O Milton de 2001 encontra o de 2003 (II)

Na saída do cinema, Milton 2003 aguardava sua versão 2001. Caminham juntos.

2003: Que filme original e triste, né? Gostaria que dissesses algo para que eu pudesse recuperar meu sentimento pós-filme.
2001: O filme é muito bom e comovente, mas não tenho nada de especial para dizer. Acho fantástico o fato de alguém ter tido a coragem de fazer um musical inusitado, realista. É um grande filme. Quem imaginaria Björk – atuando como atriz – e Catherine Deneuve num filme dirigido pelo Lars von Trier? A cena do assassinato coloca a personagem de Björk frente a uma questão sem solução. As duas opções que o homem lhe dá são terríveis e ela escolhe seu filho, é claro.
2003: Não entendo, não ias ver o Henry Fool, que é excelente?
2001: Mudei meu ingresso na última hora, não quis ver o filme de um fracassado.
2003: E então escolheste o da cega?
2001: Sim! (risadas de ambos)
2003: É, nós também escolheremos nossos filhos na separação. Sairemos sem nada. Deixaremos tudo o que pudermos. A intenção será a da busca da tranquilidade mediante uma tremenda auto-agressão, uma coisa inócua a qualquer que um não fosse nós mesmos e que visava demonstrar uma certa nobreza de caráter, uma certa elegância ao estilo século XIX… Será uma tentativa de recomeço aos 44. Logo depois, teremos a certeza de ter cometido um erro. Nosso amigos não entenderão, acharão injusto e até seremos instigados por eles a fazer uma revisão das coisas. Porém, não faremos nada. Talvez o reconhecimento deles baste para nos deixar tranqüilos.
2001: Acho que prefiro assim mesmo. Mas pelo menos vou ficar com os meus livros e CDs, não?
2003: Claro que vais. Vais te livrar das posses, não de ti mesmo. (risadas)
2001: Até porque é meio complicado conseguir uma coisa dessas. Vai ficar alguma coisa minha lá?
2003: Não muito, não será necessária uma troca de prisioneiros em grande escala, até porque vais deixar quase tudo. Além disto, mesmo hoje, as coisas já estão separadas, prontas para a cisão.
2001: Eu quero que tu respondas as perguntas que fiz antes do entrar no cinema. Quero saber das tuas perspectivas, sobre minha situação com esta Claudia, onde vamos morar, etc.?
2003: Novamente estás confuso, peço-te calma. Falaste na mesma frase sobre “minha situação”, “tuas perspectivas” e “onde vamos morar”, são muitas conjugações diferentes.
2001: É que nunca estive conversando com meu duplo futuro…
2003: Me encare como um gêmeo um pouco mais grisalho. Observe como as pessoas não demonstram muita surpresa ao nos ver. Vamos às perguntas: sairás da tua casa para morar com a mãe. Terás muita vergonha de dizer isto.
2001: Como é que é? (Engolindo em seco) Eu vou voltar para casa? Vou dormir no quarto de onde saí para morar sozinho?
2003: Sim. E, apesar da vergonha que terás de teu domicílio e de tua depressão inicial, viverás muito bem lá. Nossa querida Maria Luiza não será invasiva, nem chata e não vai ficar perguntando coisas. Te dará a mais consoladora das hotelarias e a maior liberdade.
2001: Bela peça de propaganda imobiliária…
2003: Não seja injusto. Acabarás enchendo de música e de roupas para lavar e passar a vida de duas velhinhas… As crianças adorarão a casa enorme cheia de quinquilharias e o serviço cinco estrelas que terão. A Inah, a empregada, vai tornar lei cada pedido deles. Dará tudo certo.
2001: E esta Claudia?
2003: Não vou te tirar a surpresa descrevendo-a. Posso te dizer que ficaremos longo tempo em duas casas. Dormiremos fora 5 dias da semana e nos outros dois ficaremos com as crianças na casa da avó. Será uma fase muito cigana, até feliz, se compararmos com o pós-separação. Muitas vezes vamos errar as roupas. Levaremos roupas leves e o dia amanhecerá frio. Então, ficaremos tiritando sob roupas leves e amarrotadas, sempre amarrotadas.
2001: Como vou conhecê-la?
2003: Tu vais ficar muito tempo em casa e te dedicarás à música, à leitura e à Internet. A Claudia virá através da rede, será uma surpresa. Redescobrirás quão grudento podes ser quando apaixonado. Ficarás todo o tempo possível junto dela. Ela está muito presente no capítulo perspectivas.
2001: E as crianças?
2003: Quando souber da Claudia, o Bernardo dirá que tu és um cara legal e que merece ter uma namorada, mas não vai querer conhecê-la logo. Demorará uns 2 meses. A Bárbara ouvirá tudo com aparente frieza, mas, depois de uma semana, perguntará: “Vou ter 2 mães?”, responderás a ela que a Claudia será somente mais uma amiga. Contrariamente ao Dado, ela vai querer conhecê-la imediatamente. Serão amicíssimas. O primeiro encontro das duas será antológico. A Bárbara não falará nada, ficará escondida em seus próprios cabelos, espreitando a novidade.
2001: E as perspectivas? Quais serão meus desejos e planos?
2003: Façamos uma terceira sessão qualquer hora destas.
2001: Por que não agora?
2003: Tenho que voltar. Te encontrarei na saída de uma destas sessões de… terapia familiar. (risadinha infame)
2001: Não entendi a graça.
2003: Se eu te explico o motivo, talvez isto mude nosso futuro. Quero chegar aqui assim, estamos melhor agora.

(Continua)

O Milton de 2001 encontra o de 2003 (I)

O Milton de 2001 estava sentado num bar, fazendo hora antes de entrar no cinema, quando viu entrar e dirigir-se a ele uma pessoa extremamente parecida consigo, talvez um pouco mais velha.

2003: Como vai, mal?
2001: Sim, muito mal. Quem és tu?
2003: Nós somos o mesmo Milton Ribeiro, só que eu vim de 31 de outubro de 2003 para te visitar e auxiliar. Sei que sofres muito. É muito natural que tenhamos grande apreço um pelo outro. (risada da parte de 2003) Vais te separar, tua vida vai mudar completamente nos próximos meses e eu voltei no tempo para te dizer que sobreviveste.
2001: Putz. Não basta eu estar começando aquela terapia familiar! Ainda me vem um louco…
2003: A terapia familiar só funcionará para as crianças e não somos loucos.
2001: E como poderias me provar que és… eu?
2003: Vou te provar quem sou. Ouça com atenção: nossa primeira relação sexual foi com uma colega de aula chamada Maria Cristina, que morava na Rua Santana e, depois de termos beijado apaixonada e insistentemente a moça – que era esplêndida! – na porta de sua casa, colocamos o dedo indicador em seu peito e a empurramos delicadamente para dentro. Entramos junto, é claro. O ato foi consumado na sala, atrás do sofá, enquanto os familiares dela dormiam com os anjinhos. Tu nunca contaste isto para ninguém.
2001: E tu, já contaste?
2003: Contei para ti agora, mas antes já tinha contado para a Claudia.
2001: Que Claudia?
2003: Uma pessoa que vamos conhecer em 3 de abril de 2002, através de um site.
2001: (risadas) Eu vou conhecer uma pessoa através de um site? Que baixaria!
2003: É surpreendente que digas isto. Principalmente se considerarmos a absoluta convicção com que fizeste… a baixaria.
2001: Tu estás mais gordo e grisalho.
2003: É o tempo, né? Quanto ao peso, discordo. Aumentamos pouca coisa, só dois quilos. Tenho 72 kg, tu tens 70 kg. Para nosso 1,71m está bom.
2001: Minha vida vai melhorar?
2003: Hoje não sofro tanto.
2001: Vou me separar?
2003: Sem dúvida, já disse isto.
2001: Vamos por partes. Quando e como vou me separar?
2003: Em julho de teu ano. Não haverá traição, histeria, grandes cenas, nada. Apenas será dado um ponto final a esta relação indigente. Será o caso clássico, vais pensar seriamente em suicídio e, também de forma clássica, não darás nenhum passo nesta direção. Terás vontade de chorar na frente dos outros ou dentro dos cinemas, farás enormes esforços para se conter; porém, sozinho, não derramarás nenhuma lágrima. Será desespero seco.
2001: E as crianças?
2003: Serão as tuas melhores lembranças do período. Vão te dar apoio e serão indulgentes com tua “nova pobreza”.
2001: Pobreza?
2003: É claro, os ganhos do casal não vão duplicar com a separação e vocês terão de manter duas casas. É uma questão de matemática simples. E saibas que a ausência a que pensas que relegarás teus filhos te deixará muito desprendido de bens materiais, muito despojado.
2001: Acho que eu não quero continuar conversando.
2003: A curiosidade pode matar…
2001: A mágoa mata mais.
2003: É verdade e é um livro do Saul Bellow. (risadas de ambos)
2001: Vou fazer uma pergunta.
2003: Vim aqui para isto.
2001: Hoje tenho a perspectiva que conheces, quero saber qual a perspectiva que terei em 2003. É outra? E quem é esta Claudia? Eu já casei de novo? Onde vou morar?
2003: Calma, estás muito ansioso e tuas perguntas não são inteligentes.
2001: …e… neste ínterim… vou comer muitas mulheres?
2003: Olha, Milton, não quero te atrasar para o cinema, vais adorar este filme. Ele vai para a tua lista de melhores de 2001. Apesar disto, vou te responder a última pergunta: só umas 3. Depois, a Claudia vai te açambarcar…
2003: (risadas) Que bom! Que me devore!

O Milton de 2001 entra na sala escura a fim de ver As Confissões de Henry Fool, de Hal Hartley, enquanto sua versão 2003 some na rua.

(Continua)

Pela complexidade

Ontem, estourou uma bombinha no twitter: uma irritação feminista contra um texto publicado no blog do Luiz Nassif que citava a palavra feminazi para caracterizar certo gênero de feminismo. É claro que o mau gosto é evidente e que a analogia entre feminismo e nazismo é infelicíssima, até porque, até onde sei, só existe um tipo de nazismo e este é terrível.

A briga no twitter e nos posts levam todos a posições exageradas e falsas. As feministas passam a demonstrar ojeriza e incompreensão para com o jornalista. Ele, dias atrás tão legal, avançado e “de esquerda”, transformou-se num monstro. Em resposta, ele e seus defensores tiram sarro, adotando pontos de vista cada vez mais machistas. Os dois grupos correm para os extremos, empurrados pelas figurinhas carimbadas de sempre. Não penso que nenhum dos dois grupos seja tão enlouquecidamente equivocado. Mas tornaram-se nas últimas horas. É claro que “os machistas” não têm razão, digamos, primária na questão — pois nem eles acreditam que a expressão discutida seja justa — , mas foram levados a defender-se em função dos ataques.

Casualmente, estou deliciando-me com Um teto todo seu, de Virginia Woolf. OK, não é um livro feminista tal como entendemos a palavra hoje, apesar de ser um texto que deixa muito claras as injustas posições da mulher na sociedade das primeiras décadas do século XX — seu tema, na verdade, é “As Mulheres e a Literatura”. Mas a lição de equilíbrio e a noção de que há camadas e mais camadas de complexidades sob o tema fica desnudada no livrinho de VW (138 páginas, na edição que leio). Isso é tudo o que não acontece na briga de bugios (*) ora observada. É notável como os grandes autores que permanecem como referência maiores, são aqueles que não têm soluções ou palavras definitivas. Dostoiévski mostra todos os lados das questões sem escolher nenhum; Tchékhov dá uma sucinta aula cada vez que demonstra que há paixão e motivos profundos até num passar da faca na manteiga; Virginia é mais explícita e parte para o intimismo a cada linha, expondo uma confusão que chega ao ponto de ser gloriosa; Freud é humilde e costumava retificar-se e dar a cara ao tapa a cada duas páginas… E há mais exemplos, muitos mais. Mas os contendores de ontem têm certezas absolutas.

O importante é ofender, é amassar o adversário. Não deixa de ser curioso.

(*) Diz-se da briga ou discussão acalorada entre duas ou mais pessoas, onde o xingamento, o palavrão e as ofensas mais pesadas são usadas contra o outro. Os bugios, quando brigam, usam a própria bosta para atingir o adversário.

Dmitri Shostakovich (VIII – Final)

Na primeira parte do último texto, escreverei uma pequena introdução sobre meu diletantismo radical de escolher um compositor para passar centenas de horas a lê-lo e ouvi-lo. Há muita coisa boa e muita porcaria publicada. Já as gravações são quase todas boas. Ele não é compositor para músicos diletantes…

Os piores textos vêm daquelas alas que atribuem ou buscam descobrir alguma posição política no homem e na obra. Tais posturas, encontráveis tanto à direita quanto à esquerda, com predominância daquela, servem apenas para mostrar a ideologia de quem escreve, o que, convenhamos, pouco interessa neste caso. Depois de muito ler, fica clara a grande e falsa exposição que Shostakovich obteve durante da Guerra Fria, no Oriente e no Ocidente. Ambos os lados o utilizaram como exemplo de suas teses. Ele e outros intelectuais soviéticos foram espécies de caixas pretas nas quais se podia adesivar as mais diversas opiniões e posições. Não, Shostakovich nem representava o governo soviético, nem esteve ao lado dos dissidentes Soljenítsin e Sakharov. Se teve inúmeras oportunidades de permanecer no Ocidente e não o fez (argumento da esquerda), também sofreu horrores com Jdanov, Stálin e mesmo depois (argumento da direita); se escreveu ironias ao estado soviético (Cantata Rayok, argumento da direita), também cantou o heroísmo da revolução em obras não encomendadas. Shostakovich parece-me ter sido alguém cujo pensamento político possuía pouca relevância e que agia sempre como artista e ponto. Só isso? Não, em minha opinião, ele era um comunista muito crítico e reto, com uma complexa relação de amor e ódio ao poder da URSS. Apenas Stálin era cem por cento abominado. Era um artista, não um político; não seguia as linhas tortuosas, às vezes indefensáveis, que os partidos frequentemente defendem. Utilizou-se de temas de sua época, porém a perspectiva sob a qual via o mundo era, curiosamente, sempre foi a dos mortos. Dos mortos pelos nazistas, pelos anti-semitas, pelos soviéticos, por Stálin ou pelo passar do tempo, como em toda sua obra final. Como escreveu Fernando Monteiro, toda grande obra gira em torno de três temas: Amor, Deus e Morte. Acho que Shostakovich, teve muito a dizer sobre todos, principalmente sobre os dois últimos temas; o primeiro pela inexistência, o segundo pela onipresença.

Aliás, com o passar do tempo — o qual tem o bom costume de fazer aparecer a verdade e o pouco recomendável hábito de fazer desaparecer nossos pobres corpos –, a discussão sobre o pensamento político de Shostakovich tornar-se-á ociosa e ficará o que interessa: o homem e o compositor; e este era um sujeito brilhante e produtivo, deprimido e eufórico, que torcia interminavelmente os dedos, como mostram os filmes soviéticos, sentado num trem olhando a chuva bater na janela; que homenageava a pureza de alguns revolucionários e criticava ou expelia seu amargor e sarcasmo aos governantes; que permanecia parado por horas em silêncio com os amigos de que gostava — e só com eles.

Por falar em gostar, o que gosto em Shostakovich é sua música. Ela é produto de um artista apaixonado e inacreditavelmente produtivo. A forma com que ele se relacionou com seu tempo serviu à sua música e não o contrário. Escrevia para ser compreendido e para expressar-se, mas não tinha ilusões de mudar seu país e o mundo, que é como parece pensar quem só vê política na arte de Shostakovich. Sua música, antiquada para os modernos e moderna para os anacrônicos (sem ofensas, sem ofensas…), consegue ser visceral e cerebral, e concordo com este artigo quando seu autor fala no quanto a audição de Shostakovich demandou-lhe subjetivamente. Não é música para ser assimilada nas primeiras abordagens e nem esquecida facilmente. São experiências oferecidas por alguém disposto a buscar tudo o que estivesse à mão para expressar o que desejava e que produziu uma obra séria, sarcástica, deprimente, divertida, inteligente, lúdica e extraordinária: às vezes, tudo ao mesmo tempo.

A seguir, comento as três últimas grandes obras de Shostakovich.

Quarteto de Cordas Nº 14, Op. 142 (1972-73)

Este é quase um quarteto para violoncelo solo e trio de cordas, tal é a proeminência dada àquele instrumento. É um quarteto inspiradíssimo, escrito em três movimentos (Allegretto – Adagio – Allegretto), e que tem seu centro dramático em um dilacerante adagio de 9 minutos. Não consigo imaginar uma audição deste quarteto sem a audição em seqüência do Nº 15. Eles, que costumam aparecer juntos, seja em vinil ou em CD, formam, em minha imaginação, uma só música.

Quarteto de Cordas Nº 15, Op. 144 (1974)

Este trabalho, assim como a sonata a seguir, são tidas como obras-primas e seriam os dois principais “réquiens privados” de Shostakovich. Concordo.

O que dizer de um obra escrita em seis movimentos, em que quatro deles são adagio e os outros dois são adagio molto, sendo que, destes dois últimos, um é uma marcha funeral e outro um epílogo…? Ora, no mínimo que é lenta. Porém, como estamos falando do Shostakovich final, estamos falando de uma obra que tem como fundo a morte. Há três movimentos realmente notáveis nesta música: a Serenata: Adagio, a Marcha Fúnebre – Adagio Molto e o musicalmente espetacular Epílogo – Adagio Molto. O Epílogo recebeu vários arranjos sinfônicos e costuma aparecer — separadamente ou não do resto do quarteto — em gravações orquestrais.

Sonata para Viola e piano, Op. 147 (1975) – A Última Composição

Esta é a última composição de Shostakovich e uma de minhas preferidas. Ele começou a escrevê-la em 25 de junho de 1975 e, apesar de ter sido hospitalizado por problemas no coração e nos pulmões neste ínterim, terminou a primeira versão rapidamente, em 6 de julho. Para piorar, os problemas ortopédicos voltaram: “Eu tinha dificuldades para escrever com minha mão direita, foi muito complicado, mas consegui terminar a Sonata para Viola e Piano”. Depois, passou um mês revisando o trabalho em meio aos novos episódios de ordem médica que o levaram a falecer em 9 de agosto.

Sentindo a proximidade da morte, Shostakovich escreveu que procurava repetir a postura estóica de Mussorgsky, que teria enfrentado o inevitável sem auto-comiseração. E, ao ouvirmos esta Sonata, parece que temos mesmo de volta alguma luz dentro da tristeza das últimas obras. A intenção era a de que o primeiro movimento fosse uma espécie de conto, o segundo um scherzo e o terceiro um adágio em homenagem a Beethoven. O resultado é arrasadoramente belo com o som encorpado da viola dominando a sonata.

Os primeiros compassos da Sonata ao Luar, de Beethoven, uma obra que Shostakovich frequentemente executava quando jovem pianista, é citada repetidamente no terceiro movimento, sempre de forma levemente transformada e arrepiante, ao menos no meu caso… O scherzo possui uma marcha e vários motivos dançantes, retirados de uma outra ópera baseada em Gógol — seria sua segunda ópera composta sobre histórias do ucraniano, pois, na sua juventude ele já escrevera O Nariz (1929) — que tinha sido abandonada há mais de trinta anos. Outras alusões são feitas nesta sonata. Há pequenas citações da 9ª Sinfonia (de Shostakovich), da 4ª de Tchaikovski, da 5ª de Beethoven, da Sonata Op.110 de Beethoven, de Stravinsky, Mahler e Brahms. E a abertura da Sonata utiliza trecho do Concerto para Violino de Alban Berg, também conhecido pelo nome de “À memória de um anjo”, o qual é dedicado à filha de Alma Mahler, Manon, morta aos 18 anos, com poliomielite.

Creio não ser apenas invenção deste ouvinte- – há uma constante interferência do inexorável nesta música, talvez sugerida pela intromissão de temas de outros compositores na partitura, talvez sugerida pela atmosfera melancólica da sonata, talvez por meu conhecimento de que ouço um réquiem. O fato é que Shostakovich estava aguardando.

Shostakovich morreu sem ouvir a sonata, que foi estreada num concerto privado no dia 25 de setembro de 1975, data em que faria 69 anos.

António Barbeiro Fala Francamente a João Cunha

À medida que nossa história avança, chegam-me notícias cada vez mais surpreendentes de Portugal. Em meu post anterior, dizia-lhes que António Barbeiro nunca existira. Não é verdade. Rogério Simões transcreveu nos comentários de meu post anterior um texto de seu pai, hoje com de 82 anos: trata-se de uma nota biográfica de um certo amigo seu chamado João Barbeiro. Este é, sem tirar nem pôr, António Barbeiro. Isto fez com que este humilde escriba pensasse nas vantagens e desvantagens de dividir esta história em capítulos. O lado positivo é a participação dos leitores corrigindo fatos e sugerindo episódios para a trama; o lado negativo é que, quando me apontam os erros, estes já foram publicados e lidos por meus 7 fiéis leitores. Antes de voltar à história, faço uma referência ao que escreveu Ery Roberto: concordo que o episódio com o vô João Cunha parece coisa saída de Dias Gomes – parece mesmo! -, só que este João Cunha é meu avô materno (meu nome completo é Milton Luiz Cunha Ribeiro) e o fato realmente aconteceu entre 1966 e 1969, ano de sua morte.

(continuação do post anterior)

O Dr. João Cunha não era dado a grandes expansões, era da espécie dos homens de poucas palavras, daqueles que preferem demonstrar sua amizade e solidariedade mais por atos concretos do que verbalmente. Não era tosco ou indiferente, era apenas silencioso. Tinha noção de que a presença de António em Cruz Alta era mais do que estranha, mas não comentaria com ninguém suas suspeitas, nem procuraria confirmá-las com o português. E suas suspeitas não eram graves: na sua opinião, António Barbeiro fugira de Portugal por motivos políticos e, naquela época, podia-se ser preso por pertencer ao proscrito Partido Comunista, por falar mal de algum potentado da cidade ou até por salpicar tchekoviana e involuntariamente um general com um espirro. Havia que obedecer e ponto final. E João Cunha intuía que António não era homem de simplesmente obedecer.

O episódio com o vô João Cunha havia aberto a porta da política nas relações entre os dois amigos. Passaram a conversar sobre os problemas de Brasil e Portugal e, pouco a pouco, António foi contando sobre sua ativa participação na vida de Pampilhosa da Serra. Era o responsável pelo Posto dos Correios da aldeia, era um dos poucos homens sabia ler na cidade, possuía livros de medicina onde estavam escritas as composições dos medicamentos que receitava (!) e tornara-se o principal “médico” de Pampilhosa e das povoações das redondezas. Depois contou que participara da Comissão de Melhoramentos, que conseguira implementar o Lavadouro Público, assim como a abertura da mina na fonte velha. Administrara a canalização para a fonte nova e aí já estávamos no âmbito da burocracia, dos escritórios, das solicitações e da política, no âmbito da necessária adulação e dos pagamentos aos homens responsáveis pelos recursos e para isto não servia António Barbeiro.

Então, uma noite, recebeu uma visita de um colega dos correios. Este lhe anunciou atropeladamente que alguns homens em Lisboa haviam feito perguntas sobre o tal Barbeiro que pontificava na aldeia e que, segundo eles, era um enviado de Moscou que desejava “libertar o povo” e implantar o voto feminino. António, que também não era tosco, sabia que havia chegado o momento de partir.

João ouviu muito pouco surpreso o relato; é certo que não conhecia as circunstâncias, mas já imaginava seu cerne. O que não esperava era o pedido de António:

— João, necessito de teu auxílio, preciso de uma nova identidade para voltar à Portugal.

Ora, o corretíssimo João Cunha jamais imaginara fazer algum ato ilícito em sua vida e era uma espécie de campeão do anticomunismo na cidade, então as obrigações da amizade com António faria-lhe passar várias noites em claro. Sua honestidade era indiscutível, era uma espécie de reserva moral de sua família e da cidade. Esta característica não costumava gerar-lhe vantagens, antes gerava convites para que participasse do Conselho de clubes de futebol ou sociais de Cruz Alta, tarefas que sempre recusava educadamente. Ao mesmo tempo, seu caráter estava sendo desafiado pela imperiosa necessidade de ajudar um amigo, o melhor deles, aquele com quem conversava até altas horas da noite, seu parceiro no rádio-amador e o amigo da família preferido de suas crianças, especialmente da mais nova, Lilinha.

Um dia, João Cunha foi a Porto Alegre com a filha Iara que prestaria exame vestibular na Universidade Federal. Como do seu feitio, não disse nada a António, mas em Porto Alegre tinha planos de conversar com um político cruzaltense situacionista sobre um passaporte e uma carteira de identidade autênticos — isto é, emitidos pela Secretaria de Segurança Pública — e perfeitamente falsos.

(continua)

António Barbeiro Volta a Escrever Cartas (II)

Este interessante projecto, continuado no Brasil, poderia ter uma continuidade interessante…
Enquanto o António, barbeiro de profissão, enfermeiro e escritor nas horas vagas, se aventurava à procura por Antares, no Rio Grande do Sul, a sua família, que desconhecia o seu paradeiro, sofria na Serra.
Certo dia, o António, escreveu uma carta em segredo para um parente da sua confiança em Lisboa. A família quando soube que o António estava vivo… partiu a pé para Fátima…
Até breve…

(continuação de post anterior)

António continuou na barbearia ouvindo seus clientes. Gostava de suas histórias e, quando emudeciam, estimulava-os falando do tempo, das crianças que não cuidavam ao atravessar a rua, da inflação, do dólar, oferecia-lhes jornais, o que sempre fazia com que comentassem alguma notícia. E que dias eram aqueles! Com os meios de comunicação sob censura, parte das acontecimentos eram inevitavelmente coloridos pelas imaginações dos clientes.

Certa manhã, ocorreu um fato cômico e triste. O pai do Dr. João Cunha era um octogenário aposentado que sofria do Mal de Alzheimer. Durante sua vida ativa, fora um daqueles “construtores da casas sem diploma” e marceneiro. Eram de sua autoria muitas das residências de estilo açoriano que havia na cidade. Porém, na época de António, este homem às vezes não reconhecia mais nem seus netos e passava seus dias dizendo inumeráveis (e memoráveis) sandices. Em seus curtos momentos de lucidez, tinha o hábito de comentar política e de recitar de memória poesias de Casimiro de Abreu – o único poeta que lera com paixão durante sua vida. Pois, numa manhã nublada, vô João Cunha plantou-se bem em frente ao quartel do 17º Regimento de Infantaria com a finalidade de atacar os militares e mudar os rumos do país. A primeira fase de sua estratégia incluía um notável discurso contra a ditadura naquele local. Como era muito cedo da manhã, o orador não tivera tempo de vestir-se e apresentava-se ainda de pijamas. António — que aquela hora matinal estava barbeando um militar — tomara um susto ao ouvir inesperadamente a poderosa voz do velho iniciando seu ataque:

— Parasitas da Nação! Saiam de suas tocas e venham expor seus motivos! O fechamento do Congresso Nacional…

Quando o barbeiro viu de quem se tratava, correu a alertar João Cunha pelo telefone:

— Meu amigo! Seu pai está aqui a apostrofar os milicos! Quer briga! Ainda está de pijama; penso que acordou e veio enfrentá-los. Os milicos estão rindo dele, mas tens que tirá-lo daqui. Pode haver tumulto.

João deixou um cliente de boca aberta na cadeira de dentista para ir buscar o pai em seu Aero-Willys. Ao chegar, viu o velho, o barbeiro, alguns populares e militares frente ao portão aberto. Todos estavam sorridentes, exceto o indignado velho e António, que procurava convencê-lo calmamente a voltar para casa. Quando João Cunha saiu às pressas do carro, um dos militares gritou:

– Ô, Dr. João! Teu pai está organizando a reação comunista aqui na frente do quartel! Acho que já já vai chamar seus guerrilheiros!

Todos riram — os militares autenticamente, os populares para agradar ao piadista. Vô João Cunha continuava:

— Desrespeito, desrespeito, corrupção e violência! Esta é a verdadeira ideologia…
— Chega, pai! Vamos para casa!

O velho calou-se imediatamente, estava acostumado a obedecê-lo. Mas, ainda trêmulo, só aceitou voltar para a casa com uma condição.

— Tira este português maricas de perto de mim. Já me basta os milicos.

Depois deste episódio, as militares sempre referiam-se à terrível ameaça representada pelo velho João Cunha. António apenas ouvia, evitando falar sobre a política brasileira ou portuguesa. Também evitava pensar em Portugal e nos amigos que deixara, porém a saudade insinuava-se lenta no peito. Começou pela comida: passou a sonhar com pratos como cabrito recheado na telha ou como trutas à moda de manteigas, antecedidos de uma sopa beirã e seguidos de tigeladas ou filhozes. Passou a buscar em vão locais na cidade em que a gastronomia fugisse do cardápio habitual da região. Neste período, também caminhava pela cidade escrevendo mentalmente cartas a seus amigos em que descrevia longa e amorosamente a região onde se encontrava e apresentava seu amigo João Cunha e outros a qualquer destinatário português do qual sentisse saudade. E estes — os destinatários — eram muitos. Pedia em troca notícias dos amigos, principalmente de Manoel Martins Ribeiro, de Maria Branco, de Rogério Simões e de alguns de seus pacientes.

O nome Maria Branco ficou-lhe impresso e o próximo passo foi o de refletir em como poderia entrar em contato com ela de forma incógnita. Maria era sua melhor amiga. Ora, se escrevesse para Manoel Ribeiro, que morava em Lisboa, e lhe pedisse para que mandasse uma carta em seu nome para Maria, contando suas aventuras… Ou melhor, se colocasse em um mesmo envelope duas cartas, uma explicativa para Manoel e outra para Maria e pedisse para que Manoel repassasse sua carta para Maria utilizando seu nome como remetente…

Decidiu-se. Escreveu cuidadosamente as duas cartas. Nelas, contava sobre sua amizade com João Cunha, sobre a gastronomia local, informava detalhadamente todos os seus passos que seguira até Cruz Alta e pedia à Maria o favor do qual dependia sua tranquilidade:

Maria, querida. Avise os meus que estou bem. Fiz amigos no Brasil e pretendo aqui ficar pelo tempo necessário aos esbirros me esquecerem. Diga que morro a cada dia de saudades, que estou em uma pequena cidade, que se visse o mar ficaria melhor, que detesto a comida, que tenho bons amigos e que um dia volto.

(continua)

(1) O texto em itálico lá do início é de autoria de Rogério Simões. O restante é meu.
(2) Todos os personagens citados nesta história são reais, à exceção do personagem principal António Barbeiro. Maria Branco e Rogério Simões são blogueiros e os restantes são parentes meus de Cruz Alta.

A Chegada de António Barbeiro ao Brasil (I)

António Barbeiro é um personagem criado pelo poeta português Rogério Simões. Ele permitiu que eu desse continuidade à história de seu personagem António, notável escritor de cartas e, é claro, barbeiro. Transcrevo a seguir um pequeno texto de Simões no qual ele nos apresenta António. Ele jamais imaginaria onde António foi reaparecer…

O António da minha imaginação era um homem notável — barbeiro de profissão e médico-enfermeiro nas horas vagas. António buscou o saber nos velhos livros de medicina e, porque era letrado — poucos na sua Aldeia aprenderam a escrever — , escrevia e lia as cartas do povo. Mas António “Barbeiro” gostava de ouvir! (Os barbeiros escutam sempre e nem sussurram as confidências!).

E, mal tardasse a noite, pé ante pé como se fosse um salteador, acendia o velho aparelho que sintonizava a Rádio Moscovo. António era um homem prevenido. À noite colocava por cima do rádio um copo de água e no silêncio das quatro paredes se a telefonia emitia uns silvos esquisitos, baixava o som até quase não ouvir:

— Não viesse por ali algum “bufo”para o denunciar ou agente da polícia politica para o levar.

Mas o “Barbeiro” que sabia tanto… procurava descobrir na onda curta, da telefonia, o que as emissoras oficiais não lhes contavam. Foi por isso que ouviu dizer que os comunistas iriam libertar o povo e que as mulheres iriam votar…

Talvez por isso que o António, barbeiro de profissão, enfermeiro e escritor nas horas vagas, escrevia “abusivamente” nas entrelinhas, algumas linhas, com recados pessoais para quem eram dirigidas as cartas. Certa noite, de intensa tempestade, o António Barbeiro desapareceu e ninguém mais o viu vivo! Dizem na Aldeia que conhecia os caminhos como ninguém!

António chegou de navio ao Rio de Janeiro num dia ensolarado de verão. Gostava do calor e, após hospedar-se num hotel barato, saiu pela cidade. Em frente à Biblioteca Nacional, comprou um mapa do Brasil e começou a procurar por Santa Fé, no Rio Grande do Sul. Tinha lido O Continente e O Retrato, de Erico Verissimo, e decidira que moraria novamente em uma pequena cidade, exatamente naquela. Só que não encontrou Santa Fé no mapa. Estava encantado com a beleza do Rio, mas achava muito óbvio ficar naquele cidade cheia de portugueses. Mesmo que seu sotaque ficasse mais evidente numa cidade pequena, ele pensava que seria melhor ficar afastado. Entrou na Biblioteca Nacional e puxou conversa com um dos atendentes. Achou estranho seu nome, Hudson, mas como ele falava bom português, perguntou sobre a localização de Santa Fé. Foram aos livros e nada. Deve ser uma verdade ficcional, disse Hudson. António achou a expressão cômica. Voltou ao hotel para — dentre as poucas coisas que trouxera às pressas de Portugal — procurar seu exemplar de O Continente. Amava os livros de Erico, mas não sabia onde ele tinha nascido. Descobriu que o autor nascera em Cruz Alta e vivia em Porto Alegre, ambas cidades no estado do Rio Grande do Sul. A última era uma cidade pequena. Iria para lá.

Esperava que Cruz Alta não fosse mais aquele faroeste descrito por

Comprou passagens para o sul e, dois dias depois, estava chacoalhando dentro de um ônibus. Dormiu uma noite em Porto Alegre e embarcou em novo ônibus com destino à cidade natal daquele escritor que fazia os mortos saírem de suas tumbas a fim de enfrentar os poderosos do dia, pois só eles teriam coragem para tanto.

Cruz Alta era como ele imaginara. Caminhou pelas ruas tranquilas e sentou-se na praça principal. As pessoas que passavam o cumprimentavam. Não havia ali espaço para o anonimato e logo sentiu-se alvo de olhares. Pensou que deveria entabular conversação com alguém que não lhe criasse problemas, mas que havia tempo para fazê-lo com calma. Em frente à praça, havia um consultório dentário onde se lia: João Nepomuceno Cunha Filho — Cirurgião Dentista. Gostou daquele nome e algo difuso — talvez a cor da casa, sua localização, as letras da placa de metal — , dizia-lhe tratar-se de alguém confiável, de boa instrução, amigo; alguém semelhante a Erico. Falaria com aquele homem.

Esperou até o final da tarde e, quando concluiu que o último cliente entrara, sentou-se na ampla sala de espera. Ao despedir-se de sua vítima, o Dr. João Cunha surpreendeu-se com aquela figura desconhecida e sorridente encarapitado no sofá.

— Como vai? — disse o dentista.

A resposta de António fez com que João Cunha risse, pois o que menos esperava era ouvir aquele sotaque puramente português.

— O senhor fala como meus amigos de Portugal!
— Ah, sim? O doutor tem muitos amigos portugueses?
— Sim, tenho amigo por todo o lado sem nunca ter ido muito longe daqui. Sou rádio-amador.
— Que interessante!

O português tinha boa conversa e João convidou-o para ir fumar na praça. Lá ficaram até às oito da noite, quando Débora, a esposa do dentista, veio chamar-lhe para o jantar. A curiosidade era mútua; António interessou-se por aquele dentista interiorano que desejava ser cosmopolita, enquanto João ficara encantado com aquele português tão informado que fora parar ali apenas por amor ao famoso filho da cidade.

— Onde o senhor está hospedado? — perguntou-lhe João Cunha.
— Estou no Hotel Santa Helena – respondeu António. – Convido o senhor a visitar-me. Devo encontrar um Adriano na cidade para oferecer-lhe.

João Cunha riu.

Ao entardecer do dia seguinte, o dentista abriu as cortinas de sua casa e viu António na praça com um jornal enrolado nas mãos. E assim ocorreu dia após dia. António passou a frequentar a casa do doutor — às vezes ficava operando sozinho o rádio-amador — , brincava com seus filhos e até passou a fazer-lhe a barba e a cortar o cabelo de seu filho João Reinaldo, sempre na cadeira de dentista. Em Cruz Alta, o rádio-amador servia de sucedâneo para as cartas que tinha deixado de escrever, mas tinha receio de procurar a Rádio Moscou. Com jeito, sem informar seu nome, perguntava aos rádio-amadores portugueses sobre as novidades do país. O que informavam — com todo o cuidado e muitas vezes através de intrincadas analogias — era deprimente. Certo dia, João perguntou-lhe se ele não desejava voltar a trabalhar.

Era o que António queria ou, mais exatamente, precisava. Não tinha vindo de Portugal com tanto dinheiro e necessitava voltar logo à ativa.

– Adoraria, João.
– Há uma barbearia perto do 17º Regimento de Infantaria. A casa é de minha familia e o barbeiro me paga aluguel. Quer dizer, paga quando quer e pode. Há dois quartos atrás que estão desocupados. O homem que trabalha lá — de nome Orlando — é um bêbado e os milicos não o suportam. Dou um jeito de te colocar lá. Vocês podem trabalhar lado a lado. Haverá freguesia para isto.

– Este homem tem família?
– É sustentado por uma santa, a Dora. Vou resolver o caso para ti.

Alguns dias depois, António voltou a trabalhar. A princípio trabalhava pouco, pois os militares o preteriam em favor do conhecido Orlando. Com António a seu lado, Orlando teve seu último período de abstinência, voltando a trabalhar sóbrio; depois, quando percebeu que António “roubaria” pouco a pouco a maior parte de sua clientela, voltou a beber. A qualidade principal de um barbeiro, segundo António, era, além de proporcionar um bom corte, a audição. António, que não apreciava muito os militares, logo notou que os dirigentes do país adoravam fazer bravatas e confidências que, somente em suas bocas, tinham o poder de alterar o rumo da vida de toda a gente. O que António não sabia é que sua amizade com o Dr. João Cunha e o pouco que falava sobre livros e Europa estavam tornando o barbeiro português uma respeitável figura da cidade. Todos queriam seus serviços, o que significava, para António, que todos desejavam ser ouvidos por ele.

E António ouvia.

(continua)

O António Barbeiro
(Desenhos da alma e do pensamento do poeta ao sabor da pena)

Maria.
Espero que ao receberes esta carta estejas bem que nós por cá vamos na graça de Deus.
Recebi a tua última carta onde me dizias palavras lindas, como só tu sabes dizer, e com ela vinha a senha para levantar o cabaz das mercearias que nos mandaste pela camioneta.
Já recebemos a encomenda, estava tudo bem, mas escusavas de te incomodar.
Aqui na terra tudo vai como no costume.
A cabra da Ti Rosário entrou na horta e foi dar cabo da vinha do “tê” pai.
Ouvimos dizer que o Ti Chico fugiu para França. Que raio é que deu ao homem que tinha aqui tanto mato para roçar.
O Zé do fundo do lugar, coitado, é que não teve a mesma sorte. A família dele está de luto! Morreu de uma bala ao atravessar a fronteira. Mas esse, coitado, não tinha aqui de comer. Agora que vai ser dos filhos dele. É assim! Temos de nos conformar…
Maria! Vieram-me contar, (aqui na terra há cá umas mexeriqueiras), que estás apaixonada e que até lhe escreveste, numa carta, umas sem vergonhas.
Vê lá que eu nem queria acreditar. A TI Aninhas, que é cá uma coscuvilheira, pediu ao primo que trabalha aí em Lisboa para descobrir se era verdade.
Sabes lá: o Ti Manel da estiva, que é um magano, roubou a carta ao teu namorado.
Maria – nem sabes a vergonha por que estamos a passar. Ainda se fosses um rapaz… mas logo uma menina tão bem educada que fez a comunhão e tudo
Aproveito para te mandar uma cópia da carta que o barbeiro copiou.
Vê lá se a escreveste, pois quero desmentir o povo.
Desculpa a letra mas o Ti António barbeiro cortou-se na navalha.
Por hoje não tenho mais para te dizer. Espero a tua resposta na volta do correio.
Beijos da tua mãe

Maria Desculpa a letra e não ligues tudo vai passar.
Ouvi dizer na Rádio Moscovo que a PIDE vai ser corrida pelos comunistas e que as mulheres irão votar.
Por favor queima a carta e manda-me um frasco de “Pitralon” que depois pago.
Este que se assina
António Barbeiro.

(Desenhos da alma e do pensamento do poeta ao sabor da pena)
Rogério Martins Simões.

P.S:
Estes desenhos da alma foram construídos a partir de um comentário que escrevi directamente a um texto, lindo de amor, que a amiga Maria, do antigo blog “Cumplicidades” escreveu.
Mas a Maria já respondeu! E escreveu à sua mãe uma linda carta.
Afinal porque estava na Cidade e não se preocupou com as “linguareiras”

Resposta da Maria na volta do correio
Mãe, Sim estou apaixonada. A carta que te chegou às mãos, minha querida mãe, fala de um amor imenso, puro e que me faz tão feliz. Por isso minha mãe te peço, fica feliz por a tua filha conhecer o amor, por a tua filha se viver em felicidade.
Sabes mãe, não conheço outra forma de viver que não através dele, e isso minha mãe, aprendi contigo. Por isso te peço, ignora o povo, e não sintas nunca vergonha. O amor não se vive dela. Nada do que consta nessa carta são sem vergonhas, minha mãe.
Lê, repara em cada palavra, em cada sentir que elas revelam, não é isso que é a vida minha mãe?
Não é assim que deveríamos todos viver, no amor? Acredito que se todos se vivessem nele, saberiam compreender, e com toda a certeza o mundo seria muito mais humano, estariam todos muito mais disponíveis para os outros. Não concordas? Não desmintas, mãe. Confirma que foi a tua filha que a escreveu. E não ligues à voz do povo, o importante não é que saibas que a tua filha, está bem? Da filha que te ama…
(Resposta escrita por Maria Branco, Blog Cumplicidades, a quem agradeço)

Mas a Maria esqueceu o “Petralon”, para a barba, que o Ti António Barbeiro pediu.
Mas o bom António quando a carta chegou já não a leu.
O narrador volta a chamar pelo poeta

Aos Homens grandes
O António que escreveu as cartas à Maria era um homem notável: barbeiro de profissão, médico-enfermeiro nas horas vagas.
António foi buscar o saber nos velhos livros de medicina, e, porque era letrado – poucos na sua Aldeia aprenderam a escrever – lia e escrevia as cartas do povo que não sabia ler nem escrever.
Mas o António “Barbeiro” gostava de ouvir!
(Os barbeiros escutam sempre e nem sussurram as confidências!),
Mal tarde tardasse a noite, pé ante pé, como se fosse um salteador, acendia o velho aparelho e de novo sintonizava a Rádio Moscovo.
António era um homem prevenido. À noite colocava por cima do rádio um copo de água e se no silêncio das quatro paredes a telefonia emitisse uns silvos esquisitos, baixava o som até quase não se ouvir:
– Não viesse por ali algum “bufo” para o denunciar e agente da polícia política para o levar.
Mas o “Barbeiro” que sabia tanto procurava descobrir na onda curta, da telefonia, o que as emissoras oficiais não lhes contavam.
Foi assim que ouviu dizer, aos comunistas, que iriam libertar o povo e que as mulheres iriam votar
Talvez por isso, o António, barbeiro de profissão, enfermeiro e escritor nas horas vagas, escrevia abusivamente nas entrelinhas, algumas linhas, com recados pessoais para quem eram dirigidas as cartas.
Certa noite de intensa tempestade o António Barbeiro desapareceu e ninguém mais o viu vivo!
Dizem na Aldeia que conhecia os caminhos como ninguém!
(Desenhos da alma e do pensamento do poeta ao sabor da pena)
À Maria Branco o meu agradecimento por completar este diálogo.

Rogério Martins Simões.
(Homenagem póstuma ao Ti João Barbeiro da Póvoa, amigo de meu pai e que ainda conheci)
(Esta história foi continuada no Brasil por Milton Ribeiro)

A Indústria do Elogio e A Arte do Combate

Publicado em 9 de outubro de 2003

Ia escrever sobre o blog português O Meu Pipi, mas, por pura sorte, entrei antes no blog do Inagaki e vi que ele já o fizera. Fica prá próxima, pois assunto é o que não falta.

Sempre me preocupa o fato de que há um sistema de “compra de comentários elogiosos” na blogosfera. A coisa funciona assim: eu visito um blog e escrevo um elogio, então o recebedor do afago fica em dívida comigo e se obriga a retribuir minha visita; nesta ocasião, ele convenientemente se desmancha de amores por meu último post. É isto. Gosto muito de visitar blogs e de deixar comentários neles. Fico feliz quando abro qualquer de meus blogs preferidos e vejo que há post novo. Estou no esquema, mas tenho muitas restrições.

Vou fazer uma confissão: confesso que – algumas vezes – me comportei como Machado de Assis quando escrevia sobre as obras de seus amigos: busco algo de positivo nos posts que leio e deixo de lado o que me desgosta. E, quando não encontro nada de positivo, simplesmente vou embora. Não creio ter sido hipócrita a ponto de elogiar o que detestei ou o que não li. Mas já fiquei muitas vezes intrigado ao receber comentários laudatórios que ignoravam e até contrariavam a tese defendida por meu texto. Ou seja, os autores das pequenas notas não haviam lido o post… Isto é uma temeridade, pois o maior interessado em ler o comentário é a pessoa que mais conhece o post.

Voltando a meu assunto. A esmagadora maioria dos blogueiros só comenta para louvar. Entramos nos blogs alheios como se entrássemos numa sala de estar desconhecida e formal, onde devemos nos comportar com fineza. Temos apenas sorrisos para nossos anfitriões e, se eles cometem uma gafe, voltamos pudicamente o rosto para o lado. Só que não estamos entrando na sala de estar de outrem, o blog é um espaço público onde há exposição e pode haver, eventualmente, críticas. Qualquer um que se exponha está sujeito a críticas, seja ele artista, jogador de futebol ou blogueiro. Se não temos intimidade com o anfitrião, é natural que sejamos educados, agradáveis e indulgentes, mas não é muito natural mantermos esta postura para quem não está “fazendo sala” para nós, mas sim opinando, poetizando, fantasiando, inventando, criando. Isto é, ficamos sorrindo para um anfitrião que se comporta como um louco. Em quatro meses de blog, posso dizer que recebi apenas um comentário discordante, obra do citado Inagaki. Ele foi veemente ao defender uma opinião contrária à minha. Não houve ofensa, nem repercussão, apenas discordamos cordialmente e permanecemos amigos e leitores mútuos. Outro blogueiro, o Zadig, me confidenciou que evita deixar comentários quando não gosta do post, é uma opção que o protege da hipocrisia.

Já eu devo ter lido centenas de posts que achei detestáveis, mas somente combati quando percebia que o dono do blog era muito inteligente e aberto ao contraponto. Ousei discordar do genial Pro Tensão – e não aconteceu nada -, do Ladeira da Memória (que espero seja reativado logo) – e não aconteceu nada -, do Literatus – a Andréa até agradeceu a interferência e, dias depois, convidou-me para escrever um artigo para o site literário de uma de suas clientes -, etc. Ou seja, não precisamos viver da indústria do elogio. Nossos grupos de comentários se ampliarão ou diminuirão com ou sem eles.

Mas por que estou pensando nisto? Por analogia à obra que meu amigo Marcelo Backes – um imenso intelectual gaúcho que está morando na Alemanha – lançará nos próximos dias pela editora paulista Boitempo. Ele abandonou temporária ou definitivamente suas excelentes traduções de Kafka, Goethe, Heine, etc., e escreveu o livro “A Arte do Combate”. No ano passado, durante sua visita anual ao Brasil, ele me comentou que julgava asquerosa a forma como os escritores gaúchos falavam da genialidade de seus colegas, por literariamente díspares e intimamente hostis que fossem. Não interessa a obra, o escritor X publica elogios rasgados a Y e fica esperando que venha a contrapartida. Um dia ela virá. Backes recusa-se a participar deste esquema, pois a eliminação da crítica e da pluralidade de opiniões não servem à literatura e só se justificam para enganar o público, fazendo-o comprar obras de segunda categoria. Na Alemanha, segundo Backes, a coisa é muito diferente. Os escritores combatem por suas opiniões e o resultado é uma das melhores literaturas da Europa, certamente muito acima da francesa e italiana, por exemplo. Não sou ingênuo a ponto de achar que apenas isto crie uma grande literatura, mas acredito que eventuais “combates” entre seus protagonistas não a prejudiquem.

Mônica acorda, Paulo pragueja, Adriana seduz, Marcos viaja (fragmento)

Mônica acordou lentamente com a luz da manhã entrando por sua janela. Deitada ainda, seu rosto estava voltado para o céu nublado, o que fazia seus olhos parecerem muito úmidos e claros. Tinha 40 anos e gostava deste despertar lento e preguiçoso. Sempre evitara trabalhar cedo; alguns pensavam que ela ou tinha dificuldades para dormir ou tinha uma vida noturna movimentada demais para sair de casa cedo. Raramente alguém estranho a tinha visto em pé antes das 10h da manhã.

Sem virar o corpo, tateou atrás de si para assegurar-se da ausência do marido. Estava sozinha e a comissura de seus lábios denunciaram um leve sorriso. Durante o dia, aquele era o único momento todo dela, em que podia ficar apenas lendo, ouvindo música muito baixo ou pensando… Movo-me no vago plano estético da literatura. O que o autor desejará de mim hoje? Sorrindo a tais pensamentos, conjeturava sobre a agenda do dia, até que os barulhos da casa começam a chegar até ela. Reconhece o som de sua mãe caminhando pelo corredor, depois o da porta do banheiro, descarga, pia, escovar de dentes, porta do banheiro novamente e o som da cadeira de balanço. Por que sentou-se antes de tomar café?

Decide não preocupar-se com isto e estende o corpo para pegar a biografia do pianista Glenn Gould que está sobre o criado-mudo. Abre o livro na página 105 e lê. Desde o início de sua carreira de concertos, Gould falava bastante em abandoná-la. Fecha o livro e vira-se, deitada agora de costas, olhando o teto. O silêncio do quarto era um obstáculo às palavras.

~o~

Sou um homem pequeno, culto e pacífico. Raramente altero meu tom de voz gentil e cortês. Mesmo nas circunstâncias mais difíceis, mantenho uma postura tranquila. Na verdade, minha gentileza é tão completa que tenho o costume de atrair todas as desgraças e culpas para minha pequena pessoa. Isto me torna alguém muito adequado para certos amigos e mulheres. Esta disposição é belamente ornamentada por meu aspecto físico. Parece ser mais simples culpar alguém que — além de gentil — é pequeno. Minha extrema gentileza retarda ou extingue qualquer reação de minha parte e, mesmo que reagisse descontroladamente — com uma agressão física, por exemplo — penso que causaria mais surpresa do que lesões a um homem comum. Há momentos em que me torno irritadiço e exacerbado. Mas só consigo chegar a este estado quando solitário.

É bom que lhes diga que tenho absoluta necessidade de não criar uma imagem própria que seja muito diferente da realidade. Da que represento. Às vezes, me atrapalho ao oscilar entre a gentileza de não querer magoar e a franqueza de não distorcer, coisas que estão entre minhas mais imperiosas necessidades internas. Tão imperiosas que muitas vezes hesito e deixo minhas frases pela metade.

Estou vivendo temporariamente com uma mulher bem maior do que eu, em todos os sentidos. Sim, meus amigos, ligar minha vida a alguém fisicamente tão abundante, com uma personalidade tão magnífica, com uma inteligência tão abrangente e com um poder econômico tão avassalador foi, no mínimo, uma imodéstia, pois sou diminuto em todos estes quesitos. Deixei-me levar pela euforia de ter-lhe conquistado a confiança. Ela queria um filho imediatamente, estava na idade de tê-lo. Temos um filho.

(continua?)

Uma Incrível Coincidência (Fernando Monteiro, Herbert Caro, eu…)

Post publicado em algum dia de 2003 em meu antigo blog

Tenho certeza de que você que lê já leu Herbert Caro. Certeza absoluta! Mas você terá que chegar ao terceiro parágrafo para comprovar.

Estava dialogando por e-mail com o escritor pernambucano Fernando Monteiro – importante: minha imensa admiração por Fernando precede nosso contato, vim a conhecê-lo após elogiá-lo aqui neste blog e não o contrário, OK? -, quando fiz uma carinhosa referência a meu falecido amigo Herbert Caro. Conheci o Dr. Caro numa loja de discos eruditos de Porto Alegre, a King`s Discos. Lá, eu, ele, o Júlio – que trabalhava na loja – e outros, tínhamos um encontro não marcado mas sempre repetido aos sábados pela manhã. Nós, o grupo dos tarados por música, ficávamos ouvindo as novidades e aprendendo com a inacreditável sabedoria do velho. Quando o conheci, ele já devia ter mais de 70 anos. Não lembro em que ano morreu, deve ter sido entre 1986 e 1990. Creio que Caro não viu a falência do jornal Correio do Povo, onde por décadas publicou suas compreensivas (expressão dele) e lindamente escritas críticas musicais. Como convivi com ele entre meus 20 e 30 anos, era tratado pelo mestre como a criança curiosa que era. Ele tinha atenção especial para comigo e o Júlio, os jovens do grupo, e gostava de me orientar na obra de meus amados Bach e filhos, Mozart, Brahms e Beethoven. Deu-me alguns discos, sempre sob o pretexto de servirem como comprovação de suas opiniões, nunca pelos motivos reais, que eram a consideração, a amizade e o carinho. Era alemão.

Chamávamos o Dr. Caro de “Doktor Carro”, apelido de duplo sentido, pois ao mesmo tempo em que nos referíamos a seu forte sotaque, homenageávamos o grande tradutor de Doutor Fausto (Doktor Faustus) e A Montanha Mágica de Thomas Mann, Auto-de-fé de Elias Canetti, A Morte de Virgílio de Hermann Broch, O Lobo da Estepe e Sidarta de Hermann Hesse, etc. Ele era conhecido por ser de difícil trato, mas gostava de nós e creio que nos levava livres – a mim e ao Júlio – por receio de nossa ironia. Uma vez, pareceu-nos que ele auto-elogiava a tradução (a qual é impecável, insuperável) de A Montanha Mágica (uma obra-prima!) e nós começamos a falar sobre a inutilidade de se traduzir uma bosta de livro em que nada acontecia, em que as pessoas ficavam falando sobre o tempo, doenças, guerra e que inaugurava o riquíssimo e “arborescente” gênero do erotismo tuberculoso… (Se você não entendeu isto, leia o livro!) Depois começamos a falar sobre a “metáfora da Europa” contida na obra e a bobajada alcançou níveis planetários. Viram? Para nós, era facílimo conversar com ele. Ele primeiro ficava com aquela cara escandalizada de alemão rígido: estão-brincando-com-algo-que-é-sagrado-para-mim. Depois dava gargalhadas conosco. Voltava todos os sábados para nos ensinar e, eventualmente, para apanhar mais um pouquinho.

Pois bem, no meu e-mail para o Fernando, falei qualquer coisa sobre o velho e ele me respondeu assim:

(…)
Caro: que coincidência você ter sido amigo do Caro, personagem num capítulo (que estou anexando) de “As Confissões de Lúcio”. Se o quiser, pode divulgar o capítulo – ou a parte do Caro, nele – no blog.
(…)

Quer dizer que Fernando Monteiro, lá de Recife, põe como personagem em seu romance inédito As Confissões de Lúcio meu amigo Herbert “Carro”? Abaixo está a comprovação. A seguir, pois, tenho a honra de apresentar-lhes um trecho do capítulo Falenas na Sombra, de As Confissões de Lúcio. Notem (1) como o personagem Lúcio Graumann apelida Caro de “Herr Graal” – é claro que Fernando e Lúcio ignoravam o “Doktor Carro”! -, (2) como o Fernando refere-se em seu texto à “metáfora da Europa” e (3) aproveitem para medir o calibre do escritor Fernando Monteiro:

Essa anotação eu lera ainda na praia da Paraíba. Havia sentado sobre o papel, na rede de Acaú (Lúcio o deixara amassado sob o calor de febre do seu corpo magro naquele descanso menos estreito do que parecia, e mais cheio de areia e detritos do que se esperava). Quando descobri o papel, pensei – não sei porque – nas três ou quatro vezes (um recorde!) em que havíamos saído para beber no bar de um alemão, próximo da redação do Correio porto-alegrense… o que não era garantia nenhuma de conversa fluente, de piadas, do humor leve de sextas-feiras nas quais você ouve e é ouvido sem grande atenção, alguém entra, você acena, retoma o fio da conversa que não se crispa e o mais. Não, com Lúcio talvez nunca fosse assim, ao contrário, embora não fosse um “chato” (eu, pelo menos, não achava), mas ao se usar a palavra “chato” talvez alguém quisesse referir aquela intensidade dos prisioneiros, isto é, uma conversa meio fixa e fiel a coisas que seguiam no centro do seu interesse, indiferente à indiferença da bebida, da diversão “organizada” como uma suspensão sem maior responsabilidade: um balão desinflado com fritas, uma coisa que pudesse ser esquecida como um jornal dobrado no banco de trás de um táxi. Claro, ele tinha humor – mas seu humor respondia só às convocações rápidas, breves. Herbert Caro compreendia bem esse humor – quando brigavam dentro e fora da redação do Correio cheia de falsos “humorados”. Caro muitas vezes alongou o jogo dos jogos de palavras que fazia com Lúcio, ao tempo das traduções que “Herr Graal” (como ele o chamava) admirava e, eventualmente, corrigia aqui e ali, em algum tijolaço do idioma de Mann fundindo dois vocábulos com a sombra do terceiro como a águia sobre os picos nevados da montanha mágica disputando a visão da alma ingênua de Hans Castorp que não tinha humor, acusava Graumann, e Herbert respondia que era burrice de Lúcio não ver o humor de Mann naquele grau de exarcebação do “espírito monótono” que, no fundo, era de Heinrich e não de Thomas, como se poderia pensar do nariz degaulleano do prêmio Nobel refugiado na América para escapar da “parentada” de Graumann (uma estocada de Caro, suponho que dirigida aos ascendentes maternos, aos Braun cheios de loura burrice responsável por queimar livros em praças públicas)…

Seria um verdadeiro sanatório – e não uma metáfora da Europa – se a vertente “Heinrich” houvesse escrito o livro fascinante justamente por ser de um homem destinado a compreender tudo tarde, depois que as coisas se tornavam irremediáveis (respondia Caro, seriamente, às provocações de Graumann), e Lúcio poderia sorrir, mudar de assunto, contar uma piada – isso não seria o esperado e, contudo, quando a contasse, seria com inesperada graça, sem grande empenho, é verdade, mas com certa graça engraçada até por ter um quê de deslocada… sem no entanto riscar o vidro daquela intensidade do humor que se oculta na “seriedade” – o mesmo caso de Mann? – e que corresponde bem a uma pitada de humor secreto (não sei se isso poderá ser perfeitamente entendido por quem tenha sempre procurado ou preferido os amáveis palhaços de um escritório, Graumann não teria sido jamais um deles) manifestando-se no meio de uma roda como aquela do Correio dos velhos tempos, posso até rever a cabeça inclinada de Caro e a de Lúcio, por sua vez, no seu “ponto de parada”, naquilo que não correspondia a uma dessas pausas que se faz buscando a “aprovação” de algum raro conviva ainda mais ensimesmado, ou surpreendendo – então – por qualquer participação súbita e perfeitamente ajustada…

Observação aos incautos: Heinrich Mann é, por assim dizer, o irmão escrachado de Thomas Mann. É autor do livro Professor Unrat que, rebatizado para O Anjo Azul (Der Blaue Engel), tornou-se o filme-base da carreira de Marlene Dietrich.

Weblogger e E-mail Surpreendente

Publicado em 30 de setembro de 2003. Vejam como são as coisas…

Sexta-feira, num momento de loucura, resolvi tornar-me assinante do Weblogger. Por R$ 9,90 mensais, eu seria feliz, receberia suporte e serviços diferenciados. Como prêmio pela assinatura, imediatamente os comentários de meu blog deixaram de funcionar. O problema verificou-se na própria sexta e estendeu-se por todo o fim de semana. Quem deu o sinal foi minha irmã, que iria viajar, mas antes desejava deixar um carinho para a Bárbara nos comentários. Não conseguiu. No dia seguinte, telefonei para o Terra atrás do “suporte diferenciado” e eles lavaram as mãos: o Weblogger é uma parceria deles e eu teria que deixar uma mensagem no “Fale Conosco” do site. Até domingo à noite, eu tinha sido olimpicamente ignorado. Somente hoje, segunda-feira, recebi um atencioso e-mail dizendo que tudo estava regularizado. Vou testar.

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Porém, na madrugada de sábado para domingo, fui ver se havia novidades no blog e na caixa de correspondência. O blog continuava na mesma, mas alguns de meus 6 leitores haviam mandado e-mails na impossibilidade de comentários. Havia um novo entre eles… Era simplesmente de Fernando Monteiro, escritor brasileiro, autor do grande Aspades, ETs, etc. (1997). Ele agradecia uma pequena referência (de meia linha) que lhe havia feito no blog e dizia que tinha lido alguns de meus textos. Elogiou-os com imerecida sabedoria, demonstrando claramente que os lera e ainda desejou um feliz aniversário para Bárbara… Inflei, subi aos ares e, feliz como o diabo, dirigi-me ao berço como Linda Blair em “O Exorcista”. Acordei a Claudia para contar-lhe a novidade – ela fez ahã para tudo (no outro dia não lembrava de nada) – e fui dormir muito bem.

Aspades tem trajetória e argumento curiosos. Depois de escrevê-lo, o pernambucano Fernando Monteiro submeteu-o a diversas editoras brasileiras. A maioria delas nem se dignou a responder. Ele ficou a ver navios e, talvez inspirado por eles – os navios, bem entendido -, enviou seu livro a uma editora portuguesa. De lá, não somente recebeu atenção, recebeu também aceitação, e depois publicação e elogios. Só então a brasileira Record resolveu lançar o “inédito” em nosso país… Não fosse triste, daria para rir. Aspades ficou famoso em Portugal, enquanto nós nem imaginávamos sua existência.

A parte principal do livro é a biografia íntima de um cineasta fictício, Vasco Aspades do Carmo. A história pessoal de Aspades se embaralha com sua obra. Acabo de usar o verbo “embaralha” e este talvez nos faça pensar num livro obscuro e complicado, mas não é nada disto. Sua vida e intenções como criador nos são apresentadas em texto de primeira linha, elegante, poético e livre de lugares comuns. Depois, há uma narrativa que seria parte do espólio intelectual do cineasta, já morto. Ao final, há uma série de narrativas curtas, aparentemente desconectadas de Aspades, e que devem ter deixado os editores brasileiros transtornados, apesar de sua perfeita lógica interna. Para esta parte do livro, talvez seja melhor acolher o conselho de Isak Dinesen e aceitar que, em contato com literatura genuína, não é mau renunciar à total compreensão de um texto. O fato de ter sido multirejeitado diz muito sobre a inteligência de nossas editoras. Se fosse você, eu leria Aspades, ETs, etc. não só para estabelecer contato com a obra de Fernando Monteiro, mas para ter o ganho secundário de constatar até onde a burrice e a falta de convivência com a cultura nos pode levar.

Outros livros de Fernando Monteiro:
– A Cabeça no Fundo do Entulho (1999) – Prêmio Bravo! de Literatura
– T. E. Lawrence: Morte num Ano de Sombra (2000)
– A Múmia do Rosto Dourado do Rio de Janeiro (2001)
– O Grau Graumann (2002)

(Um amigo bastante confiável recomendou-me os dois últimos, principalmente Graumann. Acabo de comprá-los.)

Abaixo, coloco trecho de uma entrevista com Fernando Monteiro, onde ele nos explica o surgimento de Aspades. Ciao, até a próxima.

Em outubro de 1995, num sábado, sentei diante do micro e comecei a escrever sobre uma pessoa fictícia, um português, cineasta, intelectual – assim como se iniciasse um ensaio sobre Antonioni, Resnais, Manuel de Oliveira… Vi o homem, claramente: podia dizer onde tinha nascido, como penteava o cabelo com a mão espalmada… e logo estavam vindo os títulos de alguns dos seus filmes. Escrevi 22 laudas nesse primeiro sábado – e, como estava estreando no manejo do computador, acionei algum comando errado… e apagaram-se todas as 22 páginas. Fiquei desesperado. Achava que tinha começado uma “obra-prima”, que tinha perdido o começo do livro definitivo… Entrei em pânico. E resolvi desistir da história, perdida, do cineasta fictício.

No sábado seguinte, no entanto, sentei de novo diante do teclado do micro, e, aí, mudando completamente o tom que havia usado na primeira tentativa, refiz um caminho de pedras, sem nada da sensação estranha daquelas 22 páginas escritas sem quase levantar da cadeira. Reencontrei o cineasta Vasco Aspades pelo caminho pedregoso do esforço cerebral e consciente, e ele foi voltando a tomar corpo diante de mim, eu sinceramente acreditando na “sua” vida, nos “seus” motivos, nas “suas” idéias sobre os filmes e a vida.

José e Pilar e os outros

Foi um belo fim-de-semana. Começou lá na sexta-feira com o jantar com a dupla Nikelen Witter e Luís Augusto Farinatti e terminou com o esplêndido documentário José e Pilar. Os dois casais foram entremeados por um filme notável: Código Desconhecido, de Michael Haneke, que, se não é o maior diretor de cinema vivo, merece figurar em qualquer lista que utilize a contundência como critério. Este Código e A Fita Branca são filmes de qualidade indiscutível, penso.

Mas voltemos à sexta-feira. Eu estava exausto de um dia de ar condicionado estragado no Sul21, porém a conversa inteligente, o vinho e a gentileza novamente viraram o jogo a favor de todos. Foi tudo muito agradável e civilizado. Minha filha Bárbara fez o resumo da noite dizendo que achava muito bom ouvir pessoas cultas conversarem. OK, só que acho que a sedução que exercemos sobre ela (já me incluí no “exercemos”, né?) é a de que falamos sobre política e temos posições que já são as dela. De certa forma, nós — apesar de não sermos nada grandiosos — mais ou menos justificamos aquilo uma forma de pensar o mundo. Fico me sentindo culpado por não ter feito referência nenhuma à visita do Ramiro Conceição lá no início do ano, mas aquela era uma fase triste de minha história recente…

José e Pilar não é um filme que fale muito da obra de Saramago, fala mais da repercussão dela, da rotina de um Nobel famoso e de seu relacionamento com a mulher amada, Pilar del Río. Olha, é um documentário estupendo como cinema. Resultado de quatro anos de filmagens — entre 2006 e 2009 — tem como pano de fundo a criação da romance A Viagem do Elefante e a doença do escritor. Saramago, absolutamente inteligente e erudito em suas palestras e livros, mostra uma face mais relaxada e íntima no excelente filme de Miguel Gonçalves Mendes. O filme me foi 100% satisfatório, mas tenho a impressão de que o diretor considerou que o público tivesse conhecimento prévio da vida do autor. Fica inexplicada a forma peculiar que tomaram com Saramago as eternas restrições portuguesas e brasileiras àqueles que se distinguem, fica inexplicado o justificado ódio com que Pilar del Río trata um jornalista português — merecia muito mais — , assim como a natureza de certo silêncio que o “Portugal oficial” tratou de cercar Saramago.

A mim isto não fez falta nenhuma, mas talvez um observador inexperiente ou marciano não entenda bem o gênero da estupidez envolvida. O fato é que “minhas mulheres” resumem muito bem tudo. Na saída do cinema, a Claudia, encantada com o filme, disse: “Como é bom a gente ouvir alguém brilhante que pensa parecido com a gente!”.

Finalizando: por falar em estupidez, o cinema nacional agora trata de investir na religião. Os trailers pré-José e Pilar foram todos dedicados a espécimes do novo cinema religioso nacional. Comparados aos argentinos, estamos cada vez mais fodidos — saímos da chanchada para a religião. Nada mais próximo. O contraste dos trailers com os 125 minutos seguintes de Saramago foi absolutamente desconcertante. Para sofrer este choque estético, vá ao Arteplex 2 de Porto Alegre antes que mudem.

Dmitri Shostakovich (VII) – Os Anos Finais e a Fixação na Morte

As obras do período final da vida de Shostakovich foram compostas sobre um e apenas um assunto: a morte. Ele parecia inteiramente fixado no tema e não é exagero nenhum dizer-se que todas as obras, a partir do opus que comento abaixo, são fundamentalmente sobre a morte. E notem que algumas sinfonias e outras obras anteriores também o eram. O compositor sofreu um ataque cardíaco em 1966, mas desde antes já sofria de uma doença degenerativa que ainda hoje é tema de discussões médicas. A propósito, no dia 27 de setembro de 2006, dois dias após o centenário de seu nascimento, haveria em Londres um seminário sobre sua obra dentro do qual, entre eventos mais agradáveis, médicos se reuniriam com o público a fim de revelar new medical evidences. Ou seja, ninguém sabe exatamente do que sofria Shostakovich. O que se sabe é que, no final dos anos 50, o compositor deixara o piano por dores e descontrole dos movimentos de sua mão direita. Sabe-se mais: o grande Robert Craft, ao conhecer Shostakovich em 1962, disse que “ele era o mais tímido e nervoso ser humano que jamais conhecera”, que “passava todo o tempo mexendo com as mãos e ajeitando os óculos” e que “às vezes, parecia feliz para, no minuto seguinte, estar pronto para chorar”. Rostropovich declarou que, em seus anos finais, Shostakovich apenas desejava “a presença de uma pessoa de quem gostasse, sentada com ele em silêncio, em seu quarto”. Enquanto a doença e a angústia progrediam, Shostakovich era adulado e aclamado em todo o mundo. Não apenas Craft foi conhecê-lo, mas também Benjamim Britten ia visitá-lo e acabaram tão amigos que a Sinfonia Nº 14 é muito influenciada por Britten.

Estes paradoxos entre doença acrescida de angústia e homenagens de onde surgiam novas amizades permaneceram até final da vida de um compositor que seguia produzindo música da melhor qualidade, porém, repito, inteiramente voltada para a morte. A partir da Sinfonia Nº 11, o que temos é a maior e melhor produção de música lúgubre, com explosões de alegria e sarcasmo aqui e ali. Dentro deste espírito, seguem as obras-primas.

Sinfonia Nº 14, Op. 135 (1969)

A Sinfonia Nº 14 — espécie de ciclo de canções — foi dedicada a Britten, que a estreou em 1970 na Inglaterra. É a menos casual das dedicatórias. Seu formato e sonoridade é semelhante à Serenata para Tenor, Trompa e Cordas, Op. 31, e à Les Illuminations para tenor e orquestra de cordas, Op. 18, ambas do compositor inglês. Os dois eram amigos pessoais; conheceram-se em Londres em 1960, e Britten, depois disto, fez várias visitas à URSS. Se o formato musical vem de Britten, o espírito da música é inteiramente de Shostakovich, que se utiliza de poemas de Lorca, Brentano, Apollinaire, Küchelbecker e Rilke, sempre sobre o mesmo assunto: a morte. O ciclo, escrito para soprano, baixo, percussão e cordas, não deixa a margem à consolação, é música de tristeza sem esperança. Cada canção tem personalidade própria, indo do sombrio e elegíaco em A la Santé, An Delvig e A Morte do Poeta, ao macabro na sensacional Malagueña, ao amargo em Les Attentives, ao grotesco em Réponse des Cosaques Zaporogues e à evocação dramática de Loreley. É uma música que trabalha para a poesia, chegando, por vezes, a casar-se com ela sílaba por sílaba para torná-la mais expressiva. Há uma versão da sinfonia no idioma original de cada poema, mas sempre a ouvi em russo. Então, já que não entendo esta língua, tenho que ouvi-la ao mesmo tempo em que leio uma tradução dos poemas. Posso dizer que a sinfonia torna-se apenas triste se estiver desacompanhada da compreensão dos poemas – pecado que cometi por anos! Ela perde sentido se não temos consciência de seu conteúdo autenticamente fúnebre. Além do mais, os poemas são notáveis. Não está entre minhas obras preferidas, porém são indiscutíveis seus méritos musicais e sua extrema sinceridade. Me entusiasmam especialmente a Malagueña, feita sobre poema de Lorca e a estranha Conclusão (Schluss-Stück) de Rilke, que é brevíssima, sardônica e — puxa vida — muito, mas muito final.

Quarteto Nº 13, Op. 138 (1970)

Um pouco menos funéreo que a Sinfonia Nº 14, este quarteto foi escrito nos intervalos do tratamento ortopédico que conseguiu devolver-lhe do parte do movimento das mãos e antes do segundo ataque cardíaco. O décimo-terceiro quarteto é um longo e triste adágio de cerca de vinte minutos. O quarteto foi dedicado ao violista Vadim Borisovsky, do Quarteto Beethoven, e a viola não somente abre o quarteto como é seu instrumento principal. Trata-se de um belo quarteto cuja tranquilidade só é quebrada por um pequeno scherzando estranhamente aparentado do bebop (sim, isso mesmo).

Sinfonia Nº 15, Op. 141 (1971)

Sem dúvida, a Sinfonia Nº 15 é uma de minhas preferidas no gênero. É difícil estabelecer um conteúdo programático para ela. Trata-se de uma música muito viva, com colorido orquestral atraente, temas facilmente assimiláveis e nada triviais, clímax e pausas meditativas que empolgam e mantém o ouvinte permanentemente atento. E com os contrastes inesperados característicos de Shostakovich. Parece um roteiro de Shakespeare passado à música, trazendo o trágico ao festivo, empurrando a reflexão para junto da zombaria. Bom, já viram que sou um apaixonado desta sinfonia. O primeiro movimento (Allegretto) é uma curiosidade por manter sempre ativo o motivo da cavalgada da abertura Guilherme Tell, de Rossini, e pela participação incessante da percussão. O segundo movimento (Adagio) é circunspecto. Os metais trazem uma melodia sombria, para depois o violoncelo completá-la com um solo dilacerante, a cujas cores será acrescida, mais adiante, a ressonância do contrabaixo. Um novo Alegretto surge repentinamente do Adagio, retomando o clima do primeiro movimento, mas desta vez somos levados pelos solos do fagote, violino, clarinete e flautim. O movimento final, outro adagio, é enigmático. A simbologia está presente com a apresentação de imediato do Prenúncio da Morte, composto por Wagner para a Tetralogia do Anel. O ouvinte wagneriano fica desconcertado ao escutar de imediato esta música conhecida, parece tratar-se de um equívoco, de um erro de partitura. Ao pesado motivo de Wagner são contrapostos temas executados por setores “mais leves” da orquestra, porém, a todo instante, o sinistro aviso retorna e, mais adiante, os metais refletirão angustiada exasperação… A sinfonia esvai-se em delicados sons de percussão, deixando um ponto de interrogação no ar. É desconcertante. O significado do Prenúncio da Morte é óbvio, porém, o que significam a percussão, a orquestração e as melodias jocosas que o cercam? Uma simples experiência sinfônica? Impossível. O desejo de felicidade de alguém cuja vida se encerra? Ou, voltando a Shakespeare, que a vida é uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria, que nada significa (*)? Porém, a significação, a intenção exata de uma obra instrumental é tão importante? Ou seria mais inteligente fazer como fez Shostakovich, levando-nos bem próximo ao irrespondível para nos abandonar por lá?

(*) Macbeth, William Shakespeare.

Telma Scherer, o ciclista e as confusões da Feira do Livro

Na última sexta-feira, entre 18 e 20 horas, enquanto fazia a performance “Não alimente o escritor“, presa a uma casinha de cachorro, a escritora e performer Telma Scherer foi enxotada da Feira com alguma truculência. Com problemas financeiros reais, muito triste — como afirma com escarrada clareza no vídeo abaixo — e não sendo absolutamente doida varrida, Telma acabou vítima da Brigada Militar. Foi levada num camburão para um posto da instituição, sob a vaga acusação de perturbar a ordem e desobedecer a ordem pública, legal, etc.

Eu já sabia do fato, mas só dei-lhe a devida importância quando, segunda-feira, vi um ciclista ser expulso da Feira do Livro com agressividade bem maior do que a utilizada contra Telma Scherer. O menino estava atrapalhando mesmo, caminhando entre as barracas empurrando sua bicicleta e até justificava algumas reclamações de quem se chocava contra a bicicleta. Merecia, no máximo, uma advertência da autoridade, pois, imaginemos, ele estava com aquele capacete meio ridículo dos ciclistas e óculos escuros, talvez viesse de longe e com pouco dinheiro para comprar alguns pockets. Era caso para um tratamento indulgente e educado. Porém o que ocorreu é que ele foi literalmente abalroado por um brigadiano que veio de longe aos gritos de “Para o lado, para o lado”. Como o menino não reagiu imediatamente — custou a ser dar conta que a gritaria era com ele — , o homem seguiu gritando e empurrou o ciclista, que antes apenas olhava com interesse os livros com sua bicicleta. Foi uma cena feia.

Ora, nós estamos numa Feira do Livro. Há estátua de Drummond e Quintana, havia escritores dando palestras sobre ficção russa e um americano falava sobre Clarice Lispector. É um espaço cultural e, goste-se ou não, aprove-se ou não, o anônimo ciclista e a escritora deprimida (com razão, com razão) que resolveu expressar-se em praça pública, devem ser tratados com a gentileza e civilidade que o evento pressupõe. É incrível que após 56 anos anos de Feira não haja um protocolo entre a Câmara Riograndense do Livro e a Brigada Militar para que seus soldados não tratem o povo da Feira como se fossem gente  armada vendendo drogas, apesar de alguns títulos que vi. É incrível que após 56 anos ainda não foi criado um espaço de arte e diálogo a poucos metros de distância da programação oficial. É uma total falta de sensilidade.

Eu tenho críticas à Feira do livro — a oferta de livros muito rotineiros a tornam uma enorme, comum e nauseante livraria média; há nela cada vez mais um perfume de quermesse; há alunos de escolas fazendo passeios bobos sem aproveitar o MARGS, o Memorial, o Erico Verissimo, a Casa de Cultura e o Santander Cultural que estão ao lado — , mas sou grande apreciador das muitas palestras e dos balaios. Como experiente frequentador de um evento que este ano teve 1,7 milhão de pessoas e recorde de vendas (411 mil exemplares vendidos numa capital média como a nossa), afirmo com segurança que tanto Telma quando meu ciclista não atrapalham em absoluto e sim dão um colorido peculiar de protesto e casualidade que deveria ser uma das qualidades da Feira do Livro.

Acho que a Brigada Militar está mais acostumada ao MST que, sem cobertura maior da imprensa, deve receber ordens e detenções sem a menor explicação… Também sou de opinião que a Câmara faz um belo trabalho que deve ser melhorado e que não tem relação com os abusos da polícia da desgovernadora. E, bem, acho que nem preciso declarar minha solidariedade à bonita Telma nem ao anônimo ciclista, né? Só não sei se eles voltarão à Feira, se acham mesmo que ela serve para a promoção da leitura e que é um “espaço cultural”.

Ou clique aqui.

O conto que não queria calar

No tempo em que as pessoas comentavam e, portanto, interagiam mais em blogs, os leitores resolveram encrencar com Para não falar de todas as mulheres. Disseram que o conto não tinha final… E três escreveram finais para minha história. Outros também fizeram o mesmo, como dá para deduzir pelos comentários. Eu mesmo escrevi um depois, mas rejeitei. Abaixo, o post com as continuações e sua interessante caixa de comentários.

Alguns de vocês leram Para não falar de todas essas mulheres que publiquei há mais ou menos 10 dias. Por iniciativa do Valter Ferraz, houve três continuações do conto, a dele, a da Adelaide Amorim e a da Lulu.

Isto nunca tinha me acontecido e fico entre o homenageado, o feliz e o desconcertado. Os personagens Luana e Juliano me vieram assim de surpresa, durante um almoço com minha filha. Não tenho grande intimidade com eles. Duas horas depois, enquanto esperava o final de sua aula de equitação, escrevi o conto – que é curtíssimo – em menos de uma hora. Uma semana depois, mesmo achando que o o conto estava completo, rascunhei uma continuação, mas não fiquei satisfeito. Abaixo, estão, em ordem alfabética, a continuação da Adelaide, e a do Valter. A da Lulu vem depois, pois continua a do Valter.

~. ~

Adelaide Amorim deu-lhe continuidade:

Para não falar de todas essas mulheres (continuação)

Luana saiu do restaurante Velho Quintino convencida de que Juliano não passava de um menino mimado, incapaz de perceber as coisas em suas devidas proporções – e, pior que tudo, sem o mínimo senso de humor. Onde já se viu, fazer beicinho por causa de um fora dado em plena hora de almoço num quilo comercial?! Não devia nem ter começado, que aquele não era o lugar adequado. O que é que ele estava pensando? Por quem a tomaria, afinal? Devia ter percebido logo que daquele jeito conseguiria no máximo seu desdém, e que talvez mesmo esse já fosse demais. Na verdade, gostaria de nem estar mais remoendo essa historinha insossa.

Houve quem disfarçadamente acompanhasse o diálogo dos dois, e a olhasse com uma censura velada no olhar. Percebeu isso durante o trajeto em frente ao bufê, enquanto faziam seus pratos. Danem-se os outros. Tinha sido honesta, isso ninguém podia discutir. Dissera a ele tudo que fizera por ouvir. Como dizia sua avó, quem diz o que quer, ouve o que não quer. Um cara que mal tinha começado a fazer barba, estreando o primeiro emprego, imaginar que ela lhe daria atenção, era demais. Não se tocava, o Juliano, francamente. Depois, seus planos de futuro estavam traçados, e não havia de ser por causa de um fedelho daqueles que iria desistir de seus projetos. Crescesse e aparecesse. Que é que um carinha daqueles podia oferecer a uma mulher igual a ela, apta a fazer a felicidade de um homem maduro, experiente e realizado?

Trabalhou o resto da tarde tomada de certo mau humor, como se o almoço não lhe tivesse caído muito bem. Uma dorzinha de cabeça persistente piorava ainda mais seu mal-estar. E mesmo sem se aperceber disso, a presença de Juliano a incomodava como um sapato apertado. Acabou esquecendo o assunto com o telefonema de um amigo jornalista, recém-chegado de uma cidade do interior, cheio de novidades interessantes para contar. Combinaram almoçar no dia seguinte e isso restabeleceu sua disposição habitual.

Às sete chegou a seu apartamento, carregando um sanduíche natural da lanchonete ao lado do trabalho, como fazia quase sempre. Cheia de fome, ligou a secretária para ouvir os recados, enquanto largava os sapatos na área de serviço, deixava a bolsa no cabide do quarto e tirava o relógio e os anéis para lavar as mãos.

Pois não é que a primeira mensagem vinha na voz do boboca do Juliano? Num primeiro impulso, não quis escutar o recado. Deixou a torneira da pia toda aberta, e o ruído da água se misturou com a voz na fita. Só fechou torneira quando o recado chegou ao fim, para ouvir as outras mensagens gravadas. Eram só duas, uma de sua mãe e outra de uma amiga com quem conversava quase todas as noites. Tinha esperado outro recado numa outra voz, mas não havia mais nada para ouvir. Sentou à frente do sanduíche e percebeu que havia perdido a fome.

Desapontada, voltou à sala e tornou a ligar a secretária. Dessa vez ouviu a voz contida de Juliano como se estivessem sentados lado a lado. “Desculpe aquela história lá no restaurante. Não queria chatear você. Você tinha razão. Acho que até devo agradecer pela reação, mesmo que no momento tenha me parecido brusca demais. Foi como uma sacudida, que me abriu os olhos para o mundo que, na minha idade, está cheio de possibilidades que eu, feito um bobo, iria jogar fora. Afinal, ganhei o dia e talvez tenha ganho a minha vida. Obrigado mesmo, valeu, Luana.

Mas não se leve tão a sério. Mesmo que consiga fisgar seu velho milionário, nada impede que a gente possa se divertir juntos. Ainda não estou na idade de assumir compromissos, mas sou um cara cheio de saúde, com uma queda por mulheres gostosinhas. Além disso, você sabe, às vezes a idade e as preocupações que o dinheiro traz prejudicam um pouco o desempenho de um homem nas horas mais críticas.

Pense nisso, querida. Conte comigo. Beijos.”

Desligou a secretária e o clique da tecla pareceu estalar dentro de sua cabeça. A dor tinha voltado, o apetite fora embora de vez e ela empurrou a almofada do sofá para longe. Palhaço, rosnou, irritada. Palhaço, repetiu com menos força. Cafajeste, disse, um pouco mais alto, e repetiu lentamente, escandindo as sílabas.

Da janela chegava um resto da claridade do verão, que ainda não tinha terminado.

~. ~

A do Valter Ferraz é totalmente diferente e começa citando o comentário que Cláudio Costa escreveu em meu blog:

Existem muitas ‘Luanas’ por aí, dessas que sonham com homens mais velhos. Têm explicações racionais – “os mais velhos tratam-nos melhor” – talvez para esconder motivos ocultos, desejos outros. Nem é necessário recorrer ao austríaco Sigmund para pensar nos conflitos edipianos de ‘luanas’ e ‘julianos’: ela, a menina, busca proteção, carinho e experiência; ele, meninão, carece de colo, compreensão e ternura. Sexo também, claro, pois Éros já habita em nós desde os cueiros. Troca, compartilhamento, doação? Nem pensar! São versões de uma novela antiga. Diria, por pura exibição: père-versions. Voltemos à mesa e brindemos: – Evoé!

O grupo saiu do restaurante na noite fria. Andavam apressados, conversavam animadamente. Menos Juliano. Ía pensando nas palavras de Luana. O quê exatamente ela esperava da vida, meu Deus do céu! pensou quase em voz alta. Há tempo sentia-se apaixonado pela garota. Vinha testando as possibilidades. Naquela noite, depois do vinho animara-se. E ela lhe parecia tão acessível. Enganara-se. Completamente. Ela não lhe deixou esperança alguma. Cortou em meio às palavras que ele começava a lhe dirigir. E sua alegria esfuziante como se nada mais tivesse importância, pelo ao menos a mesma importância que ele emprestava ao fato, achatava-o de encontro aos próprios sentimentos. Reduziam-no a um nada. Um boboca sonhador. À frente em meio ao grupo barulhento, Luana seguia sua vida. Completamente esquecida do quanto magoara e ferira os sentimentos do jovem Juliano. O que ele buscava exatamente nela? Bom, pensou: amor, carinho e companheirismo. Estava farto daquelas saídas alegres, descompromissadas, inúteis. E queria sexo, também. Mas não o sexo fácil que se consegue em qualquer esquina. Não aquele sexo que não resiste à segunda tentativa. Aquele em que a parceira diz não, querendo dizer venha, me come. Não aquele em que burocratica e insensivelmente as mãos vão caminhando, descobrindo, tateando e abrem caminho para o sexo penetrante, impessoal e competente. Um gozo, um boa noite e uma nota de cinquenta. Não, não era esse o sexo que queria. Era aquele de uma noite inteira de dedicação, sem pressa e sem objetivos a ser atendidos, em que o único compromisso é ser feliz, por quanto mais tempo for possível. E tinham as palavras carinhosas, a cabeça descansando no seu peito, o ressonar tranquilo da fêmea que satisfeita dormece. Era isso o que ele queria. O único sentimento bom que tinha e Luana desprezara. Ah! mulheres! Tinha muito o que aprender o jovem Juliano. Resolveu naquela noite ao virar a esquina e se despedir do grupo que tudo agora seria diferente. Muito diverso do que fora até alí. Na calçada do outro lado um saxofone toca um jazz. Invade-lhe a alma. Ele estanca, decide: vai entrar, beber e ouvir. Foi o que fez.

~. ~

E a Lulu – que casualmente chama-se Luana Chnaiderman de Almeida — segue assim:

Será que ele lhe era insuportável? Sim, era.

E que idéia, convidá-la para sair, daquele jeito, ali, na fila do buffet. Era melhor ser o mais direta possível nessas horas, porque senão os caras não entendem, e grudam. Deixar tudo claro de uma vez por todas, com simpatia: um cinema, ok; mais que isso, não, já aviso logo de cara que é para não criar expectativa. E a cara que ele fez? Cara de cão sem dono – pior, cão abandonado pelo dono, no meio da chuva, no dia de natal. Vai ficar com essa cara? Ele nem respondeu… dava logo para ver que ele queria uma História. De amor, sessão da tarde, pipoca, essas chatices de menino. Ah… mas como são tolos esses moleques. Imagina se ela ia se apaixonar por um menino como ele? Tenha dó! E além disso ele não tirava os olhos do decote dela, nunca, jamais. Parecia falar com o pingente que caía entre os seios, não com ela, Luana. Não fora para aquilo que ela tinha feito a cirurgia nos seios, não… queria coisas melhores, e haveria de ter. Havia prometido a si mesma: chega de sair com moleques. E respirava aliviada, queria grandes histórias, com Homens Interessantes.

Queria um homem mais velho, que lhe soubesse tocar, grisalho, as mãos calejadas, o coração calejado, que pagasse a conta e abrisse a porta do carro, lhe ensinasse sobre a vida e vinhos e tomasse as decisões. Que soubesse ouvir e falar, tivesse casa, dinheiro, carro. Que lhe contasse histórias de longe e de perto, de outros lugares, que soubesse línguas e fosse educado. Queria uma voz rouca, uma vida já construída, um porto seguro, um olhar cansado e sábio, vivido. Nada dessas besteirinhas apaixonadas de alguém que tem ainda cara de menino. Um Juliano… Nada de dedicação sem fim, de carinho, de ficar olhando enquanto ela dormisse. Queria uma certa indiferença e uma certa malícia, uma certa autoridade de homem mais velho. Sem essa de gente que fica sonhando acordada, olhando olhando, que perde a fala e mal sabe fazer um convite decente. Queria que lhe agarrassem, que lhe arrebatassem, que viessem e dissessem: vem, é por aqui. E a deixassem sem fôlego.

Melhor ser direta nessas horas. Falar logo de uma vez: só saio com homens mais velhos. E ele amuou que parecia que ia derreter por baixo da mesa. Havia até gente reparando, ela notou. E depois, sim, ela falara sem parar, porque o cão abandonado e sem dono era cada vez mais insuportável.

Pô, nunca teve um convite recusado na vida? Ele murchara, foi minguando, não conversava mais com ninguém, até olharam feio para ela. E ela tinha culpa? O olhar dele quase batia no chão, e ele nem quis sair depois com a turma. Ficou sozinho, ela reparou, e tinha como não reparar?

Lembrou do collie que tivera na infância, ele tinha uns olhos tristes assim. O collie morreu. E Luana foi ficando com mais raiva. Quanto maior a raiva, mais falava, jogava o cabelo para lá e para cá, como fazia quando ficava nervosa. A turma inteira conversando e o Juliano lá quieto, sorvendo as palavras… Não podia mais ver aquele menino, diria logo no dia seguinte: Juliano, não podemos nem ser amigos. Não aguento essa sua cara de bebê chorão. Não ia conseguir dormir. Não havia jeito. Decidiu ouvir um jazz, tomar um uísque, antes de voltar para casa. Sempre há homens interessantes e mais velhos, nesses buracos onde se ouve jazz.

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Minha continuação era diferente, talvez mais desesperada por eu ter fixado minha atenção em Juliano durante uma tarde terrível no escritório em que travalhavam… Um dia publico, tá?

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Comentários do blog anterior (primeiro está o comentário, depois o autor; tudo de trás para frente, OK?):

Milton, são 4:00hs da madruga, chove muito aqui na praia. Venho lá do Ery. O cara estraçalhou. Botou um Billy Joel na história. Aí fica difícil, homem. Comecei a brincadeira sem saber que iria dar nisso aqui. Nem poderia imaginar os caminhos que as palavras percorreriam. Ainda faltam alguns amigos a contar suas versões. Mas o que lí até agora me deixou num misto de alegria incontida, vontade de partilhar emoções, mostrar para amigos que não sabem o que é partilhar de um ambiente como esses. Fico muito grato a você por generosamente ter aceito que eu me apropriasse de tua criação, colocasse teus personagens em minha história. Acho que o resultado compensa todo o atrevimento e ousadia de minha parte. Convido a todos a lerem o que o Ery escreveu. Só um lembrete: cliquem no player lá embaixo e leiam o texto com a música ao fundo, imperdível. Parabéns, Ery. Abraço, Milton

valter ferraz Jun 28 2007

Milton, em princípio não me senti capaz. Mas ao aceitar, avistei um desafio muito bom por ser uma experiência inédita pra mim. Os participantes até agora deram mesmo um banho. Concluí minha “tentativa” como sendo uma continuação da sua idéia. Postei hoje. A brincadeira está ótima. E fico cada vez mais curioso pelo “seu final”. Abraço.

Ery Jun 27 2007

Olá Milton Estou surpresa, com tudo que está rendendo a idéia de continuar o seu conto. Já se pronunciam quase que tratados sobre uma questão que me parecia tão simples. Se duvidar, isso ainda vira um assunto de pesquisa científica…rs E sendo franca, a idéia que eu tive era que cada um dos convidados continuasse a estória de onde o anterior parou. Mas o pessoal decidiu dar várias continuações para o seu conto inicial. De qualquer forma, tá muito legal ler todo este pessoal que se propôs a participar da “brincadeira”. Mas por favor, depois das continuações dos amigos blogueiros, gostaria muito de ver a sua. Vou ficar na expectativa. Abraço Leila

Leila Larson Jun 27 2007

Interessante essa história com várias possibilidades. Prova que há várias maneiras de interpretar um discurso. A minha, em relação à Luana, é que ela simplesmente não quer ficar com o rapaz em questão. Se ele lhe agradasse, ela não ia vir a priori com essa história de gostar de homem mais velho. Pelo menos é o que parece. E aí, Sr. Milton? Quanto tempo! Apareça lá na Estante, estou com saudades suas! Beijão, Ana

Ana Lúcia Merege Jun 27 2007

Milton, publique a continuação!!!! 🙂

Serbão Jun 27 2007

Milton, não é por nada não mas é a melhor versão de tudo o que apareceu até agora. O Lord coloca Billie Holiday com My Old flame entremeando o texto, assim ele quebra as nossas pernas. Grandioso. Só isso. Acho que eu estava certo quando comecei esse trem aqui. E um parabéns para aLeila que foi quem teve a idéia. Abraço forte

valter ferraz Jun 27 2007

Milton, Conforme compromisso assumido com o amigo Valter, acabo de postar minha continuação lá no Lord. Abração

lord broken pottery Jun 27 2007

Geeenteee!! que engraçado que tá tudo isso aqui! 🙂 uma brincadeira é uma brincadeira é uma brincadeira. 🙂 só para constar, meu espírito ao entrar no jogo não foi interpretativo, nem literário, porque eu não sou escritora. No espírito de homenagem, ao Milton e ao Valter. Queria dizer isso. e dizer que está divertido, e que os comentários sobre a Luana e o Juliano estão ótimos. e a mim, essa Luana minha xará está dando uma certa aflição, confesso! 🙂 FC, que bonito que ficou seu texto! agora falta a SUA continuação, né Milton? beijinho, lulu.

lulu Jun 27 2007

Vou ver se aqui cabe… Amigos e Amantes As coisas são como são, acontecem porque isso faz parte. A arte é um separar de pequenas coisas, tratadas como se nelas se desse uma metamorfose. Procuremos deixar passar de crisálida a borboleta a história da Juliana, afinal bem simples. Ela é uma rapariga nova e independente, vê-se exactamente como a vêem: é uma presa que anda à caça das suas próprias experiências e já não tem grandes ilusões. Verem-na como presa desenvolveu nela um sentido subtil de ironia, como é inteligente brinca sem ofender nem aleijar e aproveita o que se aproveita. É sempre bom ter relações saudáveis. Acaba de receber uma mensagem no atendedor, a voz de Juliano. Juliano & Luana, se montassem uma empresa, até que não estaria mal, pensou, como quem quer rir, sorri. O amigo estava a dar a volta brilhantemente ao “fora” que lhe dera, era capaz de vir a ter sorte… Agora para a estória dum inventado narrador omnisciente, à procura de dar por concluída a conclusão de ter pegado numa continuação… Luana anda mesmo com um homem mais velho, é delicado e sensível mas não lhe abre a porta do carro nem lhe alimenta vícios, a não ser que o vício dela seja ele. Ela, sem romantismo, vê a história deles, não como uma estória, essa vou eu resumir e deixo-a inacabada: uma história de amor. Começada há dois anos num bar, ouvindo jazz. A música baixou num swing de harmonias e sensibilidades dum trio brilhante, ao lado dela estava ele. Poisou-lhe a mão numa mão que ela abandonara sobre o balcão, piscara-lhe um olho. Ao piscar do olhou retirou a mão que pegou no copo, beberam e continuaram até ao final da música a ouvir o gozo dum perfeita improvisação. Depois ele seduzira-a, nem tinha como contar, fora brilhante. Convidara-a a ir com ele, para lhe poder mostrar uma “colecção de poemas”. Fora e continuavam… amigos e amantes. Abraços.

FC Jun 26 2007

Milton, a Aninha postou um comentário aqui e ainda não apareceu. Dá prá dar uma olhada aí? abração

valter ferraz Jun 26 2007

Luana, que tem 24 anos, exagerou propositadamente ao falar de homens de 40 anos. Talvez ela pense nos 30 anos. Ela tem 24. Juliano tem 22 (uma criança !). Para Luana o sexo vem depois, não é entretenimento para já. Pretende um homem com experiência da vida, em que possa confiar, que case com ela, um homem que pareça apto a ser amigo de sua mulher pela vida fora. É verdade, Luana simpatiza com Juliano. Tem pena. Ele é demasiado novo. Afasta-o para lá. Quando já na rua os quatro seguem ainda juntos só ela fala. Vai excitada, lutando secretamente e mais uma vez vitoriosa, seguindo pela linha que traçou para si. Luana deseja ter o seu lar, e que nele os seus filhos tenham um bom pai, um homem que pela vida fora mostre ser hábil na luta contra as armadilhas da vida.

Fernando M-P Jun 26 2007

Milton, você plantou um pé de contos e ele está entrando na floração! Uma beleza. Todo mundo dando opinião, imaginando e criando novos caminhos. Parece o jardim do Borges, não? 😉 Beijos e parabéns pela boa mão…

adelaide Jun 26 2007

Além de bem escritos, os diferentes capítulos demonstram as possibilidades infinitas de variações sobre um mesmo tema: o tema da busca, da incompletude, do ilógico nas relações afetivas. Cada um de nós, quando menos espera, topa com aspectos desconhecidos dentre de si. Por isso os romances, as novelas, os contos, enfim “A PALAVRA” nos atravessa e desencadeia associações multifacetadas. A Luana, que parecia do Milton, não é mais dele: agora existem outras, fruto da imaginação de cada leitor/escritor… Isso é bonito, não? A propósito, publiquei hoje um texto de um mineiro: À procura da mulher bem resolvida.

Cláudio Costa Jun 26 2007

Penso de maneira semelhante ao Luciano Lazzari. Espero que a Luana páre com essa bobagem demodê de submestimar os mais jovens e descubra que bom mesmo é crescer junto com alguém da mesma idade. Meninas que buscam por homens mais velhos tendem a ser inseguras de si. Ela rejeita o Juliano porque vê nele a própria insegurança, mas ele, ao menos, teve a coragem de convidá-la pra sair, ainda que de um jeito desastrado.

LucianA Jun 26 2007

Engraçado. Não era uma tese e não tenho uma posição definida anti ou pro Luana, nem pensei em minha opinião. Registrei o fato ficcional e fui embora. A mim, não interessam os motivos de Luana, nem os inventei… Talvez esteja apaixonada por outro homem, mais velho ou não; talvez goste de mulheres e use de subterfúgios; talvez apenas ache Juliano um chato; talvez ele seja muito feio ou talvez ela tenha lhe dito a verdade e só goste de caras maduros… O que sei? Será que gosto tanto de Tchekhov que aprendi a desaparecer sem julgar ninguém? Francamente, não tenho opinião sobre a história, ela é apenas um flagrante que acho muito expressivo. Será que devo mesmo mostrar a continuidade que escrevi ou deixo assim? Agora *num* sei mesmo!

Milton Ribeiro Jun 26 2007

Ficaram bem boas. Agora vamos ao pai da criança!

Eduardo.P.L Jun 26 2007

Mirto: Há alguns dias, tenho acompanhado essa movimentação, fui inclusive convidada por um dos participantes a quem dei minha sincera opinião. Mas, como todos sabem email é coisa confidencial. e essa confidencialidade só pode ser quebrada se for uma questão de… digamos, honra ou morte:-)as you know. Mando – ou talvez não seja necessário, pois ela está nas entrelinhas deste comment – minha opinião, fraquíssima e desprovida de valor, pois não tenho cacife nem autoridade para tanto. Mas, de qualquer forma, quero dizer ao querido Claudio Costa que fez uma leitura de forma lacaniana (isso é um perigo, pois Lacan é importante demais) que não vi na resposta de Luana nenhuma, mas nem sequer sombra de *père_version*. Nem do atrativo En nom du père?-))) hohoho. Sabe, gente, e Claudio também, (aliás não estou dizendo nenhuma novidade devem todos saber disso), de repente quando uma mulher diz *não* a um homem é simplesmente um *NÃO* , um dado cultural: todos nós temos o direito de dizer *NÃO*. Se o narrador escreveu que ela apontou a causa de sua negativa: a preferência por homens mais velhos, isso tanto pode ser ou não, também um dado cultural, dar uma ‘aliviada’ a quem leva o nosso *não*. Porque, Claudio, meu querido Doktor Claudio a quem muito admiro, pras cabeças pensantes , nem sempre um *não* oculta outras razões que não a de ser simplesmente… um não. É ou não é? C’est pas vrai? Tal como o autor, o Milton, que é autor dse excelentes textos, contos, e até quase-romances ou seja matéria ficional, eu me sinto algo, um ninquinho assim desconcertada.;-0) Fazer o que? Um beijo a todos e espero que o Milton continue a produzir os bons textos que cria. E dou parabéns a quem aceitou o repto e escreveu..sobre um *não* que a moça tinha todo o direito dizer. Vai que o Juliano, ou Luciano, enfim o HOMEM, tivese er…halitose? Na verdade, ou melhor na ficção, o narrador trata é do efeito desse *não*. Esse pra mim é o *xis* da questão: o que se faz para lidar com um *NÃO* e se iso for da parte de uma mulher, então…:-) mas em todo caso, é como o ser humano (todos nós) lida com o não-poder. Quando esbarra com a fronteira da vontade do outro. Repito, em minha fraquíssima e pobre, paupérrima opinião. Beijo, portanto, para todos do *sequitur* – para o autor do original e outro muito especial para o querido, repito, Dr. Claudio Costa:-) Meg P.S Agora que é sempre legal, não deixar passar uma oportunidade *lúdica*. ah isso é. Mais beijos

Meg (Sub Rosa) Jun 26 2007

Olha, a história principal eu tinha lido a uns dias e tinha achado muito interessante, o problema pra mim são as continuações. Gostei apenas a do Valter. As mulheres foram muito rudes com o rapaz. Não entenderam nem quiseram entender sua situação, assim também como eu não quero entender a situação da Luana. Por que alguém mais velho? Pra dar segurança, dinheiro, estrutura, experência, cultura? Uma pergunta. Ela procura um parceiro pra usurpar os prazeres do corpo e da alma ou um pai? Porque pra mim quem me da dinheiro, experiência, cultura, segurança é meu pai, a menos que fosse orfão e sofresse de todas essas carências não iria procurar por isso. Acho que essa de procurar um tiozinho da sukita não está com nada, ela tem mais e que fica com o garotão, curtir um motel, aproveitarem as férias juntos, quem sabe casar, sofrer a pressão pra adquirirem uma casa e construirem uma família, e ambos crescerem juntos. Assim funciona a ordem natural das coisas, ou ela vai querer um sujeito que quando ela tiver seus 40 anos ele vai estar com 60 (trocando suas fraudas quem sabe) o filho vai achar que se trata do avô e não de um pai, vai crescer em meio a toda liberdade que quiser (sem a proteção do pai), sem ser protegido das adversidades do mundo, quem sabe esse filho(a) vai ser uma Luana no futuro, pois vai carecer muito de um pai, ou quem sabe vai ser um delinquente. Acho que Luana não é a mulher que mereça um Juliano, e ele devesse seguir adiante e entender que o mundo está cheio de pessoas com lesões psíquicas e que mais cedo ou mais tarde ele iria encontrar alguém que se encaixasse em seu perfil. E como diz o ditado: “Enquanto não encontra a pessoa certa, se divirta com as erradas”; É assim que vivi ate agora quando finalmente encontrei a minha pessoa certa. Abraço Milton

Luciano Lazzari Jun 26 2007

Eu já tinha lido todos. Tô querendo saber o que aconteceu depois que os dois entraram no bar. Ao som do jazz. Minha imaginação tá coçando, alguém escreva a continuação aí, please. Abraço. Janaína.

Janaína Jun 26 2007

Milton, acho que ficou muito legal agora ainda mais, com todos na sequência. Quem ler vai ter uma idéia geral, sem quebra. Agora, desconcertado? Fica não, tio. Só quis te homenagear pois o teu conto mexeu comigo. Acho que ainda vem coisa boa por aí. Peço licença para colar pois o pessoal estava pedindo a sequência toda para os novos posts. Posso? Abraço forte, tchê!

valter ferraz Jun 26 2007

O reinventor do cinema

Por Fernando Monteiro

O mais importante cineasta vivo completará 80 anos no dia 3 de dezembro. Coincidência ou não, três semanas antes a Academia de Ciência e Artes do Cinema vai lhe entregar um Oscar honorário – pelo conjunto da obra – como se isso fizesse diferença para Jean-Luc Godard.

NÃO faz. Até porque nada é menos parecido com Godard do que a famosa estatueta dourada, uma figura andrógina concebida para representar a glória na indústria cinematográfica americana (e talvez por isso segurando, contritamente, uma espécie de espada encaixada entre as longas pernas).

Ao Jean-Luc já ancião será conferida uma homenagem antes recusada ao cineasta ao longo da carreira de meio século e, até agora, 85 títulos que contaram com a solene indiferença da mesma Academia. Só agora ela resolveu conceder-lhe um Oscar “especial” que chega tarde às mãos do diretor nunca galardoado, antes, ao menos com aquele prêmio colher-de-chá conferido aos melhores filmes estrangeiros – um troféu considerado importante por nós, mas não por eles. O homenzinho na pose de sentinela transida, para os americanos é relevante somente quando premia roteiristas, músicos, atores, atrizes, diretores e produtores integrados ao sistema hollywodiano.

Na contramão disso, Godard sempre representou – e ainda representa – um cinema radicalmente criativo e rebelde. Quem queira saber mais sobre a modernidade da sua obra, é só conferir as 944 páginas de GODard (assim mesmo, na capa), livro do historiador e jornalista Antoine de Baecque lançado na França em março deste ano.

Nem com essa empreitada do sério Baecque, se animou o Godard convidado para colaborar com a alentada biografia: “Pra que diabo servirá saber sobre detalhes da minha vida?” – logo de saída ele perguntou ao compatriota e admirador interessado até no café da manhã de uma lenda viva.

Agora, lá vem o Oscar chatear com seus cenários de luxo e acomodação, num contexto que é o emblema maior do Negócio, no cinema. O “caneco” americano celebra isso, madrugada adentro, numa festa de brilho brega, com passarela de celebridades e tradutores simultâneos tropeçando nas piadas sem graça de emocionados agraciados pulando do auditório com cara de surpresa. Seja como for, o diretor de “Acossado” sequer confirmou que estará presente, na entrega – prévia – dos prêmios especiais de 2010.

O DISSIDENTE QUE VIROU UM CLÁSSICO

Jean-Luc Godard nunca morreu de amores pelo cinema made in USA, mas, justiça seja feita, ele também não compareceu ao Festival de Cannes deste ano. Foi esperado até o último momento, quando afinal avisou que resolvera cancelar a viagem à Riviera, a fim de apresentar a mais recente produção (“Film Socialisme”) com a inconfundível assinatura JLG nos créditos – que incluem a cantora Patti Smith, o filósofo Alain Badiou e o historiador palestino Elias Sanber.

Se houver explicação para as recusas do cineasta, será a de que o homem está cada vez mais parecido consigo mesmo e, portanto, menos disposto a suportar as “futilidades” de festivais, holofotes da mídia, prêmios e entrevistas coletivas que fazem a delícia dos Woody Allen da vida.

Godard sempre foi mortalmente sério, desde seus tempos (cancelados, também) daquele cigarro de desprezo no canto da boca, óculos escuros e os olhos novos para imagens de desacordo vinte e quatro quadros por segundo.

Não resisto à tentação de fazer um paralelo desse Godard irredutível com um cineasta brasileiríssimo. Aviso aos navegantes [da obviedade]: não se trata de Glauber Rocha. O nome que vou trazer para perto de Jean-Luc é o do também revolucionário Mário Peixoto, realizador de um único e fundamental título: Limite, de 1930.

Ele foi o nosso Godard avant-la-lettre, e Jean-Luc é, no cinema de hoje, o único diretor que, a exemplo de Mário, continua interessado no cinema-cinematográfico (tautologia necessária), ou seja, na imagem pura, no discurso não “verbal” de tomadas que revelam o real para além do “naturalismo” vagabundo no qual se refestela grande parte dos filmes burros deste momento agônico quer do cinema clássico (a la John Ford e David Lean), quer do cinema das almas formalmente inconformistas, na tradição de Eisenstein, Peixoto, Welles e Godard.

É isso mesmo: um carioca, solitário, forma no quarteto básico do Cinema – com o “C” maiúsculo da contemporaneidade que não filma para o passado.

Usando-se do paradoxo dos signos verbais, o mais próximo de uma sinopse godardiana seriam os versos da polonesa Wislawa Szymborska (prêmio Nobel de 1996): “Quando pronuncio a palavra Futuro/a primeira sílaba já pertence ao passado./ Quando pronuncio a palavra Silêncio,/destruo-o. /Quando pronuncio a palavra Nada, /crio algo que não cabe em nenhum não-ser.”

Essa brevíssima metafísica corresponde, em parte, àquela dos filmes menos palavrosos do Jean-Luc que fez de tudo para reinventar a sétima arte: filmes literários e anti-policiais, crônicas parisienses desesperadas e ensaios de política, visões escatológicas, dramas cubistas, anotações e epifanias – jamais parecida uma com a outra – porque Godard sabe que o cinema é uma arte que, estranhamente, envelhece com a velhice das décadas, das culturas e da história a que ninguém mais está presente depois do ex-anônimo Abraham Zapruder filmando, em 8 milímetros, o assassinato de um presidente.

Isso aconteceu quando Godard caminhava para o zênite da “Nouvelle Vague”, a escola francesa de cinema da qual se tornaria a cabeça mais inquieta (enquanto o recém-falecido Claude Chabrol era a mente mais convencionalmente gaulesa, desculpem os chabrolianos que nunca aceitaram bem a superioridade dos Godard e dos Rivette). Ora, Jean-Luc foi, quase sozinho, a nova vaga em essência, longe da noite americana e outros disfarces à Truffaut. Ele impregnou o seu cinema da marca do reflexo do tempo que passa à nossa frente, caótico e inacabado como são todos os tempos.

VELHOS TEMPOS, BELOS DIAS

No auge da “Nouvelle”, mal havia o intervalo necessário para entender a nova visão godardiana nas coxas – entretanto, bem-feita – e lá vinha mais uma instigação lítero-visual dos seus cadernos de Dziga-Vértov da ficção cinematográfica em modo de discurso já diferente. Como descrever o que era aguardar, ansiosamente, o novo Godard?

Basta dizer, talvez, que era como esperar uma mensagem codificada invertendo tudo que fosse fácil de apreender nas salas de poltronas acolchoadas do pensamento, e que suas “películas” (ainda se usa a palavra?) de Kino-verité podiam ser Alfa e Ômega, e rolar de trás para diante nos projetores, de acordo com o ajuste irônico do autor de Je vous Salue, Marie: “Sim, todo filme tem que ter princípio, meio e fim, embora não necessariamente nessa ordem”.

Isso – esse novo modo de contar uma história na tela – viria a ser apropriado até pelos cineastas mais idiotas da indústria, nas imitações baratas que surgiriam, depois, macaqueadas das reinvenções de Godard. Mais, muito mais do que metade da linguagem do cinema de hoje, saiu das liberdades que esse cineasta tomou com a linguagem, até como possível reflexo de ser oriundo da família Monod, de protestantes severos.

O irrequieto artista surgido deles fez “história imediata”, ao filmar com uma necessidade de urgência tal que não hesitava sequer em furtar dentro de casa. Na época da estréia atrás das câmeras (Operátion Béton, curta-metragem, 1954), para choque dos seus sisudos parentes, o jovem Jean-Luc roubou um livro da biblioteca do avô – obra rara, com o autógrafo de Paul Valéry – para suplementar as despesas da produção.

Esses Monod franco-suiços bem-pensantes dos quais Godard provém, tornam-se bem mais aceitáveis, entretanto, do que a modernosa ligeireza dos monos, dos macaquinhos que passaram a praticar a diluição-da-diluição dos filmes que essa lenda cinematográfica involuntariamente articulou para um futuro de “déjà vu” estético e calculadoras exponenciais de lucros, quer sejam do mais novo Almodóvar atropelado pela vulgaridade do Tarantino mais recente, ou sejam do cinema falso-brilhante de Martin Scorcese e outros menos votados (formando a multidão de esquecíveis quase de imediato à consagração de um único dia na “Quinzena dos Realizadores”, na corda bamba da montanha russa mimetizada desse senhor que, nos anos de 1960, reinventou a arte das imagens: Monsieur Jean-Luc Godard).

O cineasta mal copiado é, na verdade, pináculo, vertigem e ascese – enquanto o resto vai de pós-modernismo tatibitate até chegar à cinematografia pedestre dos Spielbergs interessados em entretenimento rasteiro de maneira a fazer fortuna rápida com a sintaxe libertada pelo mestre.

Por que Godard estaria interessado na “homenagem” de uma estatueta sem valor? (Sem valor, vírgula: o Oscar serve para fazer dinheiro, mas não com os filmes alternativos da rica marginalidade do seu cinema).

Onde ele iria enfiá-lo? A pergunta é, acreditem, sem malícia – livrando o seu da reta e prevendo que o homenageado vá sair pela tangente daquela cerimônia de americanos “jecas” no Afeganistão de verdadeiros caipiras que já elevaram a mediocridade de um Forrest Gump à morada da sexta felicidade de seis estatuetas e quase setecentos milhões de dólares de receita.

Estou tentando louvar um velho renovador com o melhor do seu veneno: a paráfrase de um texto o mais próximo possível do cinema maravilhosamente perto das primeiras visões dos Lumière, quando a imagem era novidade e invenção mecânicas, a estimular a mente de proto-espectadores ainda bebês em matéria de “sétima arte”.

O cinema voltou a engatinhar? “A indústria recupera tudo”? Quem disse isso? Gilles Deleuze? Glauber? Godard? Branchú?…

Não importa: a dúvida sobre essa frase a indústria (zás!) já a recuperou, junto com a camiseta de Che Guevara que o mercado gosta de usar debaixo do smoking alugado para a noite do Oscar.

Alguém imagina Godard enfiado numa roupa de cerimônia, subindo ao palco pelo tapete cor vermelho-sangue do Iraque que vai recomeçar a render mais filmes de soldados desajustados de volta para a América sem qualquer inocência (restante daquela que havia na Idade de Ouro de um John Ford)?…

Eu, pelo menos, não consigo ver o diretor revolucionário no cul-de-sac de uma roupa apertada, avisando a todo mundo – na platéia expectante – que, no seu rigor, esqueceu de vestir a cueca, e, em seguida, agradecendo comportadamente aos pais, aos mestres, aos bedéis, às ex-namoradas, aos guardadores de carros e à antiga (in)sanidade dos tempos em que ir ao cinema era viver a vida novamente intensificada de um jeito que nada tem a ver com a arte sete vezes pasteurizada na telinha do celular…

Viva Godard. Os que vão ter saudade do futuro te saúdam!, rapaz de oitenta anos, imortalmente jovem na atração fatal de filmes ainda em plena desobediência política, artística, global – o escambau.

Dmitri Shostakovich (VI)

Ponho-me, de repente,
a rabiscar num pedaço de papel,
ouço zumbidos, apitos, coisas que não me espantam,
depois torturo os ouvidos de todo mundo;
em seguida, faço que seja publicado
e esquecido para todo sempre…

Poema escrito de brincadeira (ou não) por Shostakovich

Sigo minha série com um capítulo curto. Iniciamos aqui, continuamos ali e ainda aqui, acolá e alhures.


Quarteto Nº 9, Op. 117 (1964),
Quarteto Nº 10, Op. 118 (1964) e
Quarteto Nº 11, Op. 122 (1966)

Os quartetos de números 9, 10 e 11 são semelhantes em estrutura e espírito. São os três muito bons e têm em comum o fato de manterem por todo o tempo a alternância entre movimentos rápidos e lentos, sendo tais contrastes ampliados pelo fato de o nono e o décimo primeiro serem compostos por movimentos executados sem interrupções. O décimo ainda separa os primeiros movimentos, porém o Alegretto final surge de dentro de um Adágio. A postura de fazer com que surjam movimentos antagônicos um de dentro do outro é uma particularidade que torna estes quartetos ainda mais interessantes, sendo que o décimo primeiro é um inusitado quarteto de 17 minutos com sete movimentos; isto é, Shostakovich brinca com a apresentação de temas que fazem surgir de si outros muito diversos em estilo, como se o compositor estivesse sofrendo de uma incontrolável superfetação (*). É, no mínimo, desafiador ao ouvinte. Melodicamente são muito ricos, e exploram com insistência incomum os ostinatos, os quais são sempre no máximo belíssimos e no mínimo curiosos. Merecem inteiramente o lugar que modernamente obtiveram no repertório dos quartetos de cordas. É curioso como é fácil confundi-los. Estou ouvindo-os enquanto escrevo e noto quando o CD passa de um para outro, pois têm personalidades muito próprias, mas nunca sei se o que estou ouvindo é o nono ou o décimo. Certamente é uma limitação minha! Já no décimo primeiro, o paroxismo da criação de melodias chega a tal ponto, seus ostinatos são tão alucinados, que é mais fácil reconhecê-lo.

Aliás, o décimo primeiro apresenta aqueles finais tranquilos que constituíram-se uma das assinaturas do Shostakovich final. Esqueçam o gran finale. Sem fazer grande pesquisa, sei que os finais quietos, na grandiosos, podem ser encontrados na 13ª, 14ª e 15ª sinfonias, neste quarteto e no sensacional Concerto para Violoncelo que será comentado a seguir.

(*) Palavra pouco utilizada, não? Significa a concepção que ocorre quando, no mesmo útero, já há um feto em desenvolvimento.

Concerto para Violoncelo e Orquestra Nº 2, Op. 126 (1966)

Uma obra-prima, produto da estreita colaboração entre Shostakovich e Rostropovich, a quem o concerto é dedicado. A tradição do discurso musical está aqui rompida, dando lugar a convenções próprias que são “aprendidas” pelo ouvinte no transcorrer da música. Não há nada de confessional ou declamatório neste concerto. Há arrebatadores efeitos sonoros que são logo propositadamente abandonados. A intenção é a de ser música absoluta e lúdica, mostrando-nos temas que se repetem e separam momentos convencionalmente sublimes ou decididamente burlescos. Nada mais burlesco do que a breve cadenza em que o violoncelo é interrompido pelo bombo, nada mais tradicional do que o tema que se repete por todo o terceiro movimento e que explode numa dança selvagem, acabando com o violoncelo num tema engraçadíssimo — como se fosse um baixo acústico — , para depois sustentar interminavelmente uma nota enquanto a percussão faz algo que nós, brasileiros, poderíamos chamar de batucada. Esta dança faz parte de uma longa preparação para um gran finale que novamente não chega a acontecer. Um concerto espantoso, original, capaz de fazer qualquer melômano feliz ao ver sua grande catedral clássica virada de ponta cabeça e, ainda assim, bonita.

Concerto para Violino e Orquestra Nº 2, Op. 129 (1967)

Este concerto costuma receber poucos elogios por sua qualidade musical e grandes adjetivos vagos: profunda reflexão lírica…, elegante…, pleno de momentos tocantes…, mágico…, poético… Parece que os comentaristas deste concerto contraíram aquele vírus, tão comum nos enólogos, que os faz encontrar o siroco ou o cheiro do útero materno dentro de cálices de vinho. Para mim, há apenas um problema neste concerto: não vejo grandes méritos nele. Acho-o chato e anacrônico. Paciência e adiante!

O Nobel de Doris Lessing

O Prêmio Nobel de Literatura é uma láurea às vezes geopolítica, às vezes literária. Foi geopolítica, por exemplo, a premiação de Nadine Gordimer em 1991 — lembrem que o apartheid foi abolido em 1990 por Frederik de Klerk e a Academia Sueca entendeu ser interessante mostrar ao mundo que havia escritores por lá — ; foi novamente geopolítico quando deu seu polpudo cheque à ridícula Toni Morrison em 1993 — presumiram que seria a hora de premiar uma mulher negra? — ; chegou a níveis rasantes quando chamou Alexander Soljenítsin em 1970, logo após ter concedido um prêmio verdadeiramente literário a Samuel Beckett em 1969. Aliás, a premiação a Soljenítsin parece ter causado tal espanto aos próprios acadêmicos – o único e duvidoso mérito literário do escritor era o de ser um notório dissidente soviético — que, no ano seguinte, resolveram dar o prêmio ao comunista Pablo Neruda durante o governo de Salvador Allende.

Pode acontecer também de um prêmio geopolítico alcançar grandes escritores. Em 1976, a Academia quis dar TODOS os prêmios a norte-americanos em razão do bicentenário de sua independência e o Nobel de Literatura acabou com o grandíssimo Saul Bellow — na verdade um canadense naturalizado. No ano passado, outro gol: quiseram dar uma demonstração de como oriente e ocidente poderiam conviver pacificamente e deram a grana ao extraordinário Orham Pamuk, autor nascido e naquela época morador de Istambul, a cidade que em que se pode ir da Europa para a Ásia e vice-versa atravessando-se uma ponte. No retrasado, a Academia quis ser apenas literária e deu a Harold Pinter um belo Nobel.

Já o de Lessing é mais complicado de interpretar. Dona de um sobrenome que encontra melhor eco na literatura alemã, ela é uma escritora que foi lidíssima entre os anos 60 e 80 e que curtia uma dourada quase-aposentaria na Inglaterra. Era feminista e comunista, tornando-se apenas o primeiro nos anos 90. Aos 87 anos, ainda publica livros cada vez menos lidos e elogiados. É, de fato, uma escritora que deveria parar ao invés de seguir publicando novelinhas secundárias.

Eu li mais de vinte livros dela e considero The Golden Notebook (1962; no Brasil O Carnê Dourado), Memoirs of a Survivor (1974; no Brasil Memórias de um Sobrevivente) e The Summer Before the Dark (1973; no Brasil, O Verão Antes da Queda) livros autenticamente grandiosos e importantes. Ela também escreveu duas famosas pentalogias: a muito esquerdista série Filhos da Violência, que é bastante boa e onde aparecem dois notáveis personagens: Martha Quest e Anton Hesse; e a chatíssima Canopus em Argos: Arquivos, que ficou famosa no Rio Grande do Sul por ser amada e idolatrada por Caio Fernando Abreu. Coisas de nosso Rio Grande…

Doris Lessing não é uma escritora de linguagem sutil. Sua frase é direta, rápida e não podemos falar numa prosa elegante. Tem notável habilidade para construir personagens e a polifonia de seus livros é bastante original, pois não é formada por apenas por vozes de personagens, mas estes recebem o auxílio de situações e ações, que muitas vezes os contradizem. Não é pouco, porém…

Thomas Pynchon, Philip Roth e Antonio Tabucchi mereceriam muito mais o prêmio. Permanecem, contudo, na excelente companhia de Tolstói, Proust, Joyce e Borges.

O Brasil só poderia ganhar um prêmio geopolítico, só que andamos muito pouco dramáticos. Não punimos torturadores, não nos preocupamos com o papel da Amazônia no aquecimento global e achamos Ariano Suassuna um gênio… Nosso estilozinho deslumbrado low-profile não está com nada.

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A visita de Cláudio Costa foi o esperado, isto é, perfeita. Convenceu-nos a uma retribuição em Minas. Vamos, é claro. Ninguém nos convida impunemente… Não nos surpreendeu o fato de ele ser casado com uma pessoa tão querida e agradável quanto a Amélia, a gente sempre fica maravilhado ao ganhar mais uma amiga. Incrível seu entendimento com a Claudia.

Publicado em 15 de outubro de 2007

Dmitri Shostakovich (V)

Para Paulo Ricardo Brinckmann Oliveira

Seguimos nossa série iniciada aqui, continuada ali e ainda aqui e acolá.

Sinfonia Nº 13 (Babi Yar), Op. 113 (1962)

Após o equívoco da Sinfonia Nº 12 – lembrem que até Beethoven escreveu uma medonha Vitória de Wellington, curiosamente estreada na mesma noite da sublime 7ª Sinfonia, mas este é outro assunto… -, Shostakovich inauguraria sua última fase como compositor começando pela Sinfonia Nº 13, Babi Yar. Iniciava-se aqui a produção de uma sequência de obras-primas que só terminaria com sua morte, em 1975. Esta sinfonia tem seus pés firmemente apoiados na história da União Soviética durante a Segunda Guerra Mundial. É uma sinfonia cantada, quase uma cantata em seu formato, que conta com a nada desprezível colaboração do grande poeta russo Evgeny Evtuchenko (conforme alguns, como a Ed. Brasilinense, porém pode-se encontrar a grafia Ievtuchenko, Yevtuchenko ou Yevtushenko, enfim!).

O que é, afinal, Babi Yar? Babi Yar é o nome de uma pequena localidade situada perto de Kiev, na atual Ucrânia, cuja tradução poderia ser Barranco das Vovós. Ali, em 29 e 30 de setembro de 1941, teve lugar o assassinato de 34 mil judeus pelos nazistas. Eles foram mortos com tiros na cabeça e a participação comprovada de colaboradores ucranianos no massacre permanece até hoje tema de doloroso debate público naquele país. Nos dois anos seguintes, o número de mortos em Babi Yar subiu para 200 mil, em sua maioria judeus. Perto do fim da guerra, os nazistas ordenaram que os corpos fossem desenterrados e queimados, mas não conseguiram destruir todos os indícios. Ievtuchenko criticou a maneira que o governo soviético tratara o local. O monumento em homenagem aos mortos referia-se às vítimas como ucranianas e russas, o que também eram, apesar de se saber que o fato determinante de suas mortes era o de serem judeus. O motivo? Ora, Babi Yar deveria parecer mais uma prova do heroísmo e sofrimento do povo soviético e não de uma fatia dele, logo dele, que seria uma sociedade sem classes nem religiões… O jovem poeta Ievtushenko considerou isso uma hipocrisia e escreveu o poema em homenagem aos judeus mortos. O que parece ser uma crítica de importância relativa para nós, era digna de censura, na época. O poema — o qual tem extraordinários méritos literários — foi publicado na revista Literatournaia Gazetta e causou problemas a seu autor e depois, também a Shostakovich, ao qual foram pedidas alterações que nunca foram feitas na sinfonia. No Ocidente, Babi Yar foi considerado prova da violência antissemita na União Soviética, mas o próprio Ievtuchenko declara candidamente em sua Autobiografia Precoce (Ed. Brasiliense, 1987) que a tentativa de censura ao poema não teve nada a ver com este gênero de discussão e que, das trinta mil cartas que recebeu falando em Babi Yar, menos de trinta provinham de antissemitas…

O massacre de Babi Yar é tão lembrado que não serviu apenas a Ievtuchenko e a Shostakovich, tornando-se também tema de filmes e documentários recentes, assim como do romance Babi Yar de Anatoly Kuznetsov. Não é assunto morto, ainda.

O tratamento que Shostakovich dá ao poema é fortemente catalisador. Como se fosse uma cantata em cinco movimentos, os versos de Ievtuchenko são levados por um baixo solista, acompanhado de coral masculino (formado apenas por baixos) e orquestra. É música de impressionante gravidade e luto; a belíssima linha melódica ora assemelha-se a um serviço religioso, ora aum dos grandes modelos de Shostakovich, Mussorgski; mesmo assim, fiel a seu estilo, Shostakovich encontra espaço para seu habitual sarcasmo.

Tranquila crueldade: soldados alemães examinam as roupas dos mortos em Babi Yar.

“Babi Yar” é como ficou conhecida a sinfonia para coro masculino, baixo e orquestra.  A partir do texto de dura indignação de Ievgueni Evtuchenko e apesar dos problemas que ele geraria na União Soviética pós-stalinista, Shostakovich construiu um painel de extraordinária força em torno de mazelas típicas de seu tempo: o medo e a opressão, o conformismo e o carreirismo, o massacre cotidiano num Estado policial e a possibilidade de superação através do humor e da intransigência.

Em linguagem quase descritiva, combinando a severidade da orquestra com a impostação épica das vozes, “Babi Yar” tem um poder de evocação cinematográfico: raramente se ouviu música tão plástica. O realismo e a imagens dos poemas são admiravelmente apoiados pelo estilo alternadamente sombrio e agressivo da música de Shostakovich. Não obstante o grande efetivo orquestral e a tensão dos clímaxes, as texturas são rarefeitas e o coro, declamando ou murmurando, canta quase sempre em uníssono ou em oitavas — mais um elemento dessa estrutura preparada para expressar a desolação e o nervosismo.

O primeiro movimento alterna estrofes que exploram o horror e a culpa de Babi Yar com relatos de dois outros episódios — o de Anne Frank e o de um menino massacrado em Bielostok. No segundo movimento, ritmado de forma tipicamente shostakovichiana, o tom enfático das vozes falam da resistência que o “Humor” jamais deixará de oferecer à tirania. “Na loja”, o Adagio que se segue, descreve quase fisicamente as filas das humilhadas donas-de-casa numa linha sinuosa à espera de um pouco de comida. Quando chegam ao balcão, o poema diz: “Elas nos honram e nos julgam”, enquanto percussão e castanholas simulam panelas e garrafas se entrechocando. É em clima que estupefação que o movimento se encerra: “Nada está fora de seu alcance”.

A linha sinuosa torna-se reta ao prosseguir sem interrupção para o episódio seguinte, um ameaçador ‘sostenuto’ das cordas graves sob solo da tuba: é o “Medo”, componente constante da vida soviética. Contrapondo-se às sombras que até aqui dominam a sinfonia, Shostakovich a conclui com uma satírica reflexão sobre o que é seguir uma “Carreira”. Em ritmo de valsa lenta, ficamos sabendo que a verdadeira carreira não é a dos que se submetem, mas a de Galileu, Shakespeare ou Pasteur, Newton ou Tolstói: “Seguirei minha carreira de tal forma que não a esteja seguindo”, conclui o baixo, com o eco do sino que abrira pesadamente a sinfonia, agora aliviado pela celesta.

Shostakovich (esquerda), com o poeta Evgeni Ievtuchenko (direita)e o regente Kiril Kondrashin na estréia da 13ª Sinfonia.

A história da primeira execução de Babi Yar foi terrível. Houve protestos e ameaças por parte das autoridades soviéticas. Se até 1962, Shostakovich dava preferência a estrear suas obras sinfônicas com Evgeny Mravinsky (1903-1988), Babi Yar causou um surdo rompimento na parceria entre ambos. O lendário regente da Sinfônica de Leningrado amedrontou-se (teve razões para tanto) e desistiu da obra pouco antes de começarem os ensaios. Porém, como na União Soviética e a Rússia os talentos brotam por todo lado, Mravinsky foi substituído por Kiril Kondrashin (1914-1981) que teve uma performance inacreditável e cujo registro em disco é das coisas mais espetaculares que se possa ouvir.

P.S.- Por uma dessas coisas inexplicáveis, encontrei o disco soviético com o registro da estreia num sebo de Porto Alegre em 1975. Comprei, claro.

Obs.: A descrição da música foi adaptada de um texto que Clovis Marques escreveu para um concerto no Municipal do Rio de Janeiro.

Dmitri Shostakovich (IV)

A maioria de minhas sinfonias são monumentos funerários. Gente demais, entre nós, morreu não se sabe onde. E ninguém sabe onde foram enterrados. Aconteceu a uma porção de amigos meus. Onde se pode erguer um monumento a eles? Somente a música pode fazê-lo. Estou disposto a dedicar uma obra a cada uma das vítimas. Infelizmente, é impossível. Dedico-lhes, então, toda a minha música.

DMITRI SHOSTAKOVICH

Seguimos nossa série iniciada aqui, continuada ali e ainda aqui.

Sinfonia Nº 10, Op. 93 (1953)

Este monumento da arte contemporânea mistura música absoluta, intensidade trágica, humor, ódio mortal, tranquilidade bucólica e paródia. Tem, ademais, uma história bastante particular.

Em março de 1953, quando da morte de Stalin, Shostakovich estava proibido de estrear novas obras e a execução das já publicadas estava sob censura, necessitando autorizações especiais para serem apresentadas. Tais autorizações eram, normalmente, negadas. Foi o período em que Shostakovich dedicou-se à música de câmara e a maior prova disto é a distância de oito anos que separa a nona sinfonia desta décima. Esta sinfonia, provavelmente escrita durante o período de censura, além de seus méritos musicais indiscutíveis, é considerada uma vingança contra Stalin. Primeiramente, ela parece inteiramente desligada de quaisquer dogmas estabelecidos pelo realismo socialista da época. Para afastar-se ainda mais, seu segundo movimento – um estranho no ninho, em completo contraste com o restante da obra – contém exatamente as ousadias sinfônicas que deixaram Shostakovich mal com o regime stalinista. Não são poucos os comentaristas consideram ser este movimento uma descrição musical de Stálin: breve, é absolutamente violento e brutal, enfurecido mesmo, e sua oposição ao restante da obra faz-nos pensar em alguma segunda intenção do compositor. Para completar o estranhamento, o movimento seguinte é pastoral e tranquilo, contendo o maior enigma musical do mestre: a orquestra para, dando espaço para a trompa executar o famoso tema baseado nas notas DSCH (ré, mi bemol, dó e si, em notação alemã) que é assinatura musical de Dmitri SCHostakovich, em grafia alemã. Para identificá-la, ouça o tema executado a capela pela trompa. Ele é repetido quatro vezes. Ouvindo a sinfonia, chega-nos sempre a certeza de que Shostakovich está dizendo insistentemente: Stalin está morto, Shostakovich, não. O mais notável da décima é o tratamento magistral em torno de temas que se transfiguram constantemente.

Milton Ribeiro adverte: não ouça o segundo movimento previamente irritado. Você e sua companhia poderão se machucar.

Quarteto de Cordas Nº 6, Op. 101 (1956)

Talvez apenas aficionados possam gostar deste esquisito quarteto. Ele tem quatro movimentos, dos quais três são decepcionantes ou descuidados. O intrigante nesta música é o extraordinário terceiro movimento Lento, uma passacaglia barroca que é anunciada solitariamente pelo violoncelo. É de se pensar na insistência que alguns grandes compositores, em seus anos maduros, adotam formas bachianas. Os últimos quartetos e sonatas para piano de Beethoven incluem fugas, Brahms compôs motetos no final de sua vida e Shostakovich não se livrou desta tendência de voltar ao passado comum de todos. Enfim, este quarteto vale por seu terceiro movimento e, com certa boa vontade, pelo Lento – Allegretto final.

Concerto Nº 2 para Piano e Orquestra, Op. 102 (1957)

Concerto dedicado ao filho pianista Maxim Shostakovich. É um autêntico presente de pai para filho. Alegre, brilhante e cheio de brincadeiras de caráter privado como a inacreditável inclusão — no terceiro movimento e totalmente inseridos na música — de exercícios que seu filho praticava quando era estudante do instrumento… E não se surpreenda, o primeiro movimento deste concerto é conhecido entre as crianças que veem desenhos da Disney. É a música que é executada durante o episódio do Soldadinho de Chumbo em Fantasia 2000. Quando ouço esta música em casa, sempre um de meus filhos vem me dizer “olha aí a música do Soldadinho de Chumbo”. É claro que a música não tem nada a ver com esta história infantil.  Shostakovich fez um belo concerto para seu filho, de atmosfera delicada e afetuosa. O primeiro movimento (Allegro) começa com uma rápida introdução orquestral em seguida à qual entra o piano. De acordo com a prática habitual de Shostakovich, o tema inicial é um pouco mais poético do que o segundo, de entonação mais vigorosa e rítmica.

Dois movimentos vivos e felizes cercam um melancólico, tocante e melodioso segundo movimento. A inspiração óbvia para este concerto foi o Concerto em Sol Maior (1931) de Ravel. Leonard Bernstein deu-se conta disto e gravou um de seus melhores discos em 1978, acumulando as funções de pianista e regente nos dois concertos. Se este concerto não arrancar algum sorriso do ouvinte, este necessitará de urgentemente de antidepressivos.

Sinfonia Nº 11, Op. 103 – O Ano de 1905 (1957)

Esta sinfonia talvez seja a maior obra programática já composta. Há grandes exemplos de músicas descritivas tais como As Quatro Estações de Vivaldi, a Sinfonia Pastoral de Beethoven , a Abertura 1812 de Tchaikovski, Quadros de uma Exposição de Mussorgski e tantas outras, mas nenhuma delas liga-se tão completa e perfeitamente ao fato descrito do que a décima primeira sinfonia de Shostakovich.

Alguns compositores que assumiram o papel de criadores de “coisas belas”, veem sua tarefa como a produção de obras tão agradáveis quanto o possível. Camille Saint-Saëns dizia que o artista “que não se sente feliz com a elegância, com um perfeito equilíbrio de cores ou com uma bela sucessão de harmonias não entende a arte”. Outra atitude é a tomada por Shostakovich, que encara vida e arte como se fosse uma coisa só, que vê a criação artística como um ato muito mais amplo e que inclui a possibilidade do artista expressar — ou procurar expressar — a verdade tal como ele a vê. Esta abordagem foi adotada por muitos escritores, pintores e músicos russos do século XIX e, para Shostakovich, a postura realista de seu ídolo Mussorgsky foi decisiva. A décima primeira sinfonia de Shostakovich tem feições inteiramente mussorgkianas e foi estreada em 1957, ano de muitas glórias além do quadragésimo aniversário da Revolução de Outubro. Contudo, ela se refere a eventos ocorridos antes, no dia 9 de janeiro de 1905, um domingo, quando tropas czaristas massacraram um grupo de trabalhadores que viera fazer um protesto pacífico e desarmado em frente ao Palácio de Inverno do Czar, em São Petersburgo. O protesto, feito após a missa e com a presença de muitas crianças, tinha a intenção de entregar uma petição — sim, um papel — ao czar, solicitando coisas como redução do horário de trabalho para oito horas diárias, assistência médica, melhor tratamento, liberdade de religião, etc. A resposta foi dada pela artilharia, que matou mais de cem trabalhadores e feriu outros trezentos.

O primeiro movimento descreve a caminhada dos trabalhadores até o Palácio de Inverno e a atmosfera soturna da praça em frente, coberta de neve. O tema dos trabalhadores aparecerá nos movimentos seguintes, porém, aqui, a música sugere uma calma opressiva.

O segundo movimento mostra a multidão abordar o Palácio para entregar a petição ao czar, mas este encontra-se ausente e as tropas começam a atirar. Shostakovich tira o que pode da orquestra num dos mais barulhentos movimentos sinfônicos que conheço.

O terceiro movimento, de caráter fúnebre, é baseado na belíssima marcha de origem polonesa Vocês caíram como mártires (Vy zhertvoyu pali) que foi cantada por Lênin e seus companheiros no exílio, quando souberam do acontecido em 9 de janeiro.

O final – utilizando um bordão da época – é a promessa da vitória final do socialismo e um aviso de que aquilo não ficaria sem punição.

Concerto Nº 1 para Violoncelo e Orquestra, Op. 107 (1959)

Shostakovich e o grande violoncelista Mstislav Rostropovich eram amigos tendo, muitas vezes, viajado juntos fazendo recitais que incluíam entre outras obras, a Sonata para violoncelo e piano, opus 40, já comentada nesta série. Desde que se conheceram, o compositor avisara a Rostropovich que ele não deveria pedir-lhe um concerto diretamente, que o concerto sairia ao natural. Saíram dois. Quando Shostakovich enviou a partitura do primeiro, dedicada ao amigo, este compareceu quatro dias depois na casa do compositor com a partitura decorada. (Bem diferente foi o caso do segundo concerto, que foi composto praticamente a quatro mãos. Shostakovich escrevia uma parte, e ia testá-la na casa de Rostropovich; lá, mostrava-lhe as alternativas, os rascunhos ao violoncelista, que sugeria alterações e melhorias. Amizade.)

Estilisticamente, este concerto deve muito à Sinfonia Concertante de Prokofiev – também dedicada a Rostropovich – e muito admirada pelos dois amigos. É curioso notar como os eslavos têm tradição em música grandiosa para o violoncelo. Dvorak tem um notável concerto, Tchaikovski escreveu as Variações sobre um tema rococó, Kodaly tem a sua espetacular Sonata para Cello Solo e Kabalevski também tem um belo concerto dedicado a Rostropovich. O de Shostakovich é um dos de um dos maiores concertos para violoncelo de todo o repertório erudito e minha preferência vai para a imensa Cadenza de cinco minutos (3º movimento) e para o brilhante colorido orquestral do Allegro com moto final.

Quarteto de Cordas Nº 7, Op. 108 (1960)

Mais um quarteto de Shostakovich com um lindíssimo movimento lento, desta vez baseado no monólogo de Boris Godunov (ópera de Mussorgski baseada em Puchkin), e mais um finale construído em forma de fuga, utilizando temas do primeiro movimento. Uma pequena e curiosa jóia de onze minutos.

Quarteto de Cordas Nº 8, Op. 110 e Sinfonia de Câmara, Op. 110a – Arranjo de Rudolf Barshai (1960)

Na minha opinião, o melhor quarteto de cordas de Shostakovich. Não surpreende que tenha recebido versões orquestrais. Trata-se de uma obra bastante longa para os padrões shostakovichianos de quarteto; tem cinco movimentos, com a duração total ficando entre os 20 minutos (na versão para quarteto de cordas) e 26 (na versão orquestral). O quarteto abre com um comovente Largo de intenso lirismo, o qual é seguido por um agitado Allegro molto, de inspiração folclórica e que fica muito mais seco na versão para quarteto. O terceiro movimento (Allegretto) é uma surpreendente valsinha sinistra a qual é respondida por outra valsa, muito mais lenta e com um acompanhamento curiosamente desmaiado. O quarteto é finalizado por dois belos temas ; o primeiro sendo pontuado por agressivamente por um motivo curto de três notas e o segundo formado por mais uma fuga a quatro vozes utilizando temas dos movimentos anteriores.

Bibliografia: quase tudo de memória, apoiado por algumas capas de CD.