30 anos sem a bela, rebelde e perfeccionista Ingrid Bergman

Publicado em 2 de setembro de 2012 no Sul21

Ingrid Bergman em Notorious (1946).

Ingrid Bergman nasceu e faleceu na data de 29 de agosto, tendo vivido entre os anos de 1915 e 1982. A última quarta-feira foi o dia dos 30 anos de sua morte. Seu rosto de impressionante beleza era o cartão de apresentação de uma mulher de muitos predicados além dos visíveis: talentosa, perfeccionista, inteligente, rebelde. Teve quatro filhos, protagonizou várias peças de teatro, estrelou uma relação de filmes europeus e norte-americanos difíceis de bater em quantidade e qualidade, além de colecionar um bom número de escândalos complicados de serem engolidos pela moral da época. Alfred Hitchcock a admirava tanto quanto costumava criticá-la. “É apenas um filme, Ingrid”, era a resposta que dava à extrema dedicação de Ingrid para encarnar seus personagens. “Ingrid, você está totalmente equivocada”, dizia-lhe quando ela sonhava em fazer filmes imortais e de personagens históricos como Joana d`Arc (bem, ele avisou…): “Se quiseres ser lembrada como grande atriz, faça filmes bons e baratos”, acrescentava a seu favor, um tanto desonestamente.

Com Alfred Hitchcock, em Sob o Signo de Capricórnio

Pois Bergman foi uma explosiva mistura de ambição artística e inconformismo. Foi uma atriz que não descuidou do teatro: levou ao palco, mais de uma vez, peças de Strindberg, Ibsen, Turguenev, Shaw e O`Neil. Para a televisão, atuou em textos de Henry James e Cocteau. No cinema, quando chegou a Hollywood, após o sucesso no cinema sueco, ela empilhou uma virtualmente irrepetível sequência de onze bem sucedidos filmes que fazem parte da história do cinema norte-americano:

Com Humphrey Bogart, em Casablanca

1939 – Intermezzo, uma História de Amor (Intermezzo, a Love Story)
1941 – Os Quatro Filhos de Adão (Adam Had Four Sons)
1941 – O Médico e o Monstro (Dr. Jekyll and Mr. Hyde)
1941 – Fúria No Céu (Rage in Heaven)
1942 – Casablanca (Casablanca)
1943 – Por Quem os Sinos Dobram (For Whom the Bell Tolls)
1944 – À Meia-Luz (Gaslight)
1945 – Os Sinos de Santa Maria (The Bells of St. Mary’s)
1945 – Mulher Exótica (Saratoga Trunk)
1945 – Quando Fala o Coração (Spellbound)
1946 – Interlúdio (Notorious)

Dez grande sucessos, um Oscar por À Meia Luz, duas indicações ao prêmio, por Por Quem os Sinos DobramOs Sinos de Santa Maria e uma mega bilheteria, Casablanca.

Compreensivelmente, era a mais requisitada atriz do cinema norte-americano quando cometeu dois erros. O primeiro, previsto por Hitchcock, foi Joana D`Arc (1948), filmado quando era estrela de Alfred Hitchcock. Ela já fizera três de seus filmes — Quando fala o coração (1945), Interlúdio (1946) e Sob o signo de Capricórnio (1949) — e faria tantos quantos quisesse.

No ano seguinte, 1949, quando filmava com Roberto Rosselini, cometeu outro equívoco, este moral, segundo a opinião da época: o de aparecer grávida do diretor, mesmo sendo casada com o médico sueco Petter Lindström. Como Rosselini também era casado, a união causou enorme polêmica. Ambos abandonaram as respectivas famílias para viverem juntos. A filha do casal Lindström-Bergman, Pia, foi deixada com o pai.

Essa paixão fez com que Ingrid fosse acusada de adúltera e de mau exemplo para as mulheres americanas, o que a levou a ficar anos sem filmar nos Estados Unidos. O escândalo que hoje daria apenas algumas manchetes às revistas de fofocas teve o envolvimento de políticos. O influente senado Edwin Johnson, do Colorado, denunciou o comportamento de Ingrid como “um ataque contra a instituição do casamento” e descreveu-a como uma “poderosa influência do mal”. E Ingrid permaneceu alguns anos na Europa.

Ingrid Bergman em Stromboli

Quando a conheceu, Ingmar Bergman chamou Ingrid de anarquista. Foi dentro deste espírito que ela completou sua obra. Numa atitude de puro desafio, casou-se com Rosselini antes do divórcio com Lindström… O casamento com o italiano só foi declarado ilegal quando eles já não eram mais um casal. Além do casamento com Rosselini, Ingrid teve casos com Gary Cooper, Victor Fleming, Robert Capa, Yul Brynner e Anthony Quinn, o que a tornava um prato cheio para as revistas e mau exemplo de comportamento.

Só que bastava ver Ingrid atuando para imaginar o que ocorreria. Ela seria perdoada e, cinco anos depois, ela retornou aos EUA para fazer Anastácia, receber mais um Oscar e namorar Yul Brunner.

Os depoimentos a seu respeito são unânimes. Uma pessoa de grande inteligência e concentração, que deixava todos de alguma forma sob seu domínio. Diferentemente de outras atrizes contemporâneas suas, trabalhou continuamente e permaneceu bela mesmo depois dos 50 anos. Só decaiu com a doença. Antes de morrer, ela declarou que pensava que sua vida tinha sido muito boa. “Nunca tive medo de fazer o que queria e de me aventurar, sempre mantive um grande senso de humor e bem pouco bom senso. Tive uma vida rica”.

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Ingrid Bergman nasceu em Estocolmo, perdeu a mãe aos 3 anos e o pai aos 13, indo morar com uma tia solteira e depois com seus tios paternos. Aos 17, decidiu tornar-se atriz. Logo obteve uma ponta no filme sueco, Landskamp.  No ano seguinte, inscreveu-se no Teatro Real de Arte Dramática, mas, como sempre teve por objetivo o cinema, acabou não concluindo o curso.

Em 1935, trabalhou como atriz coadjuvante no filme Munkbrogreven.  No ano seguinte, recebeu a primeira oportunidade como protagonista de Intermezzo, também sueco. Após vê-la atuando neste filme, o produtor David O. Selznick mandou à Estocolmo um representante da Metro-Goldwyn-Mayer a fim de adquirir os direitos sobre a história e  contratá-la para um remake em Hollywood. Antes de viajar para a Califórnia, Ingrid cumpriu contratos que a obrigavam a mais cinco filmes suecos.

Em 1937, casou-se com o medico Petter Lindström, de quem teve sua primeira filha, Pia Lindström. Em maio de 1939, chegou aos Estados Unidos para fazer Intermezzo. O filme foi um sucesso, recebeu duas indicações ao Oscar e deu início à espetacular série de filmes americanos de Ingrid. Se sua beleza era indiscutível, logo ela mostraria uma versatilidade que a faria a preferida da maioria dos diretores.

Ingrid com as gêmeas Isotta e Isabella Rossellini

O início da 2ª Guerra Mundial fez com que ela e a família se fixassem nos EUA. Quando voltou à Europa para fazer Stromboli (1950) com o diretor italiano Roberto Rossellini houve o escandaloso adultério e a gravidez que já descrevemos. No mês da estréia do filme, nasceu Roberto. Em junho de 1952, ela deu à luz às gêmeas Isotta e Isabella Rossellini.

Entre 1951 e 1955, Bergman e Rosselini fizeram juntos alguns filmes que não foram bem recebidos por líderes religiosos, principalmente dos EUA. Alguns deles representavam grande novidade para a época, como o maravilhoso Siamo Donne, onde há um epísódio em que Ingrid Bergman tem por papel Ingrid Bergman, uma perfeita italiana a reclamar de uma galinha que destruía suas rosas.

Em 1956, Hollywood a chamou novamente. A volta foi triunfante à Hollywood com o filme Anastácia, a Princesa Esquecida, pelo qual recebeu o Oscar.

A partir de então, passou alternar temporadas na Europa e nos Estados Unidos. Logo após Anastácia, foi a França filmar As Estranhas Coisas de Paris (Elena et les hommes) com Jean Renoir. Voltou aos EUA para Indiscreta (Indiscreet), com Cary Grant, e seguiu em filmes menores até, em 1974, receber seu terceiro Oscar pela atuação em Assassinato no Expresso Oriente.

Em 1978, foi a atriz principal de Sonata de Outono, de Ingmar Bergman, seu melhor filme do ponto de vista artístico. Pouco tempo depois, descobriu os primeiros sintomas de um câncer de mama, sendo submetida a uma mastectomia.

O último papel de Ingrid foi na TV, na minissérie A woman called Golda, onde interpretava a primeira ministra de Israel Golda Meir. Já muito doente, com o câncer se espalhando pelo corpo, Ingrid morreu quatro meses após o fim das filmagens no dia de seu aniversário de 67 anos, após uma festa promovida por amigos.

Em Casablanca, olhando para Bogart

Retrocesso

Por Martín Kohan

Papa Francisco I e Máxima Zorreguieta com o príncipe Willem-Alexander (créditos: Josuecedeno e Holger Motzkau)

Entre nós, aqui na periferia, o moderno funciona quase sempre aos tropeços e um pouco à deriva. Nossas democracias têm sido muitas vezes descontínuas e imperfeitas. Somos oprimidos pela pobreza, pelas formas mais extremas de desigualdade. Mas pelo menos algumas taras não nos têm atormentado tanto, talvez por nos vermos eximidos da Idade Média: uma Argentina republicana e laica ganhou força especial por meio de grandes escritores que a imaginaram em meados do século XIX.

Neste sentido, o ano de 2013 nos desferiu dois duros golpes, contundentes e difíceis de assimilar: primeiro uma rainha argentina, como a que se apresenta para a coroação na Holanda; e agora, como se já não fosse o bastante, um papa argentino em Roma. As instituições mais retrógradas, com suas liturgias anacrônicas e sombrias, nos vigiam e nos deprimem, e talvez nos envergonhem.

via

A Acompanhadora, de Nina Berberova

Comprei este livro lá em 1989 — a edição é de 1988, da Nova Fronteira — e ele ficou na estante me esperando por todo esse tempo. Lamentável.

Peguei o livrinho de 69 páginas em razão de seu tema: o ódio, tão presente em O Anão, que comentei há poucos dias.

Sonetchka é uma pianista feia, sem graça e sem especial talento. Na União Soviética pós-revolucionária, ela encontra trabalho junto à cantora Maria Nikolaevna Travina, que se torna sua protetora. E passa a viver muito bem, com casa, comida e dinheiro. E a odiá-la por comparação. Enquanto a cantora é brilhante e brilha, ela é apagada e opaca. Para piorar, é filha ilegítima, fato condenável na sociedade pré e pós revolucionária. Viver sob a luz ofuscante da outra é-lhe insuportável. Juntas, partem para o exílio e, tanto mais a pianista depende da cantora e se afasta da família na URSS e da mãe, mais a odeia. O ciúme nunca é racionalizado, mas vinganças são planejadas. O vou-acabar-com-ela é o tom da novela. O que há de excepcional no romance é o vazio de Sonetchka, patético exemplo de pobreza intelectual.

Nina Berberova nasceu em 1901, exilou-se na França em 1925 e foi para os EUA em 1950. Foi descoberta apenas nos anos 80 como se fosse um novo Nabokov. Não é. A acompanhadora é apenas um bom passatempo.

O novo Papa e a ditadura militar argentina

Algumas matérias encontradas que vinculam o cardeal Bergoglio aos militares, a sequestros..:

Aqui.

O cardeal Bergoglio e os trinta anos do golpe na Argentina

12/5/2006

Eis de novo em evidência a Igreja católica da Argentina, uma das mais conservadoras, senão reacionária da América Latina e cuja cumplicidade durante os atrozes anos da ditadura militar, entre 1976 e 1983, escandalizaram o mundo.

Quem traz para a superfície a memória daquele período nefasto, cravejado de 30 mil desaparecidos, é Horácio Verbitski, jornalista e escritor argentino que foi nestes 22 anos de democracia um dos mais próximos companheiros das Mães da Praça de Maio.

Agora, com Kirchner, o vento mudou e são disse Verbitski “ao menos 200 os militares na prisão” e 1.400 as causas judiciárias pela violação dos direitos humanos. A notícia é do Il Manifesto, 10-5-06.

Segundo o Il Manifesto, Verbitski é autor de quinze livros, entre eles O Vôo que relata o testemunho do capitão da marinha Adolfo Scilingo sobre os vôos da morte, nos quais detentos vivos eram jogados dos aviões no Rio da Prata.

Agora, Verbitski – afirma o jornal italiano – lança na Itália o seu livro A Ilha do Silêncio no qual desenvolve uma implacável acusação contra o papel da Igreja na ditadura argentina.

Em A Ilha do Silêncio, que se lê como um romance de fato e atroz, diz o Il Manifesto, comparecem todos os nomes notáveis da Igreja na Argentina, os cardeais Caggiano, Aramburo e Pimatesta, os bispos e vigários castrenses Tortolo, Bonamin e Grasseli, e o habitual núncio Pio Laghi. Mas também o nome do atual cardeal Jorge Mario Bergoglio, arcebispo de Buenos Aires, que poderia ter se tornado o primeiro papa latino-americano no conclave após a morte de Wojtyla, vencido por Ratzinger.

De acordo com Il Manifesto, “uma vitória do jesuíta Bergoglio teria sido uma desgraça não menor daquela do pastor alemão”. E Verbitski, segundo o jornal, explica e documenta o porque.

Esclarecedor e demolidor, em particular, é o acontecimento dos dois padres jesuítas, Orlando Yorio e Francisco Jalics, que fizeram o erro de trabalhar nas favelas de Buenos Aires e por isto foram traídos e entregues aos militares por Bergoglio (que obviamente nega), diz o jornal a partir de relatos do jornalista.

Verbitski contou estes fatos na Universidade de Roma, apresentando o livro, acompanhado pelo vice-reitor Maria Rosalba Stabili e pelo professor Cláudio Tognonato. Eles três e outros inumeráveis participantes falarão hoje e amanhã da “Argentina; trinta anos do golpe. O Exílio na Itália” destaca o Il Manifesto.

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Bergoglio – Novos testemunhos sobre Bergoglio e a ditadura argentina

O papel do agora cardeal Bergoglio, da Argentina, no desaparecimento de sacerdotes e o apoio à repressão ditatorial é confirmado por cinco novos testemunhos. Falam um sacerdote e um ex-sacerdote, uma teóloga, um integrante de uma fraternidade leiga que denunciou noVaticano o que acontecia na Argentina em 1976 e um leigo que foi sequestrado junto com dois sacerdotes que não reapareceram.

A reportagem é de Horacio Verbitsky, publicada no jornal Página/1218-04-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Cinco novos testemunhos, oferecidos de forma espontânea a partir da notícia “Seu passado o condena”, confirmam o papel do agora cardeal Jorge Bergoglio na repressão do governo militar sobre as fileiras da Igreja Católica que ele hoje preside, incluindo o desaparecimento de sacerdotes. As testemunhas são uma teóloga que durante décadas deu catequese em colégios do bispado de Morón, o ex-superior de uma fraternidade sacerdotal que foi dizimada pelos desaparecimentos forçados, um integrante da mesma fraternidade que denunciou os casos ao Vaticano, um sacerdote e um leigo que foram sequestrados e torturados.

Teóloga de minissaia

Dois meses depois do golpe militar de 1976, o bispo de MorónMiguel Raspanti, tentou proteger os sacerdotes Orlando Yorio e Francisco Jalics porque temia que fossem sequestrados, mas Bergoglio se opôs. Assim indica a ex-professora de catequese em colégios da diocese de Morón, Marina Rubino, que nessa época estudava teologia no Colégio Máximo de San Miguel, onde Bergoglio vivia. Por essa circunstância, ela conhecia a ambos. Além disso, ela havia sido aluna de Yorio e Jalics e sabia do risco que eles corriam. Marina decidiu dar seu testemunho depois de ler a nota sobre o livro de descargo de Bergoglio.

Marina Rubino vive em Morón desde sempre. No Colégio do Sagrado Coração de Castelar, ela dava catequese às crianças e formava os pais, o que lhe parecia mais importante. “Uma vez por mês, nos reuníamos com eles. Era um trabalho muito bonito. Essa experiência durou 15 anos”. Também deu cursos de iniciação bíblica “em todos os lugares não turísticos da Argentina. Tínhamos uma publicação, com comentários aos textos dos domingos. Queríamos que as comunidades tivessem elementos para pensar”. Desde que se aposentou, dá aulas de tecelagem em centros culturais, sociedades de fomento ou em casas.

Ela não quis ingressar no seminário de Villa Devoto porque não lhe interessava a formação tomista, mas sim a Bíblia. Em 1972, começou a estudar teologia na Universidad del Salvador. A carreira era cursada no Colégio Máximo de San Miguel. No primeiro ano, teve como professor Francisco Jalics e, no segundo, Orlando Yorio. Enquanto estudava, coordenava a catequese no colégio Sagrado Coração de Castelar, onde também estava a religiosa francesa Léonie Duquet. “Eram tempos difíceis. Por fazer no colégio uma opção pelos pobres levando a sério oConcílio Vaticano II e a reunião do Celam de Medellín, perdemos a metade dos alunos. Mas mantivemos essa opção e continuamos formando pessoas mais abertas à realidade e ao compromisso com os mais necessitados, defendendo que a fé tem que fortalecer essas atitudes, e não as contrárias”.

O bispo era Miguel Raspanti, que então tinha 68 anos e havia sido ordenado em 1957, nos últimos anos do reinado de Pio XII. Era um homem bem intencionado que fez todos os esforços para se adaptar às mudanças do Concílio, do qual participou. Depois do “cordobazo” de 1969, repudiou as estruturas injustas do capitalismo e estimulou o compromisso com a “libertação de nossos irmãos necessitados”. Mas o problema mais grave que ele pôde identificar em Morón foi o aumento dos impostos sobre o pequeno comerciante e o proprietário da classe média. “Muitas vezes, foi preciso discutir e defender essas opções no bispado, e Dom Raspanti costumava terminar as entrevistas dizendo-nos que, se acreditávamos que era preciso fazer esta ou aquela coisa, se estávamos convencidos, ele nos apoiava”, lembra Marina. Suas palavras são acompanhadas com atenção por seu esposo, Pepe Godino, um ex-padre de Santa María, Córdoba, que integrou o Movimento de Sacerdotes para o Terceiro Mundo.

Marina cursava teologia em San Miguel das 8h30min às 12h30min. Não haviam lhe dado a bolsa, porque era mulher, mas, como era a coordenadora de catequese em um colégio do bispado, Raspanti intercedeu e obteve que uma entidade alemã se encarregasse dos custos dos seus estudos. Também não quiseram lhe dar o título quando se formou em 1977. O diretor da teologia,José Luis Lazzarini, lhe disse que havia um problema, que não haviam se dado conta de que ela era mulher. Marina partiu em busca de quem a havia recebido ao ingressar, o jesuíta Víctor Marangoni:

– Quando você me viu pela primeira vez, você se deu conta de que eu era mulher ou não?

– Sim, claro, por quê? – respondeu atordoado o vice-reitor diante dessa forte mulher de minissaia.

– Porque Lazzarini não quer me dar o título.

Marangoni se encarregou de reparar essa absurdo. Marina tem seu título, mas a entrega oficial nunca ocorreu.

A desproteção

Em um meio-dia, ao sair de seus cursos, “encontrei Dom Raspanti de pé no hall da entrada, sozinho. Não sei por que o mantinham ali esperando. Estava muito silencioso. Perguntei se estava esperando por alguém, e ele me disse que sim, o padre provincial Bergoglio. Tinha o rosto desfigurado, pálido, acreditei que estava mal de saúde. Cumprimentei-o, perguntei se ele se sentia bem e o convidei a passar para uma salinha que havia no hall”.

– Não, não me sinto mal, mas estou preocupado – respondeu Raspanti.

Marina diz que tem uma memória fotográfica daquele dia. Ela fala com voz calma, mas se percebe o apaixonamento em seus olhos grandes e expressivos. Pepe a olha com ternura.

“Me impressionou ver Raspanti sozinho, ele que sempre ia com o seu secretário”, diz. Marina sabia que seus professores Jalics e Yorio e um terceiro jesuíta que trabalhava com ela no colégio de Castelar, Luis Dourron, haviam pedido para passar para a diocese de Morón. Yorio, Jalics, Dourron e Enrique Rastellini, que também era jesuíta, viviam em comunidade desde 1970, primeiro em Ituzaingó e depois no Barrio Rivadavia, junto à Gran Villa do Bajo Flores, com conhecimento e aprovação dos sucessivos provinciais da Companhia de JesusRicardo Dick O’Farrell e Bergoglio.

“Eu lhe disse que Orlando e Francisco haviam sido meus professores e que Luis trabalhava conosco na diocese, que eram irrepreensíveis, que não duvidasse em recebê-los. Todos estávamos inclinados para que pudessem vir para Morón. Nenhum dos que conheciam a situação se opunha. Raspanti me disse que era sobre isso que vinha falar com Bergoglio. Já havia recebido Luis, mas precisava de uma carta na qual Bergoglio autorizasse a passagem de Yorio e Jalics”.

Marina entendeu que era uma simples formalidade, mas Raspanti lhe esclareceu que a situação era mais complicada. “Com as más referências que Bergoglio havia mandado, ele não podia recebê-los na diocese. Estava muito angustiado porque, nesse momento, Orlando e Francisco não dependiam de nenhuma autoridade eclesiástica e me disse:

– Não posso deixar dois sacerdotes nessa situação, nem posso recebê-los com o relatório que ele me mandou. Venho para lhe pedir que simplesmente os autorize e que retire esse relatório que dizia coisas muito graves.

Qualquer um que ajudasse a pensar era guerrilheiro, comenta Marina. Acompanhou seu bispo até que Bergoglio o recebeu e depois foi embora. Ao sair, viu que o carro de Raspanti também não estava no estacionamento. “Deve ter vindo de ônibus, para que ninguém o seguisse. Queria que a coisa ficasse entre eles dois. Estava fazendo o impossível para dar-lhes proteção”.

A teóloga acrescenta que a angústia de Raspanti lhe impressionou, porque, “mesmo que ele não pudesse ser qualificado de bispo progressista, sempre nos defendeu, defendeu os padres questionados da diocese, levava a dormir na casa episcopal aqueles que corriam mais risco e nunca nos proibiu de fazer ou dizer algo que considerássemos fruto do nosso compromisso cristão. Como bom salesiano, se comportava como uma galinha choca com seus padres e seus leigos, abrigava, cuidava, mesmo que não estivesse de acordo. Eram pontos de vista diferentes, mas ele sabia escutar e aceitava muitas coisas”.

Um desses padres é Luis Piguillem, que havia sido ameaçado. Ele voltava de bicicleta quando se topou com uma barreira policial que impedia a passagem. Insistiu que queria passar, porque sua casa ficava no bairro, e um policial lhe disse:

– Você vai ter que esperar porque estamos fazendo uma operação na casa do padre.

Piguillem deu meia volta com sua bicicleta e se afastou sem olhar para trás. Dali, foi para o bispado de Morón, onde Raspanti lhe deu refúgio. Os militares disseram que ele havia se escondido debaixo das saias do bispo. Mas não se atreveram a ir buscá-lo ali.

– Raspanti era consciente do risco que Yorio e Jalics corriam?

– Sim. Disse que tinha medo de que desaparecessem. Dois sacerdotes não podem ficar no ar, sem um responsável hierárquico. Poucos dias depois, soubemos que eles os haviam levado.

De Córdoba a Cleveland

Outro testemunho recolhido a partir da publicação do domingo é o do sacerdote Alejandro Dausa, que, na terça-feira 03 de agosto de 1976, foi sequestrado em Córdoba, quando era seminarista da Ordem dos Missionários de Nossa Senhora de La Salette. Depois de seis meses nos quais foi torturado pela polícia cordobesa no Departamento de Inteligência D2, ele pôde viajar para os Estados Unidos, aonde o responsável do seminário já havia chegado, o sacerdote norte-americano James Weeks, por quem o governo de seu país se interessou. Neste ano, irá se realizar em Córdoba o julgamento daquele episódio, cujo principal responsável é o general Luciano Menéndez. Agora, Dausa vive na Bolívia e conta que tanto

Ao chegar aos EUA, soube por órgãos de direitos humanos que Jalics se encontrava em Cleveland, na casa de uma irmã. Dausa e os outros seminaristas, que estavam iniciando o noviciado, convidaram-lhe para dirigir dois retiros espirituais. Ambos foram realizados em 1977, um em Altamont (Estado de Nova York) e outro em Ipswich (Massachusetts). Dausa lembra: “Como é natural, conversamos sobre os sequestros respectivos, detalhes características, antecedentes, sinais prévios, pessoas envolvidas etc. Nessas conversas, ele nos indicou que Bergoglio os havia entregue e denunciado”.

Na década seguinte, Dausa trabalhava como padre na Bolívia e participava dos retiros anuais da La Salette na Argentina. Em um deles, os organizadores convidaram Orlando Yorio, que nessa época trabalhava em Quilmes. “O retiro foi em Carlos PazCórdoba, e também nesse caso conversamos sobre a experiência do sequestro. Orlando indicou o mesmo que Jalics sobre a responsabilidade de Bergoglio”.

Os assuncionistas

Yorio e Jalics foram sequestrados no dia 23 de maio de 1976 e conduzidos à Esma [Escola de Mecânica da Armada], onde um especialista em assuntos eclesiásticos que conhecia a obra teológica de Yorio lhes interrogou. Em um dos interrogatórios, perguntou-lhe sobre os seminaristas assuncionistas Carlos Antonio Di Pietro e Raúl Eduardo Rodríguez. Ambos eram colegas de Marina Rubino no curso de teologia de San Miguel e desenvolviam trabalhos sociais no bairro popular La Manuelita, de San Miguel, onde viviam e atendiam à capela Jesus Operário. Dali, foram sequestrados dez dias depois que os dois jesuítas, no dia 04 de junho de 1976, e levados para a mesma casa operativa que Yorio e Jalics. Na metade da manhã, Di Pietro telefonou para o superior assuncionista Roberto Favre e lhe perguntou pelo sacerdote Jorge Adur, que vivia com eles em La Manuelita.

– Recebemos um telegrama para ele e temos que lhe entregar – disse.

Desse modo, conseguiu que a Ordem se pusesse em movimento. O superior Roberto Favreapresentou um recurso de habeas corpus, que não obteve resposta. Adur conseguiu sair do país, com a ajuda do núncio Pio Laghi, e se exilou na França. Voltou de forma clandestina em 1980, convertido em capelão do autodenominado “Exército Montonero” e foi preso-desaparecido no trajeto para o Brasil, onde procurava se encontrar com o Papa João Paulo II.

O mesmo caminho do exílio foi seguido por um dos detidos na batida policial do bairro La Manuelita, o então estudante de medicina e hoje médico Lorenzo Riquelme. Quando recuperou sua liberdade, a Fraternidade dos Irmãozinhos do Evangelho lhe deu hospitalidade em sua casa portenha da rua Malabia. Em comunicações desde a França com quem era então o superior dos Irmãozinhos do Evangelho, Patrick Rice, Riquelme disse que quem o denunciou foi um jesuíta do Colégio de San Miguel, que era por sua vez capelão do Exército. Ele está convencido de que esse sacerdote presenciou as torturas que lhe foram aplicadas, em Campo de Mayo, acredita ele.

O amolecedor

Também em consequência da notícia do domingo, um fundador da fraternidade leiga dosIrmãozinhos do Evangelho Charles de FoucauldRoberto Scordato, aceitou narrar seu conhecimento do caso. Entre o fim de outubro e o começo de novembro de 1976, Scordato se reuniu em Roma com o cardeal Eduardo Pironio, que era prefeito da Congregação para os Religiosos do Vaticano, e lhe comunicou o nome e o sobrenome de um sacerdote da comunidade jesuíta de San Miguel que participava das sessões de tortura em Campo de Mayocom o papel de “amolecer espiritualmente” os detidos.

Scordato pediu-lhe que transmitisse ao superior geral Pedro Arrupe, mas ignora o resultado de sua gestão, se é que teve algum. Consultado para esta nota, Rice, que também foi sequestrado e torturado nesse ano, disse que isso não teria sido possível sem a aprovação do padre provincial. Rice e Scordato acreditam que esse jesuíta tinha o sobrenome González, mas, a 34 anos de distância, não lembra com certeza.

Fúria

Como todas as vezes em que seu passado o alcança, Bergoglio atribui a divulgação de seus atos ao governo nacional. Nesta semana, ele reagiu com fúria durante a homilia que pronunciou em uma missa para estudantes. Naquilo que seu porta-voz descreveu como “uma mensagem para o poder político”, ele disse que “não temos direitos a mudar a identidade e a orientação da Pátria”, mas sim a “projetá-la para o futuro em uma utopia que seja continuidade com aquilo que nos foi dado”, que os jovens não têm outro horizonte do que comprar drogas e que os dirigentes procuram ascender, aumentar o caixa e promover os amigos.

Com esse ânimo irascível, ele inaugurará em San Miguel a primeira assembleia plenária do Episcopado de 2010.

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Aqui.

Os conservadores argentinos sonham com um papa próprio

Como em 2005, quando Ratzinger foi eleito, os conservadores argentinos voltam a sonhar em ter um homem seu no Vaticano: o cardeal Jorge Bergoglio. Mas o papel desempenhado pela Igreja argentina e pelo cardeal na ditadura militar (1976-1983) torna quase impossível a escolha de um personagem com semelhante currículo.

Oscar Guisoni

Data: 13/02/2013

Buenos Aires – “Quando João Paulo II morreu todos nos iludimos com a possibilidade de que nosso cardeal Bergoglio assumisse como papa. Mas não aconteceu. Oxalá desta vez ocorra”, exclama sem ruborizar uma conhecida jornalista local em uma das tantas transmissões improvisadas da televisão argentina surpreendida, como o resto do mundo, com a renúncia de Bento XVI. “Deus não o permita”, responde o colunista Fernando D’Addario, no Página/12.

Como ocorreu em 2005, quando foi eleito o Papa Joseph Ratzinger, os conservadores e ultramontanos argentinos voltam a se iludir com a possibilidade de colocar seu homem no Vaticano: o cardeal Jorge Bergoglio. Mas o papel desempenhado pela Igreja argentina e pelo citado cardeal em particular durante a última ditadura militar (1976-1983) torna quase impossível que o Vaticano opte por habilitar com a “fumaça branca” um personagem com semelhante currículo. Salvo que “assim como nos anos 80 escolheram Karol Wojtyla para canalizar religiosamente a luta do povo polonês (isto é, a do mundo ocidental e cristão) contra o totalitarismo soviético”, sustenta D’Addario com acidez, “agora escolham um papa argentino para salvar-nos do populismo gay e favorável ao aborto que se expande como uma peste por estes pampas”.

A polêmica, que em apenas algumas horas voltou a impregnar grande parte da imprensa argentina, trouxe à tona de novo a triste memória do papel desempenhado pela Igreja local durante a última ditadura militar e suas implicações no presente. Assim, enquanto o setor mais conservador e católico da classe média local volta a sonhar em ter seu próprio Papa, os organismos de Direitos Humanos e as associações que agrupam os familiares dos 30 mil detidos desaparecidos na última ditadora recordam que a Igreja não só colocou uma venda nos olhos diante da matança organizada pelo Estado, como se fez de distraída inclusive frente o assassinato de seus próprios sacerdotes, comprometidos com a “opção pelos pobres’ e com a Teologia da Libertação que havia iluminado o Concílio Vaticano II.

Uma prova da atualidade da polêmica é a recente decisão judicial do tribunal que julgou na província de La Rioja o assassinato dos padres Carlos de Dios Murias e Gabriel Longueville, ligados ao também assassinado bispo Enrique Angelelli, uma das figuras emblemáticas da “Igreja comprometida” dos anos setenta na Argentina. Nesta sentença inédita anunciada na semana passada fala-se pela primeira vez da “cumplicidade” da Igreja Católica local com os crimes cometidos pelos militares, ao mesmo tempo em que se assinala a “indiferença” e a “conivência da hierarquia eclesiástica com o aparato repressivo” dirigido contra os sacerdotes terceiro-mundistas. Chama a atenção, diz ainda a sentença, que “ainda hoje persiste uma atitude resistência por parte de autoridades eclesiásticas e de membros do clero ao esclarecimento dos crimes”.

Como ocorreu em 2005, enquanto por trás dos muros do Vaticano se escolhia o sucessor de João Paulo II, a discussão pública leva os argentinos a olhar para sua própria Igreja no espelho que mais os envergonha: do outro lado da Cordilheira, a Igreja Católica tem outra cara para mostrar, já que sua atitude frente à ditadura de Augusto Pinochet foi exatamente a oposta à adotada pela hierarquia argentina. A polêmica transcende rapidamente o âmbito religioso e se instala no cenário político cada vez mais radicalizado, que encontra os partidários da política de Direitos Humanos promovida pelo governo kirchnerista no caminho oposto ao dos conservadores que desejam encerrar os julgamentos contra os responsáveis pelos crimes contra a humanidade executados pela ditadura antes que os processos comecem a bater às portas dos cúmplices civis do regime, o que já começou a acontecer.

Enquanto isso, o candidato em questão, o atual arcebispo de Buenos Aires, Jorge Bergoglio, sonha em alcançar um papado impossível. Nascido em 1936 e presidente da Conferência Episcopal durante dois períodos (cargo que abandonou recentemente por doenças da idade), é difícil que o Vaticano se arrisque a colocar no trono de Pedro um homem citado em vários processos judiciais por sua cumplicidade com a ditadura e que conseguiu evitar seu próprio julgamento por contra de influências e argúcias de advogados. Nada disso impede, porém, os ultramontanos argentinos de sonhar com a possibilidade de ter um Papa em Roma que os ajude a acabar de uma vez por todas com um governo que consideram o pior inimigo da Igreja Católica desde que o presidente Juan Domingo Perón enfrentou-se de forma virulenta (incluindo a queima de algumas igrejas) com a hierarquia católica no final de seu governo em 1955.

Tradução: Katarina Peixoto

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Aqui.

Cardeal Bergoglio denunciado na Argentina por seqüestros durante a ditadura

BUENOS AIRES, 15 Abr (AFP) – O cardeal argentino Jorge Bergoglio, um dos candidatos à sucessão e que participará do Conclave no Vaticano, foi denunciado nesta sexta-feira na Justiça por supostas ligações com o seqüestro de dois missionários jesuítas em 23 de maio de 1976, durante a ditadura, segundo uma fonte judicial do Palácio de Tribunais.
A denúncia foi apresentada pelo advogado e dirigente de organizações defensoras dos direitos humanos Marcelo Parrilli, que pediu ao juiz Norberto Oyarbide que investigue a atuação do cardeal quando um comando da marinha de guerra seqüestrou e fez ‘desaparecer’, durante cinco meses, os dois religiosos.

As vítimas eram Orlando Virgilio Yorio e Francisco Jalics, companheiros de Bergoglio na Companhia de Jesus, cuja congregação fazia trabalhos de ajuda social numa localidade do bairro de Bajo Flores.

Parrilli, segundo a denúncia à qual teve acesso a AFP, se baseou em artigos jornalísticos e no livro ‘Igreja e Ditadura’, escrito por Emilio Mignone, fundador do Centro de Estudos Legais e Sociais (CELS).

A Ospa e o Grêmio

Para mim foi surpreendente; afinal, o Teatro do Sesi estava quase cheio. Havia um jogo pela Libertadores — o divertido Caracas 2 x 1 Grêmio — e, como se não bastasse, tinha o show Thick as a Brick, do Jethro Tull, no Araújo Vianna. Mas o pessoal deslocou-se até o “interior” para chegar ao Sesi e ver o concerto inaugural de 2013. Era uma cortina lírica com aberturas, árias e cenas de Giuseppe Verdi e Richard Wagner. Em 2013, ambos completam 200 anos de nascimento e devem ser figurinhas fáceis antes do ano da Copa.

Não tenho muito a dizer sobre o concerto, não sou afeiçoado ao gênero, porém é absolutamente obrigatório citar o espetacular tenor Martin Muehle. Trata-se de um cantor que não apenas é excelente, mas que também está no auge. Mesmo na ‘Cena 3 do primeiro ato da ópera “Die Walküre”’ — uma longa cena que consiste em aproximadamente 15 minutos de clímax, algo que no início é parecido com o sexo tântrico mas que logo dá sono — , o cara deu um banho. Perto do final da cena, olhei para o lado esquerdo, uma pessoa dormia; olhei para o outro lado, duas. O Martin não merecia Wagner. Será que em Bayreuth é também assim?

Eu estava sentado na poltrona A13 / 9.

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Em Caracas, falava-se em outra poltrona…

Quando saí do Concerto e liguei o celular, o Dario Bestetti já estava em chamas, mandando torpedos de “Chávez Vive!”. Logo vi que algo muito legal estava rolando em Caracas. Liguei pra ele e soube que Cris era o Bolívar careca. Caraca, vi os gols agora! A definição é mais do que exata. Claro, não assisti o jogo e tenho convicção de que o Grêmio irá se classificar em primeiro lugar em seu grupo — o Flu está muito mal e o Grêmio poderia vender saldo gols e ainda assim permanecer em vantagem — , mas perder pontos é sempre legal. O porteiro do prédio do Sul21 não me recebeu com o olho tapado em referência ao pirata Barcos, prova de que o golpe deixou-o abalado. Não lhe disse nada. Nem precisava. Todo mundo sabe da derrota e da faixa.

Se o novo Papa for brasileiro, pretendo me mudar para o Butão

Acho que não vou aguentar a onda de conservadorismo. Hoje, sonhei com a capa da Veja que comemorava o papado tropical. Pesadelo. Elejam um estadunidense, por favor. Lá, não fará muita diferença. Dizem que o Butão é o país da felicidade, não? Bem, ao menos não tem a Globo nem a Veja, o que já são belos passos.

El Fútbol a Sol y Sombra, de Eduardo Galeano

Uma de muitas observações sobre o futebol:

Por mais que os tecnocratas o programem até o mínimo detalhe, por muito que os poderosos o manipulem, o futebol continua querendo ser a arte do imprevisto. De onde menos se espera salta o impossível, o anão dá uma lição ao gigante, e o negro mirrado e cambaio faz de bobo o atleta esculpido na Grécia.

Sobre Obdulio Varela, após o Maracanazo:

Ao final do jogo da Copa de 1950, ao ser abordado por jornalistas, respondeu: “Foi casualidade”. À noite, foi beber cerveja com brasileiros, abraçados aos vencidos, sem se identificar.

Sobre Didi:

Didi jogava quieto. Mostrando a bola dizia: — Quem corre é ela.

De Eduardo Galeano, em El Fútbol a Sol e Sombra

Ganhei do meu filho o pequeno volume ao lado da Siglo Veintiuno Editores. Nunca pensei que me divertiria tanto. Futebol ao Sol e à Sombra — lançado no Brasil pela L&PM — não é apenas um livro sobre futebol, é uma autêntica demonstração do amor e da rica vivência de um grande intelectual com o esporte, mas… Também não é apenas isso, no fundo é uma maravilhosa coleção de textos laudatórios e elegíacos ao futebol. Quem, como eu, gosta de destacar frases especiais dos textos que lê, vai encher o saco de tanto sublinhar.  Parece que Galeano não cansa de criar frases perfeitas.

O livro é feito de crônicas que abarcam o futebol desde a pré-história na China, passando por sua consolidação da Inglaterra, sua vinda para a América do Sul e para o mundo, até a Copa de 1994. Trata dos grandes craques e dos fracassados, do grandes vencedores e dos derrotados, da pureza de um Garrincha à corrupção de Havelange e Blatter. Tudo de uma forma tão inteligente que vai ser difícil seguir lendo alguns colunistas que andam por aí. Galeano, é claro, não fica apenas no futebol, mas o projeta e o expande para todos os lados. Verdadeira aula prática sobre o gênero da crônica, este livro de 1995 é obrigatório até para quem detesta o jogo.

Dunga é um técnico de futebol

Dunga, eu queria te sugerir uma coisinha…

Depois do amadorismo e da acomodação, representados por Falcão, Fernandão e Dorival Junior, Luigi acabou acertando. Acertou sem querer, pois Dunga era tudo que nosso presidente entendido em futebol não desejava. Luigi aspirava continuar no cargo de presidente-palpiteiro, mas o péssimo resultado nas eleições do Conselho fez-lhe dar alguns passos atrás. Ontem, nas entrevistas após a partida, notei certo BANZO e inveja em Luigi. Acho que nosso Giovanni Luigi Calvário está louco para mexer no time e não se enganem: se Dunga pestanejar, voa.

Mas tudo o que não tem feito é pestanejar. Dunga não apenas diz o que pretende como consegue demonstrá-lo depois. Queria saídas rápidas para o ataque, queria que a defesa parasse com os chutões, queria marcação, jogadas ensaiadas e controle da bola alta. Disse tudo isso e depois demonstrou em campo. Esta é uma rara qualidade. Afinal, identificar o problema, eu, o Falcão e monte de gente identifica. O complicado é ir ao campo e inventar treinamentos que deem ao time o que lhe falta. E aí está o trabalho de Dunga, técnico de futebol.

O campeonato é o gaúcho, competição fácil e crepuscular do futebol mundial, mas nós sabemos que, quando a coisa não está ajustada, aqui e ali alguns jogos são vencidos com dificuldades e dor. Às vezes também se empata ou perde. Porém o time de Dunga, apesar de ele se escabelar na casamata como se estivesse 0 x 5, já vai fazendo seus gols no primeiro tempo e vence os jogos sem nenhum estresse. E não toma gols mesmo relaxando um pouco no segundo tempo. Ou seja, faz o que deveria fazer com extrema naturalidade.

Juan acertou a defesa; com ele, Moledo adquiriu segurança e não estranhem se acabar morrendo abraçado com Felipão em 2014. Gabriel e Fabrício vão muito bem, obrigado. Nossos volantes têm apresentado mais argumentos do que cometido faltas; a prova disso está no número de cartões. Na armação estão Fred, que erra muitos passes mas se esforça como um louco, e D`Alessandro, o único que é afagado publicamente pelo técnico. Aí está mais qualidade de Dunga: a de ter identificado o argentino como um caráter mimado, que deve ser elogiado até quando erra. Se D`Alessandro precisa ser amado, então amemo-lo! D`Alessandro, tu és o melhor armador que vi jogar desde Maradona…

No ataque, Forlán só me apaixona quando chuta, mas bastou Rafael Moura recuperar-se de sua cirurgia e fazer três gols num jogo-treino para Damião acordar. Se D`Alessandro precisa de carinho oral, Damião precisa de alguém que lhe chegue por trás, tipo avalanche. Acho compreensível que ele passe a jogar melhor; afinal, o apelido do cara é HE-Man. E tudo isso só possível porque, durante a semana, Dunga treina seus jogadores de forma consistente, bem diferente daquele Dorival que ficava à beira do gramado, treinando a diretoria que o amava.

Ah, junto a Dunga há o preparador físico Paulo Paixão, um sujeito que costuma fazer seus times voarem em campo. Então, não obstante Luigi, nosso vestiário é profissional.

Luigi, deixe os caras trabalharem, por favor. Preocupe-se com o Beira-Rio, com a contabilidade, faça um curso de dicção, mas fique longe do vestiário!

Julio Cortázar: o incrível escritor que encolheu

Publicado em 28 de agosto de 2012 no Sul21

Cena de “O Incrível Homem que Encolheu” (1957), filme B de Jack Arnold

Até meados da década de 80, Julio Cortázar (26 de agosto de 1914 – Paris, 12 de fevereiro de 1984), um gigante de quase dois metros de altura, era um escritor lido no mundo inteiro, era quase popular. O tempo e a reavaliação por parte da crítica e dos leitores, tratou de afastá-lo do lugar que ocupava naquela época, mas ainda é um escritor respeitado, principalmente em nosso país. Já fora do Brasil, principalmente na Argentina, Cortázar foi desconstruído primeiramente pela crítica, que jogou seu ácido sobre vários pedaços da ficção do autor, e depois passou a um segundo plano no gosto dos leitores. Hoje, é personagem secundário nas livrarias de Buenos Aires e Montevidéu, fato que não ocorreu com a maioria de seus pares.

Tal recuo não chegou a ser fatal para a memória do escritor, apesar da agressividade de alguns críticos hispano-americanos, mas o retirou da posição de escritor vanguardista para recolocá-lo mais atrás, num posto de autor de alguns grandes livros. O encolhimento de Cortázar deu-se principalmente no âmbito de que ele deixou de ser considerado um escritor revolucionário para acomodar-se numa poltrona mais conformista do ponto de vista estético. A internacionalmente respeitada Beatriz Sarlo foi uma das ensaístas que desmistificou a obra-magna de Cortázar, O Jogo da Amarelinha. Chamou-a de obra precocemente carcomida pelo tempo. Verdade. Sarlo diz que a possibilidade de ser lido em qualquer ordem de capítulos é um fato menor, até porque o sentido do livro não se altera se for adotada outra ordem, o que torna o expediente um acessório meramente pirotécnico.

Cortázar: autor popular apenas para uma ou duas gerações?

Cortázar está longe de ser um embuste, mas boa parte da obra do autor passou a ser considerada sob uma luz menos indulgente, na verdade sob a luz das repetições que afetariam seus romances e livros de contos escritos após de Todos os fogos o fogo. Com pouca margem de erro, pode-se projetar que o escritor argentino vá em futuro próximo fazer companhia a Hermann Hesse como autor de uma ou duas gerações.

Sue, a escolha francesa na época de Balzac. Quem entende?

As reavaliações artísticas não são novidade. Os contemporâneos de Balzac consideravam Eugène Sue o maior escritor francês de sua época. Quando comparamos os autores e ficamos sabemos que um dos principais intentos da vida de Balzac era o de desafiar a supremacia de Sue, passamos a desconfiar daquela contemporaneidade parisiense. O que pensavam? Sue é um escritor paupérrimo, certamente, mas sabia falar aos leitores europeus do século XIX. Balzac não está sozinho em sua luta contra a incompreensão da sociedade onde estava inserido. Quem era o maior compositor da época daquele que é hoje considerado o maior compositor de todos os tempos? Telemann. Sim, os contemporâneos de Bach não o reconheciam, mas amavam o hoje periférico Telemann. De alguma forma, Telemann, como Sue, sabiam o que o contexto onde estavam inseridos exigia. Não é pecado saber agradar a seus leitores imediatos.

Cortázar: Che Guevara como personagem

A “queda” de Cortázar — um escritor considerado vanguardista em sua época —  é um fenômeno. Ele não deve ser comparado a Sue em qualidade. Seu requinte formal, seu charme e suas histórias o colocaram na linha de frente dos ficcionistas mundiais de sua época. Basta dizer que seu conto A Autoestrada do Sul (de Todos os fogos o fogo) inspirou o filme Weekend (1967), de Jean-Luc Godard, e As Babas do Diabo (de As Armas Secretas)o clássico Blow-up (1966) de Michelangelo Antonioni. Ou seja, era um escritor que gozava de reconhecimento mundial. Na política, também era de vanguarda. Cortázar apoiou a revolução cubana, combateu as ditaduras argentinas, defendeu o Governo sandinista. Poucas vezes um escritor ousou entronizar um revolucionário como personagem de uma de suas narrativas como fez Cortázar com Che Guevara, o narrador asmático do conto Reunião, também de Todos os fogos o fogo.

Citamos três vezes Todos os fogos o fogo. Neste livro — que é uma espécie de súmula do Cortázar contista e é uma das últimas seleções de contos seus realmente boas — , já se nota sinais de repetição e cansaço. O clássico A Autoestrada do Sul, por exemplo, narra a história fantástica de um extraordinário engarrafamento numa rodovia que vai dar em Paris. Todos os carros parados. Por horas, dias, semanas, muda a estação e eles ali. Os gregos inventaram a “hipérbole”, que é a intensificação de um fato até o inconcebível, um superexagero que transforma os fatos em outra coisa. Os carros passam um ano inteiro parados na estrada. São criadas novas relações, um novo comércio, outra vida, outras disputas, outras formas de sobrevivência. Quando os carros voltam a andar, o leitor lamenta. Parece uma brilhante variação do também excelente A casa tomada, de 1951. Era 1966 e — pensa-se atualmente – a hora de Cortázar repensar sua literatura. Não foi o que aconteceu. Ele seguiu repetindo-se e publicando seus livros e uma velocidade cada vez maior.

Em sua casa, em Paris.

O professor de literatura latino-americana da Universidade de Tulane (EUA), Idelber Avelar, provocou a ira de muitos leitores brasileiros com uma crítica talvez demasiadamente acerba ao escritor argentino, mas que continha uma análise do esquema — ou fórmula — dos contos de Julio Cortázar que é difícil de rebater. Segundo Idelber, há uma:

(…) tediosa previsibilidade. Essa fórmula pode ser resumida em três ou quatro movimentos: 1) um personagem, sempre homem, topa-se com um lá-fora, um estrangeiro, um desconhecido: o réptil no zoológico em “Axolotl”, o acidente de moto em “La noche boca arriba”, a queda do avião em “La isla al mediodía”, a artista de cinema em “Queremos tanto a Brenda”, a Revolução Sandinista em “Apocalipsis en Solentiname” etc. 2) O choque produz no sujeito um desassossego que o descoloca, e instala uma esfera “fantástica” diferente da que estava presente na ordem anterior: o visitante do zoológico começa a transformar-se em réptil em “Axolotl”, o acidentado de “La noche boca arriba” começa a ter alucinações de que é um prisioneiro azteca, o passageiro do avião em “La isla al mediodía” passa a ter a visão perfeita da ilha, o fã começa a se fundir com a atriz em “Queremos tanto a Brenda”, as fotografias tiradas na Nicarágua começam a revelar uma realidade terrível que o protagonista não havia visto etc. 3) O conto conclui com a esfera “fantástica” coexistindo com ou substituindo a realidade anterior, enquanto o leitor sente que, catarticamente, passou por uma purgação, uma aventura através da qual a ficção lhe deu o vislumbre de uma outra dimensão. A execução desses passos é intercalada com pitadas de humor piegas à la María Elena Walsh, algumas piadas machistas e um ou outro comentário supostamente high-brow sobre alguma esfera da cultura de massas, em geral o jazz.

A previsibilidade é tal que basta ler sete ou oito contos de Cortázar – falo dos textos posteriores a Bestiário – para que se adivinhe, sem muitos problemas, como terminarão os outros relatos. Leia Todos os fogos, o fogo, e depois faça o exercício com As armas secretas. É muito mais fácil que adivinhar final de telenovela ou bang-bang.

Amor ao jazz, o cult repetidamente citado | Foto: Alberto Jonquieres

Mas a época de Cortázar aprovava. Quando Idelber fala em comentários intelectuais sobre o jazz, lembramos que o aval de Cortázar era importante para muitos ouvintes iniciantes do gênero. O jazz foi tema e fonte em grande parte de sua obra literária de forma tão insistente que hoje o autor nos deixa a impressão de abraçar uma espécie de pedagogia jazzística. Tal postura sobre este e outros assuntos empurra-lhe um fardo que, há 30 anos, ninguém esperaria que Cortázar recebesse: o de escritor para adolescentes, a de um autor para pessoas em formação. É o que diz, por exemplo, o excelente ficcionista César Aira, que afirma que o que ficará de Julio Cortázar serão os livros de contos Bestiário e Todos os fogos o fogo.

Neste sentido, ocupa uma posição singular o livro Histórias de Cronópios e de Famas. Publicado em 1962, o livro oferece narrativas hilariantes dentro de um mundo dividido entre “cronópios”, “famas” e “esperanças”. Os cronópios são distraídos e poéticos. São indiferentes ao secular, sofrem acidentes, choram, perdem seus pertences, atrasam-se, viajam levando coisas inúteis. As narrativas dedicadas a eles torna-os irresistivelmente simpáticos e sedutores. Os famas são o inverso. Objetivos, são organizados, práticos e cuidadosos. Quando viajam, por exemplo, pesquisam preços e a qualidade dos lençóis de cada local onde ficarão. Na volta, fazem álbuns de fotografias. Suas histórias são as mais engraçadas por suas compulsões. Já as esperanças são a maioria silenciosa. Deixam-se levar. Este pequeno volume é hoje indicado em escolas hispano-americanas como uma hilariante introdução de jovens ao mundo da literatura. Ou seja, é encarado efetivamente de outra forma daquela com que era lido anos atrás.

Zweig, famoso nos anos 20, hoje é pouco lembrado, mesmo no Brasil, para onde veio.

Porém, no Brasil, o prestígio de Cortázar segue estranhamente inabalado. Espécie de novo Stefan Zweig, Cortázar segue com uma legião de entusiastas em nosso país. É um fenômeno brasileiro. Vindo de uma literatura cujo prestígio mundial iniciou com a descoberta de Jorge Luis Borges nos anos 60, principalmente pela França, que na época era um país capaz de consagrar um escritor, Cortázar, segundo Beatriz Sarlo, viu-se na ponta de lança da internacionalização da literatura latino-americana por duas razões: o primeira é o desenvolvimento da própria literatura da região e a segunda é a propaganda da Revolução Cubana. Autores que se identificavam com Cuba ganharam rápida repercussão internacional. Esse é exatamente o caso de Cortázar e do colombiano Gabriel García Márquez, mas não de Borges, de Juan José Saer, do mexicano Juan Rulfo ou do uruguaio Juan Carlos Onetti, que seriam, sem dúvida alguma, escritores muito maiores.

A América espanhola parece concordar com estas palavras. O Brasil é que não.

Os anos 60  e 70, décadas de grande sucesso de Cortázar, eram muito estranhos.

Roger Federer, regente de orquestra

Sabe-se que Roger Federer é um homem de autêntico bom gosto que costuma, por exemplo, frequentar concertos de música erudita por onde passa. E, no jogo contra Tsonga no Aberto da Austrália, ele decidiu tirar uma onda regendo o público. Um momento raro de um tenista que não costuma provocar momentos de riso. A imitação não é tão boa quanto as de um showman nato como Novak Djokovic, mas a atração está justamente no fato de ser feita por um cara normalmente tímido.

É claro que o espertíssimo tenista desejava obter um ganho secundário com a obra: o silêncio do público durante o jogo. Rege aí, Federer!

Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XV – Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift

Em sua crônica de hoje no Sul21, o escritor Ernani Ssó voltou a falar sobre um de seus assuntos preferidos: o humor ou a falta de. Eu acho curioso que um dos livros mais engraçados já escritos — Viagens de Gulliver (1726, revisado em 1735) — tenha sido sequestrado pela literatura infantil como se dela fizesse exclusivamente parte. Nada contra as crianças, mas este livro de Swift não foi de modo nenhum apenas dedicada a elas. Assim como também não foi a Modesta Proposta, onde o autor explica com clareza exemplar como a Irlanda poderia livrar-se da fome… O que ocorre com Gulliver é curioso. Por exemplo, o personagem principal vai a uma terra onde só há intelectuais e o nome do país é Laputa, singela homenagem àqueles que estão sempre prontos a vender sua pena e ideias a quem lhes pagar melhor… Acho que nem todas as crianças conhecem tal característica, tão nossa.

A narrativa inicia com o naufrágio do navio onde Gulliver estava. Após o naufrágio, ele é arrastado para uma ilha chamada Lilliput. Os habitantes da ilha, que eram extremamente pequenos, estavam constantemente em guerra por futilidades. Foi através dos lilliputianos que Swift demonstrou a realidade inglesa e francesa da época. Na segunda parte, Gulliver conhece Brobdingnag. Em contraposição a Liliput, é uma terra de Gigantes e lá Gulliver percebe a enorme dimensão da mediocridade da sociedade inglesa. A terceira parte, na ilha flutuante de Laputa, é uma feroz crítica ao pensamento cientifico que não traz benefícios para a humanidade e aos intelectuais. Na última viagem, Gulliver encontra os Houyhnhm, uma raça de cavalos que possuía rara inteligência e bom senso, representando os ideais iluministas da razão. Os Houyhnhm temiam que alguém dos Yahoo, a raça imperfeita de “humanos”, movidas por instintos primitivos, se tornasse culta.

Swift foi o mais pessimista dos humoristas e um dos mais brilhantes deles. Foi sistematicamente trucidado por críticas a cada lançamento obra. Os críticos encararam seus trabalhos como resultantes de um misantropo, como se fossem parte da vingança de um homem amargurado e frustrado em suas ambições poéticas, políticas e eclesiásticas.

O fato de ser entendido pelas crianças — certamente de outro modo — apenas o engrandece. Agora, a forma como superou as adaptações e os abusos cometidos há quase 300 anos, chegando até nós, isso eu não imagino como possa ser explicado. A última tentativa foi um filme de Hollywood que vou te contar…

Só para porto-alegrenses

Se alguém quiser o livro O Mestre e Margarida, de Mikhail Bulgákov, tenho um exemplar SOBRANDO aqui comigo no centro de Porto Alegre. É a primeira tradução, de 1993, da Ars Poética. Não é a tradução que aparece nesta excelente resenha do livro. Se alguém quiser vir buscar ou mandar buscar, é um excelente romance. O primeiro que disser nos comentários “Quero, vou buscar”, ganhou, OK? Só não quero enviar pelo correio e outras chatices, certo? O livro está um pouco rabiscado e, bem, tem, 20 anos e merece uma colinha.

Sim, Hugo Chávez

Gustavo Dudamel

El Sistema (“O Sistema”) é um modelo didático musical, idealizado e criado na Venezuela por José Antonio Abreu, que consiste em um sistema de educação musical pública, difuso e capilarizado, com acesso gratuito e livre para crianças e jovens adultos de todas as camadas sociais. O governo de Hugo Chávez foi o mais generoso com El Sistema, chegando a bancar quase inteiramente o seu orçamento.

Agora, vejam a idade da Orquestra Jovem Simón Bolivar e a qualidade disso. Tudo gravado em uma apresentação no Royal Albert Hall. Ah, e a orquestra é contratada pela a Deutsche Grammophon. No vídeo, eles interpretam a 10ª Sinfonia de Shostakovich. E tem gente que via em Chávez um truculento simplório. OK. Quem dera tivéssemos isso no Brasil.

E aqui, no segundo vídeo, ele se divertem. E mais nem digo.

Só eu sei como sofri com Zico

Eram tempos um pouco diferentes dos de hoje, digo sem nenhuma nostalgia. Por exemplo, uma vez, passei dez dias em Itaqui. Estava fazendo um trabalho por lá e dependia de uma linha sem ruído da CRT. Que nunca veio. Era verão e anoitecia bem tarde. Quando o sol caía, eu caminhava pelas ruas da pequena cidade ouvindo continuamente as notícias do Jornal Nacional. Con-ti-nua-men-te, pois todas as casas de Itaqui ficavam com as janelas abertas e as tevês sintonizadas na mesma emissora. Parecia 1984, o livro de Orwell, apesar de que, pensando bem, talvez até fosse o ano de 1984 de verdade. Esqueçam a frase anterior. Parecia Fahrenheit 451, que também tem um Grande Irmão e este era representado pelas vozes de Cid Moreira e Sérgio Chapelin, que ecoavam a quase dois mil quilômetros do Rio de Janeiro.

As pessoas podiam até duvidar de alguma notícia, mas TODOS ouviam e viam a Rede Globo e quem duvida da influência dela nos anos 70 e 80, deve perguntar aos candidatos Fernando Collor de Melo e Luís Inácio da Silva. Ao menos um deles, contará boas histórias. Aquilo me irritava – pois adoro Itaqui e jamais falaria mal de seus habitantes que conhecem como poucos a arte de receber – e eu acabava na beira do rio para olhar Alvear e pensar na dona do hotel. Uma tarde, reclamei manhosamente que o ar condicionado de meu quarto não dava conta do calor. Ela foi conferir o fato in loco. A recepção ficou vazia por bastante tempo, prova de que nem todo mundo têm a opinião do Dante (o comentarista do Impedimento que não curte nada que eu faço).

Nas noites de domingo, a presença da Rede Globo parecia ainda maior. Tinha o Fantástico e, lá pelas 22h, entrava o Léo Batista com os gols pelo Brasil. O personagem principal, o mais festejado, o Rei da Globo e do Flamengo era um baixinho que atuava com a camisa 10. Rede Globo → Rio → Flamengo → Zico → Festa, simples assim. Era insuportável. Ainda mais que o cara era absolutamente genial.

Logo que ele apareceu, todos os Ceconelli do sul do Brasil, com sua neurótica fixação pelo número 3, diagnosticavam que ele era apenas um “jogador de Maracanã”, que era só botar “o Ademir Kaefer em cima dele pra ele abrir as pernas”, e torciam o nariz com ceticismo. Só que ele não parava de fazer gols – e era gol de tudo quanto era jeito, de pé direito, esquerdo, forte, colocado, de primeira, driblando meio mundo, de pênalti, de bate-pronto, de falta e até vários de cabeça, normalmente feitos no Botafogo.

O moço era realmente democrático. Tinha pra todo mundo. Todo o clássico no Maracanã tinha. A princípio, dando razão aos Ceconelli, o futebol e os gols de Zico apareciam mais quando acompanhados pela torcida do Flamengo, mas depois eles passaram a prescindir da companhia dela e vararam o Brasil. Eram gols bonitos, calculados, cheios de estilo. Não é favor compará-los com os de Messi. Zico também era pequeno e perdia poucos gols. Assim como o argentino, Zico calculava seus chutes. Raramente a bola estufava as redes com ódio, ela quase sempre dirigia-se para lá como uma criança dirige-se com sono para sua cama. A cena seguinte era a do protagonista correndo para a torcida, quase sempre passando pelo lado direito da goleira adversária para ir até o fosso do velho estádio. Era uma cena chata, repetitiva para os torcedores não flamenguistas.

O chamado Galinho de Quintino – apelido de considerável mau gosto – chutava bem demais. Sua cobrança de falta era mortal. Seus lançamentos também eram esplêndidos e quase todos os pênaltis que batia acabavam nas redes adversárias – quase todos eles chutados no canto direito do goleiro. Um dos mistérios que nem deus explica é porque os goleiros atiravam-se quase sempre para o canto esquerdo. A convicção com que se equivocavam – ou eram enganados – era algo patético, ridículo. A seguir vou colocar alguns poucos números de Zico como artilheiro, mas é importante esclarecer que ele não era exatamente um atacante, era um enganche que chegava para chutar. OK, era um enganche que não marcava ninguém, mas era um meio-campista, saía de lá. Só que quando estava na área demonstrava como ninguém a arte de se colocar bem. E livre. E a bola insistia em passar por ele.

E o que dizer das arrancadas? Quantas vezes Zico partiu da intermediária como quem não queria nada e acabou nas redes adversárias? Mas eu nem precisaria descrever suas qualidades. Vamos aos poucos números que prometi.

Ele marcou 699 gols em sua carreira. No Flamengo, foram 539 em 826 jogos. Em 72 jogos pela Seleção, fez 52 gols. Também jogou na Udinese e no Kashima, onde até hoje é chamado de サッカーの神様. Em Udine, um jornal escreveu: “Para nós, friulanos, Zico tem o mesmo significado de um motor da Ferrari colocado dentro de um fusca. Sentimo-nos os únicos no mundo a possuir um carro tão maravilhoso e absurdo”. Mas há mais: é o maior artilheiro do Maracanã, com 333 gols; no ano de 1979, marcou 81 gols em 70 jogos; e em sua carreira ganhou Brasileiro, Libertadores (da qual foi o artilheiro), Mundial de Clubes, Campeonato Carioca. Só não levou mesmo a Copa do Mundo, em parte por sua culpa ao errar um pênalti contra a França, no México, na Copa de Maradona.

Alguns times que o Flamengo construiu em torno de Zico foram arrasadores. O clube sempre tentava dar-lhe coadjuvantes sensacionais, mas aquele que tinha Raul no gol, Mozer na zaga, Leandro e Junior nas laterais, Andrade na volância com, à sua frente, sem posição fixa, Tita, Adílio, Lico e Zico, com Nunes lá na frente – nunca sozinho – era praticamente imbatível. Só eu sei como sofri com esses caras. Vou passar por cima da lesão que lhe infligiu Márcio Nunes, do Bangu, em 1985. Afinal, neste 3 de março, Zico está completando 60 anos e a gente não deve falar de coisas ruins.

Então, para finalizar e a fim de que ninguém diga que minto…

Publicado sábado (1) no Impedimento.