O Sétimo Selo: um dos diálogos de Antonius Block com a Morte

Em O Sétimo Selo, Antonius Block joga uma partida de xadrez com a Morte. Faz exatamente o que fazemos todos os dias: jogamos uma longa partida ao final da qual estaremos derrotados. A extraordinária cena em que Antonius Block vai a um confessionário e, em vez de um padre, é atendido pela própria Morte é das cenas mais notáveis criadas por Ingmar Bergman. O fim do diálogo, quando Antonius fica feliz por meramente jogar, é surpreendente e uma demonstração, digamos, de toda a irreligião e de todo o Strindberg que havia no meu diretor preferido.

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Os primórdios do gonzo em Diário de um Jornalista Bêbado

Publicado em 2 de junho de 2012 no Sul21.

Foto: Peter Mountain/The Rum Diary

O filme Diário de um Jornalista Bêbado reúne algumas importantes celebridades. A primeira é o autor do livro que deu origem ao filme, Hunter S. Thompson (1937-2005). Thompson não é apenas o autor do livro The Rum Diary, mas também um dos jornalistas que criou o gonzo. O jornalismo gonzo é um estilo de narrativa jornalística ou cinematográfica onde o autor abandona a objetividade ou o distanciamento, misturando-se à ação, argumentação ou enredo. Além de Thompson, o diretor Bruce Robinson é uma dupla ou tripla celebridade. Diretor de cinema de mão cheia, roteirista e dramaturgo de sucesso, Robinson também é ator – muitos devem lembrar-se dele como o ator principal do clássico A História de Adèle H., de François Truffaut. Como artista de múltiplos talentos, Robinson é competente porém bissexto em tudo o que faz, tanto que dirigiu apenas quatro filmes nos últimos 25 anos.  E a terceira celebridade é o ator que encarna Thompson, Johnny Depp, que dispensa apresentações e que acumula em si o fato de ter sido amigo pessoal do jornalista. Em 1998, Depp atuou na adaptação de outro livro de Thompson, Medo e delírio (Fear end loathing in Las Vegas), lisérgico filme de Terry Gilliam.

Hunter S. Thompson

Para além do jornalista e escritor, Thompson ficou conhecido pelo consumo intensivo de bebidas alcoólicas, LSD, mescalina e cocaína, entre outras substâncias. Também era sobejamente conhecido seu amor às armas de fogo, 0 ódio a Richard Nixon e o constante combate ao autoritarismo. Sofrendo graves problemas de saúde, cometeu suicídio em 2005, aos 67 anos.

O termo “gonzo” foi criado por Bill Cardoso, repórter do Boston Sunday Globe, para se referir a um artigo de Thompson. Segundo Cardoso, a palavra seria uma gíria irlandesa do sul de Boston para designar o último homem em pé após uma bebedeira generalizada. Por exemplo, a reportagem Fear and Loathing in Las Vegas — lançado em livro no Brasil em 1984 como Las Vegas na Cabeça – , era planejado como uma matéria sobre uma corrida no deserto, a Mint 400, que fora encomendada pela revista Rolling Stone. Porém Thompson gastou todo o dinheiro com drogas e álcool, fez dívidas, destruiu quartos e fugiu sem pagar. Em lugar da matéria que deveria escrever — sobre um evento esportivo — , o resultado foi a descrição de um ambiente, digamos, bastante distorcido pelo original ponto de vista do autor.

Hunter S. Thompson

O jornalismo gonzo costuma favorecer o estilo em detrimento da realidade a fim de alcançar outro tipo de precisão, ou de imprecisão,  permeada pelas experiências pessoais e as emoções do autor, fornecendo um contexto parcial — apesar de profundo — do evento ou tema que está sendo coberto. O equilíbrio e equidistância da edição são deixadas de lado em favor de uma abordagem participativa. A personalidade e a opinião do autor interagem com o tema e o uso de citações, sarcasmo, humor e palavrões é comum.

Thompson baseou seus trabalhos no conceito de William Faulkner de que “a ficção é frequentemente o melhor fato”. Apesar de Thompson não ter criado ficção, ele sempre fazia uso da sátira e do exagero em seus textos. O termo “gonzo” também é muitas vezes utilizado pejorativamente para descrever uma espécie de fluxo de consciência nada joyceano, regido menos pela erudição do que pelo álcool e as drogas. Na verdade, o New Journalism proposto por Thompson é uma radicalização do já existente jornalismo literário, uma abordagem que se utiliza da literatura, da arte e do humor negro a fim de afrontar o senso comum americano.

Tom Wolfe afirmou em entrevista que a cena jornalística entre os anos 60 e 70 estava cheia de literatos em busca de escrever “o grande romance”. O emprego numa redação era algo passageiro, algo que lhes daria inspiração para este texto seminal. Wolfe descreve aquele ambiente como “um enxame de fantasias fervendo, proliferando no húmus do ego da América”. Foi neste contexto que prosperou o talento de Thompson.

Foto: Peter Mountain/The Rum Diary

Obviamente, as tentativas de Thompson seriam ignoradas se ele fosse um escritor menor. Não era o caso. De escrita exagerada e sempre imerso no ambiente da notícia, Thompson era dotado de  uma visão artística dos fatos que se aliava a um notável talento descritivo. Recorria muitas vezes às hipérboles, como dissemos. Thompson costumava fazer-se acompanhar não de um fotógrafo, mas de um ilustrador. Uma lente seria realista demais. Então, o desenhista Ralph Steadman dava-lhe um gênero de apoio que nenhum fotógrafo obteria, o de adaptar-se perfeitamente ao texto, vendo os acontecimentos sob a perspectiva dos exageros e da literatura do autor. Seus textos giravam basicamente sobre sexo, drogas, política e esportes – raramente saía deste quarteto – e habitualmente eram iniciados por uma citação literária, fruto de uma memória digna de outro grande jornalista que consumia toneladas de álcool, Christopher Hitchens. Ele também não recusava as aspas e travessões para explicitar diálogos. Como um romance.

O filme de Bruce Robinson é consistente e bastante fiel ao livro e à personalidade de Thompson. Paul Kemp é evidentemente um alter ego do autor. Assim como Kemp, Thompson foi a Porto Rico no começo dos anos 60 para trabalhar como jornalista num periódico que logo fechou. De início é complicado ver em Johnny Depp, de 48 anos, um jovem jornalista de menos de 30 anos, mas sua atuação é tão convincente que esquecemos rapidamente do fato. Vendo vídeos de Thompson no YouTube, notamos o quanto não são casuais os tiques nervosos de Deep no filme de Robinson. Deep era efetivamente íntimo do jornalista, tanto que foi ele quem incentivou a publicação de The Rum Diary, escrito nos anos 60 e só publicado em 1998.

A história é simples: Paul Kemp candidata-se a uma vaga num jornal de San Juan, Porto Rico. Sempre bêbado e provavelmente com o mercado fechado para ele nos EUA, Kemp é admitido, recebendo a missão de escrever a coluna de horóscopo. Então, é convidado por um investidor americano para auxiliar em um grande e abusivo empreendimento imobiliário. Ele escreveria textos que levariam a opinião pública a simpatizar com a mega-construção. Assim, ele passa a viver entre o trabalho, o frila, a péssima moradia que arranja, o interesse na mulher do investidor e o rum, principalmente o último. Várias cenas com seus colegas Sala e Moberg (Michael Rispoli e Giovanni Ribisi) são hilariantes, tanto pelas bebedeiras quanto pelas situações em que se metem. Como  trata-se de um texto de juventude, Thompson ainda gira em torno do rum, sem experimentar as drogas presentes em Medo e Delírio, livro posterior e filme mais antigo.

Hunter S. Thompson

Mas há uma cena que liga Medo e Delírio ao Diário. É quando Kemp experimenta ácido e, sob sua influência, vê o amigo Sala sob um formato delirante e engraçadíssimo. Se Medo e Delírio levava isso ao extremo, Diário de um Jornalista Bêbado encaminha o gonzo com maior sutileza, mas nunca sem defini-lo ou demonstrá-lo.

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A migração dos cinemas de Porto Alegre (Parte 1 – Centro)

Foto: Bernardo Jardim Ribeiro / Sul21

Anarene é a pequena cidade retratada pelo diretor Peter Bogdanovich no clássico A última sessão de cinema, de 1971. O filme é melancólico e utiliza de forma muito hábil a fragilidade do cinema frente a televisão naquela cidade onde tudo parece estar acabando, à exceção dos olhares vigilantes da vizinhança. No filme, o encerramento das atividades de um certo cinema Royal representa a tristeza e a situação da cidade decadente e de seus habitantes. Naquele tempo, era apenas a TV. Hoje, também temos a internet e a violência, porém, se formos realistas, só podemos reclamar do fim dos cinemas nas cidades pequenas. Enquanto elas ficaram quase sem salas e o governo cria  projetos como o Projeto Cinema da Cidade para incentivá-las a uma reação, o ano de 2011 bateu o recorde de vendas de ingressos. Nas grandes cidades, não houve o fim dos cinemas, mas uma migração deles cinemas em direção aos shoppings, Casas de Cultura, Sindicatos, etc.

O Sul21 não pretende fazer uma matéria triste ou apocalíptica, mas um pouco de nostalgia é inevitável, pois vamos mostrar como estão os locais onde antes havia cinemas. Vamos começar por 18 cinemas do Centro de Porto Alegre. Havia mais alguns ainda mais antigos, em clubes e até em circos. Vamos repassar os mais conhecidos.

As fotos antigas foram retiradas de diversos, sites, blogs e do Facebook, normalmente sem o autor da foto. Talvez haja direitos reservados e esperamos ser avisados se tal fato ocorrer. As fotos dos locais atuais são de Bernardo Jardim Ribeiro.

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Victória, na esquina da Andrade Neves com a Borges de Medeiros, foi fundado em 1940 com o nome de Vera Cruz. Tornou-se Victória após uma reforma realizada em 1952. Em 1957, foi o primeiro cinema de Porto Alegre a receber “Ar Condicionado Perfeito”.

A foto abaixo é do final dos anos 50. Jovem, bonita e sonhadora, Sarita Montiel cantava para distrair seus fregueses. Até que um dia, sua voz encantadora chama a atenção de um jovem e rico aristocrata. Era La Violetera.

Abaixo, uma bela foto do início dos anos 60. Estava passando Psicose, de Alfred Hitchcock.

As calças boca de sino mostram que chegamos aos anos 70, vez de passar Tubarão (1975), de Steven Spielberg. Havia uma fila imensa e carros subindo a Borges desde o Mercado Público. O Victória gostava de artigos, tanto que chama o filme de O Tubarão.

Hoje, há a Casa das Lâmpadas na esquina.

Foto: Bernardo Jardim Ribeiro / Sul21

Alguns não sabem, mas o Victória ainda existe. Sua enorme sala foi dividida em duas. A entrada é logo ali, descendo um pouquinho a Borges.

Foto: Bernardo Jardim Ribeiro / Sul21

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O Capitólio, na esquina da Borges de Medeiros com Demétrio Ribeiro,  foi inaugurado em 1928. No final dos anos 60, o prédio passou por uma reforma e mudou de nome para Premier. No início nos anos 80, sofreu outra remodelação e voltou a se chamar Capitólio. Com este nome encerrou as atividades em 1994.

O Capitólio em 1928.

Na virada do século, após o fechamento.

O prédio foi tombado pelo IPHAE em 2006, após solicitação do Instituto Estadual de Cinema. O objetivo é o de reunir ali grande parte do acervo audiovisual do Rio Grande do Sul. Porém, apesar do patrocínio da Petrobras, o projeto caminha lentamente. O Capitólio hoje.

Foto: Bernardo Jardim Ribeiro / Sul21

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O Cacique é de 1957 e era localizado na Rua da Praia. O Scala foi construído em 1969 a partir do mezanino do Cacique. Ficava, portanto, no andar de cima.

Era imenso e tinha pinturas de inspiração indígena em suas paredes. Era o Cacique, claro.

Hoje não se vê quase nada dele.

Foto: Bernardo Jardim Ribeiro / Sul21

Fechado desde 1994 e sem as pinturas, parcialmente destruídas por um incêndio em 1996, o Cacique é hoje uma garagem. O restaurante Per Tutti ocupa o ex-Scala. Com alguma imaginação, estando lá dentro, pode-se “montar” o ex-cinema, com sua tela e cadeiras.

Foto: Bernardo Jardim Ribeiro / Sul21

Para se chegar ao restaurante, a escadaria do Scala ainda é utilizada.

Foto: Bernardo Jardim Ribeiro / Sul21

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O Carlos Gomes da Rua Vigário José Inácio é de 1923. Por décadas, foi o local do cinema erótico em Porto Alegre.  Tinha sessões contínuas que iniciavam pela manhã e adentravam a noite.

Atualmente, abriga uma filial das Lojas Pompéia.

Foto: Bernardo Jardim Ribeiro / Sul21

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O São João ficava na mesma Vigário José Inácio, fazendo esquina com a Salgado Filho. Nasceu luxuosamente em 1968 para morrer em 1994.

Hoje é uma agência do Banco do Brasil.

Foto: Bernardo Jardim Ribeiro / Sul21

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O Rex foi inaugurado em 1936 e tem história muito mais longa. Nasceu na Rua da Praia, quase na esquina com a Rua da Ladeira, atual Gal. Câmara.

Então, em 1960, foi posto abaixo para dar lugar à Galeria Di Primio Beck, que está no local até hoje com seu Banco Itaú.

Foto: Bernardo Jardim Ribeiro / Sul21

Mas não morreu. Transferiu-se para a Sete de Setembro (clique na imagem abaixo para ampliar).

De onde foi retirado para dar lugar… a outra agência do Itaú. A página ao lado foi retirada do blog de Emílio Pacheco e mostra a Folha da Tarde anunciando a possibilidade de uma segunda reabertura em “qualquer ponto da cidade” ao mesmo tempo que ostenta, ao lado, um anúncio de Tubarão (sem o artigo), no Cine Victória. O jornalista recebera a informação de outra garagem ou galeria. Não contava com o Itaú. É uma bela e longa agência. O cinema pode ser pressentido em cada canto.

Foto: Bernardo Jardim Ribeiro / Sul21

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O Imperial e o Guarani ficavam lado a lado na Andradas em frente a Praça da Alfândega e têm belas fotos. Nos anos 50.

Nos 60.

O Guarani é de 1913 e era muito bonito (prédio à esquerda na foto).

Sua arquitetura era utilizada para promover os filmes, como fez com o grandioso Os Dez Mandamentos..

O edifício do Guarani ainda está lá, belíssimo. O prédio foi vendido nos anos 1980 para o Banco Safra. A velha fachada está restaurada. A construção menor, ao lado, é a das Farmácia Carvalho.

Banco Safra – Divulgação

Em sua longa decadência, o Imperial (1931) programou filmes de gosto duvidoso.

Em 1987, o Guarani foi reaberto no mezanino do Imperial. O novo Guarani morreu em 2005, assim como o colega. Ambos aguardam de forma muito feia e paciente um Centro Cultural da Caixa Econômica Federal, em fase de segunda licitação. A primeira foi anulada em razão da lentidão das obras.

Foto: Bernardo Jardim Ribeiro / Sul21

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O Lido da Borges de Medeiros, é o ex-Continente, de 1956. Assim como o Carlos Gomes, teve um final de vida pontuado pelo erotismo.

Hoje está em obras. Abriga várias pequenas lojas.

Foto: Bernardo Jardim Ribeiro / Sul21

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Não conseguimos fotos do Marabá, enorme casa para 1800 lugares, mas de seu antecessor, o Palácio, de 1920.  O Marabá foi inaugurado em 1947 e nada tinha ver com o prédio do Palácio.

Local propenso à destruição, hoje ostenta um prédio moderno.

Foto: Bernardo Jardim Ribeiro / Sul21

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Não sabemos quando nasceu o pornográfico Apolo da Av. Voluntários da Pátria, mas sabemos que fechou em 2009.

Dando lugar à loja Gallego.

Foto: Bernardo Jardim Ribeiro / Sul21

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O Áurea fica na Av. Júlio de Castilhos e é um irmão sobrevivente do pequeno Apolo. Abaixo, em 2009.

E hoje.

Foto: Bernardo Jardim Ribeiro / Sul21

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A Júlio de Castilhos também abriga o Atlas, que era bem simples em 2009. Como diferencial, a casa misturava filmes com sexo ao vivo.

Ainda mistura. E parece ter crescido com a fórmula.

Foto: Bernardo Jardim Ribeiro / Sul21

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Os cinemas novos: a Sala Paulo Amorim dentro da Casa de Cultura Mario Quintana.

Foto: Bernardo Jardim Ribeiro / Sul21

A Sala Eduardo Hirtz, no mesmo local.

Foto: Bernardo Jardim Ribeiro / Sul21

E, ainda no mesmo prédio, mas de frente para a Rua da Praia, a Sala Norberto Lubisco.

Foto: Bernardo Jardim Ribeiro / Sul21

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Há também o Cine Santander Cultural, dentro do Centro Cultural de mesmo nome.

Foto: Bernardo Jardim Ribeiro / Sul21

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O charmoso CineBancários.

Foto: Bernardo Jardim Ribeiro / Sul21

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Os dois cinemas do Shopping Rua da Praia, os Arcoíris 1 e 2.

Foto: Bernardo Jardim Ribeiro / Sul21

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A briosa Sala P.F. Gastal, dentro da Usina do Gasômetro.

Foto: Bernardo Jardim Ribeiro / Sul21

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E já quase fora do centro da cidade, a Sala Redenção do Campus Centro da UFRGS.

Foto: Bernardo Jardim Ribeiro / Sul21

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Na próxima semana, pretendemos visitar os bairros. Utilizamos várias fontes, as principais estão listadas abaixo:

http://cinemasportoalegre.blogspot.com.br/
http://lealevalerosa.blogspot.com.br/2010/05/outros-angulos-de-porto-alegre.html
http://ronaldofotografia.blogspot.com.br/2011/02/cinema-imperial.html

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Orson Welles: o gênio iconoclasta poderia ter sido muito maior

Publicado originalmente em 6 de maio de 2012 no Sul21

A obra de Orson Welles não foi sendo construída pouco a pouco como se fosse um edifício. Sua obra tem melhor analogia quando se afasta a ideia de lenta construção e se pensa em espasmos ou trovoadas, talvez em destruição. Pois Welles teve momentos inalcançáveis e de grande repercussão pública ou artística e outros que também foram altos, mas que permaneceram encobertos pelo silêncio, pelos cortes, pela má distribuição e pelas impossibilidades financeiras. Houve momentos em que ele pareceu o maior ator e diretor possíveis, em que ninguém foi mais criativo ou ousado e outros onde a ousadia parecia estar associada ao desejo de auto-destruição.

Nascido em 6 de maio de 1915, Welles teve um fulgurante início de carreira. Aos 23 anos, realizou a transmissão radiofônica de A Guerra dos Mundos. Grande ator e dono de uma voz poderosa, gerou tanto medo que tornou-se instantaneamente famoso. Todos queriam saber quem era o maluco responsável pela “notícia”, lida em emocional tom jornalístico sobre uma invasão de extraterrestres. Ainda muito jovem, aos 26 anos, finalizou e lançou Cidadão Kane (1941), até hoje considerado um dos maiores filmes de todos os tempos. Aliás, é certamente o filme mais presente na primeira colocação neste gênero de listas. Mas Orson viveu outros picos de criatividade com A Marca da Maldade (Touch of Evil), Soberba (The Magnificent Ambersons), Verdades e Mentiras (For Fake), além de seus filmes baseados em peças de Shakespeare (Otelo, Macbeth e Falstaff) e no romance de Kafka (O Processo) e dos muitos bons trabalhos como ator.

Abaixo, o som original do jovem ator e radialista narrando A Guerra dos Mundos:

Se analisarmos os anos de produção destes filmes, chegaremos à conclusão de que não ocorreu uma lenta decadência, como alguns gostam de apontar. O que houve foram repetidos problemas que prejudicaram a produção cinematográfica de um autor revolucionário. Por exemplo, A Marca da Maldade é de 1958; Soberba, de 1942; Verdades e Mentiras, de 1974; e os outros estão espalhados entre os anos 40 e 60. Na verdade, Welles teve sempre imensas dificuldades em produzir seus filmes, porém, quando lograva produzi-los, estes iam direto para a galeria dos exemplares ou polêmicos. Até hoje, nada do pouco que realizou foi esquecido.

Orson Welles jamais deixou de lutar com os estúdios. Mesmo Cidadão Kane teve sua luta, não contra um estúdio, mas contra a forte oposição de William Randolph Hearst, magnata da imprensa norte-americana,  proprietário de 28 jornais nas principais cidades do país, cadeias de rádio, produtora de cinema, etc., que se considerava retratado na história, fato sempre negado pelo autor. Em Kane, Welles trabalhou como diretor, co-roteirista, produtor e ator. O filme marcou época não apenas pela denúncia da imprensa (marrom), mas devido a uma série de novidades: narrativa não linear, enquadramentos surpreendentes que mostravam até  tetos, continuidade visual para cenas sem continuidade no tempo e no espaço, além de um tom denuncista raras vezes repetido com tanta sensibilidade.

Abaixo, o trailer original de Cidadão Kane (na época, os trailers era feitos especialmente e tinham poucas cenas dos filmes que promoviam):

Mesmo dirigindo outros filmes após Cidadão Kane, o diretor nunca mais conseguiu restabelecer sua fama. Tudo começou com o documentário em três partes It`s all true, iniciado no mesmo ano lançamento de Cidadão Kane. Welles disse em entrevista concedida a André Bazin: “Era co-dirigido por mim e Norman Foster. Depois fizeram outra versão, modificando todas as ideias e refazendo tudo ao modo deles. Eu tinha rodado durante três meses, mas o estúdio (RKO) me despediu. Quando retomaram a ideia, não queriam saber mais de mim. Tampouco me pagaram nenhum tipo de direitos”.

No mesmo ano, veio Soberba, um magnífico retrato da “nobreza econômica norte-americana”. Aqui, Orson voltava a acumular as atribuições que tivera em Kane, mais a de diretor de fotografia. O Amberson é ser um ser que, por natureza, é (ou parece ser) superior a tudo e a todos, sublinha Welles na narrativa. É um filme que lhe parece tão eficiente, atemporal, bem narrado e original quanto Kane, mas a RKO tirou 56 dos 144 minutos previstos pelo diretor, deixando o filme mutilado, sem o poder de fogo de Kane. Os 56 minutos cortados foram criminosamente queimados em sua ausência.

Welles (agachado) filmando It`s all true

O que aconteceu é que Welles fora contratado para preparar um filme que estivesse de acordo com a Política da Boa Vizinhança com a América Latina durante a Segunda Guerra Mundial – o citado It´s all true – e, por conta disso, não teve como trabalhar na montagem e finalização de Soberba. Em sua ausência, cenas foram cortadas e outras refilmadas. O final também foi alterado e, após este filme, Orson Welles dificilmente conseguiu finalizar um projeto de forma inteiramente autônoma. Era um autor que não tinha poder sobre sua obra.

Depois do relativo sucesso de O Estranho (The Stranger), houve o fracasso real de A Dama de Xangai (1948) e o estigma de diretor que não gerava lucros passou a acompanhá-lo onde fosse. Ao mesmo tempo, a inacreditável fama de Cidadão Kane como “maior filme de todos os tempos” passava a varrer o mundo, fazendo de seu autor um diretor de um só filme. Welles passou a representar este paradoxo. Como também era excelente ator, seu nome e fama davam respeitabilidade a alguns projetos – às vezes péssimos – e ele acabava atuando muito. Muitas vezes não fazia papel nenhum, aparecendo apenas como uma espécie de narrador ou comentarista do filme. Parecia um diretor de cinema aposentado, mas ainda haveria espaço para boas realizações.

Orson Welles em A Marca da Maldade

De forma bem espaçada no tempo, Welles teve uma bela atuação como ator em O Terceiro Homem, de Carol Reed, depois a direção e atuação em Otelo, até chegarmos à direção do perfeito A Marca da Maldade (1958), que traz a história de um homem amargurado pelo passado que vai se revelando mais e mais complexo. Tendo como pano de fundo os conflitos na fronteira do México com os EUA. The Touch of Evil não tem apenas uma brilhante cena inicial, mas várias que até hoje são referências. Abaixo, a clássica cena de abertura de A Marca da Maldade:

Mas mesmo neste filme, Orson Welles não estava previsto como diretor. Fora contratado para trabalhar apenas como ator. Porém, o astro Charlton Heston entendera que o diretor de Kane iria atuar e dirigir o filme e tal fato fora decisivo na sua aceitação do projeto. Para agradá-lo, o produtor Albert Zugsmith resolveu oferecer a direção a ele. Welles filmou tudo conforme desejava, mas, como de hábito, acabou demitido durante a montagem. Hoje, vemos A Marca da Maldade na concepção de seu autor, mas no lançamento o filme tinha 16 minutos a menos. Como em Soberba, era novamente a versão dos produtores.

Romy Schneider, Orson Welles e Anthony Perkins durante as gravações de O Processo

Tais confusões impediam-no de dirigir outros filmes e, após muitos trabalhos como ator nos EUA e na Europa, Welles só retornou à direção em The Trial (O Processo) em 1962. Mesmo com grandes atores – Anthony Perkins, Jeanne Moreau, Romy Schneider e o próprio diretor – , a pessoalíssima leitura do autor para a obra de Kafka foi muito pouco vista. Mais pessoal ainda é o extraordinário Verdades e Mentiras (F for Fake), de 1974, uma produção francesa, espécie de jogo onde Welles brinca com a percepção do espectador. Verdades e Mentiras é um falso documentário que gira em torno da fraude nas artes plásticas e logo abarca outros campos como a o da palavra, das ações humanas, dos sentimentos . O jogo entre verdadeiro e falso e se o fidedigno  realmente existe, domina este filme absolutamente lúdico e ilusório.

Aqui, o filme completo

Aos que não conhecem o diretor, indicamos principalmente o trio Cidadão Kane, Soberba e A Marca da Maldade. Para quem gosta de jogos e ironias, indicamos nosso preferido, Verdades e Mentiras.

É realmente triste que um autor tão notável tenha se tornado obscuro. Orson Welles acabou obscurecido pelo tremendo sucesso de uma de suas obras, pelas imposições dos estúdios e por ser muito pouco político… O fato de ter produzido tão pouco como diretor foi uma enorme perda para a arte cinematográfica.

Welles em For Fake

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O Fausto de Sokurov e o mecenato de Putin

Fausto de Sokurov é um filme ESTUPENDO. O Fausto de Sokurov é um filme de Tarkovski de cabo a rabo. No ritmo, no estilo, na dramaturgia, no extremo cuidado estético. Não que isso o prejudique, de modo algum. Mas não vou fazer o elogio do filme, quero ressaltar outro aspecto, pois o que poucos sabem é a dobradinha que Sokurov faz com Putin. Não o censuro, muitíssimos artistas do passado — e que hoje admiramos — tiveram mecenas que roubavam e matavam, desta forma, nem sempre suas posses eram, digamos, legais. Muitos destes poderosos não tinham o menor interesse pessoal na arte e pareciam desejar o perdão e a imortalidade atráves de seus protegidos. Então, não chega a surpreender o fato de Putin — como um imperador — ter repassado dinheiro do estado para a obra. “Fiquei espantado e não entendi o motivo pelo qual Putin, que nunca foi um amigo meu, decidiu apoiar o filme”, disse Sokurov.

Mais ou menos, né? Talvez seja o momento de esclarecer aos sete leitores deste blog  que, apesar de não ser seu “amigo”, Sokurov é um politicamente conservador e apoia Putin. “Putin me chamou para conversar. Eu disse a ele que, se não obtivesse os recursos, Fausto jamais seria filmado (ou seja, Sokurov pediu o dinheiro). Alguns dias mais tarde, me disseram que o dinheiro que precisava estava sendo entregue. Como e porque isso aconteceu eu não sei. Talvez seja porque ele tem muito conhecimento da cultura alemã e da história. Eu creio que tenha sido por minha causa.”

O complemento de Sokurov é quase cômico: “Quando eu o encontrei recentemente, ele perguntou se eu dublaria Fausto para o russo. Li entre as linhas da mensagem e a entendi como uma espécie de ordem. Não teria medo nenhum de negar-lhe o pedido, porém, o dinheiro é do estado, não dele próprio. Eu não sei se ele tem dinheiro. De acordo com o seu salário oficial, ele não deve ter nenhum dinheiro.”

Porém, o que realmente me surpreende é que — apesar dos típicos arroubos russos e do estilo tarkoviskiano — o tema é germânico até o último fio de cabelo. As deslumbrantes imagens também baseiam-se em obras de pintores germânicos. O produtor Andrei Sigle esclarece alguma coisa sobre o interesse de Putin: “Fausto é um grande projeto cultural russo e isto é muito importante para Putin. Ele pensa que um cineasta como Sokurov, realizando uma obra como aquela, pode introduzir a mentalidade russa dentro da cultura europeia, promovendo a integração cultural”.

Se a intenção de Putin era a de integrar, fez boa escolha. Sokurov tem uma sintaxe russa e se considera o sucessor de Tarkovski. Justo. “Eu nunca quis ser seu aluno. Eu o amava como pessoa. Sua morte foi a maior perda da minha vida. Eu tinha metade de sua idade, mas ele me tratou como um igual, com carinho e confiança ilimitada. eu ficava envergonhado. Tinha que demonstrar a ele toda a minha admiração, mas sua naturalidade no trato impedia”. Ao mesmo tempo, Sokurov diz ser “mais um Europeu”. “Dickens, Flaubert, Zola são o meu mundo. Isso é o que me criou.” É neste contexto que ele declara que ele não gosta muito de cinema, o que é mais uma curiosidade…

Se Tarkovski era um dissidente soviético e buscava representações do país em histórias do passado, Sokurov é um aliado do czar que faz o mesmo para representar nosso tempo. Fausto é um tremendo filme tanto do ponto de vista ontológico quanto do estético e só o tempo dirá se servirá ao projeto cultural secular do déspota (esclarecido) Vladimir Putin.

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Kubrick em perspectiva

Para Bárbara Ribeiro

Kubrick // One-Point Perspective from kogonada on Vimeo.

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Heleno de Freitas: a mais solitária das estrelas

Publicado originalmente no Sul21 em 6 de de abril de 2012

Uma tragédia fica caracterizada onde não há apenas seriedade e dignidade, mas também conflitos com instâncias superiores, sejam elas metafísicas, como com deuses ou o destino, ou tangíveis, como com as leis e a sociedade. No caso de Heleno de Freitas o algoz foi o destino, o qual, como nas tragédia grega, não se deixou dobrar em nenhum momento. Pode-se dizer que Heleno cumpriu minuciosamente todo o papel trágico que lhe cabia, saindo da glória para a loucura e a morte em linha reta, com a convicção demonstrada sobejamente em Heleno, filme de José Henrique Fonseca, em cartaz nas principais cidades brasileiras.

A obra, rodada em gloriosa fotografia em preto a branco, deixa-nos por duas horas livres de quaisquer vestígios de ciúmes sobre a qualidade do cinema argentino, apesar da presença do hermano Fernando Castets dentre os roteiristas. Mais: não é necessário gostar de futebol para gostar de Heleno. Advogado, jogador de futebol dos bons, galã, boa vida, viciado em éter e lança-perfume, intratável, inteligente e vítima da sífilis, Heleno de Freitas traz todos os ingredientes de um grande personagem de tragédia. Vitimado pelos vícios e pela sífilis diagnosticada tardiamente — e que ele se negava a admitir ou tratar — , Heleno também foi vitimado pela celebridade e arrogância. É uma história triste, claro.

O craque e seu cabelo bem repartido

Heleno foi o primeiro grande encrenqueiro do futebol brasileiro e talvez mantenha-se no topo até hoje. A Adriano Imperador falta não apenas classe. O comportamento de nosso contemporâneo é uma brincadeira boba e monotemática frente a alguém que foi o principal jogador do Botafogo por oito anos — que fez 209 gols em 235 jogos no Bota, além de 19 em 24 jogos pelo Vasco e 15 em 18 jogos pela Seleção — , que desprezava seus companheiros pelo fato de serem um bando de pernas-de-pau (e que dizia e repetia isso para quem quisesse ouvir, a imprensa deliciava-se), que conquistava as mulheres que bem entendia, que se irritava por nada, que deu um nada metafórico tiro no pé ao tentar acender um fósforo enfiado na unha (John Wayne foi sua inspiração), que tinha amigos empresários, juristas e diplomatas e que acabou louco. Como definiu seu biógrafo Marcos Eduardo Neves:

Ele era temperamental como Edmundo, bonito como Raí, mulherengo como Renato Gaúcho, artilheiro como Romário, boêmio como Ronaldinho Gaúcho, inteligente como Tostão, de boa família como Kaká, elegante como Falcão e problemático como Adriano.

(Faltou dizer que ele torrava dinheiro e era explorado pelos amigos como Garrincha).

Rita Hayworth no papel de Gilda

Seu gênio irascível e predador de mulheres rendeu-lhe o apelido de Gilda, analogia com a célebre personagem de Rita Hayworth, também bela e incontrolável. O apelido foi criado pela torcida do Fluminense. As noites de Heleno eram no Copacabana Palace, no Cassino da Urca ou na boate Vogue, tudo o que de melhor que a noite do Rio oferecia. Porém, assim como Rita Hayworth dizia que “todos os homens que já tive foram para a cama com Gilda e acordaram comigo”, Heleno dormia no Copacabana Palace e acordava no Botafogo. E o Botafogo era ruim demais, só Heleno se salvava. O time era tão ruim que Heleno nunca foi campeão carioca pelo time.

Em 1948, a contragosto, foi vendido ao Boca Juniors na maior transação do futebol brasileiro até então. Deixou a mulher grávida no Rio e seguiu fazendo seus gols até dar o tal tiro no pé. Voltou para conquistar seu único título carioca pelo Vasco, no ano de 1949. O técnico do Vasco era o exigente Flávio Costa, que também comandava a Seleção Brasileira. Aliás, a Seleção tinha por base o Vasco. Assim, era quase inevitável que Heleno jogasse e fosse Campeão do Mundo em 1950. Mas não gostava dos treinos, coisas chatas e cansativas após as noitadas. Um dia, irritado, ameaçou Flávio Costa com uma arma descarregada e acabou apanhando. Ficou fora da Copa, claro. E acabou partindo para a Colômbia, que pagava os mais altos salários do continente. Com a camisa do Atlético Barranquilla, “El jugador”, com era conhecido, encantou um jovem jornalista chamado Gabriel García Márquez.

Durante a Copa do Mundo, Heleno esteve na Colômbia. Quando soube da derrota, numa das melhores cenas do filme, Heleno comemorou a perda do título, finalizando a festa como sempre: com bebedeira e mulheres.

Fora de forma e falido, viciado em éter e lança-perfume, mas com os sintomas da sífilis já absolutamente presentes, teve uma passagem pelo Santos — nunca entrou em campo — e voltou ao Rio em 1953 para jogar em seu novo clube, o América-RJ. Jogou apenas alguns minutos. Foi expulso no primeiro tempo e nunca mais entrou em campo. Foi internado em 1954 na Casa de Saúde São Sebastião. Emagreceu, perdeu dentes e cabelo e o que lhe restava de sanidade. Ouvia vozes e agia de forma violenta.

O cuidadoso mosaico que o filme vai montando é formado por cenas alternadas da ascensão, glória, decadência e fim do craque, sem respeito à linha de tempo. É perfeito ao mostrar como que sua vida fora do campo foi lentamente matando o craque. Rodrigo Santoro, no papel de Heleno, voltou a demonstrar que não é apenas mais uma carinha bonita. Poucas vezes se viu no cinema nacional uma imersão tão radical num personagem. Basta dizer que o ator perdeu 12 quilos para viver as cenas finais do filme, já louco num sanatório. Santoro começou as filmagens pesando entre 80 e 82 quilos e chegou a 68, 69, fruto de uma dieta rigorosa ou, segundo declarou, da fome. Também tomou aulas com o bailarino Marcelo Misailidis para ganhar leveza e agilidade, características do jogador. O treinamento com bola foi feito com o ex-jogador Cláudio Adão.

O trio principal de atores é completado por Alinne Moraes, como Sílvia, esposa do jogador, pela colombiana Angie Cepeda, uma de suas amantes, e por Erom Cordeiro, que faz Alberto, o melhor amigo de Heleno e que acaba ficando com sua mulher… Heleno foi a mais solitária das estrelas.

Heleno é um filme rigoroso, não é moralista e muito menos piegas. Mesmo a música que acompanha a degenerecência mental do craque não busca lágrimas. É um movimento da 5ª Sinfonia de Mahler. O diretor Fonseca diz que gostaria que os espectadores soubessem da biografia de Heleno antes de verem o filme, pois considera que as cenas mostradas sejam insuficientes. Pedimos licença para discordar. O que é mostrado nos deixa tão fascinados que é impossível não sair do cinema e dar uma olhadinha no Google.

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Juliette Binoche fala de prostituição e casamento burguês

De “O Globo”

“No colégio, tive amigas que se prostituíam para sobreviver”

BERLIM – A imprensa francesa se refere a ela como “La Binoche” — e não há ironia na expressão. Entre seus compatriotas, Juliette Binoche é tratada como patrimônio nacional, a grande dama do cinema de sua geração, dona de um currículo sólido, recheado de personagens ora líricos, ora controversos, como a jornalista do drama “Elles”, em cartaz nos cinemas da cidade. No filme da jovem diretora polonesa Malgorzata Szumowska, Juliette interpreta uma repórter de uma revista que, ao mergulhar no mundo da prostituição, passa a questionar sua existência burguesa, ao lado do marido e dos filhos.

Aos 48 anos, a atriz continua inquieta como nos primeiros anos da carreira, quando empolgou como um dos vértices do triângulo amoroso de “A insustentável leveza do ser” (1988) ou a jovem amante de um membro do parlamento inglês de “Perdas e danos” (1992). Ela continua fiel a seus instintos mesmo depois da bajulação decorrente do épico “O paciente inglês” (1996), em que ganhou o Oscar de atriz coadjuvante.

— Busco projetos que me façam sentir a necessidade de fazê-los. Gosto de ser convencida a fazer um papel, mesmo sem saber exatamente a razão — diz a atriz, sentada no canto de um barulhento café de Potsdamerplatz, durante o Festival de Berlim, onde “Elles” foi exibido na mostra Panorama. — Nós, atores, sempre esperamos que o trabalho afete nossas vidas. Queremos ser comovidos por uma experiência nova, explorar coisas dentro de nós que, ao mesmo tempo, também nos é exterior. Sinto vontade de me despir da minha pele e entender melhor não só a mim mesma, mas também a sociedade em que vivo.

Neste aspecto, “Elles” tem muito a oferecer, embora parte de sua controvérsia seja exagerada. O filme confronta o estilo de vida da jornalista, que vê o relacionamento com o marido e os filhos se deteriorando dentro de seu confortável apartamento parisiense, com o das duas jovens prostitutas que entrevista. À guisa de pesquisa, a produção do filme ofereceu a Juliette um documentário sobre universitárias que vendem o corpo para pagar os estudos, feito durante a fase de confecção do roteiro.

Um desafio: cenas de nudez aos 48 anos

A atriz achou o material muito informativo, mas ela já estava familiarizada com o assunto:

— No colégio, tive amigas que se prostituíam para sobreviver. Não as julgo, porque sei como é difícil estudar sem apoio financeiro da família ou do estado — conta. — O documentário que vi ajudou a me atualizar sobre o tema. A prostituição entre jovens é um fenômeno mundial, principalmente por causa da internet. O que me impressionou foi descobrir que parece ser muito fácil entrar na prostituição para quem está do lado de fora dessa vida. Mas, aos poucos, descobre-se que não é tão fácil assim, as pessoas idealizam muito a profissão das prostitutas. Elas se expõem a perigos reais nessa atividade.

“Elles” impôs pelo menos um grande desafio a Juliette, à beira dos 50 anos: fazer cenas de nudez. Na mais polêmica delas, sua personagem se masturba no chão do banheiro. Amparada pelas mulheres atormentadas que interpretou no passado, Juliette não se abalou.

— No final das contas, foi até divertido (filmar nua) — diz, pontuando a frase com uma sonora gargalhada. — Porque estabelecia um contraste, sabe? No final do dia, Anne, a minha personagem, põe um bom vestido, como uma prostituta sedutora. É como um espelho para ela: depois de ouvir todas as histórias das prostitutas, de conviver com elas, Anne volta para o casamento burguês para enfrentar as perdas dentro de casa, mas dentro de uma roupa elegante. Gosto dessa contradição. É como fumar um cigarro depois do sexo e descobrir na TV que o mundo está acabando em algum lugar lá fora.

Mãe de Raphael, de 18 anos, fruto de sua união com o mergulhador Andre Halle, e de Hannah, de 12 anos, filha do ator Benoît Magimel, Juliette mora numa confortável casa de Vaucresson, subúrbio luxuoso de Paris. Solteira e com os filhos já mais ou menos encaminhados no mundo, a atriz se sente mais à vontade para os projetos que quiser. Há dois anos, foi para a Itália com o diretor iraniano Abbas Kiarostami rodar “Cópia fiel”, produção que lhe deu a Palma de Ouro de melhor atriz no Festival de Cannes de 2010.

Ano passado, voou para o Canadá, onde rodou uma pequena participação em “Cosmópolis”, de David Cronenberg, no qual interpreta uma das amantes do galãzinho Robert Pattinson.

Nas telas, amante de Robert Pattinson

Por razões financeiras, parte de “Elles” foi rodado na Alemanha. O nome de Malgorzata lhe foi sugerido pelo diretor de fotografia Slavomir Idziak, que conheceu no set de “A liberdade é azul” (1993).

— Perguntei ao Slavomir o que estava acontecendo de interessante no cinema polonês, que já nos deu Polanski, Kieslowski e Wajda, e ele me disse que a única grande cineasta da geração atual era Malgorzata. O nome dela ficou na minha mente. Umas duas semanas depois dessa conversa eu recebi o roteiro de “Elles” — lembra. — Achei um assunto forte, especial, arriscado. No nosso primeiro encontro, Malgorzata chegou a dizer que não nos daríamos muito bem, porque ela tem personalidade forte e eu também tenho personalidade forte, e blá, blá, blá… Mas, no final das contas, foi ótimo, foi como se dançássemos juntas no set.

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Crítica gonzo ao On The Road (Na Estrada) de Walter Salles

Eu gosto dos filmes de Salles e costumo defendê-lo em rodas de amigos, mas creio que Na Estrada — adaptação do célebre On the road ,de Jack Kerouac — , tenha tantos defeitos que… Olha, amigo Salles, desta vez vou ter que atacar. Antes gostaria de citar algo curioso: a produção, de fria recepção no Festival de Cannes, foi coberta por um estranho silêncio, os comentadores davam pistas de sua decepção, mas negavam-se a falar mal dela. Agora os compreendo. O filme não é ruim nem bom, tem antes o efeito de uma ducha de água fria, de uma mulher que nos alega estar com dor de cabeça, de um homem que alega cansaço — o filme promete e não cumpre. Após a sessão, eu olhei para minha filha Bárbara. Ela me fazia uma careta interrogativa e a mais terrível das acusações (que repasso a Salles):

— Tu não tinhas me avisado que o filme tinha 3 horas.
— Não dura 3 horas, dura 137 minutos. É que é chato mesmo.

Chato. Exatamente. Os atores realizam boas atuações, o filme é muito bonito e aí temos o primeiro problema. Salles não se afastou de seu elegante cinema de belas imagens, mesmo contando uma história onde as amizades, amores e parcerias são submetidos a alongamentos que rompem quaisquer fibras. E eram um bando de drogados, alguns com objetivos, outros não. Então, o drama deveria ser contado sob som e fúria e, quando há fúria, a fotografia não precisa ser de propaganda de cigarro. Salles cometeu o pecado mortal de não conseguir ser visceral como Kerouac exige e contou uma história fora do tom, tornando a música incompreensível e deixando os personagens meio bobos em meio daquilo que deveria ser — e é no livro — um decisivo drama existencial. Como se não bastasse, há o tamanho da história: o romance de Kerouac é uma verdadeira avalanche narrativa com fatos e opiniões e, bem, não cabe no filme.

Ou seja, o principal ingrediente do On the Road original era sua forma narrativa e esta não recebeu resposta. Como os encontros entre os personagens são espaçados por meses e nunca há um conflito latente para precipitar-se no próximo, depois de 90 minutos a gente pensa que o filme acabará a qualquer momento numa daquelas interrupções. Quando achamos e até desejamos que a cena do estacionamento seja a final, Dean resolve ir para o México e o filme segue por mais mais meia hora… A gente fica meio desesperado. Isto é, estrutura do filme faz com que pensemos “agora acaba, agora acaba”. Sai daí a sensação de “três horas” da Bárbara.

A única ilha de perfeição do filme tem nome e cena. O nome é Kirsten Dunst, que faz uma papel menor em Na Estrada, e a cena é aquela em que ela rompe com Dean Moriarty após mais uma bebedeira com Sal Paradise. Sozinhos num quarto, com um bebê no berço e outro na barriga, Dunst quase salva o filme. É mesmo uma excelente atriz, mas que só pode exercer seu papel num quarto, sem paisagens e em enorme conflito. A cena está tão fora do padrão do filme que não encontrei fotos dela no mar de fotografias de divulgação. Mas é a coisa mais Kerouac de Na Estrada.

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Milton Ribeiro em HQ (o cara é foda mesmo)

Às vezes é chato ser tão famoso, sabe?

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Revi dia desses, permanece ótimo

A Pietà de Ingmar Bergman, em Gritos e Sussurros (1972)

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Anotando filmes para um ciclo sobre a Comissão da Verdade, ditadura, etc.

Com no mínimo seis filmes e debates, o escambau. Meus sete leitores gostariam de sugerir outros além destes? Coloquei asteriscos ao lado de meus preferidos.

Brasil:

— Pra frente Brasil, de Roberto Farias; (*)
— Cabra-cega, de Toni Venturi;
— O ano em que meus pais saíram de férias, de Cao Hamburger;
— Ação entre amigos, de Beto Brant; (*)
— Zuzu Angel, de Sérgio Rezende;
— Hércules 56, de Sílvio Da-Rin; (*)
— Nunca fomos tão felizes, de Murilo Salles;
— Dois córregos, de Carlos Reichenbach;
— Lamarca, de Sérgio Rezende.

Argentina:

— Kamchatka, de Marcelo Piñeyro; (*)
— A história oficial, de Luis Puenzo;
— O dia em que eu não nasci (Das lied in mir), de Florian Micoud Cossen; (*)
(Examinar melhor o site La dictadura en el cine)

Chile:

— Dawson ilha 10, de Miguel Littín;
— O cavaleiro negro, de Ulf Hultberg.

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Andrei Rublióv (Rublev), de Andrei Tarkovski

Eu não procurei este livro para comprar, eu cruzei com ele. Estava caminhando por uma livraria e dei de cara com o volume da Martins Fontes. Estranho, não era um DVD do filme, mas um livro de mais de 300 páginas escrito pelo próprio diretor e roteirista Andrei Tarkovski. Comprei imediatamente e não é que o tenha lido, eu o engoli imediatamente com os olhos.

Trata-se de um roteiro literário, que na verdade é um romance escrito por Tarkovski para servir de base para as filmagens. O  roteiro final foi escrito em parceria com Andrei Konchalovsky e parece  consistir apenas no acabamento dos diálogos e no corte de descrições e cenas, pois o livro (ou roteiro literário) possui 14 capítulos, 5 capítulos a mais do que o filme.

OK, mas porque tanta expectativa? Ora, pelo imenso filme de Tarkovski, um dos melhores de toda a história do cinema, pelo profundo humanismo que se desprende da história e pela grande carga emocional de um filme que parece não terminar nunca, tal a impressão deixada nas mentes de quem o vê. Com a publicação deste roteiro — falemos sério, deste romance — ficam inequívocas as intenções do cineasta soviético. Tarkovski pretendia mesmo discutir o papel do artista e da fé na sociedade. Se o palco é a Rússia (Rus) da invasão tártara do século XV, a alegoria serve a qualquer outro tempo e sociedade.  No livro, Rublióv está muito mais completo e complexo do que no filme, o que, se não significa uma obra de arte melhor — e certamente não significa — , significa explicações para vários trechos apenas intuídos.

Na leitura, capta-se melhor a personalidade do trio de pintores de ícones, perdidos ou indo de igreja em igreja na paupérrima e faminta Rússia medieval. Andrei é um jovem quieto e misterioso. Daniil é resignado, propondo sacrifícios a si mesmo. Kiril é esperto, lógico mas ciumento. O trio representa a Trindade do ícone mais famoso de Rublióv. As cenas — todas passadas por volta do ano de 1400 — nem sempre são contadas do mesmo ponto de vista, podem variar, assim como a ordem de apresentação delas é diferente no filme.

Andrei Rublióv é um surpreendente painel sociológico sobre a Rússia medieval. Os estranhos rituais, a fé, a necessidade da igreja para não passar fome, a busca da própria identidade, a busca da verdade. Há violência extrema na cena em que a igreja é invadida e saqueada, com o sacerdote sendo marcado por uma cruz incandescente. Ali, Rublióv perde a fé para reencontrá-la no filho de um fabricante de um sineiro, um menino que, sem saber muito bem o que faz e ameaçado de morte se não for capaz de forjar um sino, vai adiante movido por não se sabe o bem o quê– pela mera intuição, pela fé ou pela observação e desespero. Ali, Rublióv vai reencontrar deus e o espírito para voltar a criar beleza religiosa para um mundo absolutamente bárbaro.

O filme, de 1966, foi somente liberado em 1969, assim mesmo com cortes impostos pela censura soviética, que não aprovava a alegoria de Tarkovski contra a intervenção das instituições no trabalho do artista. Isto é algo quase não lê no “roteiro literário” do diretor.

Andrei Rublev: Trindade. Galeria Tretyakov

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Pelo telefone

O que há de ficção neste texto de Fernando Monteiro? Olha, acho que bem pouco… Retirado daqui. Ah, Monteiro está publicando Mattinata.

– Alô (com indisfarçável má vontade)… Te disse pra não telefonar. Nunca.
– Sei disso. Só que…
– “Só que” nada, pô. Vou desligar.
– Ouve, primeiro. É sobre a loura.
– Pior ainda. Esse assunto é outro Vietnam, aqui dentro.
– Vietnam que vai piorar. Nas próximas horas.
– Cara, cê tá onde?
– Que pergunta é essa? Brentwood. Em frente da casa da vagabunda, onde montamos a…
– Não sei de nada. Não sei com quem tô falando, nem conheço loura nenhuma.
– Frescura. Ouve, que é melhor. Ela pirou.
– Novidade nenhuma. Frank me disse.
– O quê?
– Que ela pirou. Aliás, sempre foi pirada…
– Aquele cantorzinho sabe de merda nenhuma.
– Você não diz que ela “pirou”? Então, ele sabe.
– Pirou m-e-s-m-o, eu quis dizer. Não é só uma frase.
– Que fase?
– Frase. Não é só conversa fiada, isso dela pirar. Tô falando de loucura mesmo… Ela tá lá na casa, deitada, sem tomar banho…
– Grande novidade.
– Pera aí. E menstruada sem tampão…
– Pô.
– Isso num é nada. Espera pra ouvir o resto.
– Devia tá dopadinha, quetinha, isso sim. A gente paga a porra de um médico…
– A mulher ficou fora de controle, Bob. Agora, ela ficou.
– Como assim? Conheço a doida bem demais.
– Conhece nada…

(Silêncio, logo depois que surgem uns ruídos de telefonia)

– Que é isso? Tá escutando?…
– Sei lá. Te disse pra não ligar.
– Desligo?
– Pera aí. Vou dar outro número.
– Pra ligar?
– Anota, engraçadinho: 33-07-66-02.
– DF?
– Claro, né? Saigon é que não é.

(Curto intervalo)

– Alô.
– Pronto. Vai, fala.
– O que foi aquilo?
– Menor ideia. Isso aqui é vizinho do Oval, pô. Todo mundo grampeia todo mundo…
– Eu sei. Trabalhei aí quase a vida toda, lembra-se?
– Pois é. E a loura? Por que você acha que ela pirou mais ainda?
– Hein? A outra linha tava melhor.
– Esta é mais segura.
– Fala mais alto.
– Uma ova. Tenta escutar mais, tira a cera do…
– Não tô escutando quase nada, agora.
– Merda. Não posso GRITAR.
– Agora tô ouvindo.
– A loura. Por que ela parou?
– Parou de quê?
– Você num disse que ela pirou? Ela parou de ser razoável. Com o Jack.
– É pior do que pensam. A gente gravou ela dizendo que vai falar. Tudo.
– Tudo o quê?
– Tudo.
– …
– Alô?
– Sobre o quê?
– Sobre a ligação com vocês.
– Pera aí… Que ligação?
– Dela. Contigo e com teu irmão.
– Com o Presidente?
– É. Com o Procurador e com o Chefão.
– Não tem “chefão” aqui.
– Tem.
– Você tá falando do Presidente dos Estados Unidos, idiota.
– Teu irmão sempre armou. É doente pela coisa.
– Cala a boca.
– Vi Jack de cueiro. Você nem era nascido ainda. Vão pra merda, os dois.
– …
– Alô.
– Escuta. Tás falando o que não dev…
– Entende, Procurador, vou soletrar: num-dá-mais-tempo. Só isso.
– Pra quê?
– Cê num tava querendo “conversar” com ela de novo? Não dá mais.
– Claro que dá. Nem que tenha que bater na suja.
– Já falei: ela pirou. MM pirou. Diz até que abortou.
– Como é?!
– Tô falando: ela pirou.
– Para de falar “ela pirou”. Que negócio é esse de aborto?
– Ela está disposta a jogar merda toda no ventilador, Robert. Sério. E basta ela fazer uns telefonemas, convocar os putos da imprensa…
– Pô. A merda cobre.
– Então. E enche o Oval (e o país inteiro): de sujeira, de esperma, de droga, de Sam Giancana…
– Esse tá ferrado, o sacana.
– Tá nada. O Sam tá é muito puto com vocês dois…
– Me respeita, cara. E respeita o Presidente.
– Cacete que eu respeito. Dois fudedores comendo todo mundo…
– Cala essa boca.
– VOCÊ me escuta, garoto. Os dois armam, e sobra pra quem? Pra mim. Pro “tio” velho.
– O que é que ela quer? Dinheiro?
– Ela tem.
– Uma merreca.
– Mas assim mesmo ela não quer mais merreca de grana, santo deus. Entende isso, cara. Nem tudo é dinheiro.
– Ô “São Franciscuzinho”, desembucha de uma vez. O que é que a porra da mulher tá querendo?
– O que ela quer? Ela quer ferrar.
– Alô?
– FERRAR. Ela quer isso! Chamar todo mundo, dizer: “sabe quem me come? Eles, os dois…”
– Isso é loucura. Fica calmo.
– Foda-se. Tô calmíssimo. E vendo ela aqui, na minha frente, pelo monitor. Tá possuída, a doida…
– Desliga…
– Desliga o quê? Meu monitor?
– O telefone! VOCÊ tá gritando, cacete.
– É ela que vai gritar. Pra todo mundo ouvir. Jornal, rádio, TV, o escambau…
– …
– Vai gritar que quer casar com o Jack Grandão.
– …
– “Happy birthday Mr. President”… (canta em falsete, irônico)
– …
– Parece até que eu posso ver o casalzinho, e Bob, o mister Procurador… de padrinho.
– CALA A B-O-C-A.
– Eu to avisando: essa mulher é pior que um ataque de míssel russo.
– Deixa eu falar com o Jack.
– Agora?
– Agora. Ele tá vindo pro Oval. E já tá encarando…
– O quê?
– A solução.
– Final?
– Hum-hum.
– Aquela?
– Você próprio acaba de dizer que ela agora ficou doida pra ferrar todo mundo.
– Tá gravado aqui. Posso mandar a fita.
– Manda não. Tu tem razão. Agora, tem é que parar essa desgraçada.
– Bom, isso aí já é falar como homem. Nembutal?
(Silêncio, por um momento)
– Bob? Alô?…
– Tô aqui.
– Nembutal?
– É. Nembutal. Mas, SL. Serviço limpo.
– Autópsia, tudo garantido?
– Cem por cento. Altamente profissonal, nem preciso dizer.
– Sim, mas olha que é a MM, hein? Num é uma qualquer, como aquelas que…
– Escuta, eu vou desligar. Tá ficando perigoso. E Jack chegou lá no Salão. Acendeu a luzinha aqui.
– E o irmãozinho vai falar claro com ele?
– Vou. Mas ele mesmo já tinha pensado em se livrar agora, bem antes da campanha.
– Ok. E eu fico esperando autorizar “despirar” a loura forever?
– Fica. Mas isso não vai ser pelo telefone.
Um click, desligando.

NB:
A atriz Marilyn Monroe, de 36 anos, foi encontrada morta em menos de 24 horas depois dessa conversa por mim transcrita na manhã de 10 de agosto de 1962.
Os jornais informaram mais ou menos assim: “MM faleceu enquanto dormia em sua casa de Brentwood, na Califórnia, aparentemente por efeito de um dose letal de barbitúricos ingeridos pela atriz com a intenção de acabar com a própria vida…”
E hoje está até na geleia geral da Wikipédia: “Ninguém sabe de fato o que aconteceu naquela noite. Ouviu-se o barulho de um helicóptero. Uma ambulância foi vista esperando fora da casa dela antes que a empregada desse o alarme. As gravações de seus telefonemas e outras evidências desapareceram. O relatório da autópsia foi perdido. Toda a documentação do FBI sobre sua morte foi suprimida e os amigos de Marilyn que tentaram investigar o que aconteceu receberam ameaças de morte”.

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O mundo é um lugar muito estranho

Fiquei bastante chocado com algumas opiniões acerca do filme Melancolia, de Lars von Trier. Depois de fazer meu elogio ao filme, fiquei observando as opiniões de quem escrevia a respeito. Alguns elogiavam — houve associações de críticos que até lhe deram prêmios de filme do ano e outros — e houve quem se ofendesse com sua extrema ruindade. Lendo os últimos, várias vezes tive vontade de rir, o que não é tão estranho, considerando-se o conteúdo do filme. Do meu lado, entre os que gostaram, ninguém chegou tão próximo de minha opinião quanto a escritora Lélia Almeida, que hoje publica uma colorida, incontrolável e “compreensiva” coluna” no Sul21.

É óbvio que quem detestou o filme não é burro, acredito mesmo que gostar ou não dele trata-se de uma opção estética (pois Von Trier coloca um filtro bem espesso entre o tema e o espectador), mas fiquei menos sozinho ao ler vários parágrafos que foram pensamentos meus quando vi o filme. Sim, Lélia, a terra é mãe, é má e é boa, assim como todos nós. E o filme fala de forma muito inteligente sobre as mulheres e as posturas de todos. O roteiro do filme é um jogo no qual as irmãs são colocadas contra diferentes tragédias. De minha parte, apesar de mais espectador do que em outros filme, identifiquei-me totalmente com Justine (Kirsten Dunst), a personagem sem beira que sabe o que fazer, mas só no fim do mundo. Mas indico a coluna da Lélia, querida amiga que não conheço.

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E gostar de coisas boas

Em resposta a este post, porque às vezes é bom comunicar-se consigo mesmo…

Não pude vir aqui com tranquilidade para dizer que os sábados podem ser perfeitos. Este último foi. À tarde, por insistência de minha cara-metade, fomos ao cinema ver O dia em que eu não nasci, de Florian Micoud Cossen, filme alemão que trata dos desaparecidos na Argentina. Um belíssimo filme com atuação perfeita da para mim desconhecida Jessica Schwarz. (OK, sem grandes spoilers. Ficarei bem longe do fim do filme, tá?). Não esperava nada e me encantei pela história, apesar do início meio forçado. Que grande filme. O súbito e denunciador aparecimento do pai em Buenos Aires nas cenas iniciais e o encontro de Maria com a família argentina elevam a temperatura emocional de forma surpreendente até a elegante cena que finaliza a narrativa. O nome do filme em alemão é BEM melhor, para variar: Das Lied in mir significa A Canção em Mim. Ah, os tradutores dos títulos nacionais só pioram as coisas!

À noite, fomos ver o show do grupo Trissonâncias no StudioClio. O gismontiano trio formado por Pedro Tagliani (violão e guitarra), Michel Dorfman (piano e só — digo assim porque havia um ameaçador teclado que não foi tocado) e Fernando do Ó (percussão) é simplesmente ótimo. As músicas são quase todas de Tagliani (ex-Raiz de Pedra) que volta ao Brasil após 19 anos na Alemanha. Foi um espetáculo excelente de música instrumental brasileira. Melhor ainda quando se vê e ouve o show acompanhado de  cervejas compradas no bar do Clio e que se leva educada e silenciosamente para a plateia. A Colorado Appia é boa demais, nossa!

E, no final, ainda ganhamos uma garrafa da cerveja Baca, do StudioClio. Grande dia.

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Aprovado

Este é o cartaz do 65º Festival de Cannes. No próximo dia 5 de agosto, fará 50 anos da morte de Marilyn Monroe.

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Erland Josephson (1923-2012)

Dias atrás, em 15 de novembro, escrevi que, em minha opinião, Erland Josephson era o maior ator de todos os tempos. Por isso, dois dias de depois de sua morte, aos 88 anos, é natural que escreva algumas linhas sobre aquilo que me deixou triste anteontem.

Josephson — que foi também contista, dramaturgo, cineasta e poeta — foi a cara de Bergman, o alter ego do diretor em muitos filmes, o alter ego de Bergman até em filmes em que o diretor era apenas o roteirista, como Infiel, de Liv Ullmann. Ele protagonizou ou participou de uma impressionante sucessão de clássicos bergmanianos — O Rosto, A Hora do Lobo, A Paixão de Ana, A Hora do Amor, Gritos e Sussurros, Cenas de Um Casamento, A Flauta Mágica, Face a Face, Sonata de Outono, Fanny e Alexander, Na presença de um palhaço, Sarabanda, etc. Também foi dirigido por Andrei Tarkóvski em Nostagia e por Theo Angelopuolos em Um olhar a cada dia. Após a morte de Bergman, em 31 de julho de 2007, Josephson disse: “Eu era muito apegado a ele. Tivemos uma vida divertida, emocionante e interessante. Ele foi decisivo na minha carreira de ator”. Foi mesmo, assim como também o foi Liv Ullmann e como Mastroianni foi para Fellini durante certa época.

A face de Erland Josephson sempre foi, para mim, a cara do cinema. Sua presença em cena sempre me tranquilizou — sempre me transportou automaticamente para aquele clima único que apenas o cinema pode criar — e a impressão que tenho é a de que era um conhecido meu. Erland era um amigo que dava um selo de qualidade a qualquer produção. Esta sempre foi a minha fantasia. E ele, em si, tinha tais qualidades que de sua “circunscrição” estava garantida. Talvez, avançando decididamente o sinal, o considerasse um representante meu em cena. Quando, em Sarabanda, Bergman o colocou mergulhado de cabeça entre duas caixas de som, ouvindo uma sinfonia em volume altíssimo, a idenficação foi enorme. Eu faria aquilo diariamente.

Nos livros de Bergman, fica clara a enorme amizade e respeito que o unia a seu ator predileto. Bergman muitas vezes pediu desculpas a Josephson pelos papéis nem sempre dignos, o que acho no mínimo curioso. Da leitura, surge uma amizade que misturava profundo respeito e admiração com a maior intimidade.

Foi uma grande e prolífica vida a de Erland Josephson.

Grupaço: Ingmar Bergman, Sven Nykvist, Erland Josephson e Liv Ullmann

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Uma metáfora fora do lugar?

Quem sou eu para criticar Aleksandr Sokúrov, o novo mestre do cinema russo, continuador — segundo nove entre dez capas de DVDs — de Eisenstein e Tarkovski?, pergunta Milton Ribeiro antes de criticá-lo. Pois uma coisa em Sonata para Viola, filme que Sokúrov dedicou à memória e vida de Dmitri Shostakovich, me incomoda muito. Na cena final, o cineasta mostra alternadamente Leonard Bernstein e Yevgeny Mravinsky regendo o último movimento da 5ª Sinfonia de Shosta. A diferença é enorme. Bernstein dá um andamento rápido e literalmente se escabela, entusiasmado, frente à orquestra. A coisa toda é heróica. Já Mravinsky apenas indica o tempo, um tempo bem mais arrastado que o do americano. Parece, e é, fúnebre. O significado é óbvio: a liberdade e a alegria X a opressão e a tristeza. Porém, é justo aí que estão dois problemas: (1) Mravinsky é um regente tão grande quanto Bernstein foi e sua desqualificação artística é absolutamente imerecida e (2) Mravinsky interpreta o Allegro non troppo da 5ª Sinfonia rigorosamente dentro daquilo que foi solicitado por… Shostakovich, na época um amigo seu. Era música fúnebre mesmo. Claro que Sokúrov deve ter mil explicações para ter finalizado seu filme desta forma, mas, para mim, o grande problema de Sonata para Viola é sua metáfora final.

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François Truffaut, o homem que amava o cinema

Truffaut

Publicado sábado no Sul21.

Durante esta semana, François Truffaut (6 de Fevereiro de 1932) teria completado 80 anos. Em apenas 52 anos de vida – o cineasta faleceu em outubro de 1984, vítima de um tumor cerebral – e 25 de carreira, Truffaut deixou 26 filmes, muitos dos quais figuram de forma definitiva entre os clássicos da arte cinematográfica. Filmes como Jules e Jim (1962), A Noite Americana (1973), Fahrenheit 451 (1966), O homem que amava as mulheres (1977), A Idade da Inocência (1976), A História de Adèle H. (1975) e O Último Metrô (1980), além dos cinco que percorrem os anos de formação de Antoine Doinel, sempre vivido pelo alter ego de Truffaut, o ator Jean-Pierre Léaud – Os Incompreendidos (1959), O Amor aos Vinte Anos (1962), Beijos Proibidos (1968), Domicilio Conjugal (1970) e Amor em Fuga (1979) – , deveriam fazer parte de qualquer cinemateca que tente compreender a evolução do cinema como arte.

Jacqueline Bisset e Francois Truffaut em A Noite Americana, um dos filmes que Truffaut dirigiu e atuou

A seu modo, Truffaut foi um erudito, um estudioso, um sujeito absolutamente tarado por cinema. Vivendo de sala em sala, de cinemateca em cinemateca, afirmou em 1975, numa entrevista durante o lançamento de Adèle H., que vira 15.000 filmes (tinha 43 anos) em sua vida e que às vezes tinha a impressão de que seus trabalhos eram colagens do que fizeram antes outros cineastas. Pura modéstia. Autor sempre original, Truffaut esteve permanentemente na ponta de lança, mesmo que a partir dos anos 70 tenha recuado seu estilo para algo mais clássico, afastando-se da postura de seu amigo e colega Jean-Luc Godard. Anos depois, jovens americanos inspiraram-se em Truffaut não apenas ao ver filmes sem parar, mas fazendo arte e graça ao exporem suas também enormes culturas cinematográficas. Sim, falo de dois dos grandes fãs de Truffaut, Quentin Tarantino e Steven Spielberg.

Doinel na casa da mãe: solidão, cinema, literatura e roubos

Truffaut jamais conheceu seu pai biológico. Foi criado por seus avós maternos, já que a mãe o rejeitara. Aos 10 anos, perdeu a avó e foi morar com a mãe, que estava casada com Roland Truffaut. Este acabou registrando o garoto com seu sobrenome. Porém, rechaçado tanto pelo pai adotivo quanto pela mãe, era péssimo aluno e passava seu tempo vendo filmes e arranjando dinheiro através de pequenos furtos. O primeiro filme que conta a história de Antoine Doinel e seu primeiro longa como diretor, Os Incompreendidos, é a história da adolescência de Truffaut. Ali, na cena final, ao deixar Léaud, ainda um menino, caminhar sem rumo pela praia, o francês captura de forma inesquecível a angústia e as dúvidas do adolescente. Contextualizado, o olhar de Doinel para o espectador é uma surpresa e um questionamento como poucas vezes se vira antes no cinema. Trata-se de um pedido silencioso da mais alta carga emocional.

Esta estreia de Truffaut aos 27 anos ocorreu após alguns anos como crítico de cinema na revista Cahiers du cinéma, fundada por André Bazin. Bazin foi efetivamente o pai tardio de Truffaut. O futuro cineasta tornou-se secretário pessoal de Bazin aos 18 anos, quando obteve a emancipação legal dos pais. Bazin foi quem lhe orientou, introduzindo-o no Objectif 49, um seleto grupo de jovens estudiosos do novo cinema da época, leia-se, principalmente, Orson Welles e Roberto Rossellini. Mais tarde, integrariam o grupo nomes como Jean-Luc Godard e Suzanne Schiffman — roteirista de quase todos os filmes de Truffaut. Ele também participava do Ciné club du Quartier Latin, boletim sobre cinema coordenado por Eric Rohmer. Ali, daria seus primeiros passos como crítico.

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E que crítico! Estreou causando enorme polêmica ao atacar o velho cinema francês com sua “tradição de qualidade”. Une Certaine tendance du cinéma française (Uma certa tendência do cinema francês) era um manifesto contra aquela tal “tradição de qualidade”, na verdade um cinema literário muito pobre em termos de dramaturgia e… cinema. Como crítico, Truffaut desenvolveu a noção dos filmes autorais. Neste conceito, o filme é considerado uma produção individual, como uma canção ou um livro. Truffaut defendia que a responsabilidade sobre um filme dependia de uma única pessoa, o diretor. O grande representante de sua teoria era Alfred Hitchcock. Tal conceito foi a base para o surgimento de um movimento que revolucionaria o cinema francês. Criada por jovens cineastas franceses, a Nouvelle Vague (Nova Onda) defendia a produção autoral de filmes intimistas e de baixo custo. E a nova geração, formada principalmente por jovens críticos de publicações especializadas, comprovaram suas teorias através de filmes que se veem até hoje. O início não poderia ser mais espetacular. Os Incompreendidos e, logo depois, ainda em 1959, À bout de souffle (Acossado), dirigido por Godard sobre roteiro de François Truffaut.

Jean-Paul Belmondo e Jean Seberg em Acossado (1959)

Depois de mais dois filmes, Truffaut chegou ao leve e ousado, talvez discretamente indecente para a época, Jules e Jim. A produção, que recebeu o ridículo título de Uma Mulher para Dois no Brasil, é baseado num romance de Henri-Pierre Roché. Visto hoje, parece uma antologia de cenas clássicas, tanto que foi citado ou copiado por filmes mais recentes. Lembram por exemplo da célebre sequência de Butch Cassidy na qual Paul Newman e Katherine Ross andam de bicicleta ao som de Raindrops keep falling on my head? Está em Jules e Jim. É só procurar. O filme trata do triângulo amoroso entre Jules (Oskar Werner), Jim (Henri Serre) e Catherine (Jeanne Moreau, em magnífico trabalho).

Truffaut e Moreau conversam durante as filmagens de Jules e Jim

Durante as filmagens, aconteceu com Truffaut o que aconteceria com qualquer um: ele se apaixonou por Moreau, então casada com o estilista Pierre Cardin. Fez mais: apaixonou-se e deixou todos nós apaixonados por ela em diversas cenas, mas talvez especialmente naquela em que a faz correr travestida numa ponte. Abaixo, um dos muitos trailers do filme:

http://youtu.be/oPWTJsO89-M

Mais intimista e poético a cada trabalho, Truffaut afastava-se de Godard, que tornava seu cinema cada vez mais político, separando-se de Truffaut tanto em sua obra como pessoalmente. Brigaram. Porém, após dar sequência à saga autobiográfica de Antoine Doinel em 1962, com Amor aos 20 anos, ele paradoxalmente abriu uma exceção em 1966, quando foi à Inglaterra filmar Fahrenheit 451, pesadelo futurista baseado num romance de Ray Bradbury com Oskar Werner e Julie Christie nos papéis principais. É um filme sobre o amor aos livros num futuro totalitário em que eles são sistematicamente queimados. “Por que não popularizar, com a ajuda do cinema, bons títulos literários”, disse na época. Aliás, repassar livros para a linguagem cinematográfica era algo em que era mestre.

Cena de Fahrenheit 451

Outro grande filme foi A Noite Americana, de 1973. Talvez em função no título, é sua obra mais celebrada nos EUA. O título refere-se à técnica de iluminação para simular a noite em filmagens durante o dia. Recebeu o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1974. É um filme sobre a realização de outro filme, Je Vous Presente Pamela, ou, melhor dizendo, há um filme dentro do filme. Além de mostrar os bastidores da produção, vemos o próprio diretor atuando. A história acompanha a produção e os problemas das vidas particulares de toda a equipe. É uma bela crônica de amor ao cinema e também sobre o descontrole de um artista sobre a obra. O diretor vivido por Truffaut só busca “salvar o filme”. Deliciosa e leve sem ser fútil, A Noite Americana, deixa-nos ainda mais apaixonados pelo cinema. Dos filmes metalinguísticos, que procuram refletir sobre o cinema através do cinema, A Noite Americana é o melhor exemplar. A alegria que o filme transmite pode ser entendida por uma resposta que Truffaut deu a um jornalista em 1970, falando sobre suas obras: “Eu sou da família de diretores para os quais o cinema é um prolongamento da juventude”.

http://youtu.be/ZnZ_8sjta3I

A elegância clássica e o apuro visual de A História de Adèle H. remete a um outro filme do próprio cineasta, As Duas Inglesas e o Amor. Ambos são fotografados por Nestor Almendros e, além de contar boas histórias, têm cenas que mais parecem quadros. Adèle H. narra o amor e a loucura de Adèle Hugo, a filha de Victor Hugo que persegue um militar pelo qual é apaixonada na França, Canadá e em Barbados. De quebra, apresenta Isabelle Adjani no papel trágico que tentou repetir sem sucesso durante toda sua carreira. Esta love story solitária, esta história de amor protagonizada por apenas um personagem que vai atrás de seu objetivo inatingível, é um dos mais belos estudos sobre o amor e a solidão.

A Idade da Inocência, de 1976, é totalmente diferente. Despojado, livre e improvisado, é metade documentário e metade ficção, da mesma forma que fez antes em O Garoto Selvagem. Aqui, Truffaut acompanha uma turma de adolescentes e pré-adolescentes, observando suas relações, casos amorosos, piadas e brincadeiras. São contadas muitas histórias de jovens de várias classes sociais. Como ensaiavam? “Ora, eu lhes dizia muito poucas palavras para explicar o que elas tinham que fazer e dizer. Queria que elas usassem suas próprias palavras e que fossem naturais em suas atitudes. Funcionou bem mas foi muito cansativo, elas falavam demais e, juntas, faziam muito barulho…”, disse Truffaut sobre o set de filmagens.

Truffaut e algumas das centenas de crianças que participam de "A Idade da Inocência"

1977 foi o ano de outro extraordinário filme, O homem que amava as mulheres. Charles Denner faz o papel de um Don Juan que procura e quase sempre consegue conquistar as mulheres que lhe interessam — quase todas. O filme começa com o funeral de Bertrand (Denner). Mais parece um exército de saias e saltos altos. A seguir, o filme é um catálogo de seduções. Cada mulher é abordada de uma forma diferente, a começar pela moça do serviço de despertador que lhe telefona todos os dias pela manhã e que é chamada de Aurora por Bertrand. “George Simenon afirmava ter ‘conhecido’ 10.000 mulheres… Meu personagem é um aprendiz perto dele. É um poeta que diz que ‘as pernas das mulheres são como hastes de compassos que cavalgam o globo terrestre em todos os sentidos, dando-lhe equilíbrio e harmonia’. Não sei como Simenon conseguia tantas mulheres, mas Bertrand não é alguém vulgar que pega mulheres nos corredores ou no chão. Ele joga o jogo da sedução”.

Para finalizar, destacamos O Último Metrô, que trata da ocupação de um teatro de Paris por parte dos nazistas. O teatro é dirigido por Lucas Steiner (Heinz Bennent), um bem sucedido diretor judeu que supostamente fugiu da França. Sua esposa Marion (Catherine Deneuve), faz de conta assumiu a direção do teatro e da nova peça. Ela contrata o ator Bernard Granger (Gerard Depardieu). Para dirigi-lo em cena, Marion se socorre das orientações de seu marido, que, na verdade, está escondido no porão do teatro. É mais um trio amoroso proposto por Truffaut. Com uma extraordinária trinca de atores nos papéis principais — os citados Deneuve, Depardieu e Bennent –, o filme funciona como poucos.

Catherine Deneuve e Heinz Bennent em cena de "O Último Metrô" (1980)

Truffaut manteve durante toda a sua carreira a marca da paixão: amava o cinema, os livros, as mulheres e sua produção demonstra como poucas o autor que há por trás dos filmes. Vale a pena conhecê-lo.

Abaixo, todos os longas do diretor:

1983 De Repente, Num Domingo (Vivement Dimanche!)
1981 A Mulher do Lado (La Femme d’à Côté)
1980 O último metrô (Le dernier metro)
1979 O amor em fuga (L’amour en fuite)
1978 O Quarto Verde (La chambre verte)
1977 O homem que amava as mulheres (L’homme qui aimait les femmes)
1976 Na idade da inocência (L’argente de poche)
1975 A História de Adèle H. (L’Histoire d’Adèle H.)
1973 A noite americana (La nuit americaine)
1972 Uma jovem tão bela como eu (Une belle fille comme moi)
1971 As duas inglesas e o amor (Les deux anglaises et le continent)
1970 Domicílio conjugal (Domicile conjugal)
1969 O Garoto Selvagem (L’Enfant Sauvage)
1969 A Sereia do Mississipi (La Sirène du Mississipi)
1968 Beijos Proibidos (Baisers Volés)
1967 A noiva estava de preto (La mariée etait en noir)
1966 Fahrenheit 451 (Fahrenheit 451)
1964 Um Só Pecado (La Peau Douce)
1962 Amor aos 20 anos (Antoine et Colette)
1962 Uma Mulher Para Dois (Jules et Jim)
1960 Atirem no Pianista (Tirez Sur le Pianiste)
1959 Os Incompreendidos (Les Quatre Cents Coups)

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