Em 2003, respondi por escrito a um questionário cujo título era “Gosto literário se discute”. Sou um compulsivo respondedor de questionários e testes. Se, por exemplo, vejo em alguma revista um daqueles testes do tipo “Como está seu coração” ou “Descubra se você será traído por sua mulher?”, saio respondendo na hora. É claro que não resistiria a tal proposta, assim como não resisti a responder um teste sobre TPM numa revista Cláudia da minha mãe…
Não sei quem criou as perguntas a seguir.
Qual o livro que você mais relê?
“A Metamorfose”, de Franz Kafka.
E que livro relido ficou melhor?
“O Idiota”, de Dostoievski.
Dê exemplo de livros injustiçados que, apesar de muito bons, nunca foram devidamente louvados.
São tantos!:
– “Memorial de Aires”, de Machado de Assis;
“- Laços de Família” de Clarice Lispector,
– “Luzia-Homem”, de Domingos Olímpio;
– “Quatro-Olhos”, de Renato Pompeu;
– “Dona Guidinha do Poço”, de Manuel de Oliveira Paiva;
– toda a obra de Sergio Faraco e
– mais uns 100.
Cite um livro decepcionante, que frustrou suas melhores expectativas?
“Alta Fidelidade” de Nick Hornby, o filme sugeria algo melhor. Os últimos livros de Günther Grass e de João Gilberto Noll estão firmes nesta disputa.
E um livro surpreendente, isto é, bom e pelo qual você não dava nada?
“A Flor, a Carne, os Figos (sobre as mulheres)”, de Heloísa Pedroso de Moraes Feltes.
Há cenas marcantes na boa literatura. Cite duas de sua antologia pessoal.
Vou arrasar nessa: a cena em que Ivan Fiodoróvitch Karamazov conta a Parábola do Grande Inquisidor em “Os Irmãos Karamázov”, de Dostoievski; e o diálogo entre Adrian Leverkühn e o diabo (Cap. 25) em “Doutor Fausto” de Thomas Mann. Há o famoso capítulo 8 deste livro, mas penso que este interesse mais a músicos e melômanos.
Há personagens tão fortes na literatura que ganham vida própria. Cite os que tiveram esta força na sua imaginação de leitor?
– Dom Quixote, em “Dom Quixote”;
– Sílvia, de “O Tempo e o Vento” (Parte III, “O Arquipélago”), de Erico Verissimo;
– Vania de “Tio Vania”, de Anton Tchekhov;
– Tristram Shandy, de “A Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy”, de Laurence Sterne;
– o narrador de “Opiniones de um Payaso” (trad. para o espanhol), de Heinrich Böll;
– Alejandra, de “Sobre Heróis e Tumbas”, de Ernesto Sábato;
– o Homo Faber, de Max Frisch;
– o Conselheiro Aires, do “Memorial de Aires”, de Machado de Assis;
– Anna de “O Carnê Dourado” de Doris Lessing;
– Lucien de Rubempré de “Ilusões Perdidas”, de Balzac;
– Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf; etc.
Qual o livro bom que lhe fez mal, de tão perturbador?
“Berlim Alexanderplatz”, de Alfred Döblin.
E qual o que lhe deu mais prazer e alegria
Foram tantos… Como foi pedido só um, vai lá: “Sete Novelas Fantásticas” de Isak Dinesen ou “Dom Quixote”, de Miguel de Cervantes, escolha você!
E o que mais lhe fez pensar?
Um só? “Extinção” de Thomas Bernhardt.
Cite…
a) um livro meio chato, mas bom
“V.” de Thomas Pynchon.
b) um livro que você acha que deve ser muito bom mas que jamais leu
Apenas “Finnegans Wake”, de James Joyce.
c) um livro que não é um grande livro, apenas simpático
“Ensaio Sobre a Cegueira” de José Saramago.
d) um livro difícil, mas indispensável
“Os Mímicos” de V.S. Naipaul.
e) um livro que começa muito bem e se perde
“Maus presságios” de Günther Grass.
f) um livro que começa mal e se encontra
“Brincando nos Campos do Senhor”, de Peter Mathiessen.
g) um livro que valha apenas por uma cena ou por um personagem, ainda que secundário
O olhar entre Sarah Woodruff e Charles Smithson em “A Mulher do Tenente Francês” de John Fowles.
Qual o início de livro mais arrebatador para você?
“A Metamorfose” de Franz Kafka.
De que livro você mudaria o final? Como?
“Crime e Castigo”. Eu deixaria Raskolnikov sem salvação.
Que livros ficariam muitos melhores se um pedaço fosse suprimido?
“Guerra e Paz”, que prescinde daquela longa tese no final (mais ou menos 50 páginas).
Que livros que não têm nada a ver com você, até contrariam algumas de suas convicções e que ainda assim você considera bons ou recomendáveis?
Eu odeio dizer que adoro os livros do fascista Céline: “Morte a Crédito”, “Viagem ao Fundo da Noite”, etc.
A literatura contemporânea é muito criticada. Cite livro (s), escrito (s) nos últimos dez anos, aqui ou no mundo, que mereça (m) a honraria de clássico (s) ou obra-prima (s).
– “O Avesso da Vida”, de Philip Roth;
– “As Confissões de Lúcio”, de Fernando Monteiro (*);
– “Afirma Pereira”, de Antonio Tabucchi;
– “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, de José Saramago;
– “As Horas”, de Michael Cunningham.
(*) Sou amigo de Fernando Monteiro, mas esta amizade só existe porque elogiei “Aspades, ETs, etc.”; ou seja, minha admiração por seus trabalhos antecede nosso contato.
Por falar em clássicos. Para que clássico brasileiro de qualquer época você escreveria um prefácio daqueles que incitam a leitura?
Para “Memorial de Aires”, de Machado de Assis. Tenho certeza de que seria muito convincente.
Cite um vício literário que considere abominável.
As explicações nos rodapés por parte dos autores.
E qual a virtude que mais preza na boa literatura?
Pensei muito e seria complicado de explicar, mas a virtude que mais prezo é uma certa serena ousadia encontrável em mestres como Anton Tchekhov.
De que livro você mais tirou lições para seu ofício?
Não sou escritor, mas, se fosse, diria que o mais “pedagógico” são os contos de Machado de Assis.
E que a frase ou verso que escolheria como epígrafe desta entrevista?
Ora, só pode ser….
Não, meu coração não é maior que o mundo.
É muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores.
Por isso gosto tanto de me contar.
Por isso me dispo,
por isso me grito,
por isso freqüento os jornais, me exponho cruamente na livrarias:
Preciso de todos.
Mundo Grande (Fragmento) – Carlos Drummond de Andrade
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É sacanagem. Não conseguia sair da frente do rádio e fazer o que tinha para fazer. A Rádio da Universidade atrapalhou todo o meu dia programando a seguinte seqüência:
– J.S.Bach: Sonata em lá maior, BWV 1032, p/flauta e cravo obbligato – parece tão simples esta espetacular obra do pai de
– J.C.Bach: Sinfonia Concertante em lá maior, p/violino e cello – o Bach de Milão que criou o estilo galante, cujo maior mestre foi
– Mozart: Serenata nº 12, K. 388, em dó menor – cuja gentileza faz-nos lembrar os primeiros anos daquele jovem arrogante que reivindicava para si o título de Tondichter (poeta dos sons) o qual chamava-se
– Beethoven: Quarteto de cordas nº 5, Op. 18, em lá maior – que nos lembra sempre espantosas obras de câmara e grandiosas sinfonias, o que nos trouxe
– Bernstein: Sinfonia nº 2, “A Idade da Angústia”, baseada em poema de Auden – sinfonia ab-so-lu-ta-men-te perfeita e que abriu espaço para um belo
– Programa Olinda Alessandrini – sobre a ignorada música erudita brasileira.
É que às vezes eles resolvem que não servirão de música de fundo. Decidem que a gente tem que ouvi-los. Aí, não dá para trabalhar.
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