Lauro Machado Coelho (1944-2018) foi um Jornalista Cultural — assim mesmo, com maiúsculas. Ele escreveu incontáveis artigos e colunas em jornais, vários livros sobre ópera, um livro extraordinário sobre Shostakovich e outros não menos sobre Sibelius, Berlioz, Liszt, Bartók e Akhmátova, além deste sobre Bruckner.
O texto de Lauro é delicioso e nos traz todo o contexto dos compositores sem cair em preconceitos pré-moldados pelas posições políticas ou estéticas do autor e outros. Seu livro sobre Bruckner é uma joia até para quem não se interessa pelo compositor.
Pois ele é uma figuraça! Em O Menestrel de Deus temos o ambiente rural e quase tacanho em que o compositor nasceu, a descrição de sua insegurança, seu alto conhecimento e seus incríveis — de modo positivo — resultados como aluno. Porém, mesmo sendo um genial improvisador ao órgão, professor e compositor, Bruckner era um ingênuo que propunha casamento às moças mais inatingíveis, era hiper religioso, anotava tudo o que fazia, gastava e recebia, e sabia quantas árvores existiam em todos os seus caminhos diários, pois as contava, além de outras esquisitices. Quando transferiu-se de Linz para Viena, quiser saber se seria aceito de volta caso fosse um insucesso em Viena.
Também ficava agradecido a quem regia sua música, a ponto de se submeter a humilhações. Halb Genie, halb Trottel (metade gênio, metade pateta) era o que se dizia dele. Podem imaginar esse homem saído da pequena Linz (Sankt Florian) para a sofisticada Viena? Pois ele adquiriu o respeito de gente como, por exemplo, Gustav Mahler. Sua música foi adotada por Hitler como símbolo da força e da pureza arianas, mas logo os historiadores descobriram que, Bruckner, devoto de Richard Wagner, não era nem um pouco antissemita e o nazismo desgrudou dele assim que a guerra acabou.
O livro de Lauro Machado Coelho passa por tudo isso: por toda a biografia deste homem genial e inseguro, por suas influências e por quem ele acabou influenciando. Temos toda sua formação como músico, seus esforços para fazer aceitar a sua obra – inclusive revisando e deixando revisar tantas vezes as suas sinfonias… Mas também da obra única de um homem que, animado por uma fé sem conflitos em seu “bom Senhor Deus”, deixou uma obra esplêndida.
Ou seja, para quem se interessa por música, este livro é um banquete.
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O personagem Leonard Bernstein era excessivo. Ele viveu em um conflito quase permanente sobre como administrar a homossexualidade, ou melhor, a bissexualidade, em tempos em que a tolerância (especialmente nos Estados Unidos) não era o que é agora, e além disso foi investigado pelo FBI por sua tendência esquerdista. Apaixonado, extrovertido, suas manifestações de efusividade seriam hoje objeto, no mínimo, de escândalo (sua própria filha declara em um dos documentários que beijava todos que estavam ao seu alcance, um músico da Filarmônica de Viena relata o assunto com ironia: “Disseram-me, não enxugue, afinal é suor de Bernstein”). Na época em que conheceu sua futura esposa, Felicia Montealegre, ele já havia tido seus namoros homossexuais, e Paul R. Laird, em sua excelente biografia (Life and Work of Leonard Bernstein , Turner, 2018), sugere que sua amizade com Aaron Copland provavelmente foi mais do que isso.
Mas o ambiente era o que era, e um de seus mentores, Serge Koussevitzky, então diretor da Orquestra Sinfônica de Boston, pressionou-o a mudar seu sobrenome (sugeriu Leonard Burns) para eliminar o toque judaico e a se casar. Ambas as coisas, a segunda destinada a reprimir os rumores de sua homossexualidade, ajudariam sua carreira. Lenny não mudou o sobrenome, mas se casou com Felicia. O conflito sobre sua sexualidade persistiu e ele acabou se separando da esposa para se juntar ao amante Tom Cothran. Mas quando Felicia foi diagnosticada com o câncer que acabaria com sua vida, ele voltou e ficou com ela até sua morte. Ele a amava, não há dúvida disso, por mais que sua tendência sexual o levasse para outras camas.
É esta relação única entre Lenny e Felicia, e o conflito sexual que lhe está subjacente, que é o foco do filme Maestro, protagonizado e realizado por Bradley Cooper, produzido pela Netflix e agora disponível na plataforma. Não entrarei no aspecto puramente cinematográfico neste artigo, mas vale a pena fazer algumas anotações que surgem depois de ter visto o filme. Não há nada de questionável, em princípio, no fato de o filme focar nessa relação, a ponto de Felicia (aliás, maravilhosamente interpretada por Carey Mulligan), ser praticamente o papel principal. Na verdade, é uma faceta pouco delineada em outros documentários. E, a julgar pela declaração da própria filha Jamie (protagonista de uma das cenas do filme, que motiva Felicia a pressionar Lenny a falar com ela e a negar os rumores sobre sua homossexualidade), é uma questão bem retratada. Acredito, no entanto, que existe um problema, e não de menor importância, em outros domínios.
Compositor, pianista, diretor, divulgador, ensaísta e professor. Talvez você possa encontrar pessoas que desenvolveram todas ou quase todas essas facetas, mas para elas terem feito isso no nível de excelência em que Leonard Bernstein fez, é, não acho que estou exagerando, muito difícil, se não impossível. Lenny foi uma das grandes personalidades musicais do século XX, sem dúvida. Muitos podem não gostar de sua música, ou pensar que ele não deveria ter ido além dos (ótimos) musicais. Para outros, seus modos no pódio podem parecer exagerados, teatrais, pouco ortodoxos e até caóticos (aqueles saltos, aquele balanço de braço, aquele movimento corporal, aquela técnica de batuta, no mínimo singular…). Talvez sua tendência, como maestro, para tempos realmente extremos — exceto o último Celibidache e algumas gravações de Bach de Scherchen, é difícil lembrar de lentidão mais no limite do que aquelas do último movimento da Nona de Mahler nas mãos de Bernstein — seja indigesto para alguns, porque foge ao cânone.
Mas esse caráter excessivo foi e continua sendo fascinante. Ele vivia a música com uma intensidade contagiante. Os seus critérios podem ser discutíveis, o seu gesto e o sus batura quebram toda a ortodoxia. Mas o que aquele homem transmitia… a paixão, a convicção, eram tais que era literalmente impossível não o seguir, não se sentir capturado pela sua mensagem, fosse ela música, interpretação ou divulgação. “Eu amo duas coisas: música e pessoas. Não sei qual dos dois eu prefiro.” Estas são as primeiras palavras de uma declaração um pouco mais longa que Leonard Bernstein, com a voz já muito rouca, em 1990, poucos meses antes de morrer, diz à câmera com comovente ternura. É o início de um estupendo documentário, The Gift of Music, narrado por Lauren Bacall e editado em DVD pela Deutsche Grammophon. Há outro documentário, Larger than life, também magnífico, creio que disponível na medici.tv.
Porque, na minha humilde opinião, é aí que reside o seu principal (embora não único) defeito: intitulado Maestro, espera-se encontrar um filme em que todas estas facetas estejam mais ou menos bem retratadas. Mas a música, apesar do título, parece uma companheira marginal. Aquela que é considerada sua principal obra, a Missa, aparece saindo na ponta dos pés. O mais conhecido, West Side Story, mal participa. Não há nada da sua relação, muito longa e profunda, com a Filarmónica de Israel, nem com a de Viena, a Baviera ou o Concertgebouw. Pior ainda, presume-se que o espectador conheça muito bem a vida de Bernstein antes de assistir ao filme, porque se não for o caso, a presença fugaz de pessoas tão essenciais na sua vida como Aaron Copland ou Koussevitzky é dificilmente identificável. Outros, igualmente importantes, como Dimitri Mitropoulos, o realizador grego que o impulsionou a ser compositor, ou Fritz Reiner, seu professor no Curtis Institute, em Filadélfia, nem sequer aparecem. Também passa despercebida, ou quase, a sua extraordinária atividade de divulgador que está no YouTube… Ver qualquer um destes vídeos explica de uma forma muito simples porque este homem conseguiu fisgar milhões de pessoas pela música clássica.
Mais difícil de traduzir em filme é seu papel como colunista, mas também é altamente recomendável aprofundar-se na inestimável descrição que faz de seu querido Mahler neste artigo: Mahler – Chegou a sua hora – na Alta Fidelidade, Vol 17 no. 9, setembro de 1967, posteriormente reproduzido em seu primeiro ciclo Mahleriano para CBS-Sony. É difícil explicar, sem meandros técnicos, o que é a música de Mahler, o que ela expressa e significa, com mais precisão e riqueza do que a escrita nesta coluna.
Além disso, interpretar um regente (e ainda mais um como Bernstein) é extremamente difícil, o que deve ser levado em conta ao julgar o trabalho de Cooper. O ator americano, treinado pelo diretor do Metropolitan, Yannick Nézet-Séguin, se sai razoavelmente bem em uma cena com o coro, mas quando tenta reproduzir a lendária gravação da Segunda Sinfonia de Mahler na Catedral de Ely (que faz parte do ciclo de Mahler gravado em DVD pela Deutsche Grammophon) vai longe demais. Lenny era, como já observei, excessivo. Cooper vai mais longe, mas o que em Bernstein parece um excesso natural, em Cooper parece beirar o grotesco. A sua caracterização, incluindo a controversa prótese nasal, é ótima. A dublagem presta um péssimo serviço, no entanto. A voz de Bernstein, especialmente a do Bernstein mais velho, parece demasiado melíflua (compare com o original da entrevista citada acima, mas também com o som original do filme).
Em suma, o mais problemático é que muitos virão esperando ver um retrato de Bernstein com aquelas múltiplas facetas ligadas à música que, além disso, teve uma relação única com a sua esposa, e que viveu um duro conflito com a sua tendência sexual. Mas o que você verá é o retrato de alguém que teve uma relação única com sua esposa, enquadrada em um duro conflito com sua tendência sexual… e que, além disso, também era músico. Mas como isso é pouco, o título é enganoso, porque não responde ao que se vê depois. O retrato esperado permanece incompleto.
Mozart escreveu 40 sinfonias (a 37 não existe); Haydn, 104; Brahms escreveu apenas 4 e Shostakovitch pretendia produzir 24, mas ficou em 15. Porém, seis dos maiores sinfonistas de toda a história da música compuseram 9 e logo morreram, forjando o mito de que a nona, ou a décima, é fatal. Vejam a lista abaixo e surpreendam-se com o tamanho da coisa… É como se a morte sempre entrasse em campo quando o imortal pretendesse chegar ao número dez. Aviso: não sou numerologista e não dou a menor importância a este tipo de — creio! — crendices.
Ludwig van Beethoven (1770-1827) está em qualquer seleção de maiores sinfonistas. Se alguém o deixar de fora, merecerá internação. Beethoven fez da 9ª Sinfonia seu testamento musical. Com problemas de saúde cada vez mais notórios, o compositor teve tempo de preparar sua despedida com a maior de suas sinfonias. Ele inaugura nosso sortilégio e, se o leitor não tiver muita intimidade com o mestre, dê preferência à audição das sinfonias Nº 3, 5, 7, 8 e 9. Claro que ele não caiu morto fulminado por um raio logo após fechar o manuscrito da Nona, depois dela ele ainda escreveu algumas de suas maiores obras, os últimos Quartetos de Cordas. Mas a décima ficou em menos do que um rascunho.
Franz Schubert (1797-1828) morreu um ano depois, logo após escrever a sua nona. A curiosidade é que sua oitava sinfonia é conhecida como a Inacabada. E estamos certos em chamá-la assim, pois Schubert abandonou-a ao compor os temas que utilizaria na última. A Sinfonia Nº 9 também é conhecida, com total merecimento, por “A Grande”. Também vale a pena ouvir, além das citadas Nº 8 e 9, a 4 e a 5. Todos pensam que Schubert morreu de sífilis. Nada disso. Morreu de tifo, após ingerir um vulgar peixe contaminado. Ou seja, uma droga de um peixe podre ceifou Schubert durante seus anos mais produtivos. Espero que, se o inferno existir, este peixe esteja lá queimando. Até agora.
Anton Bruckner (1824-1896) é outro dos grandes sinfonistas indiscutíveis. Ele praticamente só se dedicou a este gênero. Além delas, compôs apenas 3 Missas, 1 Te Deum e pouquíssimas obras de câmara. Seus contemporâneos o consideravam quase como uma criança idiota e a opinião a este respeito é tão unânime que deve ser verdade. Porém, se você continuar a chamá-lo de burro após ouvi-lo, ficarei desconfiado. Sim, de você. Deve tratar-se do idiota mais profundo que se tem notícia, o que prova que a inteligência musical sobrevive mesmo em um cérebro limitado. Há duas curiosidades a seu respeito. A primeira é que Bruckner, já agonizando, quis que seu Te Deum fosse acrescentado como último movimento de sua 9ª. Não foi atendido; era um evidente absurdo. A segunda é que ele possui uma sinfonia Nº 0 e outra 00. É que após a publicação das primeiras sinfonias, apareceram aquelas que o compositor escrevera antes, mas que tinha escondido por vergonha. São excelentes e para não demonstrar uma possível involução em seu estilo, denominou-as Zero e Zero-Zero. Mas, apesar de todos esses zeros, não sobreviveu à décima. Indico fortemente as sinfonias Nº 4 (Romântica), 5 (que possui um adágio estarrecedor de tão belo), 7 e 9 (ambas espantosas).
Gustav Mahler (1860-1911) é o caso mais explícito de medo à 9ª. Contrariamente a Bruckner, era um intelectual e regente respeitadíssimo na Viena da virada do século. Mahler tinha grande temor de escrever sua nona sinfonia e dizia isto a todos. Sabia que a décima o mataria… Quando compôs a oitava (Sinfonia dos Mil), resolveu fazer uma pausa e atacou “A Canção da Terra” (Das Lied von der Erde), que talvez seja sua maior obra, mas que, cá para nós, é uma sinfonia camuflada de ciclo de canções. Com isto, pensou ter enganado o capeta. Só então escreveu sua nona e, por uma distração do diabo, conseguiu até escrever o primeiro movimento da décima, só que… Morreu sem compor os outros movimentos. Outros caras a completaram. Estes sim deviam morrer. Suas melhores sinfonias são todas.
Menor que os citados, há Antonín Dvorak (1841-1904). Foi um compositor mediano que escreveu lindos quartetos de cordas e que deve ser muito elogiado na presença de checos. Eles se ofendem facilmente. E as sinfonias? Ele compôs nove sinfonias muito parecidas. Todas com quatro movimentos: o primeiro movimento possui 3 temas; o segundo movimento geralmente é um adagio; o terceiro movimento é uma dança ou fuga que copia Beethoven; o quarto movimento é livre, mas melhor seria se não existisse. Deveria ter morrido antes, mas ficou por aí até terminar a nona. Deixou um número surpreendente de obras inacabadas. Sorte nossa. E dele, pois morreu rico e famoso. Sentiram que eu não gosto muito do moço, né? Mas OK, admito que a 8ª e a 9ª são bem legais.
Louis (ou Ludwig) Spohr (1784-1859) escreveu nove sinfonias e deixou a décima pela metade. Achava mais seguro escrever concertos para violino, tanto que escreveu dezesseis. Há um — o oitavo — que é bastante revolucionário, escrito em apenas um movimento, para gáudio de Jasha Heifetz. Sua nona sinfonia é programática e tem um nome incrivelmente original: As Estações. Enquanto vocês decidem se ele plagiou Vivaldi ou Haydn, vou dizendo que Spohr foi um bom compositor, apesar de minhas ironias.
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Por isto, aconselhamos a todos os candidatos a compositores eruditos que se depararem com este texto: evitem o gênero ou utilizem-o com parcimônia. Está provado: a décima pode matar.
Mas confiram o comentário de Filipe Salles:
Caro Milton, devo objetar de sua conclusão, se me permitir, pelos seguintes argumentos: Destes compositores que vc mencionou, apenas Beethoven e Spohr realmente escreveram 9 sinfonias completas (e talvez Mahler, dependendo da interpretação). Schubert deixou sua 7a. sinfonia apenas em esboço melódico, tendo orquestrado uma parte muito pequena dela. Ele próprio se esqueceu desta obra e muitos musicólogos não a consideram no rol da numeração canônica. Há uns 15 anos atrás a Sony lançou uma série com ninguém menos que Giulini regendo, tendo a capa a indicação “Schubert: Symphony no.7 (8)” e também “Symphony no.8 (9)”, apenas para saberem que se tratava apenas de uma questão numérica. No caso de Bruckner, como você mesmo diz, ele escreveu 11 sinfonias, sendo as 2 primeiras rejeitadas por serem obras de juventude. Uma sinfonia em Fá maior não tem numeração e a famosa Número Zero é a “die Nullte”, a nula, que na verdade foi escrita entre a Primeira e a Segunda. Bruckner não aguentou as críticas feitas à ela e riscou na partitura autógrafa a numeração “2”, substituindo pelo 0, acrescentando que ela “não contava”. Mas ambas estão completas e foram editadas, de forma que também é só uma questão de posição dos números. O caso de Dvórak é mais esquisito: apenas suas 5 últimas sinfonias foram publicadas em vida, e as demais só vieram à tona a partir de 1917, quando o musicólogo Otakar Sourek reestabeleceu a ordem por data de composição. A sua Primeira Sinfonia, antes tida como a que hoje é a Sexta, foi recusada num concurso e Dvórak, irritado, disse que a tinha destruído (assim como sua segunda), e só foi executada em 1936, depois de encontrarem os manuscritos originais. Lembro-me até hoje de um disco LP, ainda na era monaural, em que Furtwängler executava a Sinfonia no.5, “Do Novo Mundo”. Ou seja, não poderia haver uma maldição da Nona se ele na época tinha certeza que sua série ia só até a 5a.
No caso de Mahler, depende de considerar ou não o Das Lied von der Erde uma sinfonia, e com certeza na época em que ele estava escrevendo sua Nona, só sabia dos casos de Beethoven e Bruckner, pois a 7a.Sinfonia de Schubert não havia sido completada e as de Dvórak se encerravam na 5a.
No caso de Spohr… Bem, outro dia ouvi suas sinfonias nos. 4 e 5 e achei-as extremamente tediosas, de maneira que não me interessei mais pelas coisas dele.
Os finlandeses dizem que seu país é uma mistura de sauna, sisu e Sibelius. Todos sabem o que é sauna, mas você sabe o que é sisu? A palavra está naquele grupo de difícil tradução para outros idiomas. Trata-se de uma mistura de confiança e autonomia, algo que faz com que a pessoa se veja como capaz de realizar qualquer coisa. O povo finlandês teria o tal sisu e isto faz parte do orgulho nacional. E Sibelius? Bem, Sibelius é um compositor de música erudita que é outra das bases da identidade do país. Ele teve um impacto muito maior na mentalidade finlandesa do que o meramente musical.
Por exemplo, o poema sinfônico Finlândia. A peça era um protesto contra a crescente censura do Império Russo que controlava o país no final do século XIX. Como a execução pública da peça orquestral fora proibida pelos russos, tornou-se comum trocar seu nome nos anúncios de concertos. O fato adquiriu ares de piada. A peça foi mascarada foram numerosos títulos falsos. Se anunciassem a obra Sentimentos Felizes ao Amanhecer da Primavera Finlandesa, já se sabia o que viria. Finlândia evoca a luta nacional do povo finlandês. À medida que vai chegando ao final, a música torna-se tranquila e a melodia serena do hino da Finlândia é ouvida.
Outro exemplo é a Sinfonia Nº 2. Escrita na Itália logo após a composição de Finlândia, foi um acontecimento nacional. Numa época de invasão e opressão russas, ela foi ouvida novamente como representação sonora do nacionalismo finlandês. Quando de sua estreia, foi tocada quatro vezes em oito dias, até ser proibida. Mas não se precisa saber de tudo isso para gostar dela, a música sobrevive tranquilamente sem o contexto de sua origem. Do ponto de vista atual, a música de Sibelius não transparece revolta ou orgulho nacionalista, mas de forma muito particular, deixa claro quão vasto e frio é o país.
Johan Julius Christian Sibelius, conhecido como Jean Sibelius (1865-1957) foi um dos mais populares compositores do fim do século XIX e início do XX. Ele nasceu na cidade de Hämeenlinna, então pertencente ao Império Russo, em 8 de dezembro de 1865, há 150 anos. O compositor preferia utilizar a forma francesa de seu nome, Jean.
Ele terminou o ensino médio em 1885 e começou a estudar Direito na Universidade de Helsinque, porém a música sempre foi a responsável por suas melhores notas na escola e ele logo desistiu do Direito. De 1886 a 1889, Sibelius estudou música na escola de música de Helsinque (hoje a Academia Sibelius), depois estudou em Berlim de 1889 a 1890, e em Viena de 1890 a 1891.
Sibelius fez parte de um grupo de compositores que aceitou as normas de composição do século XIX e foi muitas vezes criticado como uma figura reacionária da música clássica do século XX. Apesar das inovações da Segunda Escola de Viena, ele continuou a escrever num idioma estritamente tonal. Entretanto, sua música é profundamente criativa e nova.
Sibelius é muito diferente de seus rivais na virada do século XIX para o XX. Gustav Mahler e Richard Strauss, eram adeptos de misturar temas muito diferentes, buscando contrastes quase bipolares, enquanto Sibelius transformava lentamente seus temas. Os temas apresentados são poucos, mas estes crescem organicamente, de forma lógica e sem grandes contrastes. Este gênero de música é geralmente entendido como uma representação do país. É curioso como um compositor que admirava a severidade de estilo e a profunda lógica que ligava intimamente os temas fosse tão popular.
Sua Sinfonia Nº 7, por exemplo, é composta de quatro movimentos sem pausas, onde as variações vem do tempo e do ritmo. Sua linguagem não é nada reacionária, apesar de tonal. Sibelius dizia que, enquanto a maioria dos outros compositores estavam preocupados em oferecer coquetéis à audiência, ele oferecia água pura e gelada.
Em O resto é ruído, Alex Ross explica-nos uma parte do drama de Sibelius. Citando um texto de Milan Kundera que fala das características das pequenas nações da Europa, ele se refere ao sentimento de isolamento que os heróis nacionais dessas pequenas nações podem sentir. Todos sabem tudo sobre eles, não havendo espaço para o erro. Isto pode ser uma pressão insuportável. A vida de Sibelius era um pouco pior. Sem espaço para erros na Finlândia, considerado um gênio nos EUA, o finlandês ressentia-se da recepção altamente negativa de seus trabalhos no resto da Europa. Alguns chamavam Sibelius de “o pior compositor de todos os tempos”, apesar de Richard Strauss ter admitido que sua produção era inferior a do finlandês.
Há dois tipos de composição onde Sibelius focou o seu talento: o poema sinfônico e a sinfonia. Mas há duas peças célebres fora do foco principal. Obviamente, estamos falando da belíssima Valsa Triste…
… e do espetacular Concerto para violino e orquestra, obra excepcionalmente melódica e virtuosística.
No que diz respeito ao poema sinfônico, foi neste tipo de composição em que uma boa parte da identidade finlandesa se fixou. Não só porque Sibelius soube capturar musicalmente o espírito finlandês — indo buscar elementos no folclore, técnica na qual precedeu Bartók, Kodály e Stravinsky –, como também soube encontrar a poética adequada que o fixou definitivamente como o representante nacional. Há várias destas composições, Tapiola parece ser a melhor….
e Karelia, a mais divertida.
No que diz respeito às sinfonias, Sibelius procurava em cada uma delas basear-se na anterior, melhorando-a. É conhecido o fato de Sibelius ter destruído a sua 8ª Sinfonia — aquela que deveria resumir e dar um passo adiante em relação à sétima — depois de anos de tentativas e de ter por várias vezes prometido mostrá-la a seus fãs americanos. Mas a oitava nunca apareceu.
Como dissemos, as avaliações de Sibelius eram controvertidas. De um lado, o mundo anglófono — a Inglaterra e os Estados Unidos — consideravam suas sinfonias como monumentos de nossa época. Por outro lado, a Europa continental, principalmente os alemães, acusavam-no de ser um passadista medíocre, que não teve a coragem de fazer avançar a linguagem musical de seu tempo, permanecendo numa zona de conforto que lhe proporcionou popularidade.
Assim, para Olin Downes, o influente crítico do jornal The New York Times, e a opinião pública anglófona, Sibelius tinha lugar garantido entre os grandes sinfonistas do século ao lado do russo Dmitri Shostakovich. De outro lado, o mais influente crítico musical da vanguarda, Theodor Adorno, simplesmente considerava Sibelius o pior compositor do mundo.
Hoje, a 150 anos de distância de seu nascimento e a 58 de sua morte, já possuímos distância histórica suficiente para avaliá-lo tão somente pela qualidade de sua música, ignorando os critérios estético-ideológicos. E o que se vê é, sim, um dos mais importantes sinfonistas do século 20. Suas sete obras neste gênero possuem uma lógica interna implacável.
Mahler foi um dos “culpados” ao escrever que considerava o finlandês um compositor provinciano.
Símbolo nacional e figura artística mundial, Sibelius parou subitamente de compor em 1927. Ele passou os trinta anos seguintes no mais completo silêncio criativo, recolhido a sua casa encravada numa floresta finlandesa e à qual de Ainola em homenagem a sua mulher.
Sibelius viveu 92 anos. O alcoolismo certamente contribuiu para o bloqueio criativo de 30 anos. Sua última aparição pública como maestro foi desastrosa — ele estava completamente bêbado. Mas, como imagina o escritor inglês Julian Barnes no conto O Silêncio (editado em 2006 no Brasil pela Rocco no livro Um toque de limão), o compositor, sentado diante de uma garrafa de vodca, deve ter proclamado a vitória. “Hoje, sou tão famoso por meu longo silêncio quanto o fui por minha música”.
Segundos fora (Cia. das Letras, 252 páginas) é dos melhores romances latino-americanos modernos que li no século XXI e, se tivesse que descrevê-lo em apenas uma expressão, diria que é um estudo sobre a velocidade, sobre o ritmo. Um dos principais méritos do livro está na diferença de ritmo com que as três histórias são contadas. Meus sete leitores podem permanecer calmos: eu não vou contar como se desenvolvem nem onde desaguarão.
Neste livro de Kohan, um jornal de Trelew, no litoral da Patagônia, está completando 50 anos. Isso em 1973. Então, eles decidem fazer um número especial destacando algo que aconteceu em 1923, ano da fundação do jornal. A editoria de esportes, através do jornalista Verani, quer a muito polêmica luta de boxe entre Jack Dempsey e Luis Ángel Firpo e a de cultura, com Ledesma, quer a estreia da Sinfonia Nº 1 de Mahler sob a regência de Richard Strauss, em Buenos Aires. O embate entre as duas editorias e mais um crime misterioso ocorrido no mesmo ano rende um romance esplêndido.
A história da curtíssima e muito polêmica luta entre Dempsey e Firpo é contada nos mínimos detalhes, com deliberada lentidão, como num romance de Saer. Os diálogos de entre Verani e Ledesma não têm descrições, são velocíssimos. Com travessões e mai travessões, são como falas teatrais onde um tenta convencer o outro de sua opinião. Entre eles, fica o crime, narrado de forma convencional.
O intrincado plano de desenvolvimento do romance encontra em Kohan um estupendo narrador. Segundos fora resulta de notável legibilidade. É como uma canção complexa tratada por um excelente cantor — tudo soa simples e natural. Também é como uma sinfonia de Mahler, que em segundos muda seu de gênero, por exemplo, do contraponto mais sublime para uma bandinha alemã — e suas sinfonias são exatamente assim. Dentro desta estrutura, Kohan vai brincando com as diferentes velocidades narrativas.
Enorme destaque para o personagem Ledesma, um típico e apaixonado amante da música erudita. Sim, identifiquei-me totalmente e muitas vezes adivinhava seus argumentos seguintes.
Fiquei totalmente apaixonado pelo romance, assim como já tinha ficado por Duas Vezes Junho. O outro livro que li de Kohan, Ciências Morais, me pareceu mais fraco. E justamente este virou filme (Olhar Invisível, no original La Mirada Invisible, de Diego Lerman). Nem sempre dá para acertar, né, Martín?
A Quinta Sinfonia de Mahler foi composta num momento em que ocorria um rito de passagem na vida do compositor. Ele trabalhava de forma incessante na Ópera Real e da Filarmônica de Viena. Mahler era um workaholic (trabalhador compulsivo). A exaustão levou-o a ser hospitalizado em 1901. A Sinfonia surgiu na virada de 1901 para 1902 — foi revisada algumas vezes, em 1904, 1905, 1907 e 1909 — e estreada em 18 de outubro de 1904, em Colônia, Alemanha, sob a regência do próprio autor.
Mas voltemos a 1901. No final daquele ano, Mahler se apaixonara pela linda e brilhante Alma Schindler (1879-1964), futura Frau Mahler, de 19 anos e 19 anos mais jovem que ele. Como o sofredor profissional que era, Mahler sofria pela possibilidade de encontrar e talvez perder a felicidade. Todo essa explicação é fundamental, pois o que se ouve nos 5 movimentos que tomam os aproximadamente 75 minutos de música da Quinta é uma caminhada das trevas para a luz. Inicia com uma Marcha Fúnebre, passa por um momento de valsa e alegria no terceiro movimento, traz um poema de amor à Alma no quarto movimento — o famoso Adagietto — e termina em festa.
Mahler escreveu para Alma: — “O quanto eu te amo, meu sol! Não posso expressar em palavras meu desejo e meu amor”.
Talentosa pianista amadora, Alma Mahler deve ter sido mesmo um espanto de mulher, uma verdadeira femme-fatale. Vamos a uma rápida contabilidade: antes de Mahler, Alma já tinha sido namorada de Gustav Klimt. Depois da Morte de Mahler, em 1911, foi esposa ou teve longos casos com Walter Gropius (arquiteto da Bauhaus), com o pintor Oskar Kokoschka e com o escritor Franz Werfel, entre outros. Devia ser uma mulher absolutamente fascinante, ela não apenas casava ou namorava, mas recebia homenagens. Poucas mulheres podem mostrar obras de arte a ela dedicadas pelos maiores artistas do país. No seu acervo, Alma podia mostrar pinturas de Kokoschka e Klimt, composições de Gustav Mahler, manuscritos de Franz Werfel e cartas de amor de Gropius. Imaginem que Kokoschka mandou fazer uma boneca em tamanho real, reproduzindo fielmente Alma em seus íntimos detalhes… Gropius também descreveu quentes noites de amor com ela… Mas seu grande amor parece ter sido Mahler. E ele lhe escreveu o Adagietto.
(Um amigo que leu a autobiografia de Alma Mahler informa: “Gropius mandava cartas com esperma dele dentro para Alma Mahler quando servia na Primeira Guerra Mundial”).
(Em faixa não amorosa, Alban Berg compôs um belíssimo réquiem sob a dolorosa morte de Manon Gropius, a filha de Alma e Walter Gropius, uma jovem de apenas 18 anos, amiga da família Berg. OK, não foi dedicado a Alma, mas “À Memória de um Anjo”).
A Quinta é uma tremenda sinfonia, mas também é um castigo para os músicos. Longa e complicada, mata as cordas e exige bastante dos numerosos metais. Mahler também costuma tratar grupos de instrumentos como solistas, alternando instrumentações rarefeitas para tonitruantes tutti. Curioso, alguns músicos saíram decepcionados do concerto, apontando os erros que cometeram, mas para o público ficou lindo. E me incluo de forma entusiasmada entre eles. As falhas técnicas foram sobrepujadas de longe pela emoção. A Ospa foi convincente e o grande herói foi Kiyotaka Teraoka. O Jaspion conseguiu.
Uma mente madura deve ser capaz de admitir a coexistência de dois fatos contraditórios: que Wagner foi um grande artista e, segundo, que Wagner foi um ser humano abominável.
Edward Said, em Paralelos e Paradoxos (obra escrita em parceria com Daniel Barenboim)
Cinquenta anos após a morte, a biografia de qualquer autor costuma recuar em favor de sua obra. Isso se ele for se bom nível; se não for, ambos desaparecerão. Porém, nos anos 30 do século passado, a biografia e as opiniões pessoais do compositor Richard Wagner reapareceram em função de um grande fã que divulgava sua obra onde ia e sempre que podia: Adolf Hitler. O ditador não apenas amava Wagner como tinha sempre à mão um toca-discos com uma versão de Parsifal. O aparelho servia para que Hitler demonstrasse a seus assessores o verdadeiro espírito alemão. Tudo isto está muito bem documentado; então, desde a época da ascensão do nacional-socialismo, Wagner deixou de ser um fenômeno apenas musical para tornar-se também geopolítico.
Para nós já é possível eliminar as conexões de Wagner e enterrar de vez os cadáveres? Será que já podemos esquecer seu antissemitismo a fim de deixar a música falar por ele? Talvez não. Há dez dias, uma ópera de Wagner — Tannhäuser — transposta para a época do nazismo foi retirada de cartaz na Alemanha. Muitos protestaram violentamente, outros sentiram-se mal. Antissemita, misógino, defensor da pureza racial reivindicada pelo nazismo, Wagner ainda tem sua herança política, social e musical em debate.
Nascido em Leipzig no dia 22 de maio de 1813, Wagner faleceu em Veneza em 13 de fevereiro de 1883. Seu empenho era no sentido de renovar a ópera tradicional pela introdução da chamada “melodia contínua” e do leitmotiv (motivo condutor). O projeto foi acompanhado pelas concepções filosóficas do autor, fundadas na admiração pelo mitos do drama grego e na força irracional da música, que haveriam de resultar em uma nova arte alemã. O aspecto nacionalista deste projeto prestou-se a uma utilização ideológica e deturpada por ocasião do Terceiro Reich, a Alemanha de Hitler. Se Wagner já estava morto há cinquenta anos quando Hitler subiu ao poder, é certamente um equívoco considerá-lo um precursor do nazismo. Quando o grande maestro judeu Daniel Barenboim finalmente regeu a abertura de Tristão e Isolda em Israel, no dia 7 de julho de 2001, houve protestos, porém não gostar de Wagner por motivos políticos não é uma exclusividade israelense ou judaica.
E Wagner não pode ser simplesmente ignorado, tendo seu nome riscado da história da música. Ele é efetivamente incontornável por ser um elo na evolução musical que desaguou na revolução do início do século XX. Com Richard Wagner, a linguagem musical e a própria concepção da música, sua função e o papel do compositor, passaram por uma transformação tão grande que demarcam toda a música ocidental posterior. Pode-se dizer que muitos compositores do século XX partiram dos procedimentos e da estética de Wagner mais do que da herança clássica.
Ao radicalizar, por meio da infiltração do cromatismo, as tentativas já esboçadas no século XIX de abalar os alicerces da todo-poderosa música tonal, Wagner preparou a transgressão. A dissolução da tonalidade pelo cromatismo em Tristão e Isolda foi um acontecimento histórico que deu impulso às pesquisas dos compositores da Escola de Viena (Schoenberg, Berg e Webern) e de outros no século XX.
Embora sua produção inclua lieder (canções), sonatas para piano, sinfonias, um poema sinfônico, marchas, etc., foi na ópera que Wagner manifestou mais intensamente sua capacidade de inovação. Wagner queria buscava a “obra de arte total” e esta iria na contramão dos limites impostos pela Arte até o século XIX, que considerava apenas as linguagens artísticas de forma separada. Wagner acreditava que a pintura, a música e a poesia já haviam alcançado o fim de suas evoluções e que, para inovar, seria necessário combinar as linguagens em uma Gesamtkunstwerk. Elaborou então um projeto pioneiro: construiu um edifício projetado especificamente para suas óperas, criando uma entidade unificada entre a orquestra e o palco. A “obra de arte total” necessitaria também a formação de um novo ouvinte, bem mais atento que costumavam ser seus contemporâneos.
Como Wagner “tornou-se nazista”
Mesmo no terreno da ópera, com a necessidade de se contar uma história, fazer “poesia”, ser teatro e música ao mesmo tempo, é complicado fazer teses. Mas é bom lembrar que Shostakovich, durante o stalinismo, provocava estranhamentos, comunicava intenções e protestava com música instrumental, sem palavras, conseguindo muitas vezes ser censurado. No caso de Wagner, há Wagner e Wagner, o autor e o homem. Inteligentemente, ele deixou quaisquer referências diretas aos judeus fora de sua música. É curioso o mecanismo de ocultamento que faz alguns autores escreverem pequenos ensaios como Das Judenthum in der Musik (O Judaísmo na Música, de 1850) – caso de Wagner – mas deixarem suas obras maiores livres de referências seculares. Também Céline, Hamsun e Pound – todos simpáticos ou apoiadores do nazismo – não entremearam sua obra com referências antissemitas ou nazistas, deixando essas coisas para os panfletos e jornais.
Foi Hitler quem trouxe Wagner ao centro da discussão, tornando-o o maior dos antissemitas, mas é indiscutível que, em Das Judenthum in der Musik, o compositor vai longe. Primeiro, ataca a influência dos judeus na música e cultura alemãs, descreve os judeus como ex-canibais de fato e agora canibais das finanças. Afirma também que são de natureza muito pouco profunda, acusa-os de corruptores da língua alemã e ataca Meyerbeer e Mendelssohn, compositores judeus que considerava inimigos. Em uma carta para Lizst, Wagner confessa: “Sinto um ódio, por muito tempo reprimido, contra os judeus e esta luta é tão necessária a minha natureza como meu sangue… Quero que deixem de ser nossos amos. Afinal, não são nossos príncipes, mas nossos banqueiros e filisteus”.
O que: Concerto da Orquestra Sinfônica da Juventude Venezuelana Simón Bolívar
Regida por quem: Gustavo Dudamel
Quando: Caracas, 19/02/2010
Obra: Gustav Mahler, Sinfonía Nº 9
Movimento: III. Rondo. Burleske Allegro assai. Sehr trotzig
O concerto de ontem à noite no Theatro São Pedro trouxe um repertório de primeira linha e emoções inéditas. Primeiro, uma voz do além avisou-nos que haveria um atraso de 10 minutos para o início do concerto. Tudo ficou mais claro quando finalmente o maestro suíço Karl Martin adentrou o palco. Ele é muito parecido com o Indiana Jones dos últimos filmes e, como a maioria das aventuras do herói ocorre aproximadamente na década de 1930, nada melhor do que começar o concerto com a Sinfonia Op. 21 (1928) de Webern. Só que… Bem, o motivo do atraso foi que um músico esquecera suas partituras em casa, no bairro Guarujá, e teve buscá-las com a presteza do personagem de Spielberg. Certamente, o esquecimento foi inoculado em seu cérebro por algum cientista nazista daqueles que costumam perseguir Indiana no desejo de se apossar de relíquias como o Santo Graal e partituras de compositores vienenses. Ainda mais que Webern foi, na década de 40, o mais descabelado hitlerista dentre os compositores austro-germânicos (favor ler O resto é ruído, de Alex Ross) e deve ser muito querido entre os inimigos de Indiana. Ah, e depois ainda teríamos o judeu Mahler!
Bem, enquanto o músico atormentado permanecia em sua corrida pelas ruas, o concerto começou. É que as primeiras obras não tinham a participação dele. E, como dissemos, o concerto foi aberto justamente com a Sinfonia de Webern. Webern sempre se caracterizou por se expressar de forma descontínua. Como Céline e suas milhares de reticências. Sua música é paradoxalmente densa como um haicai e rarefeita como a cabeleira de seu mestre Arnold Schoenberg. Suas composições têm movimentos muito curtos. Em 1927, decidiu expandir-se um pouco, então escreveu um Trio de Cordas que dura nove minutos. Logo depois veio esta Sinfonia que não é muito maior — 10 minutinhos — e que exibe uma beleza abstrata e estranha em seus dois movimentinhos. Anton Webern era um dos compositores da chamada Segunda Escola de Viena juntamente com Schoenberg e Alban Berg. A primeira teria sido formada por Haydn, Mozart e Beethoven, que não sabiam nada a respeito disso e que não pensavam como Schoenberg. No ano de 1928, ele escreveu: “A arte desde o princípio e por natureza não se destina ao povo. Mas querem forçá-la a isso. Espera-se que todos possam dar sua opinião. Pois a nova glória consiste no direito de falar: liberdade de expressão! Ó Deus!”.
(E o coro grego responde em intermezzo não programado:
— Ei, Schoenberg, vai tomá no cu! Olê, Inter, olê, Inter!)
Não obstante a tal obscura escola, eu curti o Webern.
E o nosso músico perdido? Nada de voltar. Então, ainda em Viena, voltamos no tempo para encontrar Mahler. Os lieder de Mahler, Strauss e Schubert são coisas a respeitar. No gênero, há dezenas de coleções e avulsos sublimes. As quatro Canções de um Viandante, com texto de autores da Idade Média compiladas no livro Das Kanben Wunderhorn, são lindíssimas. A segunda foi depois amplamente reutilizada por Mahler na Sinfonia Nº 1. (Aliás, quando iniciou este segundo lied, nosso músico adentrou o palco com enorme tranquilidade. Tal como Indiana Jones, ele não sua muito em suas correrias. parecia saído do banho.)
Mas voltemos ao Mahler. O barítono uruguaio Alfonso Mujica é magérrimo e garanto que todos pensaram numa voz fraca e inadequada para as canções, mas ele tirou de letra, dando a elas compreensiva interpretação, proporcionando-nos um dos mais belos momentos da temporada. Que seguiu com Haydn.
As últimas doze sinfonias de Haydn são as chamadas Sinfonias de Londres ou Sinfonias Salomon, nome do empresário esperto que as contratou. A Sinfonia Nº 92 é a última não londrina e tem o apelido de Oxford porque o compositor a conduziu na cerimônia onde recebeu o titulo de doutor Honoris Causa naquela Universidade. O pessoal de Oxford só pode ter adorado, não há como não sorrir àquela Sinfonia! Dentro da uma estrutura clássica de quatro movimentos (Grave-Alegro, Adagio, Minueto e Presto), é uma música feliz, cheia de invenções e surpresas, daquelas que fazem as pessoas irem para a rua felizes. Foi o que aconteceu.
Belo concerto! All’s well that ends well (Tudo está bem quando termina bem), já dizia Shakespeare.
Gustavo Dudamel conduz a Grande Orquestra Sinfônica Simón Bolívar, o Coro Juvenil Nacional da Grã-Bretanha, Miah Persson e Anna Larsson, na 2ª Sinfonia de Gustav Mahler “A Ressurreição”. Versão completa, com 94 minutos.
O programa de ontem da Ospa oferecia duas obras bem diferentes, um aquecimento com o subwagneriano Franz Schmidt (o Intermezzo da ópera Notre Dame) e um portento de Gustav Mahler, a Sinfonia n°4.
O tal Intermezzo era bem curtinho. Brumas wagnerianas adentraram o palco da Reitoria. Porém, logo foram desfeitas pelas cordas tentando tocar em uníssono. Não funcionou nada bem, mas perdeu-se pouco: o Intermezzo é um daqueles longos clímaces (plural de clímax, por favor?) que parecem desaguar em algum local muito longínquo, bem longe do Bonfim e de suas famílias judias. Mas vamos ao que interessa.
A Ospa estava preparada era para Mahler. A quarta sinfonia é uma pequena e leve composição quando comparada com suas irmãs. É uma sinfonia distinta das outras do compositor, assim como o são a sarcástica 9ª na obra de Shostakovich ou a haydniana 8ª na de Beethoven. Os temas da 4ª fluem com facilidade e humor. Porém, a orquestra não tem vida fácil. A orquestração é via de regra rarefeita; a música é levada por sub-grupos solistas que se revezam em diferentes combinações. Não é apenas música de primeira qualidade, é uma coisa interessante de ser assistida ao vivo, pois as melodias que começam aqui são continuadas ali; depois, são feitas variações timbrísticas acolá e finalizadas algures. A plateia perce que está num jogo de tênis, virando a cabeça a cada momento. É que, nesta sinfonia, Mahler fugiu dos grandes efeitos de massa, escolhendo combinações de câmara e o contraponto como fator de equilíbrio da obra. Os músicos estavam todos muito concentrados, sem os habituais saracoteios daqueles que regem e motivam a si mesmos. E o resultado foi maravilhoso.
Há muito a destacar. Começo pelo spalla Emerson Kretschmer e pelo concertino Omar Aguirre. Foram perfeitos em seus muitos solos. As intervenções do trompista Alexandre Ostrovski e da oboísta Viktória Tatour foram absolutamente impecáveis — sempre são! — , assim como as dos clarinetistas Augusto Maurer e Diego de Souza e as dos flautistas Klaus Volkmann, Leonardo Winter e de mais um do qual também não sei o nome. Impressionante a forma como os violoncelos cantaram no terceiro movimento sob o domínio da precoce aposentada Inge Volkman, que fazia… Sua última apresentação com a Ospa? Ah, brincadeira, né?
(Intermezzo: Querida Inge. Parabéns. Mas não pare de trabalhar. Mantenha projetos e siga tocando cello. A aposentadoria pode ser uma coisa terrível e digo isso por vários exemplos familiares. Mantenha-se ativa, até porque é um crime deixar tanto talento de pijamas ou chinelinhas em casa. Nada de ficar vendo TV e acompanhando séries americanas. Isso emburrece, certo? Fim do intermezzo).
Porém, meus amigos, nada foi comparável à regência compreensiva do imenso Kiyotaka Teraoka e, principalmente à delicadeza, à presença e ao canto do soprano Sara Kobayashi. Céus, aquilo foi espantoso desde a entrada — uma aparição saída dentre os violinos. Além de ser uma moça belíssima, Sara tem excelente voz e sabia que estava cantando A Vida Celeste palavra por palavra. Foi um momento arrepiante e inesquecível. É muito difícil fazer o simples que o lied parece exigir e tenho certeza que todos os que estiveram lá levaram bem gravada em seus olhos a imagem e a voz de Sara Kobayashi cantando o final da 4ª. Foi o máximo.
OK, a maioria dos regentes não nasceu para reger Mahler como Leonard Bernstein parece ter nascido. Agora, a comparação da tranquilidade de dele com o verdadeiro desespero ou excesso de zelo e preocupação de alguns é de chocar. Ele deixa fluir. O Scherzo, terceiro movimento da Sinfonia Nº 2 “Ressurreição” é uma peça leve, apesar de virtuosística, bem dentro do espírito de um scherzo (brincadeira), mas o ar de quem está com o domínio de tudo de Bernstein é bonito de ver. Vejam. A orquestra é a Sinfônica de Londres.
Symphony No. 2 in C minor, “Resurrection”: Mov. 3, “Scherzo: In ruhig fließender Bewegung”
Lamento muito não ter podido escrever anteontem à noite, ainda sob o calor (sim, calor) do concerto, mas faço-o agora. Terça-feira, a OSPA apresentou a primeira sinfonia de Mahler sob a regência de Ira Levin no Salão de Atos da UFRGS. Olha, a tese de que é melhor para a orquestra não ter um regente titular torna-se cada vez mais vencedora. O concerto foi esplêndido e tudo o que aconteceu estava refletido nas caras de felicidade dos músicos logo após o titânico desempenho. A única coisa a lamentar foi o pequeno público. O gaúcho — e a tendência parece acentuar-se nas novas gerações — se borra ao menor friozinho, desistindo das poucas boas oportunidades culturais que a cidade oferece. Será que trocam Mahler pela TV? Céus…
Falar sobre Mahler falo outra hora. O momento é de saudar a orquestra que, animada, levou a sinfonia forma muito satisfatória e entusiasmada. Mahler é um problema: ele propõe grandes e súbitas alterações de humor. Passa do sublime à bandinha, da expansão ao intimismo, do desespero e da tragédia à mais pura alegria. Tudo em segundos. Não sei como Alma aguentava… Como se não bastasse, aprecia orquestrações rarefeitas, premiando muitos instrumentistas com solos que se alternam em ritmo que, se para nossos olhos já parece variado e rápido, imagina para quem tem de interpretar. Por mais paradoxal que pareça, ele dá um tratamento camarístico a suas enormes orquestras, fazendo-as tocar em pequenos grupos. Ou seja, nunca uma sinfonia sua é de execução trivial.
Por mais estranho que pareça, a puramente instrumental Sinfonia Nº 1 de Mahler é programática. Sim, o nada modesto compositor baseou seu programa no romance Titã, de Jean Paul. A história é a da tomada de consciência, por parte de uma criança, da fragilidade da condição humana e de sua morbidez atávica. Não é nada casual que o terceiro movimento — interpretado magnificamente pelo primeiro contrabaixista da orquestra (Walter Schinke?) — seja composto sobre a canção infantil francesa Frère Jacques.
Então, quando a OSPA tira tudo isso de letra, apenas reafirma o que sabemos: a orquestra tem um bom grupo de músicos merecedores de uma sede, de novos concursos, de nosso respeito, gratidão e o resto da ladainha espero que meus sete leitores já tenham decorado.
P.S. — Ah, o regente Ira Levin? Podia vir mais vezes, não? Além de ser muito competente e de ter demonstrado domínio do repertório, é uma pessoa respeitosa e solidária. Como sei? Vou contar um segredo de concertos para vocês. Notem o momento dos aplausos. Se o cara primeiro destaca os músicos e, na hora de ser saudado pelo público, desce de sua bancadinha para receber o aplauso no mesmo nível do restante da orquestra, demonstra (1) não ter complexo de deus e (2) considerar que é um do time. Ira Levin, mesmo sendo um nanico, recebeu a saudação entusiasmada dos poucos e bons que lá estiveram bem ao lado do spalla.
P.P.S. – Peço-lhes desculpas pela nota rápida escrita sobre a perna. Deve conter erros. Corrijam!
Para aquele advogado que (re)conheci quarta-feira
— deixei o cartão no escritório… era Herr Volkweiss? —
e que adora Mahler.
Mahler nunca teve problemas de autoestima, tanto que tinha certeza de que ficaria rico e famoso desde sua Sinfonia Nº 1. Mas algo deu errado. Este algo tem motivações que nossos ouvidos modernos não compreendem e que Sir Simon Rattle, atual regente da Orquestra Filarmônica de Berlim, tenta explicar abaixo. Os primeiros ouvintes julgaram inconcebível o trecho mais simples e melodioso da sinfonia, o 3º movimento baseado na antiquíssima canção de ninar francesa Frade Jacques (Frère Jacques). As ousadias do restante da obra passaram batidas, já a cançãozinha…
Abaixo, deixo-vos com a sempre tranquila explicação de Rattle e, após, com a interpretação do maestro anterior da Filarmônica de Berlim, Claudio Abbado, para a peça:
esta Wer hat dies Liedlein erdacht uma das canções do Des Knaben Wunderhorn, de Mahler. (Gosto de lavar a louça sob algo como Mahler ou Bruckner, a todo volume…) Era a gravação de Anne Sofie von Otter com Claudio Abbado, bem mais rápida do que esta da dupla Lucia Popp e Leonard Bernstein. Abaixo, com a zombeteira Lucia Popp e Bernstein uma versão um tantinho mais dura do que a de Abbado com von Otter. Mesmo assim dá para dançar. Ah, podemos afirmar tranquilamente que não bailamos com qualquer porcaria não… A canção é belíssima!
O grande mestre catalão Jordi Savall, mostra-nos seu instrumento, a viola da gamba, que se originou na Espanha no século XV e caiu em desuso no final do século XVIII, quando o aparecimento das grandes orquestras condenou a delicada gamba ao silêncio. Jordi Savall é um tremendo pesquisador e gambista que, a partir de documentos históricos, recupera o som de um dos mais incríveis instrumentos que conheço. O som da viola da gamba é mais impressionante, na minha opinião, do que o do violoncelo. No vídeo abaixo, ele toca um pouco, explica coisas sobre a gamba (perna, em italiano) e sobre a música em geral. Bom domingo para todos!
O dia 24 era um domingo e, no dia seguinte, 25 de setembro de 2006, minha filha completaria doze anos. No mesmo dia 25, o mundo musical comemoraria os cem anos de nascimento de Dmitri Shostakovich. Lá pelas tantas, naquele domingo em acontecimentos, resolvi olhar os e-mails. Havia um do escritor Fernando Monteiro.
Era um poema, uma litania que Fernando escrevera e dedicara a mim — seu geograficamente longínquo amigo — e a Bárbara. Fiquei honradíssimo com a dedicatória, li o poema para minha companheira de dedicatória e aquela Litania nos cem anos de Shostakovich acabou publicada em alguns jornais. Lembro que planejei fazer referências a estas publicações, mas nunca as fiz.
Hoje, ao procurar uns papéis, encontrei a Litania grampeada a outros dois papéis: um da imagem de uma página de 23 de fevereiro de 2007 do caderno “Anexo – Idéias” do jornal A Notícia de Joinville, onde a Litania tinha sido publicada, e outro, um e-mail de Fernando, explicando-me que as alusões “venezianas” do poema — detritos, crianças, gradis, febre, scirocco –, eram uma homenagem a Mahler que, para ele, é o que Shostakovich é para mim.
Fernando, digo-te que meu coração musicalmente promíscuo também coloca Mahler antes do amado Shostakovich…
No final, antes de escrever este post, examinei demorada e amorosamente a primeira folha, a da litania sozinha, onde há a linda e enorme letra infantil de minha filha. Bem sobre o B.R., ela escreveu Bárbara Ribeiro.
Litania nos cem anos de Shostakovich
Fernando Monteiro
Para M.R. e B.R.
O torso de beleza afastando-se
Como se afasta um afogado
Das margens da praia
Também recuada para trás
De onde o Mediterrâneo
Vinha beijar os pés das sílfides,
Debaixo do sol silencioso.
Abandonados pelas crianças,
Os brinquedos da marina
Zunem de calor no metal
Aquecido como as águas.
O planeta está mais quente
E mais enlouquecido
Entre os pios nublados
Do pássaro escondido
Em árvores molhadas
Da chuva ácida que se filtra
De um céu de tempestade.
Aviões caíram nesta manhã,
Levando passageiros
Para o fundo de uma laguna
E o nenhum lugar da selva
Remota que irá retomar
Seu espaço sobre azulejos
Encardidos e embalagens
Não-degradáveis
Num mundo que prefere o desastre.
Tudo o prenuncia, de certa forma,
E nada está perdoado
Nem foi esquecido
Com todas as coisas que já foram
E com aquelas que ainda serão
Ou que apenas dormem na tarde
À espera dos anos sem emoção.
Os humanos repousam
No sono da sombra de toldos
Estalando na Veneza insalubre
Deste lado do Atlântico
De exímios nadadores
que não viram as crianças
Se afogando.
Sim, eu prefiro estar
Por apanhar um resfriado
Antes da peste
No limite da cerca-viva
De mato e detritos do lixo
Avançando até o antigo gradil
De gladíolos brancos.
É minha a opção de não manter
A saúde, fumar e perder esperança
Na vigilância sem objeto,
Exposto ao vento da tarde,
Ao siroco da mente
Igualmente desistindo
Das perguntas a ninguém
Muito depois de Pã
Anunciado como morto
Antes da morte dos mares.
Então, não importa molhar
Os sapatos da espuma de solfejos
Rumorejando as queixas do Adriático
Como outrora o mar dos gregos
Deixava leve gosto de salgado
Entre os artelhos limpos
De náiades banhando-se
Nos oceanos mitológicos
Que hoje são de plástico
Cor de chumbo.
Se em Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças (Eternal Sunshine of the Spotless Mind), 2004, Jim Carrey interpreta um marido desesperado pelo fato de sua ex-esposa (Kate Winslet) tê-lo deletado da memória através de um programa maluco, em O Original de Laura Philip consegue que seu cérebro apague partes do próprio corpo enquanto vê sua Flora traí-lo sistematicamente.
Se de um lado temos o roteirista americano Charlie Kaufman e o diretor francês Michel Gondry — pessoas que talvez ainda estejam longe de uma imortalidade –, de outro há o célebre escritor russo Vladimir Nabokov, autor de obras-primas como Lolita, Fogo Pálido e, principalmente, A Verdadeira Vida de Sebastian Knight. Se o filme Brilho Eterno é maravilhoso, O Original de Laura não vale a pena. Não, não farei uma resenha do livro de Nabokov. Eu adoro Nabokov e ele não merece que eu, uma obscura pessoa de um obscuro blog, o desmereça. Nabokov mandou que, em caso de morte, O Original de Laura fosse para o fogo, pálido ou não, mas a esposa Vera não teve coragem de fazer a fogueira e o filho Dmitri igualmente o manteve até que, em 2008, 31 anos após a morte do pai, ressuscitou a ideia de publicação.
Como sói acontecer, são os vivos que julgam os mortos, já que estes têm manifestações mais discretas. Então, dou razão a Max Brod quando ele salva da destruição, para toda a humanidade, obras como O Processo e O Castelo, de seu melhor amigo Franz Kafka. Brod era um bom leitor e logo viu o que tinha nas mãos. Fez bem. Obrigado, Brod. 2666, de Roberto Bolaño, foi publicado num formato diferente e o tempo provou o acerto dos herdeiros e do editor Herralde. Solo de Clarineta, de Erico Verissimo, estava em grande parte pronto. Vale a leitura. A 10ª Sinfonia de Mahler possuía apenas o Adagio inicial, mas que adágio!!! Bach morreu durante a composição da Arte da Fuga, mas o que deixou pronto é embasbacante. Enquanto isso, O Original de Laura é um livro que apenas permite vislumbrar como Nabokov criava seus romances.
O que me deixa contrariado é o fato de que livros grandiosos de Nabokov não receberam tamanho espalhafato e luxo. Trata-se apenas de um mau presente. Nunca vi um Sebastian Knight ser lançado no Brasil em capa dura, papel de alta qualidade, fac-símiles originais com a caligrafia de Nabokov, etc. Tudo por um livro de terceira categoria — pois o que foi publicado é o conjunto das 138 fichas onde o autor escrevera quatro capítulos e anotara ideias e trechos. Seu processo de criação fazia com que escrevesse o romance em fichas separadas, o que permitia a troca de lugar entre os capítulos sem precisar redigitar tudo novamente. O que fazia era uma espécie de Crtl-X / Ctrl-V com as tais fichas, apenas reorganizando-as.
Mas então Vera morreu e Dmitri, com a saúde debilitada aos 75 anos e falto de dinheiros, resolveu publicar a coisa. A crítica está massacrando o livro. Vê nele os sinais de declínio que os últimos romances de Nabokov já demonstravam. Sim, os vivos julgam e resolvem as coisas pelos mortos, mas é bom ter um pouco de bom senso.
Para completar a desgraça, Dmitri quer publicar as fichas em série, num periódico literário, como se fosse uma novela da Globo. A respeitada revista “New Yorker” recusou-se a montar a minissérie. Depois de várias tentativas, Dmitri ofereceu-as à “Playboy” americana — que os publicará a partir de dezembro. O destino de O Original de Laura deveria ter sido o fogo mas, pasmem, será a Playboy. O público americano já viu melhores Lauras, certamente.
Uma mente madura deve ser capaz de admitir a coexistência de dois fatos contraditórios: que Wagner foi um grande artista e, segundo, que Wagner foi um ser humano abominável.
Edward Said
Você talvez pense que, se a música é algo impalpável e transitório — se, como disse Busoni, “é apenas ar sonoro” –, não haveria grande espaço para a ideologia ou o nacionalismo nela. Mesmo no terreno da ópera, com a necessidade de se contar uma história, fazer “poesia”, ser teatro e música ao mesmo tempo, seria complicado estabelecer teses. Pois é, você só pensará assim se ignorar compositores como Shostakovich, que consegue comunicar “intenções” e protestos sem palavras. No caso de Wagner, há Wagner e Wagner, o autor e o homem. Inteligentemente, ele deixou quaisquer referências diretas aos judeus fora de sua música. Aliás, é um curioso mecanismo de ocultamento (ou culpa) este que faz alguns autores escreverem pequenos ensaios como Das Judentum in der Musik (O Judaísmo na Música, de 1850), mas deixarem sua obra maior livre destas delicadas referências seculares… Também Céline, Hamsun e Pound não entremearam sua obra com referências anti-semitas ou nazistas, deixando essas coisas para os panfletos e jornais. O fato é que Wagner foi trazido pelo próprio Hitler ao centro da discussão, tornando-o o maior dos anti-semitas, postura que está longe de ser um privilégio exclusivo. Em Das Judentum in der Musik ele vai longe e como! Primeiro, ataca a influência dos judeus na música e cultura alemãs, descreve os judeus como ex-canibais de fato e agora canibais das finanças. Logo após afirma que são de natureza muito pouco profunda, acusa-os de corruptores da língua alemã e ataca Meyerbeer e Mendelssohn, compositores judeus que considerava inimigos… Em uma carta para Lizst, Wagner confessa que “Sinto um ódio, por muito tempo reprimido, contra os judeus e esta luta é tão necessária à minha natureza como meu sangue… Quero que deixem de ser nossos amos. Afinal, não são nossos príncipes, mas nossos banqueiros e filisteus…”.
Embora não haja referências anti-semitas em suas óperas, é bastante claro o significado da existência de Beckmesser em Os Mestres Cantores de Nurenberg e de Mime no Anel. São associações muito claras e ao final ambos são derrotados. Uma mesma canção interpretada por Beckmesser nos Mestres Cantores causa riso e rejeição, enquanto que a interpretação de Stolzing dá vida à música… E o discurso de Hans Sachs ao final da mesma ópera traz uma apologia da santa arte alemã, alertando para os perigos que vêm de fora. Mime estranhamente se declara hipócrita, pois esconde “pensamentos íntimos”, mas o pior é a parentesco de sua conduta — Mime, seu nome, mímesis em grego, significa imitação) — com a descrição dos judeus em O Judaísmo na Música, acrescida pelo fato de Wagner obrigar o personagem a registros altíssimos e a cantar em intervalos semelhantes aos de um pássaro – um corvo, uma gralha –, reservando-lhe ao final uma morte brutal sob a espada de Siegfried.
Grande admirador de Wagner, Gustav Mahler escreveu:
No doubt with Mime, Wagner intended to ridicule the Jews with all their characteristic traits — petty intelligence and greed — the jargon is texually and musically so cleverly suggested; but for God’s sake it must not be exaggerated and overdone as Julius Spielmann does it… I know of only one Mime and that is myself… you wouldn’t believe what there is in that part, nor what I could make of it.
Ora, tais coisas, quando em contato com quem necessita de justificativas para seus ódios… só pode criar uma idolatria. Não por acaso, caíram na mão de um certo Adolf Hitler. Ele ia com freqüência assistir às óperas de Wagner e orgulhava-se de ter lido tudo o que dele havia. Era amigo dos netos do compositor — fez-se fotografar inúmeras vezes com eles — e visitava Bayreuth mesmo durante os anos de guerra. Em 1923, foi conhecer a viúva de Wagner, Cosima. Ou seja, fazia absoluta questão de ligar-se ao compositor. Claro que o nazismo não é uma conseqüência direta disto, mas é indiscutível que Wagner influenciou a sociedade alemã com suas sagas nórdicas — tão ao gosto do nazismo –, sua pompa e anti-semitismo. Imaginem que Hitler era tão influenciado que tornou-se vegetariano… por causa e tal como o compositor!
Agora, há grandes méritos em Wagner. Foi compositor, regente, libretista, ensaísta, político (principalmente no sentido de que era suscetível a alterar suas posições subitamente, era um casuísta), polemista, amigo e referência de toda a intelectualidade alemã da época, entendido em acústica, publicitário dos bons, e era quase tudo o que você imaginar. Sem dúvidas, era um gênio. Construiu em Bayreuth um teatro revolucionário que até hoje é o melhor para suas óperas serem apresentadas, devido ao grande palco e ao fato da posição da orquestra ficar sob o mesmo, no chamado Abismo Místico (mystischer Abgrund), o qual produz um som absolutamente espetacular, escondendo inteiramente a orquestra dos espectadores — pois Wagner queria atenção absoluta ao palco — e permitindo que a orquestra abuse dos fortíssimo porque, por misteriosa ciência acústica, a posição da orquestra garante que tudo será ouvido clara e perfeitamente pelos espectadores da ópera (os fortíssimos serão suportáveis e não irão impedir que se ouçam ao mesmo tempo os instrumentos capazes de menos decibéis), apesar dos músicos sofrerem com o calor do aposento. A acústica do teatro está mais para o milagre do que para qualquer outra coisa.
Sua imaginação melódica e suas texturas harmônicas são de um refinamento ao qual é impossível associar imagens como, por exemplo, as dos assassinatos em massa. Há um enorme descompasso quando Goebbels utiliza sua música na propaganda nazista. Na verdade, é uma música revolucionária destinada a entendidos. Mas Goebbels se interessa pelo autor de O Judaísmo na Música, a música de um nacionalista que odiava os judeus, porém apenas algumas aberturas e a tal Cavalgada das Valquírias serviam aos propósitos propagandistas do regime e não suas vastas e complexas óperas que, em seu contexto, fizeram a efetiva ligação entre a música dó século XIX e a moderna. Sua música sempre aparece descontextualizada sob o nazismo e eu imagino o que não sofriam os nazistas que faziam a peregrinação anual à Bayreuth para assistir por horas e horas óperas destinadas a uma elite intelectual… Só que eles tinham que gostar, não? Na opinião do chefe, era a expressão de uma superioridade.
Eu leio Céline — um dos maiores romancistas que conheço — e abomino seu lado B; também leio Pound e gosto de Dali, um admirador de Franco. Por que não ouviria Wagner? É ilógico, mas confesso que o evito. Sinto como se houvesse muito de demasiado na personalidade de Wagner e isto invade a esfera artística de tal modo que é dificílimo ouvi-lo (não há erro na expressão “muito de demasiado”). Ele queria tudo: a obra de arte total, a criação de uma nova música, o teatro ideal para ela, procurava a maior controvérsia, escrevia panfletos, fazia tudo para aparecer e era tudo para si. É demais para mim saber de tudo isso, mesmo não ignorando seus indiscutíveis e tão audíveis méritos. Para vocês terem uma idéia, a cena em estética nazista do filme Apocalipse Now – a dos helipcópteros bombardeando os surfistas tendo a Cavalgada como fundo – provoca-me náusea… E nem sou judeu! É irracional, mas é assim. Defendo-me com o auxílio de Thomas Mann que denunciou o substrato racista das obras de Wagner sob aquelas confusas sagas nórdicas, das quais também não gosto nem um pouco, mas sei que é isso é apenas colocar uma grife numa rejeição para a qual não encontro explicação. Por que posso preterir o grande Richard Wagner e não o não menos enorme Louis-Ferdinand Céline? Sei lá.
Então, meu caro Said, eu não devo ter uma mente madura.
Antes de assumir a Filarmônica de Berlim, Simon Rattle permaneceu 18 anos regendo a lendária CBSO (City of Birmingham Symphony Orchestra). Abaixo, um argumento de Rattle para assumir Berlim: em dois filmes, o Scherzo da Ressurreição, uma das mais belas músicas há inventadas pelo homem.