem filmes tão poéticos. Andrei Rublev (1360/70 – 1430) é um monge-pintor russo. O filme tem uma atmosfera parecida com a de O Sétimo Selo de Bergman, mas é muito mais onírico. Há um episódio inesquecível no qual um jovem constrói seu primeiro sino. Ele é filho do sineiro da cidade, que morreu, cabendo a ele lembrar-se de como seu pai fazia e construir o sino. A cena na qual o sino é testado pela primeira vez, o momento no qual o badalo é empurrado para frente e para trás através da força dos braços de um homem quase enterrado no chão e que é apenas entrevisto, está em meus olhos 35 anos depois. Creio ter sido esta a maior emoção que o cinema me passou até hoje.

Depois, vi Solaris e, creio eu, O Espelho com meu pai e não nos entusiasmamos muito. O entusiasmo voltou com Stalker e O Sacrifício, que vi neste século. Não são filmes fáceis e posso afirmar que alguns deles foram vistos como se formados por pequenos episódios que eram maravilhosos, perfeitos, mas eu não conseguia ligá-los logicamente. Durante algum tempo pensei que a grande obra de Tarkovski era o mosaico formado por estas pequenas histórias.

Goethe está certo quando diz que ler um bom livro é tão difícil quanto escrevê-lo. Completo dizendo que se não estivermos à altura da obra, nunca a compreenderemos tal como o autor gostaria. Sempre estive, portanto, muitos pontos abaixo daquilo que o cineasta Tarkóvski requer. Porém, no livro não é assim. Ali tudo é explicado de forma clara, tão clara que fico tentado a rever todos os filmes para finalmente me apropriar deles.

Mas por que lembro justamente de Tarkovski? Melhor dizendo: a que desejo me referir quando falo sobre ele? Creio que desejo apresentar um homem que podia expressar-se artisticamente escrevendo ou filmando, desejo mostrar um homem que não apenas conhecia profundamente cinema e literatura, mas também era conhecedor de música, arquitetura e artes plásticas. Era um homem raro e — nestes tempos de obtusa especialização — sinto falta destas pessoas multifacetadas, que podem nos surpreender ao dar convívio aos assuntos mais díspares dentro de um só cérebro, de um só livro ou de um só parágrafo.

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Uma semana, um texto: Como esses estúpidos selvagens chegaram a dominar Washington, de George Monbiot

O melhor que li na Internet esta semana foi o texto que transcrevo abaixo, encontrado no RS Urgente.

Como esses estúpidos selvagens chegaram a dominar Washington

Por George Monbiot.

Como se permitiu que se chegasse a esse ponto? Como a política nos EUA chegou a ser dominada por pessoas que fizeram da ignorância uma virtude? Foi a caridade que permitiu que um parente mais próximo do homem chegasse a gastar dois mandatos como presidente? Como foi possível que Sarah Palin, Dan Quayle e outros estúpidos do gênero chegassem aonde chegaram? Como foi possível que os comícios republicanos em 2008 fossem tomados por gritarias ignorantes insistindo que Barack Obama era um muçulmano e terrorista?

Como muitos deste lado do Atlântico, eu fui por muitos anos encantado com a política americana. Os EUA têm as melhores universidades do mundo e atrai as mentes mais brilhantes. Domina descobertas na ciência e na medicina. Sua riqueza e seu poder dependem da aplicação do conhecimento. Ainda assim, de maneira única dentre as muitas nações desenvolvidas (com a exceção possível da Austrália), o conhecimento é uma desvantagem política grave nos EUA.

Houve exceções ao longo do século passado – Franklin Roosevelt, JF Kennedy e Bill Clinton temperaram seu intelectualismo com um toque de senso comum e sobreviveram -, mas Adlai Stevenson, Al Gore e John Kerry foram respectivamente fulminados por seus oponentes por serem membros de uma elite cerebral (como se isso não fosse uma qualificação para a presidência). Talvez o momento decisivo no colapso da política inteligente tenha sido a resposta de Ronald Reagan a Jimmy Carter, no debate presidencial de 1980. Carter – tropeçando um pouco, usando longas palavras – cuidadosamente enumera os benefícios do sistema nacional de saúde. Reagan sorri e diz: “Lá vem você de novo”. Seu próprio programa de saúde teria apavorado muitos americanos, caso tivesse sido explicado tão cuidadosamente como o fez Carter, mas ele tinha encontrado a fórmula para se prevenir de questões políticas sérias ao fazer com que seus oponentes parecessem intelectuais “engomados” que não mereciam confiança.

Não foi sempre assim. Os pais fundadores da República – Benjamin Franklin, Thomas Jefferson, James Madison, John Adams, Alexander Hamilton e outros – estavam entre os maiores pensadores de sua época. Eles não sentiam necessidade de tornar isso um segredo. Como o projeto por eles construído degenerou-se em George W. Bush e Sarah Palin?

Num ponto isso é fácil de responder. Políticos ignorantes são eleitos por povos ignorantes. A educação norte-americana, assim como seu sistema de saúde, é notória por seus fracassos. Na nação mais poderosa do planeta, um em cada cinco adultos acredita que o sol gira em torno da terra; só 26% aceitam que a evolução ocorre por seleção natural; dois terços dos jovens adultos são incapazes de encontrar o Iraque num mapa, dois terços dos votantes norte-americanos não são capazes de nomear três organizações governamentais; a competência matemática dos adolescentes de 15 anos nos Estados Unidos está em vigésimo quarto dos vinte e nove países da OECD.

Mas isso só aumenta o mistério: como tantos cidadãos norte-americanos tornaram-se tão estúpidos, e desconfiados da inteligência? Até onde li, o livro de Susan Jacoby, The Age of America Unreason [algo como A Era da des-Razão Americana], fornece uma explicação completa. Ela mostra que a degradação da política norte-americana resulta de uma série de tragédias interligadas.

Um tema é muito familiar e claro: religião – particularmente religião fundamentalista – torna você estúpido. Os EUA é o único país rico em que o fundamentalismo cristão é vasto e crescente.

Jacoby mostra que já houve uma certa lógica nesse anti-racionalismo. Durante as algumas décadas após a publicação de A Origem das Espécies, por exemplo, os americanos tinham boas razões para rejeitar a teoria da seleção natural e para tratar os intelectuais públicos com suspeita. Desde o começo, a teoria de Darwin foi misturada, nos EUA, com a filosofia brutal – agora conhecida como darwinismo social – do escritor britânico Herbert Spencer. A doutrina de Spencer, promovida na imprensa popular com o financiamento de Andrew Carnegie, John D. Rockefeller e Thomas Edison, sugeria que os milionários estavam no topo da escala estabelecida pela evolução. Ao impedir os desajustados de serem eliminados, a intervenção governamental enfraquecia a nação. A maioria das desigualdades econômicas eram tanto justificáveis como necessárias.

O darwinismo, em outras palavras, tornou-se indistinguível da forma mais bestial do laissez-faire econômico. Muitos cristãos responderam a isso com náusea. É profundamente irônico que a doutrina rejeitada um século atrás por proeminentes fundamentalistas como William Jennings Bryan seja agora determinante para o pensamento da direita cristã. Fundamentalistas modernos rejeitam a ciência darwinista da evolução e aceitam a pseudociência do darwinismo social.

Mas há outras razões, mais poderosas, que explicam o isolamento intelectual dos fundamentalistas. Os EUA são peculiares ao delegarem o controle da educação a autoridades locais. Ensinar nos estados do sul era ser dominado por uma elite aristocrática e ignorante de donos de terras, e um grande abismo educacional foi aberto. “No sul”, escreve Jacoby, “só o que pode ser descrito é que um bloqueio intelectual foi imposto para manter do lado de fora idéias que pudessem ameaçar a ordem social”.

A Convenção Batista do Sul, agora a maior congregação religiosa dos EUA, era para a escravidão e a segregação o que a Igreja Reformada Holandesa (Dutch Reformed Church) era para o apartheid na África do Sul. Ela fez mais do que qualquer força política para manter o sul estúpido. Nos anos 60 tentou disseminar a desagregação estabelecendo um sistema privado de escolas e universidades cristãs. Hoje, um estudante pode ir do jardim da infância até o mais alto grau de estudos sem qualquer exposição ao ensino secular. As crenças batistas do sul também passam imunes ao sistema de escola pública. Uma enquete feita por pesquisadores na Universidade do Texas em 1998 revelou que um em cada quatro professores de biologia das escolas do estado acreditavam que humanos e dinossauros viveram na Terra ao mesmo tempo.

Essa tragédia vem sendo assistida pela fetichização americana da auto-educação. Apesar de seu lamento por sua falta de educação formal, a carreira de Abraham Lincoln é repetidamente citada como evidência de que a boa educação fornecida pelo estado não é necessária: tudo de que se precisa para ter sucesso é determinação e individualismo vigoroso. Isso pode ter servido bem para as pessoas quando os genuínos movimentos de auto-educação, como o que se construiu em torno dos Little Blue Books na primeira metade do século XX estiveram em voga. Na era do info-entreternimento (1), esse tipo de coisa é receita para a confusão.

Além da religião fundamentalista, talvez a razão mais potente para o combate dos intelectuais na eleição seja que o intelectualismo tem sido equiparado à subversão. O breve flerte de alguns pensadores com o comunismo há muito tempo atrás tem sido usado para criar uma impressão na mente do público de que todos os intelectuais são comunistas. Quase todo dia homens como Rush Limbaugh e Bill O’Reilly vociferam contra as “elites liberais” que estão destruindo a América.

O espectro das grandes cabeças alienígenas subversivas foi crucial para a eleição de Reagan e de Bush. Uma elite intelectual genuína – como os neocons (alguns deles ex-comunistas) em torno de Bush – deu o tom dos conflitos políticos como uma batalha entre americanos comuns e bem sucedidos e super-educados pinkos (2). Qualquer tentativa de desafiar as idéias da elite intelectual da direita tem sido atacada, com sucesso, como sendo elitismo.

Obama tem muito a oferecer aos EUA, mas nada disso vai parar se ele vencer. Até que os grandes problemas do sistema educacional sejam revertidos ou que o fundamentalismo religioso perca sua força, haverá oportunidade política para que gente como Bush e Palin ostentem sua ignorância.

Publicado originalmente no Guardian, em 28 de outubro de 2008

O artigo também está publicado na página de George Monbiot.

(1) Neologismo usado pelo autor (infotainment), que resulta da junção das palavras informação com entreternimento. N.deT.

(2) Pinko é um termo pejorativo criado pela direita norte-americana para designar intelectuais supostamente comunistas ou simpáticos ao comunismo que, contudo, não são militantes partidários. A palavra pinko deriva do nome da cor rosa, em inglês – pink -, que resulta da mistura do vermelho com o branco. Pinko seria uma forma light de comunismo, assumida supostamente por aqueles “intelectuais” que não pretendem ser associados diretamente ao comunismo. Termo aparece pela primeira vez, segundo a Wikipédia, em 1926, no semanário Time. N.deT.

Tradução: Katarina Peixoto

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Porque hoje é sábado, todas

Nos arquivos

dormem quietas

as mulheres

que nosso olhar

desperta.

A fim de levarem

suspensas

nossas fantasias:

as lúbricas (ou lúdicas) (ou afetuosas) (ou loucas)

mas, sobretudo

as do sublime (e justo) (e perpétuo) (e sempiterno)

desejo

de uma vida

inexcedível.

-=-=-=-=-=-

Pela ordem, as deusas de mais um divertimento de sábado: Sophie Marceau, Sadie Frost, Brigitte Bardot, Gisele Bündchen, Ingrid Bergman, Charlize Theron, Kate Winslet, Marilyn Monroe, Monica Bellucci, Grace Kelly, Marlene Dietrich, Aishwarya Rai, Irene Jacob e Claire Forlani.

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Trecho de e-mail recebido de Mariângela Grando:

A presidente do Conselho Estadual de Cultura escreveu:

…me parece que, finalmente, a inteligenzia começa a dar-se conta dos estragos que estão sendo cometidos na pasta da Cultura. Hoje aprovamos a Feira do Livro, e até reabilitou-se algumas glosas ao orçamento, que haviam sido feitas pelo SAT (setor de análise técnica) da LIC/SEDAC…

A melhor notícia da semana, quiçá do mês, João Carneiro.

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Uma perspectiva curiosa da Feira do Livro de Porto Alegre

Nossa querida Feira do Livro – que já passou dos 50 anos – é uma grande reunião de livreiros e instituições em uma praça aberta no centro de Porto Alegre. Vende-se livros, ministram-se palestras, há uma área para a literatura infantil (com livrarias especializadas e teatro), há oficinas de literatura, há as empresas de comunicação que transferem seus estúdios para lá e há o coração da cidade, que segue pulsando não apenas de acordo com a pressa e a violência, mas também pela literatura. Nossa Feira é incomum sob vários aspectos: é gratuita, é realizada em praça aberta, é visitada por milhões de pessoas – não é exagero – e é quase impossível caminhar entre as barracas nos finais de tarde e de semana. Os amigos estão todos lá, conheço gente que vai todos os dias da Feira à Praça da Alfândega, no centro da cidade. Ela começa sempre na última sexta-feira de outubro e acaba por volta do dia 15 de novembro. Este ano vai de 31/10 a 16/11.

Há coisas ruins nela: nos últimos anos, as barracas da Feira tornaram-se uma imensa livraria convencional. Não há diversidade, todos oferecem as mesmices mais vendidas, deixando as novidades escondidas. A Feira que vende livros novos é uma megastore meio nauseante. Vou dar um exemplo: no ano passado, procurei o premiado Nove Noites de Bernardo Carvalho, publicado pela Companhia das Letras. Livro novo, né? Perguntei em mais de 20 barracas e nada. Enchi o saco. Ou seja, todos vendem as mesmas coisas e acabei na Internet. Já Paulo Coelho e nossos best-sellers gaúchos estão em todo lugar. É monótono. Talvez as únicas exceções sejam a Livraria Bamboletras e a Ventura Livros. O resto é shopping. Mas há os sebos e há os tradicionais balaios de saldos e encalhes, são eles que salvam nossa vida e garantem nossa presença na área de vendas. Há que procurar, mas vale a pena.

Nos últimos anos, passei a participar dos eventos periféricos. São carradas de seminários gratuitos com escritores. Sentamo-nos confortavelmente nos bons salões do Santander Cultural, do Clube do Comércio e do Centro Cultural CEEE Erico Verissimo a fim de ouvir os autores. Ao final, podemos fazer perguntas e debater a obra, a vida, a política, o futebol, o amor, outras obras, qualquer coisa. Dependendo do autor, claro, as pessoas saem eufóricas destes encontros. Nos últimos anos, estão sendo apresentados ciclos também gratuitos de filmes baseados em livros em salas próximas (“É tudo free!”, como diria Raul Seixas) e a parte internacional da Feira melhorou muito, com os argentinos e espanhóis entrando com livros e preços bem legais. Mas, quando coloquei lá em cima meu título sobre uma determinada perspectiva, não referia-me às possibilidades culturais e sim a outras, como explico abaixo.

O título diz respeito a um caso pessoal. Alguns meses depois de minha separação, em 2001, eu ainda estava deprimidíssimo e chegou a época da Feira do Livro. Não morava mais com meus filhos e tinha um enorme tempo livre ao qual estava desacostumado — ou acostumado a utilizá-lo apenas para me desesperar ainda mais. Os amigos estavam meio sumidos pois eu sumira. Mas também sumiram porque é normal sumir nestas circunstâncias: sabe-se que o separado contrai uma rara espécie de hanseníase contagiosa. Ele(a) causa medo, algo do gênero se-aconteceu-a-ele(a)-pode-acontecer-a-mim-e-eu-não-quero. Porém, durante a Feira consegui decidi (aleluia!) que ia voltar a aparecer para as pessoas. Afinal, era a Feira! Então ficava na frente do pavilhão de autógrafos por volta das 18h. Sim, ficava ali, como uma prostituta fazendo seu ponto. O extraordinário é que TODOS OS DIAS em que lá fui, surgiram amigos — velhos, novos ou antiqüíssimos — com os quais acabei jantando ou visitando depois. Eles sempre apareceram. Estes amigos traziam com eles outros e, quando me dei conta, estava com uma popularidade tonitruante, se comparada com a imediatamente anterior. Meu telefone voltou a tocar e pude, com mais conforto, fazer de conta que a vida estava voltando ao normal.

Certas experiências acabam por se oferecer gratuitamente aos separados, quando estes não estão inteiramente paralisados pela depressão. Não, não indico a separação como remédio para ninguém, mesmo que se queira fazer um treinamento intensivo de realidade. Ao contrário, admiro muitíssimo mais os casais que se separam por um tempo e depois voltam a seus casamentos em outros termos. É uma atitude de fé no outro e a remodelação deve ser “ecológica para a alma”.

As idas à Feira custou-me menos do que qualquer psiquiatra, menos que qualquer antidepressivo… Foi um período de recuperação e inclusão de novos amigos. Um bom período. A propósito, comprei alguns livros nos balaios, claro…

Ah, e há promessas de cervejas no bar no MARGS.

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A sumidade vai falar, eu mal posso esperar

RS Urgente informa:

A Assembléia Legislativa aprovou hoje (28), por 26 votos a 20, a criação de uma Comissão de Representação Externa para investigar as denúncias de fraudes na prestação de contas de projetos beneficiados pela Lei de Incentivo à Cultura (LIC). A proposta é de autoria do deputado Ronaldo Zulke (ecce homo, ao lado), do PT, com o apoio de mais 19 parlamentares. A comissão vai averiguar as denúncias de fraudes no sistema LIC, que geraram uma crise envolvendo a secretária estadual da Cultura, Mônica Leal, e a presidente do conselho estadual da área, Mariângela Grando. Segundo Zulke, o trabalho da comissão não se limitará aos problemas de gestão da LIC, mas também analisará os fatores que prejudicam atualmente a atividade cultural no Rio Grande do Sul. O governo Yeda saiu derrotado na votação. Não queria a instalação da comissão.

Finalmente vamos saber mais.

Mal posso esperar pelas explicações de Mônica. Gostaria de ver. Quando ela fala sobre cultura, dá-me frouxos de riso.

E Zero Hora, pisando em ovos, informa:

A 54ª Feira do Livro de Porto Alegre foi lançada oficialmente nesta terça-feira durante café da manhã para imprensa e convidados. Para o público, a feira será aberta na próxima sexta-feira.

O presidente da Câmara Rio-Grandense do Livro, João Carneiro, falou da expectativa para a reunião do Conselho Estadual da Cultura, na quinta-feira, que decidirá sobre o repasse de R$ 700 mil referentes à Lei de Incentivo à Cultura.

— Não estou trabalhando com a hipótese de não recebermos a verba. Temos sim, um orçamento geral e um enxuto para a edição deste ano.

Inteligente o seu João, pode-se esperar qualquer coisa da sumidade (ou seria sumidouro?).

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Contra o voto obrigatório

A maioria dos eleitores brasileiros — e de qualquer país — não possui opinião política relevante ou, melhor dizendo, são passivos. Não se informam sobre o motivo da recessão ou em acompanhar o político ou o partido no qual votou. Votam por impulso de última hora, escolhendo principalmente candidatos capazes de maior marketing ou pessoas oriundas do rádio ou da televisão. Só que no Brasil a participação de todos é compulsória, chegando a haver multas por forfait. Tal fato acaba por diluir a influência daqueles que valorizam e refletem sobre seus votos. Em minha opinião, seria fundamental que o Executivo e o Legislativo fossem uma representação do cenário político do país, que refletissem a opinião da maioria preocupada com seus rumos e que representassem, em suas formações, um somatório de convicções e não de vagas impressões. Originário do voto de cabresto, o obrigatoriedade acentua a enorme intrusão de pessoas que escolhem seus candidatos por motivos rarefeitos ou tolos. Este voto que não haveria — não fosse a necessidade de todos votarem — é deletério para a nossa representação em todos os níveis.

Outro ponto interessante a favor do voto facultativo é o do contra-senso jurídico. Sendo o voto um direito do cidadão, como pode ser também um dever? Sei que podem aparecer advogados com suas filigranas e brilhaturas, mas gostaria de dizer que é indiscutível que as palavras “direito” e “dever” não são sinônimas nem miscíveis. Direito é a faculdade legal de praticar ou não um ato (votar é um direito), enquanto que o dever implica em imposição. Dizer que o voto é um direito e um dever era um dos poemas do governo militar. Porém, na risível, confusa, lenta e interminável colcha de retalhos jurídicos que controla nosso país, este é apenas mais um problema.

Finale 1 (scherzando): Há muitos anos meu voto vale por seis ou sete. Culpa minha se fico amigo do zelador, da senhora do cafezinho, das faxineiras e das empregadas? Bem, só sei que confiam em mim, sei lá por quê. Esta multiplicação de Miltons Ribeiros, cada um deles preenchendo bilhetes com números de candidatos, não aconteceria se tais pessoas pudessem escolher entre votar ou não. Elas, simplesmente, são desinformadíssimas e não se sentem motivadas sequer a pensar no assunto. Se eu, o modesto Milton, controlo votos da maioria silenciosa, o que outros, com maiores interesses, não farão?

Atualização feita às 9h45: quero colocar como parte do post o excelente comentário de Eugênio Neves. Ele foi ainda mais claro do que eu:

Sempre achei que o voto obrigatório é mais uma dessas excrescências produzidas pelos donos do poder. Concordo com as tuas ponderações e sem nenhum receio de ser pedante, ou elitista, me recuso a aceitar a idéia de que o uso que a maioria faz do voto, tenha a mesma qualidade do meu voto, independentemente, do meu campo ideológico ser favorecido ou não. Eu voto com convicção ideológica. Não é um bandeiraço, frases de efeito num debate ou a cor da gravata do candidato que definirão meu voto. Tenho plena consciência política e, quando escolho, sei o que estou fazendo. Como também tenho a certeza que esse não é o caso da maioria.

Certa vez, tive um rápido debate com o Tarso e ele entendia o voto obrigatório como um fator de formação de cidadania. Até poderia ser, se vivêssemos num ambiente político realmente democrático, onde a circulação da informação fosse plena. Como não é essa a realidade, penso que a não obrigatoriedade do voto proporcionaria um avanço real na democracia, na medida em que só os que têm consciência votariam. No mais, o dia da eleição seria um feriadão, em que os alienados iriam para a praia e nos poupariam desse espetáculo grotesco que é a reeleição do Fogaça.

A não ser que alguém entenda que essa escolha foi um avanço político…

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Entrevista com Mariângela Grando sobre a atuação de Mônica Leal na SEDAC

Minha preocupação inicial era com as dificuldades que a lastimável Secretária de Cultura produziria à Feira do Livro, porém esta curiosidade descortinou uma tal inépcia de Mônica Leal para o cargo que ocupa que a Feira tornou-se periférica. O rigoroso silêncio guardado pela imprensa sobre quaisquer problemas que afetem os aliados do candidato José Fogaça é tão imenso — observação minha — que penso novamente fazer um serviço ao entrevistar por e-mail a presidente do Conselho Estadual de Cultura Mariângela Grando. Sei que tal assunto não interessa muito aos leitores de outros estados, mas o que fazer?

– Qual o efeito que os problemas da SEDAC podem causar à Feira do Livro de 2008?

A não homologação da prestação de contas de 2007 impedirá o CEC/RS de analisar o mérito do projeto. Há mais de um mês alertei aos dirigentes da Câmara do Livro de que deveriam tomar medidas judiciais para garantir a homologação das contas pendentes e assim poder ter o mérito do projeto avaliado. Não fui ouvida e agora tenho medo que tudo isso prejudique a Feira, o que seria uma tremenda lástima!

– Quem manda hoje na política cultural do Estado?

Qual política Cultural? É exatamente do que nos queixamos! Não há política cultural. E, desde que a LIC foi criada, virou a única ferramenta de financiamento à Cultura no Estado! Nem mais um centavo foi aprovado para investimentos diretos em nenhum tipo de segmento cultural. E a chegada da Mônica só fez desaparecer as poucas conquistas que haviam sido conseguidas a duras penas.

– O que a SEDAC pode fazer após as restrições do CEC? A secretaria está inoperante?

É certo que houve uma redução no fluxo de projetos. Isso deve colaborar para que a Sedac ponha em dia o passivo de projetos esperando pela homologação das contas. Não é justo que os produtores culturais paguem por esse descontrole. Mas o CEC não podia mais fechar os olhos para o que estava acontecendo. Há produtores culturais com contas sem homologar desde 1999. E há uma decisão do TCE, de 29/11/06 que determina que não haja autorização para novas captações de recursos àqueles produtores culturais com pendência na homologação das contas. O Secretário da Cultura de então, Victor Hugo acatou a determinação, mas a Mônica revogou a Instrução Normativa (IN) 03/2006 que acolhia a descisão do TCE, pela IN 01/2007, que liberou geral. Por quê?

– Quais são os interesses que ditam a gestão de Mônica Leal na Cultura?

Suas pretensões eleitorais. Tudo lá dentro da SEDAC é contabilizado na base dos rendimentos em votos! Mônica Leal é uma grande operadora de mídia. Tem uma habilidade espantosa de criar factóides e espalhar fantasias e inverdades. Exemplo disso é o discurso inverídico de que zerou o passivo da LIC. Que é isso? Ela por acaso não conhece o princípio da anualidade desta Lei? Se você não gasta, não sai do caixa! Ela nem sequer entendeu as determinações do TCE que, quando falou em passivo, falou da pilha de 1000 projetos sem homologações de contas!

– E o interesse de Yeda Crusius em NÃO TER uma Secretaria de Cultura?

Não. D. Yeda estava assustada com os números e achou que deveria enxugar a máquina. Todo político sempre pensa, quando se trata de cortes, na cultura em primeiro lugar. Mas acredito que a Governadora mostrou sua sensibilidade quando decidiu manter a SEDAC. Ainda que esteja demorando muito na correção das irregularidades apontadas àquela secretaria.

– E por que foi para lá logo uma amiga pessoal da governadora?

Vamos esclarecer isso: a Mônica NUNCA foi amiga pessoal da D.Yeda. A Mônica foi anunciada como da “cota pessoal” da Governadora, creio que mais por estratégia de marketing político do que qualquer outra coisa. Mas a indicação partiu mesmo foi do Bertolucci, então prefeito de Gramado. A D. Yeda nem conhecia a Mônica. Aliás…continua desconhecendo.

– Qual é o real poder do Conselho Estadual de Cultura para manietar a atuação sobre uma secretaria sobre a qual pairam dúvidas?

O Conselho tem, entre suas atribuições constitucionais, formatar e fiscalizar os atos praticados no desenvolvimento de políticas públicas. Desde que assumi a Presidência do CEC, começamos a levantar uma lista de atos irregulares que estavam acontecendo na SEDAC. Por exemplo: alteração na estrutura organizacional da SEDAC, sem decreto governamental ou autorização da Assembléia; homologação de contas de projetos sob investigação de irregularidades (Caso Multipalco); liberação de recursos a projetos sub judice e sem trânsito em julgado (caso Jornada de Passo Fundo); distribuição irregular de patrimônio público (contrapartidas); nomeação de conselheiros do CEC, em substituição a outro, sem que este fosse o suplente originalmente nomeado pela Governadora, entre outros. O CEC denunciou ao MP e ao Gab. de Transparência, que encaminhou ao TCE. E anteontem levamos o relatório ao conhecimento da Assembléia Legislativa.

– Qual é a plataforma da atual gestão do Conselho de Cultura?

O que queremos é que o governo pare de pedir recursos da LIC para viabilizar seus projetos; que implemente mecanismos alternativos de financiamento à cultura (FAC); que recomponha os valores legais da LIC (0,5% das receitas líquidas do ICMS) porque há 10 anos trabalhamos com o mesmo valor, quando deveríamos estar trabalhando com o dobro dos recursos; que financie com orçamento próprio a manutenção dos equipamentos culturais pertencentes ao Estado e realização de eventos culturais de interesse do Governo (caso Semana Farroupilha e outros) e; por fim, uma ampla modificação de cunho filosófico e regulamentador da Lei de Incentivo. Queremos a implantação de políticas públicas eficientes para a Cultura do RS!

– Como foram liberados documentos das prestações de contas dos filmes que produziste?

Pois é, também gostaria de saber. Se as contas ainda estavam sendo analisadas e em diligência, como foi parar nas mãos da RBS? Algumas das notas fiscais que atribuiram a despesas pessoais minhas nem tinham o meu nome! Quem disse que aquelas despesas foram feitas por mim? Mas será que os problemas com estas notas resumem o desastre que é a gestão Mônica Leal na Cultura do RS?

– E aquela gravação feita na SEDAC?

Outra coisa interessante. A mídia divulgou que fui eu quem ligou para a SEDAC a fim de fazer ameaças à Mônica, mas tenho como testemunha pelo menos dez conselheiros que estavam no CEC, naquele momento, para provar que o telefonema foi dado pelo Rosenfeld (coordenador da LIC) à mim. Então estava tudo arranjado. Um verdadeiro show macartista e vergonhoso, que só é possível dado o baixo calão e tremenda falta de habilidade da secretária e sua assessoria!

– Se as irregularidades estão no órgão gestor do Sistema Lic, neste caso a SEDAC, por que o Conselho foi acusado dessas irregularidades?

Para levantar uma cortina de fumaça que desviasse o foco para o Conselho, quando os que têm que ser investigados são a SEDAC e a SEFAZ. A Sedac porque emite as autorizações de captação e a SEFAZ porque realiza os créditos de ICMS. Como é possível que o Dr. Graziottin, da Fazenda, saia a público para dizer que a LIC não é auditada porque os créditos fiscais são de “apenas” R$13 milhões, enquanto a secretaria lida com créditos tributários da ordem de R$2,7 bilhões? Ah, tá! então os recursos da LIC são considerados troco?

– Por que o Da Camino pediu teu afastamento?

Sei lá! Talvez estivesse com medo de que eu fosse atrapalhar a Inspeção Especial que o TCE decidiu fazer no CEC. O que a população não sabe é que o CEC não é ordenador de despesas, não distribui dinheiro e não faz tomada de contas dos projetos. Nossa atribuição é apenas dar parecer sobre o mérito (oportunidade e relevância) cultural dos projetos. A Inspeção Especial que está sendo feita no CEC encontrou lá apenas atas, pareceres e livro de presença. Mas, em noventa dias a auditoria do TEC deverá apontar se foram cometidas irregularidades pelos conselheiros que por ventura tenham dado pareceres favoráveis aos processos do produtor cultural que acusou membros do Colegiado de favorecer-lhe em alguns projetos. Estamos esperando por isso, porque hoje o Conselho circula por aí com uma nódoa de corrupção impressa na testa de cada um dos conselheiros. Isso é muito negativo para a imagem do CEC e para aqueles que não têm nada a ver com estas denúncias.

– E esse Grupo de Trabalho que a Casa Civil montou para discutir as mudanças na Lei, o que se pode esperar dele?

Não muita coisa. O Governo agora está preocupado em apertar a fiscalização. Mas o que a Lei necessita é de uma mudança geral. Inclusive que contemple e respeite à dinâmica da produção cultural. Não adianta auditar caixinha de fósforo. O que se precisa é de um entendimento amplo sobre as peculiaridades do fazer cultural e considerar como objetivo principal a realização dos produtos resultantes dos projetos aprovados pela Lei.

– E a audiência pública na Assembléia? Qual o objetivo?

Na minha conversa de anteontem com o Dep. Alceu Moreira, presidente da Assembléia, ficou claro que esta audiência é para tentar levantar mais dados sobre as fraudes do Sistema. Neste sentido o CEC só poderá colaborar com o esclarecimento sobre o seu papel no Sistema LIC. Sei que, no dia 28 de outubro, deverá ser votado o requerimento proposto pelo Dep. Zulke, para que seja instalada uma Comissão de Representação Externa, que deverá se aprofundar nas investigações das denúncias de fraude, mas que também leve ao início de uma discussão com todos os agentes do Sistema, para embasar as emendas que a Assembléia Legislativa deve fazer ao texto a ser proposto pelo Executivo, como resultado desse grupo de trabalho criado pela Casa Civil e que deverá ser encaminhado logo ao Legislativo. Fiquei contente em ouvir do Presidente de que a Casa está atenta para que a Lei não vire um cipoal burocrático que inviabilize a propositura de projetos e que, ao final, sirva apenas para abrir ainda mais portas para a corrupção!

– O que pensas sobre algumas afirmações que têm sido reproduzidas, de que o Conselho não deveria dar pareceres aos projetos culturais?

Na minha opinião seria ótimo se o Conselho saísse do Sistema LIC! Assim teria mais tempo para trabalhar naquele que é seu papel constitucional: formatação e fiscalização de Políticas Públicas de Cultura. Convenhamos, não é um papel nada simpático ficar emitindo pareceres sobre o que deve ou não deve receber recursos públicos de fomento aos projetos. Razão pela qual o CEC tem, de parte dos produtores culturais, muitas restrições. Seria ótimo que isso ficasse a cargo apenas das autoridades gestoras do Sistema LIC e eles, somente eles, fossem responsabilizados por estas escolhas.

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