Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): VI – A Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy, de Laurence Sterne

Obs.: não encontrei a capa de edição nacional para colocar ao lado…

Beethoven gostava de temas curtos e afirmativos. O crítico Otto Maria Carpeaux também, até demais. Beethoven repetia seus temas à exaustão, mas não enchia o saco. Carpeaux não os repete, mas larga aqui e ali juízos curtos, afirmativos e terríveis que às vezes me deixam louco. A literatura não prescinde de justificativas mais, digamos, alongadas. Eu gosto de Beethoven e de Carpeaux, só que o austríaco tem uma capacidade de me irritar que o alemão só utilizou n`A Batalha de Wellington e na Pastoral. Pobre do grande LAURENCE STERNE: na História da Literatura Ocidental, o maravilhoso amansa-burro de 2300 páginas de Carpeaux, ganhou a curta e grossa má vontade do mestre:

Não é romancista, e não compreendemos como seus contemporâneos puderam dar o nome de romance a esse aglomerado de conversas, digressões e anedotas, sem ação novelística, que é o Tristram Shandy.

Que equívoco! Fico curioso sobre o que diz Carpeaux sobre outro livro notável, também quase exclusivamente um aglomerado de conversas e digressões filosóficas: O Homem Sem Qualidades, de Robert Musil. Consulto e ele demonstra coerência, fazendo questão de chamar a obra-prima inacabada de romance-ensaio. OK. Romance-ensaio é mais que um aglomerado de conversas e digressões, porém Carpeaux sempre ensina muito e conta com minha INDULGÊNCIA.

Mas creio que Carpeaux, se se alongasse um pouco mais, não ousaria falar mal da espetacular prosa de Sterne. Seu principal romance (ou não), A Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy, é uma de minhas melhores lembranças literárias. Este livro extravagante, publicado em capítulos entre os anos de 1759-67, tem importantes admiradores. James Joyce, Luigi Pirandello, Samuel Beckett e MACHADO DE ASSIS, que o cita com conhecimento, foram alguns dos escritores que se declararam influenciados pelo irlandês Sterne, um pároco muito bem sucedido e amante de intermináveis digressões pontuadas de anedotas escabrosas e alusões cínicas. Agrada-me intensamente a forma como Sterne decepciona seus leitores ao não dar seguimento às ações que esboça, coisa que Roberto Bolaño se esmera em realizar (ou não).

A cena inicial nos conta sobre o nascimento de Tristram. Seu pai costumava fazer duas coisas no primeiro domingo do mês. A primeira era dar corda no relógio da sala; a segunda era cumprir seus deveres conjugais. Porém, num destes domingos, sua mãe, JÁ PENETRADA mas sem o menor interesse, pergunta repentinamente (a pontuação, sempre originalíssima, é puro Sterne):

– Por favor, meu caro, não te esqueceste de dar corda ao relógio? ————-Por D—–! gritou meu pai, lançando uma exclamação, mas cuidando ao mesmo tempo de moderar a voz. ——–Houve jamais mulher, desde a criação do mundo, que interrompesse um homem com pergunta assim tão tola?

Com a interrupção, o velho Shandy, desconcertado, descuidou-se de fazer outra coisa: o coitus interruptus. E é desta forma que nasce o HOMÚNCULO ou, para nós, o feto daquele que seria o protagonista da “ação”. A piada fez enorme sucesso e por anos não apenas as prostitutas da Inglaterra perguntaram a seus candidatos QUERES DAR CORDA EM MEU RELÓGIO?, como as senhoras de respeito deixaram de comprar relógios para suas casas com receio dos comentários que tal ato poderia provocar… Que os comprassem os maridos!

É também notável o momento em que Shandy desiste de narrar sua própria vida – o livro é escrito na primeira pessoa. Isto acontece lá pela página 80 de um livro de 600 páginas. Ele observa que gastou alguns meses escrevendo a respeito das primeiras horas de sua vida. Constata assim que demora muito mais para escrever do que para viver e que os acontecimentos narrados estão afastando-se mais rapidamente do que a narrativa avança… Impossível alcançar. Conclui que o melhor é parar de perseguir a si mesmo e conversar com os leitores. A vida de Tristram segue seu curso e Sterne, bem, Sterne sabe e declara-se consciente de que a literatura existe primeiro para SATISFAZER O AUTOR… Danem-se os leitores.

Tudo é desrespeito neste romance moderno com raízes no Quixote. Riso e melancolia brincam sob a batuta de Sterne. Como se não bastasse ser um excêntrico romance sobre quem escreve um romance, Tristram Shandy apresenta uma série de artifícios antes nunca vistos: uma página inteiramente pintada de preto, tentativas de desenhar graficamente a evolução do romance, alguns capítulos em branco (em que nada é escrito) e uma página também em branco, limpinha, para que o leitor desenhe sua amada.

Acima, Sterne nos brinda com o esquema gráfico da história do tio Toby…

Hoje, poucos lêem o descontrolado e desprogramado Tristram Shandy, mas os estragos causados por ele fez foram grandes: Joyce adorava seus jogos de palavras e trocadilhos ab-so-lu-ta-men-te malucos, Beckett — “Nada tenho a dizer, mas somente eu sei como fazê-lo” — deliciava-se com o fato de Sterne ter, por assim dizer, inviabilizado seu próprio romance e Machado de Assis aprendeu com ele a dialogar frequentemente com o leitor e a brincar com aqueles pequenos capítulos em que nada, mas nada mesmo, acontece. Aliás, há cenas de Memórias Póstumas de Brás Cubas que demonstram toda a admiração de Machado por Tristram.

Li este livro em 1985, na brilhante tradução de José Paulo Paes em edição da Nova Fronteira, depois reeditada pala Cia. das Letras e despeço-me com mais um trecho do Tristram Shandy. A pontuação é a do autor, claro:

O que é a vida de um homem! Pois não é um rolar daqui para lá?——–De infortúnio em infortúnio?—— Abotoar uma ca(u)sa de aflição!—–e desabotoar outra?

(…)

—Entrementes, tenho umas poucas coisas a fazer—uma coisa a nomear—uma coisa a lamentar—uma coisa a esperar, uma coisa a prometer, e uma coisa a ameaçar.—Tenho uma coisa a imaginar—uma coisa a declarar—uma coisa a esconder, e uma coisa por que rezar. ——A este capítulo chamarei, portanto, o capítulo das COISAS——e o capítulo a ele subsequente, isto é, o primeiro do volume seguinte, se eu viver o bastante, será o capítulo das SUÍÇAS, a fim de manter algum tipo de nexo entre as minhas obras.

A coisa que lamento é terem as coisas se apinhado de tal modo sobre mim que não consegui chegar àquela parte de minha obra a que visei durante todo o caminho com tamanha ansiedade, qual seja a parte das campanhas, e mais especialmente a dos amores do tio Toby; os acontecimentos e eles respeitantes são de natureza tão singular e de cunho tão cervantino que se eu conseguir transmitir a outro cérebro as impressões que as ocorrências suscitam por si sós em meu próprio cérebro—garanto que o livro abrirá caminho no mundo muito melhor do que nele abriu seu autor.—Oh Tristram! Tristram! poderá jamais acontecer, uma vez que seja—que o prestígio de que venhas a desfrutar como autor compense os muitos infortúnios que te afligiram como homem?—Festejarás o primeiro—quando tiveres perdido toda a sensação e lembrança dos outros!—

Não estranha eu estar tão inquieto por chegar a estes amores.—Eles são o acepipe mais refinado de toda a minha história! E quando eu chegar enfim a eles—asseguro-vos, boa gente,—(não me importam os estômagos delicados aos quais possa desgostar) que não serei nada cuidadoso na escolha das minha palavras;—a coisa que tenho a DECLARAR——–é que receio não poder chegar-lhes ao fim em apenas cinco minutos—e a coisa que ESPERO é que vossas referendas senhorias não se ofendam—se vos ofenderdes, podeis contar, minha boa gentry, que no próximo ano eu vos darei algo com que de fato vos ofenderdes—assim o faz minha querida Jenny—mas quem seja a minha Jenny—e qual a extremidade certa e a extremidade errada de uma mulher, essa é a coisa a ser ESCONDIDA—ser-vos-á contada dois capítulos após meu capítulo acerca das casas de botão—e em nenhum outro capítulo anterior.

E agora que chegastes ao fim destes quatro volumes—a coisa que tenho a PERGUNTAR é, como estão vossas cabeças? A minha dói horrivelmente—quanto às vossas saúdes, sei que estão bem melhores…

Estão mesmo, Laurence, ao menos a minha está.

 A descrição da morte de Yorick: uma página preta, de luto.

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A vida que ninguém vê, de Eliane Brum

Lembro de ter lido algumas das reportagens literárias da série A vida que ninguém vê na Zero Hora. Gostava daquilo. Eram casos de pessoas anônimas, cujas vidas eram descritas numa linguagem derramada, intensa, que funcionava, iluminava o jornal. Acho que as histórias eram publicadas semanalmente. Comprei o livro da reunião delas numa feirinha do Mercado Público e li 50 páginas de enfiada no mesmo dia. E, juntas, tudo funcionou bem pior. O esquema geral ficou aparente demais, a linguagem tornou-se pesada, a adjetivação passou a incomodar. Como gosto de mim e, consequentemente, de sentir prazer em ler, fechei o livro e voltei a ele 15 dias depois, lendo uma história a cada dois dias. Melhorou muito.

Sei bem o motivo da primeira rejeição, mas isto faria com que eu desse uma imensa volta que passaria pela minha experiência e preferências como leitor — que absurdamente já ultrapassa os 40 anos de consumo diário de livros… — a teóricos como Pound, Bakhtin e James Wood. Seria longo e chato fazer o périplo, mas vou dar uma tangenciada, vou evitar a abordagem literário-ontológica e partir para o sociológico. Em outras palavras, vou enganar vocês ignorando toda uma faceta do livro, restituindo o caráter boêmio e irresponsável deste blog…

Outro problema da coleção de histórias é a escolha de seus personagens. Com poucas exceções — só o carregador de malas e o colecionador? — , temos uma galeria de desvalidos, de pessoas realmente paupérrimas ou deficientes, como se um solteirão sozinho num apartamento de classe média ou a estudante do interior que se esforça como Sísifo em vestibulares não fossem anônimos. O fato de serem de classe média não os deixa visíveis e talvez eles estejam desesperados ou indiferentes ou compulsivos ou infelizes ou eufóricos em outros âmbitos. Sabemos que uma lente de aumento sobre qualquer ser humano torna-o distinto, único. Ou seja, o sujeito não precisa estar numa situação-limite para ser interessante e estar na vida que ninguém vê.

A escolha quase exclusiva pelos enjeitados coloca-nos numa situação de culpa em relação a eles, certo; mas também coloca-os numa vitrine na qual a classe média pode observá-los como num zoológico. Parece haver uma separação, uma fronteira nos olhos da autora. Não gostei da opção e acho que a galeria deveria ser mais equilibrada em função da proposta. Afinal, o título do livro não é A pobreza que ninguém vê.

Para finalizar: costumo ler as colunas de Brum. Se as da Vida que ninguém vê já eram boas, as atuais são muito melhores. Gostaria de ler seu livro de ficção Uma Duas. Isso me faz recordar que estou de aniversário domingo!

.oOo.

P.S.– O que dá ler duas vezes Ulysses em três meses… Hoje, eu escrevi naturalmente: Mesmo os pianistas mais geniais têm seus momentos de absoluta bocabertice. Já a interpretação, a concepção, reafirmam Hewitt como a maior pianobachiana viva. Putz, tô me sentindo como aqueles gaúchos que passam uma semana no Rio e voltam chiando. A propósito, esqueci de comentar aqui uma das passagens mais cômicas que já li: os fatos imediatamente posteriores ao encontro entre Bloom e Gerty MacDowell, sobre cheiros e coisas que grudam. Hilariante!

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A mulher que era o general da casa, de Paulo Moreira Leite

Capa do livro da Arquipélago

A mulher que era o general da casa (Arquipélago, 223 páginas), do jornalista Paulo Moreira Leite, é um relevante painel criado a partir de várias histórias de pessoas que participaram — com a coragem e as armas que dispunham — da resistência civil à ditadura militar brasileira (1964-1985). São oito extraordinárias reportagens sobre resistentes brasileiros e uma sobre o embaixador Lincoln Gordon, que fazia o exato contrário. Quase todas as reportagens foram ampliadas de originais publicados em jornais e revistas. A linguagem de Leite é a jornalística, porém seus textos são envolventes e os retratos resultantes são mais do que verossímeis, eles emocionam, traçando minuciosos e doloridos desenhos que tornam o livro nada esquecível.

O livro inicia com uma apresentação absolutamente entusiasmante de aproximadamente 15 páginas. Nela, o autor, nascido em 1952, explica sua relação pessoal com a ditadura, e como ela alterou sua vida desde a adolescência. Na minha opinião, o livro cai quando entram a reportagem-título a respeito de Therezinha Zerbini e seu marido general, seguida pela de Jaime Wright. É difícil explicar o que me afastou delas. Talvez tenha sido a inesperada entrada da linguagem jornalística após uma apresentação tão pessoal, talvez tenha achado os personagens por demais carolas para meu gosto e tenha ficado desconfiado do que teria que ler depois, mas as três que vieram depois — focalizando o severo Florestan Fernandes, o bibliófilo José Mindlin e “comunista de direita” Armênio Guedes — recuperaram a impressão inicial. São soberbas, assim como a grandiosa reconstrução da personalidade do rabino Henry Sobel, sem recuar frente aos rumorosos e lamentáveis episódios de roubo. A reportagem sobre o pioneiro Washington Novaes é excelente. O mosaico formado por todos os textos recebe um balde de podridão quando chega a vez de Lincoln Gordon, o homem que seguiu negando o que fez, mesmo em face a documentos.

Todos os personagens foram entrevistados mais de uma vez pelo autor nos últimos 40 anos. As biografias, as perspectivas e algumas opiniões mudam e o autor pontua tais fatos. Não pensem que Moreira Leite teve o mau gosto de escrever em algum lugar do livro um libelo pelo esclarecimento e punição dos crimes cometidos pelos agentes de Estado contra cidadãos que teoricamente deveria proteger. Não precisa, porque A mulher que era o general da casa é inequivocamente a favor do esclarecimento. Está implícito a partir das histórias e conflitos narrados. A colocação da reportagem sobre Gordon na última parte do livro e a leitura de suas mentiras, repetidas pela sua sorridente e prestigiada figura mesmo frente a documentos liberados pelo governo dos EUA, é algo de deixar qualquer leitor perplexo. Foi assim que acabei o livro. Perplexo. E alguns, como Florestan, Wright e próprio Gordon, já morreram. O que estão esperando?

Recomendo muito a leitura.

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'Antes do Passado': a dor e a injustiça do silêncio

À primeira vista, a lápide acima pode parecer a de alguém que comprou seu próprio jazigo para não incomodar os familiares com trâmites burocráticos e faz questão de avisar aos passantes sobre a propriedade do túmulo. Acontece muito em comunidades italianas no interior. É caso para orgulho e uma demonstração do altruísmo do futuro morto. Mas o início da frase – “Esta sepultura aguarda o corpo de” – causa no leitor uma sensação de estranheza ou de humor mórbido. O poema de Lila Ripoll complica ainda mais a compreensão, pois põe em dúvida a ocorrência de mortes – no plural e no passado. Porém, todas as nossas impressões se alteram e adquirem seriedade quando sabemos que Cilon Cunha Brum foi uma vítima da ditadura militar brasileira, que é um de nossos desaparecidos e que quem fez a laje tem realmente esperança de que esta, um dia, possa enfim receber seu morto. É o mínimo que um cidadão esperaria de qualquer sociedade.

A edição da Arquipélago

A foto é de um cemitério de São Sepé (RS) e é mais um detalhe documental do excelente livro Antes do Passado, de Liniane Haag Brum (Arquipélago, 271 páginas), uma raridade na literatura memorialística com foco na ditadura militar brasileira. Em primeiro lugar, por ser excepcionalmente bem escrito e também pelo tom correto adotado pela autora: os fatos e as situações falam tanto por si, todos os detalhes são tão perturbadores que qualquer intervenção de discursos ou de posições políticas viria a prejudicar aquilo que já fica claro pela via da humanidade. E Liniane não avalia nada, apenas relata de forma literária.

Cilon Cunha Brum é tio e padrinho da autora. A única vez que estiveram juntos foi no batizado de Liniane. Cilon, já clandestino em 9 de junho de 1971, foi chamado pelo padre. Saiu detrás de uma coluna, participou rapidamente da cerimônia e voltou a seu posto. Ele era um alto e magro militante do PC do B. Seu apelido era Comprido e todos diziam ser um sujeito solidário, simpático e brincalhão. Gostava também de crianças. No Araguaia é lembrado por seus poços artesianos, pela doutrinação e por sua relação com as crianças, é claro. Perto do final da Guerrilha, entregou-se. A questão do desaparecimento tornou-se um tabu familiar. Ninguém falava a respeito, apesar do pai da autora ter sempre procurado o irmão. Desde 2002, Liniane Brum, que é jornalista da TV Cultura de São Paulo, organizava e saía com uma equipe de reportagem a procura do que houvesse para descobrir. Porém, em 2009, a revista Veja publicou a terrível novidade: Cilon tinha sido morto a mando do então major Sebastião Curió no Araguaia e seu corpo ficara insepulto. Só então Cilon voltou a ser comentado em família. As circunstâncias da morte – Cilon era um prisioneiro fraco, vítima da malária que circulava livremente pela Fazenda Consolação tomada pelo Exército (para onde poderia fugir no estado em que se encontrava?) – revelam assassina necessidade de vingança e, fundamentalmente, desprezo. Segundo testemunhos, ele e dois companheiros foram executados e deixados no local, sob galhos de árvores. As mesmas testemunhas revelam que só foram enterrados depois que o dono da fazenda reclamou do cheiro.

Cilon Brum com seus pais, Lino e Eloah (Lóia)

A delicada da prosa de Liniane não recua dos detalhes e há artifícios que potencializam o que há de estarrecedor em Antes do Passado. Liniane usa um formato que aos poucos se revela muito eficiente. Ela joga as informações que colhe – fragmentos e mais fragmentos – na forma de crônicas e depois organiza-as na forma de cartas endereçadas à Vó Lóia, mãe de Cilon, falecida em 1989. Tal recurso funciona sob mais de uma perspectiva: ela não apenas “reorganiza o leitor” como dá uma demonstração do que pode ser dito sem chocar muito. É como se Liniane estivesse limpando o sangue da história a fim de reapresentá-la para suas tias. O efeito é devastador, principalmente quando a autora passa a se desculpar dizendo algo como “Olha, Vó, a senhora não vai gostar do que acabo de saber, mas vou ter que contar”. É o ponto onde a autora não consegue mais lavar o sangue.

Outro grande momento é quando a escritora irrita-se durante o retorno para São Paulo de uma de suas viagens ao Araguaia. Ela se encontra com um moço galante que, ao saber de onde ela viera, apresenta-se com sobrinho de um militar que era o braço direito de Figueiredo no SNI. Seu tio acabara de morrer e ele fora ao enterro para “cumprir tabela”. A situação simétrica, mas inteiramente injusta, deixa Liniane furiosa.

O relato de Liniane também demonstra o quanto a “Guerra” afetou a região do Araguaia e como as pessoas foram usadas e torturadas para auxiliar os militares. Até hoje muitos os temem. Quando são descobertas ossadas, eles, os militares, reaparecem. A população tem medo das entrevistas; afinal, há boatos de que os parentes dos guerrilheiros mortos preparam-se para voltar à região a fim de perpetrar uma vingança pelo colaboracionismo de alguns…

O livro de Brum é um poderoso documento pessoal da história recente do Brasil e torna-se mais potente pelo que possui de mérito literário. O Sul21 conversou rapidamente com Liniane Haag Brum.

A autora Liniane Haag Brum | Foto: Marcelo Min

Sul21- Há uma tentativa do MPF de abrir um processo contra o Major Sebastião Curió, como tu vês isso?

Brum – É claro que eu acho que é pertinente este gênero de ação. Afinal, há depoimentos e evidências que levam a crer que houve torturas e execuções. Não é um assunto que diga respeito apenas aos familiares. Nós podemos ser o elo de comunicação com os acontecimentos, mas o assunto é da nação. Como digo no livro, há duas fontes que teriam estado presentes na morte do Cilon, ambas vão mais ou menos pelo mesmo caminho. Não creio que seja função minha averiguar o que houve no Araguaia. O que fiz foi uma contribuição, na expressão e no formato que posso dar, para aproximar as pessoas da história numa abordagem literária.

Sul21- Na semana passada, houve manifestações contrárias às comemorações do Clube Militar pelo Golpe de 1964. De certa forma, o assunto da ditadura voltou à tona com força inesperada.

Brum – É verdade. Se a gente tentar ver o que está acontecendo com certo distanciamento – o que é difícil porque estamos imersos no agora – , veremos um momento muito peculiar. Peço desculpas pelo lugar-comum, mas parece que os jovens querem ir à frente passando a limpo uma série de coisas tal como fizeram os países vizinhos. O Clube Militar tem todo o direito de fazer suas comemorações e, a sociedade, tem o direito de reverberar o fato. Há, também, eventos no Memorial da Resistência aqui em São Paulo. Assim como fazem os militares, são chamados palestrantes que fazem exposições. O problema não são os eventos em si, o problema é que, se um vai ficar apenas apedrejando o outro, não se vai avançar. Eu acho que seria ótimo se fosse revogada a Lei de Anistia ou o cumprimento da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA no caso Araguaia. O Supremo Tribunal Federal julgará na próxima quinta-feira, dia 12 de abril, a ação da OAB sobre o cumprimento desta sentença. Vale pressão. Acho bom também ser lembrado que a tortura é crime imprescritível.

Sul21 – O livro relata casos de pessoas do Araguaia que ainda têm medo de falar  sobre o início dos anos 70. Como é isso?

Brum – Meu livro não é puramente jornalístico, nem puramente histórico, é a história versus a minha subjetividade, o que não significa dizer que a informação fique desqualificada. O medo das pessoas é um fato indiscutível. É claro que alterei a linguagem para pôr no livro, mas há um medo real. A população participou involuntariamente daquilo que chamam de “guerra”, foram convocados à força. Então, quando chega uma mulher fazendo perguntas, eles se retraem. A população também foi torturada pelos militares atrás de informações que os levassem aos grupos guerrilheiros. Há medo até hoje.

Sul21 – Existe, em São Sepé, o pensamento de que Cilon era um perigoso assaltante de bancos e que recebeu o que lhe era devido?

Brum – Na época, não havia um entendimento global do que acontecia e não somente em São Sepé. O tom era mais ou menos assim: “Se o filho do Lino foi morto, imagina o que não terá feito!?”. Isto está no livro para mostrar a época que se vivia. Apesar de que há ainda gente que pensa assim.

Sul21 – Durante o livro, tu estás quase sempre acompanhada de uma equipe de filmagem, há planos para um filme?

Brum – Antes de ser um livro, Antes do Passado, foi um filme… Em 2002, eu planejei um documentário. Na verdade, não tinha muita compreensão do que estava fazendo. Afinal, eu sempre trabalhei com cinema e áudio-visual — hoje em dia, sou editora de TV. Eu pensava em realizar um documentário sobre a Guerrilha, tendo por foco o tio Cilon. Era uma má compreensão das coisas… Comecei a colher e gravar entrevistas. Enquanto isso, estudava literatura, planejei outros livros e, quando foi confirmada a morte do tio Cilon em 2009, resolvi que era um livro. Mas é claro que eu tenho um material imenso gravado e tenho que avaliar o que fazer com ele, apesar de que o livro me satisfaz. O que eu desejava dizer está ali.

Sul21 – E como tu encontraste o tom para o livro, como tu resolveste estruturá-lo numa série de crônicas?

Brum – Eu cheguei nesta forma não brigando com os fatos. Eu tinha só pedaços, não tinha nada inteiro. Primeiro eu resolvi que seria literatura, não apenas um documento ou uma narrativa. Decidi também pela primeira pessoa do singular porque eu seria o elo que tentaria costurar as pontas. E seria a história de uma busca. A forma da crônica me pareceu a melhor para dar mais vida, para fazer com as matérias aderissem melhor ao todo. Retirei muitos trechos de minhas memórias de infância, que não interessavam diretamente e que pretendo usar futuramente numa ficção.

Sul21 – A temperatura emocional do livro sobe muito nas cartas para a Vó Lóia…

Brum – Isso surgiu depois, não estava no projeto inicial. Veio no processo de escrita. Permitiu que eu pudesse falar mais intimamente da família. Achei que aquilo aproximava o tio e a situação famíliar das pessoas. Minha escrita funcionava com muita naturalidade quando eu me dirigia a ela. E era um modo de colocar mais informações para o leitor.

A mãe Eloah (Lóia), Cilon e Elza Barberena

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Ospa: concertos para pianistas, festa e fogo na noite de terça

Faltavam uns 5 minutos para eu chegar e já meu amigo Ricardo Branco me ligava perguntando se eu estava ou não atrasado. Não estava. Estava quase lá na Reitoria. Quando fiz a curva para entrar na Paulo Gama, cruzei um sinal amarelo e pensei que estava fazendo tudo aquilo para ver Rachmaninov pela terceira vez em 90 dias e que tal postura poderia ser qualificada sem dramas de masoquismo. Encontrei os amigos e anunciei que não jantaria após o concerto. O Branco e a Jussara reagiram:

— Mas o que interessa hoje é o jantar. Isso aqui…

Rachmaninov (Kastchei) vai ao ataque. No fundo, como diria James Joyce, apenas um melacueca.

Pois é. Rachmaninov tinha mãos grandes e vinte e oito dedos. Rach é seu apelido, mas ele não tem nada a ver com o Pai da Música; é um compositor de terceira linha que privilegiava um virtuosismo vazio. Andava de carro por Nova Iorque, de avião e elevador pelos céus dos EUA, mas tentava compor como se fosse Tchaikovsky ou Schumann. Costumava e, infelizmente, ainda costuma entupir nossos ouvidos de ciclamato, mas o concerto de ontem era estranho. No Concerto Nº 4 para pianista e orquestra — digo assim por tratar-se de um concerto para o pianista e não para o piano –, Rach estava meio perturbado pelo jazz e as novidades. Incrível, havia um mundo lá fora! Era simplesmente o ano de 1925 e seu colega de aristocracia Stravinsky já tinha composto o Pássaro de Fogo e a Sagração; Gershwin tinha lançado uma Rapsódia cujas cores batiam de longe a melíflua pecinha de Rach sobre Paganini e Bartók até já tinha escrito dois concertos para piano que nossa senhora. (Aliás, há tantos concertos monumentais para piano no século XX… Tantos Prokofiev, Ravel, Shosta, Bartók e a Ospa nos enfia três RachsKitsches goela a abaixo… É muita besteira).

Kastchei mostra o caminho para a Ospa: CHEGA DE RACHMANINOV

Bem, mas Rach estava meio fora de si e fez um primeiro movimento simplesmente pavoroso, um monstro de três narizes — um a 120º do outro –, seis pernas, treze braços e enormes mãos. Era a comprovação de que mel estraga e azeda. No segundo movimento, há uma tentativa de aproximação com a realidade através do jazz. Ele acerta no ângulo com um ostinato simples e bonito que é logo desfeito pelo monstro das mãos grandes. O terceiro movimento é uma longa peroração ao público. Ele solicita aplausos e um bom pagamento através das contorções do pianista e do uso de habilidades demoníacas. Sim, o público aplaudiu muito, o que fez o excelente pianista georgiano Guigla Katsarava voltar algumas vezes ao palco até conceder um bis. Com ele e Chopin, começou a música. Intervalo.

A Abertura Festiva de Shosta é obra escrita em cima da perna. Não dá para levá-la à sério. Foi escrita em três dias de 1954 para saudar mais um aniversário da Revolução de 1917. OK, Shosta é muito bom e fez uma peça divertida e acessível — “música fuleira”, disse o Branco. Foram cinco minutinhos que serviram de introdução para

a Suíte Pássaro de Fogo de Stravinsky. Em 1910, Strava já era muito mais moderno do que Rach jamais pensou ser. Talvez Igor já gostasse de dinheiro, mas sempre fez música, mesmo quando queria apena$ afago$. A orquestra deu um banho. Leonardo Winter e Artur Elias tinham acordado especialmente canoros e ofereceram penas de fogo para uma plateia embevecida e desconfiada de que aquilo era música de verdade. O único problema é que, quando Ivan vê as treze virgens no castelo do monstro Kastchei, ou seja, quando aparece o monstro… Seu rosto e garras eram os de Rachmaninov. Claro, a gente lembrava da primeira parte do concerto!

(Intermezzo)

O Pássaro de Fogo, pelo artista japa Shirisaya

Kastchei, o monstro de Pássaro de Fogo, é um ogro verde de terríveis garras, uma personificação do mal, a cara do Rach. Sua alma não habita em seu corpo disforme, ela é cuidadosamente preservada do alcance de qualquer dano em um caixa toda decorada — pura bichice do Diaghilev.  Enquanto a caixinha permanece intacta, Kastchei é imortal e mantém o seu poder para o mal, mantendo donzelas virgens em cativeiro e transformando os homens que desejam libertá-las em pedra. A redenção das moças só pode ser alcançada pelo acesso e destruição da caixinha e da alma do ogro. Adivinhem se o Pássaro de Fogo não vai dar uma mão para Ivan? Adivinhem! Adivinhem se o Ivan não vai ficar com uma das virgens?).

(Fim do Intermezzo)

E fim da resenha. O regente Kiyotaka Teraoka mereceu toda a alegria e o bater de pés com que a orquestra o brindou. E, ah, na semana que vem HABEMUS MUSICA. O refrigério virá por Mahler, Sinfonia Nº 4, e pelo mesmo maestro Teraoka. Estaremos operando em modo Rach Free.

P.S.– Saí para jantar com os amigos, claro. Pensei que merecia depois de meu terceiro concerto para piano e orquestra de Rach de 2012.

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Crítica gonzo ao On The Road (Na Estrada) de Walter Salles

Eu gosto dos filmes de Salles e costumo defendê-lo em rodas de amigos, mas creio que Na Estrada — adaptação do célebre On the road ,de Jack Kerouac — , tenha tantos defeitos que… Olha, amigo Salles, desta vez vou ter que atacar. Antes gostaria de citar algo curioso: a produção, de fria recepção no Festival de Cannes, foi coberta por um estranho silêncio, os comentadores davam pistas de sua decepção, mas negavam-se a falar mal dela. Agora os compreendo. O filme não é ruim nem bom, tem antes o efeito de uma ducha de água fria, de uma mulher que nos alega estar com dor de cabeça, de um homem que alega cansaço — o filme promete e não cumpre. Após a sessão, eu olhei para minha filha Bárbara. Ela me fazia uma careta interrogativa e a mais terrível das acusações (que repasso a Salles):

— Tu não tinhas me avisado que o filme tinha 3 horas.
— Não dura 3 horas, dura 137 minutos. É que é chato mesmo.

Chato. Exatamente. Os atores realizam boas atuações, o filme é muito bonito e aí temos o primeiro problema. Salles não se afastou de seu elegante cinema de belas imagens, mesmo contando uma história onde as amizades, amores e parcerias são submetidos a alongamentos que rompem quaisquer fibras. E eram um bando de drogados, alguns com objetivos, outros não. Então, o drama deveria ser contado sob som e fúria e, quando há fúria, a fotografia não precisa ser de propaganda de cigarro. Salles cometeu o pecado mortal de não conseguir ser visceral como Kerouac exige e contou uma história fora do tom, tornando a música incompreensível e deixando os personagens meio bobos em meio daquilo que deveria ser — e é no livro — um decisivo drama existencial. Como se não bastasse, há o tamanho da história: o romance de Kerouac é uma verdadeira avalanche narrativa com fatos e opiniões e, bem, não cabe no filme.

Ou seja, o principal ingrediente do On the Road original era sua forma narrativa e esta não recebeu resposta. Como os encontros entre os personagens são espaçados por meses e nunca há um conflito latente para precipitar-se no próximo, depois de 90 minutos a gente pensa que o filme acabará a qualquer momento numa daquelas interrupções. Quando achamos e até desejamos que a cena do estacionamento seja a final, Dean resolve ir para o México e o filme segue por mais mais meia hora… A gente fica meio desesperado. Isto é, estrutura do filme faz com que pensemos “agora acaba, agora acaba”. Sai daí a sensação de “três horas” da Bárbara.

A única ilha de perfeição do filme tem nome e cena. O nome é Kirsten Dunst, que faz uma papel menor em Na Estrada, e a cena é aquela em que ela rompe com Dean Moriarty após mais uma bebedeira com Sal Paradise. Sozinhos num quarto, com um bebê no berço e outro na barriga, Dunst quase salva o filme. É mesmo uma excelente atriz, mas que só pode exercer seu papel num quarto, sem paisagens e em enorme conflito. A cena está tão fora do padrão do filme que não encontrei fotos dela no mar de fotografias de divulgação. Mas é a coisa mais Kerouac de Na Estrada.

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Mattinata, de Fernando Monteiro

Em italiano, mattinata significa o período da manhã. Se escrevermos a palavra no Google Images, encontraremos fotos da uma luminosa praia de mesmo nome na Regione Puglia, de uma Cafeteira da Arno e do mais recente livro de Fernando Monteiro. O livro é formado por três poemas narrativos longos: Mattinata, Escritos no Túmulo e E para que ser poeta em tempos de penúria? Mattinata é uma coedição da Nephelibata (SC) e da Sol Negro (RN). Parabéns a ambas, que em parceria trouxeram à tona esta coleção de poemas de Monteiro, do qual já conhecíamos os romances e o extraordinário poema Vi uma foto de Anna Akhmátova.

Se a Mattinata-cidade das fotos é bela e luminosa, podemos dizer o mesmo das paradoxais luzes que invadem lentamente o quarto do casal que se decidiu pela separação na noite anterior. Mas aqui beleza é a descrição da tristeza e da decadência de uma relação. Ele, o homem do poema, despertou, ela dorme, ou finge. O ritmo é clássico.

divididos pelas sombras do que foi dito
e do que foi calado antes da alba

(…)

Algum deus belicoso
seguiu o táxi na volta
e esteve aqui
neste apartamento em que outros
igualmente se separaram
após uma tempestade.

Houve duas tempestades, uma lá fora que derrubou placas e molhou a rua, e outra interna:

Com quem você falava ao telefone?

E, antes quem era aquele
na outra mesa, no maldito reaturante indiano
que seguirá existindo
depois da nossa separação

Aos poucos, de forma incompleta, através de detalhes, impressões e livres-associações, ganhamos alguns subsídios para espreitar o que houve e a tristeza que virá. Há até uma referência a um jogo entre Benfica e Barcelona que me fez ir inutilmente pesquisar a data de seus jogos mais importantes a fim de saber aproximadamente quando aqueles dois separaram-se naquela manhã chuvosa da Via Aurelia. A descrição desta manhã noturna…

aquele que compra um jornal
e o que não compra,
preferindo não saber
sobre a mais nova catástrofe.

A nossa?

Ora, não é sequer
um caso,
uma notícia vaga,
um boato
cruzando a rua à frente dos que tiveram de
acordar
antes das aves.

O muito elegante Mattinata é o poema que prefiro no livro, apesar da importância sociológica dos dois seguintes. Ele ocupa 48 páginas do volume de de 81. A seguir vem Escritos no túmulo todo em caixa alta e itálico, de modo a nos endereçar às lápides de antigos — certamente antiquíssimos — cemitérios. O objetivo de Monteiro não é o de nos explicar a antiguidade, mas de explicar nosso tempo a partir dela. Afinal, hoje, a …

PORNOGRAFIA GROSSA
GRASSA POR TODA PARTE
PORÉM PINTURAS DE DOIS
MIL ANOS SÃO INTER
DITAS “LICENCIOSAS”
POR EXIBIREM O ARDOR
DO AMOR DE UM HOMEM
POR OUTRO REFLEXO
NO VIDRO A FOSFORECER
NA PELE IRIDESCENTE
DOS AMPLEXOS

A interdição de nossos dias a algo que deveria — por que motivo? — ser necessariamente sacro e anódino, chega a ser cômica, não fosse antes burra e preconceituosa. Mas não devemos restringir o símbolo de Escritos no túmulo ao “amor de um homem a seu reflexo”, mas àquilo que o passado pode nos apontar. Porém, não resisto e sigo reduzindo e dizendo que o citado símbolo é tanto mais poderoso por usar como vetor aqueles que hoje estão na ponta de lança das transformações sociaisComo sempre, a história e o que se deseja que esteja morto vêm apontar seus dedos trêmulos para nós.

Um dedo lastimavelmente trêmulo também está apontado para nós no terceiro poema, E para que ser poeta em tempos de penúria? Intenso, sociológico e grave, ele tem como foco a vida — e principalmente a morte — de Roberto Piva (1937-2010). Poeta pobre, solitário, vítima de Parkinson, transgressor ao estilo de Pasolini, fragmentário e pagão, teve uma morte anônima que serve como modelo para um mundo em consumação não apenas física e planetária, como de ponto de vista prévio: o cultural — pois parece que nosso desmonte será por partes.

Tudo tão verdadeiro quanto distante
da essência de outras penúrias
entre esquinas de garoas
e galerias de arte em vernissages
cujo rumor de cálices noturnos
chega aos guardadores de carros
como a música do paraíso
de inalcançáveis perdizes.

Para que ser poeta em tempos assim?

Quando Piva faleceu (e faz pouco tempo),
evitaram cuidadosamente
a simplicidade descocertante
da interrogação relativa
aos Tempos de Penúria

E, quando uma moça pede para Monteiro dar uma palestra, o diálogo:

“Eu aceito, mas vou para falar sobre o Roberto Piva”.

Ela: “Quem?”
Eu: “Piva, o poeta que acaba de morrer.”
Ela: “Era seu amigo?”
Eu: “Não”.
Ela: “E por que o senhor quer falar sobre ele?”
Eu: “Porque um de seus últimos versos não me sai da cabeça”.
Ela: “É tão bonito assim?”
Eu: “Versos não precisam ser bonitos. Versos precisam ser verdadeiros.”
Ela: “Diga ele”.
Eu: “Diga-o”.
Ela: “Eu não sei qual verso é esse que não sai da cabeça do senhor.”
Eu: “Eu sei.”
Ela: “Então, diga”.
Eu: “E para que ser poeta em tempos de penúria?”

O pequeno livro de Monteiro, tão bom e relevante, teve uma primeira edição de poucos exemplares. Provavelmente, Mattinata não irá espraiar-se por aí se não houver outras edições ou meios de distribuição. É impossível não relacioná-lo com “penúria”, mas não a financeira. O desinteresse pelo grandes temas, ainda mais quando incomodam,  ainda mais quando expressos em poesia, são sintomas graves de outras penúrias.

.oOo.

Não obstante, não falo sozinho. Mattinata já foi multi criticado de forma sempre elogiosa. Vejamos:

Nelson Patriota
Entrevista na Tribuna do Norte
Lívio Oliveira no Substantivo Plural
Diogo Guedes no Jornal do Commercio
José Castello no Valor Econômico
José Castello em O Globo

Fernando Monteiro

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Andrei Rublióv (Rublev), de Andrei Tarkovski

Eu não procurei este livro para comprar, eu cruzei com ele. Estava caminhando por uma livraria e dei de cara com o volume da Martins Fontes. Estranho, não era um DVD do filme, mas um livro de mais de 300 páginas escrito pelo próprio diretor e roteirista Andrei Tarkovski. Comprei imediatamente e não é que o tenha lido, eu o engoli imediatamente com os olhos.

Trata-se de um roteiro literário, que na verdade é um romance escrito por Tarkovski para servir de base para as filmagens. O  roteiro final foi escrito em parceria com Andrei Konchalovsky e parece  consistir apenas no acabamento dos diálogos e no corte de descrições e cenas, pois o livro (ou roteiro literário) possui 14 capítulos, 5 capítulos a mais do que o filme.

OK, mas porque tanta expectativa? Ora, pelo imenso filme de Tarkovski, um dos melhores de toda a história do cinema, pelo profundo humanismo que se desprende da história e pela grande carga emocional de um filme que parece não terminar nunca, tal a impressão deixada nas mentes de quem o vê. Com a publicação deste roteiro — falemos sério, deste romance — ficam inequívocas as intenções do cineasta soviético. Tarkovski pretendia mesmo discutir o papel do artista e da fé na sociedade. Se o palco é a Rússia (Rus) da invasão tártara do século XV, a alegoria serve a qualquer outro tempo e sociedade.  No livro, Rublióv está muito mais completo e complexo do que no filme, o que, se não significa uma obra de arte melhor — e certamente não significa — , significa explicações para vários trechos apenas intuídos.

Na leitura, capta-se melhor a personalidade do trio de pintores de ícones, perdidos ou indo de igreja em igreja na paupérrima e faminta Rússia medieval. Andrei é um jovem quieto e misterioso. Daniil é resignado, propondo sacrifícios a si mesmo. Kiril é esperto, lógico mas ciumento. O trio representa a Trindade do ícone mais famoso de Rublióv. As cenas — todas passadas por volta do ano de 1400 — nem sempre são contadas do mesmo ponto de vista, podem variar, assim como a ordem de apresentação delas é diferente no filme.

Andrei Rublióv é um surpreendente painel sociológico sobre a Rússia medieval. Os estranhos rituais, a fé, a necessidade da igreja para não passar fome, a busca da própria identidade, a busca da verdade. Há violência extrema na cena em que a igreja é invadida e saqueada, com o sacerdote sendo marcado por uma cruz incandescente. Ali, Rublióv perde a fé para reencontrá-la no filho de um fabricante de um sineiro, um menino que, sem saber muito bem o que faz e ameaçado de morte se não for capaz de forjar um sino, vai adiante movido por não se sabe o bem o quê– pela mera intuição, pela fé ou pela observação e desespero. Ali, Rublióv vai reencontrar deus e o espírito para voltar a criar beleza religiosa para um mundo absolutamente bárbaro.

O filme, de 1966, foi somente liberado em 1969, assim mesmo com cortes impostos pela censura soviética, que não aprovava a alegoria de Tarkovski contra a intervenção das instituições no trabalho do artista. Isto é algo quase não lê no “roteiro literário” do diretor.

Andrei Rublev: Trindade. Galeria Tretyakov

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Como funciona a ficção, de James Wood

Só existe uma receita: ter o maior cuidado na hora de cozinhar.
HENRY JAMES

Esta citação abre Como Funciona a Ficção (232 páginas, Cosac Naify, tradução de Denise Bottmann), de James Wood, e é uma frase muito humilde e realista da parte do autor, pois no final quem decidirá o que será usado na  ficção serão as decisões do autor e de seu editor aliadas à apreensão do leitor, que dirá afinal se funcionou. São coisas realmente muito complicadas de se colocar num manual, pois há toda uma realidade complexa e inapreensível: o ouvido, a música, a qualidade das analogias, o uso dos detalhes, a criação de personagens, os diálogos, o bom uso do discurso livre indireto, o foco, a capacidade de fugir do convencional, etc. Ou quem sabe poderíamos chamar todos este itens simplesmente de bom gosto?

Wood sai avisando logo de cara:

Neste livro, tento responder algumas das perguntas fundamentais sobre a arte de ficção. (…) espero que seja um livro que faz perguntas teóricas e dá respostas práticas – ou, em outras palavras, que faz as perguntas do crítico e dá as respostas do escritor.

Nem tanto, Mr. Wood. As respostas vêm por exemplos, é mostrado o que funciona e tais demonstrações certamente são irrepetíveis — pois qualquer ingrediente alterado tem o condão de mudar inteiramente o sabor e se não fosse alterado teríamos casos de plágio… Desta forma, acho que é demais dizer que dá respostas práticas. (Fico pensando nas oficinas literárias. Como se aprende a fazer ficção? Com algumas instruções sai alguma coisa, mas é possível “formar o ouvido” lendo poesia, como sugere Wood? Ou seria mais eficiente ouvir Bach ou observar os trabalhos gráficos de Goya? Como se forma a sensibilidade, cara-pálida? Ah, não me perguntem. Acho que os “professores” das oficinas apenas podem dar uma melhorada, verificar que o aluno está pronto ou mandá-lo guardar seu dinheiro).

Apesar de ser organizado por assunto, o livro funciona por acumulação, tendo citações reutilizadas. Conhecer a maioria dos livros citados é bom, mas não é fundamental para a compreensão do todo. A primeira parte, “Narrando” trata basicamente do artifício do “discurso ou estilo indireto livre”, onde características dos personagens grudam num texto escrito em 3ª pessoa e quem passa a falar não é mais o autor. Os exemplos vem de Joyce, principalmente dos contos de Dublinenses, onde o irlandês usa e abusa do recurso. É um bom capítulo. Depois, grande parte dos argumentos derivam principalmente de Flaubert, mas também de James, Woolf, Dickens, Dostoiévski, Tolstói, Bellow, Saramago, Philip Roth e Muriel Spark. Há observações excelentes sobre o flâneur, os personagens, os detalhes, a linguagem e o melhor, o último, sobre verdade, convenção e realismo.

Leio estes livros sobre ficção por puro prazer. É como se sentasse com um amigo muito culto e gentil para trocarmos ideias num café. Não tenho a expectativa de aprender. No máximo, a discussão auxilia a organizar os pensamentos, o que já é muito e faz certamente parte de um aprendizado. Organizar o que se sabe É aprender, certamente, e é bom falar sobre literatura e lembrar passagens de livros.  Mas que ninguém leia este gênero de livro ou frequente oficinas na expectativa de que os horizontes se abram. São momentos enriquecedores e agradáveis. Se serão fecundos é outra história.

Leia mais e melhor: Aprendendo como funciona a ficção

P.S. — Há toda uma discussão sobre se Wood é conservador ou não. Não me pareceu sê-lo. O que é correto dizer é que ele parte via de regra do ícone e que cultiva grande amor pelo realismo. As pessoas fazem confusão entre realismo e naturalismo… E, bem, para ser compreendido há que dar exemplos de conhecimento comum, correto? Além do mais, vários autores recentes e muito diferentes entre si são citados. Esqueçam.

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O Grande Livro Doente de Machado de Assis

Memorial de Aires não é considerado um dos principais romances de Machado de Assis. A maioria fica com Dom Casmurro ou Brás Cubas e com o irretocável mosaico de contos. Até compreendo, mas prefiro o delicado Memorial. Provavelmente estou errado, pode tratar-se de simples idiossincrasia, porém, como velho leitor do Bruxo de Cosme Velho, vou tentar explicar minha opinião.

A publicação deste romance-diário ocorreu em 1908, ano da morte do escritor. O tema é quase nenhum. O Conselheiro Aires, que já havia narrado o romance anterior de Machado, Esaú e Jacó, escreve este diário-romance na posição de um mero observador da “ação” – e portanto não na posição de narrador onisciente -, observando as aventuras amorosas dos mais jovens e anotando de forma sedutora também outros acontecimentos a seu redor: amizades, pequenos casos, pequenos dramas, piadas.

O romance perpassa dois anos da velhice do personagem-autor; serenamente, ele leva o leitor com suas observações aleatórias de aposentado. Conta sobre o amor de Fidélia e Tristão, sobre a vida passada como diplomata, sobre leituras ou acontecimentos políticos, tudo sem muita ordem. O livro é quase destituído de enredo, descrevendo o final da existência de alguém muito experiente e perspicaz. O tom do Memorial fica entre a melancolia de quem está velho demais para conquistas amorosas e o bom humor indulgente da experiência. Parece uma crônica leve sem maiores objetivos mas é uma visão bastante amarga da solidão da velhice. Este paradoxo torna o livro irresistível para mim. O que esperar de um velho inteligente, aposentado, sem filhos e nada para fazer? Risonho e falsamente fútil, Aires vai habilmente descrevendo a vida dos amigos Dona Carmo e Aguiar, um casal sem filhos que toma a jovem Fidélia como se fosse sua filha e a vê mudar-se para Portugal com seu amor Tristão. Aires nos mostra a devoção com que o casal espera e recebe cada carta vinda de Portugal; a forma amiga e piedosa – ao mesmo tempo que irônica e crítica – com que Aires aborda o casal é encharcada da mais pura humanidade.

É evidente que Machado está, ao expor-nos Dona Carmo e Aguiar, expondo nostalgicamente a intimidade de sua própria vida com Carolina, a esposa de toda uma vida, recém falecida à época em que o romance foi escrito. Em grande parte, os méritos do livro estão na perfeita e contida descrição de seres tão pouco romanescos quanto o próprio Conselheiro Aires, Dona Carmo, Aguiar, Fidélia e Tristão, que aqui são cuidadosamente emoldurados por um mestre no auge de sua arte.

Talvez eu não tenha convencido você da qualidade do livro ou talvez minha avaliação seja um equívoco; então, para me auxiliar, invoco inesperadamente o depoimento do cineasta François Truffaut.

Truffaut criou a categoria dos Grandes Filmes Doentes. A definição deste tipo de filme está no parágrafo a seguir e reparem como ela serve para o Memorial. Peço-lhes que troquem as palavras relativas ao cinema por outras relativas à literatura. Por exemplo, troquem filme por livro, diretor por escritor, cinefilia por bibliofilia ou bibliofagia, etc. Com a palavra, François Truffaut, o diretor que amava os livros e um de meus heróis neste mundo:

Abro um parêntese para definir rapidamente o que chamo de um “grande filme doente”. Não é senão uma obra-prima abortada, um empreendimento ambicioso que sofreu erros de percurso. (…) Esta noção só pode aplicar-se, evidentemente, a diretores muito bons, àqueles que, em outras circunstâncias, demonstraram que podem atingir a perfeição. Um certo grau de cinefilia encoraja, por vezes, a preferir, na obra de um diretor, seu grande filme doente à sua obra-prima incontestada! (…) Se se aceita a idéia de que uma execução perfeita chega, na maior parte das vezes, a dissimular as intenções, admitir-se-á que os grandes filmes doentes deixam transparecer mais cruamente sua razão de ser. (…) Diria, enfim, que o “grande filme doente” sofre geralmente de um extravasamento de sinceridade, o que paradoxalmente o torna mais claro para os aficionados e mais obscuro para o público, levado a engolir misturas cuja dosagem privilegia o ardil de preferência à confissão direta.

Trecho da crítica de Truffaut sobre o filme Marnie – Confissões de uma Ladra, de Alfred Hitchcock. Retirado de Hitchcock / Truffaut – Entrevistas (Ed. Brasiliense – 1986).

O Memorial é isto mesmo. É um Grande Livro Doente. O ex-diplomata Aires é, certamente, o próprio Machado sexagenário. Tranqüilo, irônico e pessimista, goza sua aposentadoria escrevendo pequenos acontecimentos em seu diário. Nada de romanesco alterará sua existência e ele se compraz na companhia de seus velhos amigos e na observação dos jovens. O ambiente do livro é o mesmo de suas crônicas e até a relativa vergonha de sentir-se atraído por uma jovem viúva é descrita, ao lado do bom senso que o faz aconselhá-la a um casamento com um jovem. Trata-se de um calmo “extravasamento de sinceridade”. Porém… Claro que um livro assim move-se a passos de tartaruga e seu verdadeiro personagem deve ser o texto – no caso uma notável demonstração de virtuosismo literário talvez só repetível por alguém do porte de Henry James. Pode ser que a imobilidade e os gentis saraus de uma velhice esclarecida tenham afastado o público do livro, mas não afastou os loucos por Machado.

Para terminar, uma citação que bem demonstra o espírito de Memorial de Aires:

Em verdade, dá certo gosto deitar ao papel coisas que querem sair da cabeça, por via da memória ou da reflexão.

Machado de Assis, MEMORIAL DE AIRES

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O romancista ingênuo e o sentimental, de Orhan Pamuk

Meu amigo Ricardo Branco conta uma história mais ou menos assim: um dia um leigo pediu para que Albert Einstein lhe explicasse a Teoria da Relatividade. Einstein detalhou-a e o cara não entendeu nada, pedindo nova explicação. Tudo repetiu-se com o cientista facilitando um pouco as coisas, mas o sujeito não entendia. Na terceira ou quarta explicação, o leigo finalmente entendeu, mas então Einstein respondeu: “Bem, mas acho que simplifiquei tanto que o que disse não descreve mais a Teoria da Relatividade”.

Fiquei com esta historinha na cabeça enquanto lia este livro de Pamuk. Quem lê romances há quase quarenta anos sabe que é uma arte complicada, quem consegue enxergar as falhas e discutir os erros e o leque de opções que eles apresentam, acaba por valorizar a arte contida no gênero literário mais popular e que literalmente engole as outras formas literárias por onde passa. Neste O romancista ingênuo e o sentimental (Cia. das Letras, 146 páginas), Pamuk simplifica tanto, é tão brilhante e claro em suas analogias que, durante a leitura, ficava feliz, mas pensando se ele não estava agindo como o Einstein da historinha do Branco.

Olha, eu acho que não. Achei o livro brilhante mesmo. Hesitei muito (dois dias…) para escrever esta curta resenha por pura insegurança. Estava esperando uma segunda opinião. E ontem li algumas listas de melhores livros de 2011. Como sempre faço, fui ler os nomes dos votantes e dei de cara com o de José Castello. Pô, esse eu respeito. Melhor livro estrangeiro de 2011? O ensaio O romancista ingênuo e o sentimental, de Orhan Pamuk, seguido de outros livros de Flusser, Barthes, Macedonio Fernández e Tolstói.

Ok, então! O livro consiste de seis palestras sobre o romance proferidas por Pamuk na Universidade de Harvard. O ritmo é o da conversa, o mesmo utilizado no clássico Aspectos do Romance, de E. M. Forster. A Carol Bensimon, que não leu ainda este livro do Pamuk, me perguntou se eu já tinha lido o Como Funciona a Ficção (How Fiction Works) do genial James Wood. Não, não li. Mancada, tenho que comprar.

Pamuk fala sobre a série de questões que angustiam quem escreve um romance. Planejar ou não? Como esconder o verdadeiro centro (assunto ou discurso) do romance? É mesmo deselegante mostrá-lo claramente? Como um romance cresce e se transforma? (Exemplo: o verdadeiro camaleão Moby Dick — inicia como a vida do mar, vai para a obsessão e termina como metáfora do mundo inteiro). Como utilizar a memória ou a experiência do leitor? E a trama? E o tempo? E as descrições? Claro que não ensina nada e que ninguém vai tornar-se escritor após a leitura, mas reflete sobre os problemas de forma organizada e inteligente. Se quisesse provocar, diria que funciona melhor do que qualquer oficina literária, às quais também não ensinam ninguém sobre como tornar-se escritor e que raramente tem um Pamuk como instrutor…

Indico fortemente a leitura. Mas o livro torna-se ainda melhor se o leitor conhecer Tolstói (principalmente Anna Kariênina, mas também Guerra e Paz), Dostoiévski, Melville, Borges e Calvino. Muito são citados, mas estes são os principais. O estranho título do livro refere-se ao ensaio de Schiller que fala sobre os escritores ingenuamente inconscientes e os sentimentalmente reflexivos.

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Quem de nós, de Mario Benedetti

Vivi tanto nesta semana que nem parece que ainda é quarta-feira. Meu equivocado relógio interno indica sexta. Talvez um dos motivos seja a súbita leitura deste primeiro romance de Mario Benedetti, Quem de nós (Record, 83 páginas). Li-o quase todo ontem à noite, enquanto esperava, num restaurante, que minha mulher e amigos — Jussara e Branco — chegassem do concerto da OSPA. É que tinha devolvido meu ingresso a quem me dera e ficara sem…

Jamais chamaria Quem de nós (1953) de novela. É um romance curto, um excelente e intenso romance curto. A narrativa — que no Brasil recebeu o duvidoso complemento de Uma História de Amor (ver capa ao lado, sob o título) é dividida em três partes muito diferentes entre si e que justificam plenamente a epígrafe de Auden que lemos assim que abrimos o volume:

I shall never be Different. Love me.

O verso faz parte do Hymn to St. Cecilia, mas eu falava sobre as três partes. Elas se chamam Miguel, Alicia e Lucas e são escritas em primeira pessoa. Os três personagens se conhecem desde a adolescência. Miguel e Alícia são casados e têm dois filhos, mas o marido, uma pessoa daquelas que alguns chamam de “simples”, tem certeza que a mulher tem tudo em comum com o amigo Lucas. Afinal, ambos têm os mesmos interesses, a mesma ironia, cultura, etc. Na época do casamento, Lucas saiu de Montevidéu para viver em Buenos Aires e não mais voltou. Ao longo de 11 anos de separação, Miguel e Lucas apenas trocaram cartas, e sempre, ao final delas, aparecia um tímido recado de Alícia: “Carinhosas lembranças ao bom amigo Lucas”.

O livro abre com a narrativa de Miguel, a qual ocupa mais da metade do livro. As anotações são datam de logo após Miguel levar Alicia ao porto de Montevidéu para ir a Buenos Aires visitar Lucas. Baseado numa rigorosa baixa auto-estima que o faz quase empurrar a mulher para o amigo, Miguel tem a certeza de que ela não voltará para ele. Não devo contar o que virá a seguir, é claro. Mas algumas observações devo fazer. A parte escrita por Lucas (tradutor e escritor) vem na forma de um conto, um work in progress cheio de anotações de rodapé com os nomes dos personagens alterados. Não sei contar contos; sei reconhecer o conto em alguma coisa que vejo ou experimento. Depois deformo, acrescento, tiro. Vem também na prosa voluntariamente truncada de quem está meio escrevendo, meio anotando.

A grande curiosidade do livro não é nem pela psicologia ou por minha identificação com as situações e personagens. O que me seduziu foi como a franqueza de Miguel e Alicia foi estranhamente rebatida por uma meia ficção: a força desta chega a ser assustadora em relação ao naturalismo das duas primeiras partes. Benedetti nos engana — passa uma impressão de simplicidade enquanto nos destroça.

Nada menos que genial.

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As Aventuras de Huckleberry Finn, de Mark Twain

Toda a literatura americana moderna se origina de um livro escrito por Mark Twain, chamado Huckleberry Finn (…). Não havia nada antes. Não houve nada tão bom desde então.
Ernest Hemingway

(Havia Moby Dick, prezado Hemingway, mas tudo bem. Adiante!)

As pessoas que tentarem encontrar uma razão para esta narrativa serão processadas; as pessoas que tentarem encontrar uma moral serão banidas; as pessoas que tentarem encontrar um enredo serão fuziladas.
Mark Twain, na abertura de Huck Finn

A nova edição do livro, em tradução de Rosaura Eichenberg, é uma joia que torna coisa do passado aquela edição que li anos atrás, quando adolescente, feita de forma muito rebuscada e “literária” por Monteiro Lobato. Nunca contestei a afirmativa ouvida e lida por anos de que Huck Finn seria o romance fundador da literatura americana, mas voltava meu pensamento para outros autores, como meu querido Melville, que escrevera Moby Dick 33 anos antes de Huck Finn, de 1884. Os dois romances são muito diferentes e incomparáveis — até por suas intenções. Moby Dick é todo o mundo, enquanto Huck é uma brilhante, brilhantíssima e realista história de aventuras juvenis. Afirmo a meus sete leitores que o romance de Mark Twain subiu muito em meu conceito após esta leitura e isto se deve às boas soluções encontradas pela tradutora. Tudo porque o narrador é o personagem principal e este fala/escreve sempre errado, como a criança semi-alfabetizada que é. Pior, durante todo o livro ele se relaciona com o negro escravo (e analfabeto) Jim, que fala ainda mais errado. Então, como o autor raramente interrompe seus diálogos para esclarecer quem diz o quê, a inteligência da tradução está em deixar sinais claros através do gênero de erros cometidos. Deve ter sido trabalhoso, mas ficou excelente. A tradutora nos ensina rapidamente a sintaxe de cada um e a leitura logo ganha fluidez. Um belo trabalho de tradução.

Há uma querela envolvendo o livro. Este seria racista pela utilização de certas palavras, como nigger, por Twain. Por Twain? Ora, aqui já temos uma primeira inverdade ficccional, pois quem a usa é Huck, não Twain. O que os moralistas não notaram é que Huck ama Jim, quer vê-lo livre e faz tudo para isso, no que é confusamente auxiliado por Tom Sawyer ao final do livro. Ou seja, minhas irritações com o “politicamente correto” também são fruto de seu desprezo pela mais mínima complexidade.

OK, sem spoilers: como quase todo mundo sabe, Huck Finn era um menino que vivia com duas “tias” numa cidade ao largo do Mississipi. Porém, seu pai, um alcoólatra, queria Huck de volta para usá-lo como serviçal e para tomar surras sistemáticas. O pai acaba por sequestrá-lo, mas ele foge, encontrando Jim na fuga. Jim morava na casa da Srta. Watson, uma das tais tias, com Huck. Ele passam a viajar pelo Mississipi numa balsa em busca de aventuras, de prazer e de liberdade para ambos.

O romance é muito significativo do ponto de vista da formação dos EUA. Huck foge com seu amigo Jim em busca dos estados americanos onde a escravidão já havia sido abolida. No entanto, por total ignorância geográfica, vão para o sul. Ambos vivem uma vida nômade, picaresca, absolutamente sem estratégias a longo prazo que não sejam os delírios de Jim. Pelo caminho, encontram uma farta, divertida e às vezes terrível galeria de personagens. É notável a inexistência de autoridades legais nos EUA daquela época. A lei é feita pelas próprias pessoas, a criminalidade grassa e a cena dos fazendeiros inimigos está muito próxima do que se veria na máfia depois. A segurança (segurança?) é realizada pelas próprias pessoas e suas armas.

Mesmo com Huck mentindo, roubando e enganando desbragadamente, o grande debate moral do livro deflagra-se unicamente em seu cérebro: deveria ele realmente ajudar Jim em sua fuga? A amizade vale infringir a lei? A amizade vale ir para o inferno? O debate é tão franco que Huck pensa todo o gênero de barbaridades racistas. Não toma atitudes que não seja a da solidariedade, mas duvida. Isto também assusta alguma correção moralista sem que esta reflita que trata-se de um menino conjeturando. Tanto que o livro recentemente recebeu uma versão americana limpa das impurezas dos nigger e de centos pensamentos… O leitor apenas perde.

Olha, li feliz. Tremendo livro. Pode ser lido como um infanto-juvenil, mas é muito mais do que isso. E é como se a grande obra de Twain estivesse sendo publicada pela primeira vez em nosso país.

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Os ossos da noiva, de Charles Kiefer

Uma novela pode ter uma história envolvente, trabalhar com teses sedutoras ou provocar nossa fantasia. A gente pode se apaixonar por personagens, pelas situações, por cenas ou ficar na expectativa do que acontecerá depois. Porém, creio que em Os ossos da noiva, de Charles Kiefer, o grande motor da história é o esmerado, detalhista e perfeito trabalho de linguagem. A história está lá, claro. Estamos novamente em Pau d`Arco, o ano é o de 1958, quando Kiefer nasceu. José Cármio é um caixeiro-viajante negro, casado, dois filhos. Ele e Circe Brechen, a loira herdeira das Ferragens Brechen apaixonam-se. Parece que tudo vai acabar em tragédia e acaba.

As mudanças de foco narrativo, a aparente desordem regida por um autor que invoca temas e fatos que contam a história ao lado de outros que não contam nada — mas que servem para aclarar o contexto — são o verdadeiro cerne da narrativa. Que a sociedade de Pau d`Arco era simpática ao negro vendedor, que depois passa a combatê-lo pela ousadia, que Circe fez sua escolha e que ninguém foi passivo — apesar da calma e da lendidão do adágio de Kiefer — , tudo isso é contado como se o autor nos jogasse cartas cuja interpretação depende de nós. O cuidadoso jogo de cartomante (agorinha cometi o ato falho de escrever cartomEnte) comandado por Charles Kiefer é o principal e volátil personagem desta pequena joia.

Admiro Kiefer há muito tempo. Consultando minha anotações, descobri que minha última leitura de romances ou contos seus datava de 1997. Fiquei feliz de voltar a lê-lo. Ele evoluiu e, professor de literatura que é, mandou um recado claro. Nada de mais do mesmo. Nada de permanecer na zona de conforto de três Jabutis e de uma reputação consolidada. Há que ousar mesmo nos tranquilos adágios que ligam um Allegro a um tempestuoso Presto.

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Minha arbitragem para o jogo "O videogame do rei x O homem proibido"

Aqui. O jogo faz parte do Campeonato Gaúcho de Literatura que este ano contempla apenas romances. Ao todo são 48 livros e o resultado de meu jogo foi um tanto escandaloso:

6 X 2

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O Horla, A Cabeleira, A Mão, O Colar, de Guy de Maupassant

A editora Artes e Ofícios acaba de lançar uma excelente coletânea de contos de Guy de Maupassant (1850-1893), autor injustamente esquecido por estas plagas. Autor de romances, peças de teatro e principalmente de cerca de 300 contos, Maupassant foi um imenso escritor. Começou como discípulo de Gustave Flaubert (1821-1880), de quem foi efetivamente um aprendiz. Flaubert teria ensinado o futuro escritor a observar. Fazia-o olhar, por exemplo, para uma determinada árvore até que esta se distinguisse das outras por alguma característica que a fizesse merecer ser descrita literariamente. Porém, se Flaubert ensinou e viveu mais do que Maupassant, o discípulo logo deixou de observar tanto as árvores e escreveu em quantidade muito maior que o mestre. E, se parte da obra de Maupassant é realista, de grande apuro psicológico e extraordinariamente bem escrita como o faria Flaubert, o autor tinha bastante desenvolvida outra faceta cuja maior influência era a do americano Edgar Allan Poe (1809-1849).

Os três contos iniciais desta coletânea — O Horla, A Cabeleira e A Mão — focam este labo B, não flaubertiano, do escritor francês. O Horla é uma bela narrativa sobre o tema do duplo e da loucura aos moldes do William Wilson de Poe. A Cabeleira é escrito num clima peculiar de necrofilia erótica. Este conto, lido na adolescência e relido trinta anos depois, cresce muito pelos significados que apenas ficam a nossa disposição com a idade, infelizmente. Já A Mão é uma daquelas histórias de terror ao estilo das que escreveria anos depois H. P. Lovecraft (1890-1937), mas sem utilizar a adjetivação pesada e exagerada do americano. Um flaubertiano é elegante até, e principalmente, no terror.

Sem trocadilhos, a grande joia deste livro é O Colar. Além de ter criado uma grande história sobre o comportamento e submissão social, Maupassant chega aqui a uma execução perfeita. Um clássico irretocável que as dezenas de tentativas de adaptação para o cinema e a televisão tornaram ainda maior. O drama de Mathilde Loisel, ao dedicar sua vida ao pagamento de uma dívida, possui uma carga de humanidade e emoção que o tornam um dos melhores já escritos, valendo até trocadinhos de mau gosto.

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Pontos de Vista de um Palhaço, de Heinrich Böll

Como disse recentemente, li pela primeira vez este Pontos de vista de um palhaço (Editora Estação Liberdade, 308 páginas) ao final dos anos anos 70 numa edição em espanhol — Opiniones de un payaso — e tinha ficado apaixonado pelo livro. Quando vi casualmente em uma vitrine a tradução brasileira, da qual ignorava a existência, me veio uma grande saudade daquela época e do livro de Heinrich Böll (1917-1985). Há 30 anos atrás, tinha chegado ao romance através da mais adolescente das lógicas: ora, se o cara ganhou o Nobel (Böll recebeu o prêmio em 1972) tem que ser bom. E, por sorte, era.

Pontos de vista de um palhaço conta a história de Hans Schnier, de 25 anos, um palhaço profissional em precoce decadência. Abandonado pela namorada, a católica Marie, seu grande amor, e com uma lesão no joelho que o fará parar de trabalhar por uns seis meses, Schnier é um ateu com forte propensão à monogamia… Então, vendo o trabalho afastar-se lentamente — antes da lesão já estava recebendo críticas cada vez mais hostis — e sem Marie, começa a beber e a perder a inspiração. O joelho machucado o faz voltar para sua casa em Bonn a fim de reconstruir sua vida sob alguma nova forma. Porém, antes precisa de algum dinheiro.

A belíssima e triste história é narrada na primeira pessoa através da voz sarcástica e ressentida do palhaço Schnier. Ele telefona, fala com muita gente, mas quem não foge é afugentado com seu mau humor e o deboche. Os amigos ligados à ex-mulher vão sumindo ou o ignoram; seu pai, um homem de posses que é o único a fazer-lhe uma visita em seu apartamento, é quase enxotado após uma discussão esplendidamente descrita do ponto de vista humano e literário. De forma lenta e sistemática, Schnier simplesmente inviabiliza a ajuda que financeira que receberia. E assim vai Schnier.

Böll é um autor e uma consciência à antiga. Trata-se de um católico extremamente crítico à igreja. Sua agressividade e anticlericalismo não pode ser comparada a um ataque de um ateu. É alguém que vem do seio da igreja e este seu romance, assim como outros que escreveu, é perfeito.

Indico fortemente.

P.S. para Juliana Szabluk e Vanya Sant`Anna, em razão de uma discussão no Facebook: No livro de Böll, os mesmos personagens que caçavam judeus e armavam crianças, tornaram-se pessoas de respeito. Logo após a guerra, já estavam a postos, cheios de religião, ética e prontas para erguerem a nova Alemanha limpinha e democrática. Eram os mesmos sob outro contexto. A forma sutil como o autor liga catolicismo e nazismo é uma lição para artistas que se utilizam de simbologias deselegantes, demasiado escarradas ou truculentas. Nos anos 70, Pontos de vista de um palhaço gerou imensa repercussão na imprensa, tendo a igreja católica alemã em seu cerne. Prova de que a hipocrisia é um grande tema.

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O Clube do Filme, de David Gilmour

Em primeiro lugar, favor não confundir este David Gilmour canadense, escritor e crítico de cinema, com aquele outro, inglês, que foi guitarrista do Pink Floyd.

O Clube do Filme (Intrínseca, 239 páginas) trata de um caso real e famoso: David Gilmour estava com pouco dinheiro, com as contas pagas pela mulher e morando com o filho de 15 anos, o qual colecionava péssimas notas e tédio na escola. Quem é pai — e nem precisamos estar meio deprimidos, como é o caso aqui — , sabe o efeito que um filho de saco cheio tem sobre nós. A gente simplesmente quer fazer tudo para acabar com aquilo. Gilmour achou que seu filho Jesse não precisaria conviver com o fracasso escolar e, diante da óbvia infelicidade e desespero do filho, propôs-se a ensiná-lo através de filmes, assistindo semanalmente a três deles, escolhidos e comentados pelo pai. Durante o “curso”, o garoto receberia mesada e um teto todo dele, mas deveria manter-se longe das drogas. A intenção de Gilmour era das melhores: desejava garantir uma adolescência suportável a seu filho, longe dos fracassos e da consequente baixa auto-estima.

Poderia ser um grande livro, um curioso “romance ou caso de formação”, mas Gilmour atrapalha bastante. Ele já começa por nos dar de graça o maior dos spoilers: “olha, o final será açucarado, tudo terminará bem”. Se ele já diz de saída que tudo acabará bem, a gente logo imagina que o “como” seja muito artificioso e original, mas não. A história de Jesse com suas namoradas é bastante rasa e ocupa grande parte do livro. Também o fato de Gilmour usar a primeira pessoa do singular e privilegiar os diálogos é problemático. Muitas das conversas entre os dois têm tom de interrogatório por escrito — tudo com a finalidade de que o leitor se informe. É artificial. Ah, como faz  falta um bom narrador onisciente! É óbvio que o livro seria melhor se fosse um romance autobiográfico narrado na terceira pessoa. Há muito “eu” na narrativa.

Não obstante os problemas, a análise dos filmes por parte do pai e sua repercussão no filho são emocionantes. Há observações cinematográficas preciosas. Mas por que passei subitamente a elogiar o livro? Ora, porque a história é boa e interessante. Então, para terminar esta pequena e despretensiosa resenha, diria que vale a pena ler O Clube do Filme, mas não espere genialidade. É como se um autor médio tivesse recebido a dádiva de um grande tema, infelizmente muito superior a si. Ou como se fosse uma grande canção estivesse sendo interpretada por alguém que mal consegue alcançar as notas. É isso.

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Uma Noite do Palácio da Razão, de James R. Gaines

Comprei Uma Noite no Palácio da Razão, de James R. Gaines (Record, 334 páginas) por dois motivos: (1) minha desconfiança sobre a história — a meu ver estranha — contada e recontada a respeito da visita de Bach a Frederico, o Grande, e (2) minha curiosidade sobre o enigma Johann Sebastian Bach. Leio quase tudo o que se publica sobre o homem.

O livro de Gaines não apenas satisfaz o que buscava como é muito mais. É um grande livro de história e um documento humano da melhor qualidade. Uma Noite conta a vida de Frederico e de Bach antes e depois de seu único encontro de uma noite. Durante a reunião, Bach foi desafiado a improvisar sobre um tema escrito por Frederico — mas que provavelmente era de autoria de um dos muitos compositores da corte. O tema era dificílimo, uma evidente sacanagem, porém Bach improvisou uma fuga a três vozes sobre o mesmo. Diante da admiração incontida dos ouvintes, Frederico, um notório sádico, propôs uma fuga a seis vozes. Agastado, Bach respondeu-lhe que era impossível fazê-lo assim de improviso. Ficou furioso com a derrota, porém, duas semanas depois, enviou a Frederico uma partitura com a fuga a três vozes, outra a seis, acompanhadas de diversos cânones e de uma sonata-trio, totalizando treze movimentos cuja ordem correta, se há, é até hoje um desafio oara os musicólogos. Ou seja, enviou-lhe a chamada Oferenda Musical (Das Musikalische Opfer), uma das mais importantes composições de todos os tempos. Frederico não deu a menor importância, o jogo já tinha sido jogado. E não mandou nenhuma nota de agradecimento ao “Velho Bach”.

Se fosse apenas isso, Gaines poderia ter escrito uma narrativa curta. Mas, como escrevi, o autor faz um longo, documentado e por vezes cômico relato da vida de seus dois personagens.

A vida de Frederico é interessantíssima e dramática. Seu pai, no século XVIII, pensava igual ao deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ) e procurou impedir o homossexualismo do filho aplicando-lhe intermináveis séries de surras. Elas eram tantas e tão frequentes que vários amigos de Frederico lhe propuseram a eliminação de seu pai — ação à qual Frederico não cedeu — , assim como seu pai pensou várias vezes em matar o filho. A maldade era o tom do relacionamento. Frederico aprendeu a tocar flauta e tinha apreciável habilidade ao instrumento? Tirem-lhe a flauta. Frederico gosta de vestir-se de um modo um tanto gay para tocar? Queime-se a roupa. Frederico arranjou um namoradinho? Primeiro prenda-se Frederico e depois enforca-se o namorado bem na frente da janela de sua cela. Era assim.

Ignora-se como não se mataram, ainda mais que Frederico frequentemente aparecia machucado nas recepções palacianas. Nunca revidou um ataque paterno, nunca. Quando o pai morreu, Frederico não apenas sentiu-se aliviado como passou a colecionar casos no exército. De quebra, mostrou-se um talentoso administrador e um belicoso guerreiro, tendo conquistado outros principados para a Prússia a fim de merecer “o Grande”, com o qual costumamos ornamentar seu nome. Frederico, o Grande, era um iluminista amigo de Voltaire que defendia a tolerância religiosa e até certa democracia, que se preocupava com a fome e com a economia do país durante as muitas guerras. Era tão original e bom para o povo — a seu modo — que sempre foi dito que uma Revolução Francesa seria impossível na Prússia. Mas trocava de ministros a toda hora, fazia fofocas e enganava todo mundo, fazendo amigos e inimigos brigarem entre si, inclusive Voltaire. Era o Rei da cizânia. Além disso, bastante culto, só falava francês e, para terminar nosso breve retrato, digo o mais importante para o livro: não gostava da música do passado, como a representada por …

Bach era totalmente diferente. Pai de 20 filhos, era um chefe de família exemplar. Foi empregado a vida inteira e pelo mesmo tempo passou em lutas burocráticas com seus chefes por melhores condições e salários. Mesmo informadíssimo e curioso a respeito de toda a cena musical europeia, preferia ignorar os modismos — ou antes retirava-lhe o que achava que tinham de melhor — e aplicava-lhe a sua própria e pessoalíssima arte, advinda dos mestres que conhecera na juventude. Bach fazia uma música antiga para sua época, fato que atrasou por quase cem anos seu reconhecimento como maior compositor de todos os tempos e base para todos os que viriam depois de Beethoven.

Um era moderno, o outro era passadista. Um era jovem, o outro era velho (Bach). Um tinha conquistado a Saxônia e a Turíngia, o outro era turíngio e vivia na Saxônia. E, para piorar, Bach era pai de Carl Philipp, músico da corte de Frederico. Isto é, o brigão Johann Sebastian, se fosse ofendido, teria de ficar quieto para manter o emprego do filho. Foi o que fez quando notou que Frederico o encarava como um gênero de espetáculo circense.

Opfer significa oferta e oferenda, mas também sacrifício e vítima, cumpre lembrar.

O maravilhoso do livro de Gaines é que ele nos dá todo o contexto desta luta entre Bach e Frederico. E depois vai mais adiante, esclarecendo sobre o destino de ambos logo após a famosa noite. O compositor cego e o Rei alquebrado e deprimido. Para quem gosta de música ou história, uma obra imperdível. Recomendo fortemente.

P.S.- É óbvio que se trata da obra de um jornalista e crítico de arte. Nem imagino o que a Nikelen Witter e o Luís Augusto Farinatti, professores de história, achariam do livro do qual gostei tanto.

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A entrevista, de Millôr Fernandes

Millôr Fernandes está naquela estreita e admirada faixa de humoristas cultos que podem falar de cultura com grande conhecimento e vivência. Só por isso uma longa entrevista sua já seria motivo de curiosidade, mas há mais, pois Millôr põe generosas pitadas de provocação onde pisa e neste livrinho é bem provocado. Porém, vamos por partes. A entrevista (L&PM, 2011, 100 páginas) é uma — surpresa! — entrevista com Millôr Fernandes concedida em 1981 aos editores da extinta e saudosa da revista cultural em formato de livro Oitenta, também da L&PM. Os entrevistadores foram Ivan Pinheiro Machado, José Onofre, Paulo Lima, José Antonio Pinheiro Machado e Jorge Polydoro. A revista com o texto foi publicada em julho de 1981. Esta edição separada foi lançada há poucos dias e é outra surpresa.

Sem dúvida, os 30 anos que nos separam fazem diferença, quanto mais não seja pelo fato de que em 81 estávamos na fase final da ditadura militar, só que Millôr não se fixa apenas nos fatos da época, partindo para digressões sobre seus temas prediletos: imprensa, infância, ética, psicanálise, Shakespeare, teatro, sucesso, trabalho, feminismo, ditadura, mulheres e amigos. E, de forma típica, Millôr faz provocações em quase todos os quesitos citados. Suas opiniões sobre psicanálise e feminismo estão vencidas ou já estavam na época, mas acho lindo quando alguém altamente inteligente esgrime argumentos desconcertantes. Suas posições a respeito de religião e independência política, porém, não têm nada de perecíveis. Outra das seduções do livro é o contato com o frasista. Millôr, autor de famosas e citadas frases, deixa várias declarações lapidares em suas respostas. Trata-se de um inventor natural de aforismos, aquilo brota sem esforço de suas palavras, fazendo com que a gente leia as 100 páginas do livrinho numa sentada e que acabe sublinhando um monte de coisas “que seriam boas de lembrar”. Foi o que fiz.

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