Pois é, o PQP Bach não acabou…

Pois é, o PQP Bach não acabou…

Venho aqui deixar essa mensagem, pois nas semanas passadas joguei no google PQPBACH e fiquei triste de perceber que o site com o domínio anterior havia sumido. Passei alguns dias tentando novamente e já esperava pelo pior. Para mostrar minha admiração, vou colar abaixo o texto que escrevi quando tinha me convencido que o blog havia acabado. Um abração a todos os envolvidos.

Algumas semanas atrás fui visitar o melhor blog (sim, isso ainda existe) sobre música clássica do Brasil e descobri que ele havia sumido. Depois de muito vasculhar, não encontrei qualquer explicação sobre o ocorrido, então decidi aguardar alguns dias, visto que isso já havia se passado antes. Porém após tanto tempo creio que dessa vez o fim seja definitivo. Estou falando, é claro, do P.Q.P.Bach.

Sim, o nome pode causar estranhamento, mas o conteúdo era sem dúvida inigualável, e o melhor sobre o assunto entre todos os sites que visitei.

Me tornei frequentador assíduo em 2007 e, através dele, tomei conhecimento de muitas das grandes músicas e compositores que admiro até hoje. Luciano Berio, Mahler, Prokofiev e Shostakovich são apenas alguns exemplos que me foram apresentados por lá, coisa pela qual serei eternamente grato por toda a vida.

Mesmo com o acesso às plataformas de streaming — o blog oferecia links para downloads gratuitos, muitos deles raríssimos —, o PQP seguia como um norte, sempre trazendo indicações certeiras, através de uma pesquisa acurada e muito bem contextualizada, mas sempre carregada de bom humor, que a ajudava a desmistificar o estigma que envolve o ouvinte e a própria música clássica como algo elitista — no pior sentido da palavra — e ou chato. Com a quantidade gigantesca de música para se conhecer e apenas uma vida para se viver, o papel que eles tiveram para mim — e para tantos outros — é digno de total respeito e admiração. Obrigado pessoal, a eternidade agradece.

Assinado: João Herberth leitor-ouvinte-admirador do PQP Bach.

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Perfil: há 55 anos o tenor Antônio Télvio de Oliveira solava a 9ª Sinfonia de Beethoven com a Ospa

Perfil: há 55 anos o tenor Antônio Télvio de Oliveira solava a 9ª Sinfonia de Beethoven com a Ospa

Milton Ribeiro

Antônio Télvio de Oliveira | Foto: Joana Berwanger / Sul21

Há uma canção de Chico Buarque, Sentimental, onde uma menina de 16 anos que acredita em astrologia afirma simplesmente que “o destino não quis”. Em outro gênero, realmente digno de uma Sherazade, a escritora dinamarquesa Karen Blixen escreveu 5 surpreendentes contos sob o título Anedotas do Destino. Também há uma frase atribuída a Woody Allen: “Se você quer fazer Deus rir, conte a ele seus planos”.

Tudo conspirava para que o jovem Antônio Télvio de Oliveira tivesse uma carreira internacional como tenor. Começou a carreira de maneira fulminante solando a 9ª Sinfonia de Beethoven com a Ospa sob a regência de Pablo Komlós, aos 22 anos. Depois, foi para fora do país, obteve bolsas e mais bolsas de estudo, só que o destino lhe preparou das suas. O mundo deu muitas voltas e Télvio se safou por ter também os talentos de desenhista e técnico em eletrônica. Mas sempre poderá dizer que cantou com Montserrat Caballé antes de ela cantar com Freddie Mercury.

Conversamos com Antônio Télvio em seu apartamento no bairro Petrópolis em Porto Alegre. Vamos à história.

Abaixo, um registro de 1966 onde você poderá ouvir sua voz de tenor. Esta gravação foi realizada na Capela do Colégio Rosário com o organista Camilo Vergara, o Coro de Meninos do Colégio Roque Gonzales e regência de Aloísio Staub.

Guia21: Teu nome completo é?

Télvio: Eu nasci no dia de Santo Antônio, por isso me botaram o nome de Antônio. Antônio Télvio Azambuja de Oliveira, mas eu nunca usei todo meu nome, às vezes uns jornais botavam Antônio Oliveira, outros botavam Antônio Télvio. Na Espanha, me chamavam de “Azambuia”.

Guia21: Como e quando começou o seu interesse pela música?

Télvio: A minha mãe era musicista amadora. Tocava piano de ouvido. A minha vó também tocava piano. A minha casa era muito musical.

Guia21: Faziam saraus na tua casa?

Télvio: Sim. Inclusive minha mãe tinha uma gaitinha de boca que era um chaveiro, ela tocava o Boi Barroso num chaveiro! Era uma musicista nata. Não tenho essa musicalidade.

Guia21: E então, como tudo começou?

Télvio: Bom, quando eu estava no ginásio, havia uns festivais de música, coisa do interior. Minha família era muito social e eu cantava de vez em quando. Então começaram a solicitar que eu cantasse. Eu alcançava uns agudos que nem sei como… Uma vez, nós fizemos uma excursão até Santa Maria para jogar futebol ou basquete. E, à noite, fomos a uma boate chamada Casbah. O local tinha uma decoração de casa de sultão. Aí eu, com meus colegas todos, todos de 18, 19 anos, ouvi alguém gritar: “Esse canta, esse aqui canta!”. E eu tive que cantar no meio de uma boate de estilo Oriente Médio.

Guia21: Sem acompanhamento?

Télvio: Na base da porrada, a cappella mesmo! Cantei umas canções napolitanas naqueles tapetes. Foi um aplauso danado. O cara da boate quis me contratar. Os meus amigos disseram pra ele: “Vai falar com o pai dele, que tu vai levar um corridão”. Meu pai não era muito desses negócios, era o tipo de cara que se escutasse uma buzina de automóvel ou uma canção, era a mesma coisa. E aquilo morreu por ali… Só que eu fiquei com aquilo na cabeça. Aquela música… Eu a cantava em casa. Depois começaram aquelas Ave Marias que eu era chamado para interpretar em casamentos de vez em quando. E eu pensei “Pô, vou estudar canto”.

Guia21: Nisso tu tinhas 16 anos, mais ou menos?

Télvio: Sim, 16, 17, por aí. Naquele tempo eu era meio vagabundo, terminei o ginásio só com 17, não gostava de estudar. Aí vim para o Colégio Rosário em Porto Alegre — vim para fazer o científico, atual segundo grau — e ao mesmo tempo me matriculei no curso preparatório de canto no IBA (Instituto de Belas Artes da Ufrgs) e comecei a estudar. Vamos abrir um parêntese? Minha família costumava veranear em Iraí, naquela estação de águas. Hoje não se fala mais nas águas termais de Iraí, mas naquela época Iraí era um lugar onde ia muita gente no verão… E, certa vez, estava lá dona Eni Camargo. Ela foi uma personalidade muito interessante aqui de Porto Alegre. Ela era cantora e professora na Ufrgs. No hotel onde ficávamos havia saraus de música em que ela cantava e tocava piano. Era uma veranista em Iraí, como nós. Então, em Porto Alegre, antes de começarem as aulas, eu a visitei. Fui lá, me apresentei e a Eni Camargo quis escutar alguma coisa. Eu lembro que cantei Torna a Sorrento. Aí ela olhou pro marido dela, o Osvaldo Camargo, e disse assim: “Olha aí, Osvaldo. Esse cara tem uma voz que parece a do Mario del Monaco. Eu nem sabia quem era Mario… Aí ela me aconselhou a estudar no Belas Artes com a professora Olga Pereira. Eu saí de lá e passei numa loja de discos para ver quem era esse Mario del Monaco, mas a minha voz não era parecida com a dele, nunca foi.

Foto: Joana Berwanger / Sul21

Guia21: E tu entraste no Belas Artes.

Télvio: Comecei a estudar lá em 1959. O canto é um negócio complicado, tu demoras para fazer alguma coisa que preste. Um ano antes de concluir o curso, eu fiz vestibular para Filosofia, que achei que seria fácil de passar. Passei. Entrei na Filosofia por causa do meu pai. Achava que tinha que dar satisfação pro velho, né? Ele queria Direito ou Engenharia. Ele pensava que o Canto não era sério — meu pai ficava estranho comigo quando o assunto era Canto, como se eu fosse viado, sabe como é. O curioso é que eu estudava Filosofia, Canto e gostava muito de eletrônica, vivia criando verdadeiras parafernálias, equipamentos.

Guia21: Tu sempre tiveste duas tendências então, da música e da eletrônica?

Télvio: Desenhava também, mas isso desenvolvi depois.

Guia21: Foi nessa época que tu cantaste a Nona de Beethoven com Pablo Komlós e a Ospa?

Télvio: Aconteceu o seguinte: com o advento do coral da Ufrgs, ficava mais fácil de fazer a Nona. Eu não lembro direito, mas tenho a impressão de que foi a própria Eni Camargo que me apresentou ao fundador do coral propondo que eu solasse a 9ª Sinfonia como tenor. Fui fazer um teste com o Komlós e ele gostou. O Komlós chegou e me disse “depois você vai fazer um dos personagens secundários da ópera Carmen”. Eu respondi que não ia fazer. Ele deve ter me achado o fim da picada, porque eu disse que ele, um dia, ia me convidar para fazer o papel principal. O Komlós me olhou como quem dissesse “que metido!”. (risos)

O Correio deu | Foto: Reprodução de Arquivo Pessoal

Guia21: Como era a Ospa naquela época?

Télvio: Naquela época, não havia Ospa como fundação, mas sim como sociedade. Quem sustentava a Ospa era a colônia judaica, que fazia chás e não sei mais o que a fim de sustentar a orquestra. Não era ainda um esquema profissional. Além da sociedade judaica, os descendentes de alemães também ajudaram muito a música de Porto Alegre, eles tinham o Clube Haydn na Sogipa. Então, havia duas orquestras sinfônicas aqui. Para a 9ª, veio para cantar junto comigo o Lourival Braga, do Rio. Uma voz extraordinária, um barítono precioso. Foi uma loucura aquilo! Aí cantamos a 9ª Sinfonia de Beethoven, uma beleza!

Télvio está de óculos, sentado, bem no centro da foto, durante a execução da 9ª com a Ospa em abril de 1963 | Foto: Reprodução de Arquivo Pessoal

Guia21: Onde foi?

Télvio: Foi no Salão de Atos da UFRGS, antes da reforma, claro (foto acima).

Guia21: E o medo do palco? Tu tinhas 21, 22 anos.

Télvio: Eu estava nervoso, é óbvio. Tem aquela história da famosa atriz francesa Sarah Bernhardt. Sarah tinha uma escola de teatro e costumava perguntar para os alunos se eles ficavam nervosos no palco. Um dizia “eu fico bastante nervoso, sim”, outro dizia “eu não fico nada nervoso, entro no palco sem medo” e ela respondia para estes, “é… o nervosismo vem com o talento”.

Guia21: Se o artista não está nem um pouco nervoso, não está mobilizado.

Télvio: Eu sempre fiquei muito nervoso antes de entrar no palco. Me borrando mesmo. Mas, no momento em que dava a primeira nota, eu começava a me sentir poderoso. Acho que com todo músico é assim, apesar de que a música que tu estás sentindo dentro de ti é diferente da que o outro está escutando. Ou seja, tu podes estar te achando o máximo e o resultado não ser o esperado. Quando terminou esse concerto, o presidente da Sociedade de Cultura Artística do Rio de Janeiro me disse que tinha uma bolsa de estudos para dar. Ele me escutou novamente no Belas Artes e me disse que ia me dar a tal bolsa. Eu fiquei num estado de animação total e comecei a contar para todo mundo que tinha ganhado a bolsa, mas não veio nada… Fui trouxa.

Foto: Joana Berwanger / Sul21

Guia21: E seguiste cantando.

Télvio: Depois da Nona, o Pablo Komlós me convidou para cantar O Rei Davi, de Honegger. Eu ensaiei esta ópera como um louco. Até hoje sei tudo de cor, sonho com aquela música. Eu estudei e ensaiei com unhas e dentes aquela música complicada acompanhado pelo pianista Hubertus Hoffmann. Um dia, o Hoffmann me diz que eu não iria cantar O Rei Davi… Que quem ia cantar era a Ida Weisfeld. Eu ri e respondi: “Isso é para tenor, não é para mezzo soprano”. E nem falei com o Komlós, pensei que fosse uma invenção dele. Só que o Komlós realmente fez aquele absurdo e eu ainda assisti. Ela cantou a parte do tenor, acredita? Depois, soube de duas informações contraditórias: a primeira era a de que eu fora considerado muito jovem para o papel, a segunda era a de que eu não tinha aparecido num ensaio geral — o que é uma mentira, eu não tinha sido era avisado. Então, neste ensaio, quando estavam todos me esperando, o Komlós perguntou se alguém podia fazer a minha parte e a Ida apareceu. Deu uma passadinha na partitura com o pianista Roberto Szidon — também ele cantava no coral — e ficou prontinha. É óbvio que aquilo foi uma armação deles, porque ninguém canta O Rei Davi sem muito ensaio, ninguém no mundo canta aquilo à primeira vista. Ela já viera preparada. Assim era a Ospa, um saco de gatos, uma coisa bagunçada, suja. O Komlós criava situações horríveis. Marcava três récitas, convidava a gente para a terceira e ela não saía. Só para fazer a gente ensaiar. Uma vez o Paulo Melo, outro cantor, disse que ia processá-lo se não saíssem todas as récitas. Aí saíram, claro. A Ospa tinha uma aura de sacanagem, de psicopatia.

Guia21: Mas tu acabaste viajando.

Télvio: Sim, com essa mesma 9ª Sinfonia, surgiu uma pequena possibilidade de um curso em Santiago de Compostela. Era um curso de três meses, mas não dava passagem de ida nem de volta. Fui falar com o maestro Komlós e falei pra ele “olha, o Belas Artes me deu uma carta de recomendação para o consulado espanhol”. Então ele escreveu outra, também me recomendando. Eu levei tudo ao consulado e a bolsa surgiu. Tinha um voo da Panair que saía do Rio com desconto só para portugueses e brasileiros. Meu pai fez uma vaquinha para me ajudar. Peguei um ônibus aqui, fui até o Rio e viajei. Passei três meses em Compostela. Só tinha cem dólares, menti para o meu pai que eles iam pagar a viagem de volta. A juventude é assim, né? Não sabia o que eu ia encontrar lá, eu não sabia nada! Parecia que as coisas de lá eram melhores do que tudo aqui, mas não era tanto assim. Na Espanha, cantei em várias audições e recitais, mas quando terminou o curso, bom, e agora José?

Guia21: Teus professores lá eram gente conhecida?

Em pé, Télvio e Montserrat Caballé | Foto: Arquivo Pessoal / Joana Berwanger / Sul21

Télvio: Sim. Um monte de lendas: Andrés Segovia, Montserrat Caballé, cantei com ela (foto acima). Estava cheio de artistas internacionais ali. Eu estava apaixonado por uma das cantoras, que era de Barcelona. Outros alunos já estavam se juntando para prestar um concurso em Barcelona e eu pensei “tenho que ir também”. Mas os meus cem dólares não davam cria, pelo contrário! Com recomendações, consegui uma bolsa de 6 meses junto ao Instituto de Cultura Hispânica. Me senti garantido. Me davam cem dólares por mês. Era o suficiente para uma vida bem modesta, então comecei a fazer outros trabalhos, eu sempre desenhei. Lá pelas tantas consegui trabalho. Passaram-se mais 6 meses e renovaram a bolsa. No final deste segundo período, minha professora me perguntou se eu queria retornar para Santiago de Compostela e fazer o curso de lá novamente, tinha todo ano. Eu disse que não, mas me deu medo de ficar sem dinheiro e no fim retornei para Santiago de Compostela, para ganhar por mais três meses. Lá em Compostela foi fantástico. Por exemplo, estreamos uma Cantata do argentino Isidro Maiztegui e eu fiz a parte do tenor.

Guia21: E a paixão?

Télvio: Todas estas andanças pela Europa foram crivadas de paixões por mulheres maravilhosas, muitas delas artistas. E o abandono daquilo lá me deixou muito amargurado. O Sérgio Faraco, que estudou na União Soviética, diz o mesmo. Aquelas mulheres… Entre as cantoras que eu conheci lá há uma que ficou muito famosa e com a qual eu não tive nenhum caso amoroso… Era a Montserrat Caballé. Uma tremenda cantora e um péssimo ser humano. Por exemplo, houve um momento em Compostela que uns cantores argentinos quiseram organizar um recital. E a Montserrat deu apoio, estava auxiliando em tudo. Só que numa aula, ela, com menosprezo, chamou algumas cantoras argentinas de índias. Bem, as argentinas se irritaram, claro. Os brasileiros se uniram a elas e ninguém cantou. Depois, ela foi convidada para cantar no Rio e São Paulo e teve seu visto negado por alguém que sabia daquelas ofensas. Deu a maior confusão e ela só pode vir em outra data. Cantou depois até em Pelotas. Era mais do que temperamental, era uma pessoa deselegante.

Guia21: Cantaste muito na Espanha?

Télvio: Sim, fiz algumas gravações em Barcelona e Madrid. Era estranho porque as pessoas diziam para eu cantar Mozart, mas eu preferia coisas mais pesadas.

Guia21: E no final desta sequência de cursos e bolsas de estudo?

Télvio: Eu falei com Hans von Benda, que se encontrava em Compostela, e ele me sugeriu estudar na Alemanha. Recebi dele uma carta de recomendação para eu levar na Embaixada Alemã. Fui na Embaixada em Madrid. Lá, é claro, me avisaram que eu, como brasileiro, deveria me dirigir à Embaixada da Alemanha no Brasil e não na Espanha. Então eu recebi uma carta que foi decisiva na minha vida. Era uma carta seca, escrita por meu pai, pedindo que eu retornasse imediatamente porque minha mãe estava muito doente, estava mal, seria internada, etc. Houve uma espécie de chantagem emocional, como tu verás. Antes de viajar, eu ainda cantei em Madrid. Lá, entre outras obras europeias, quase todas de câmara, eles sempre pediam para eu cantar brasileiros como Carlos Gomes, Alberto Nepomuceno, etc.

Em catalão: um programa de um recital de Télvio em Barcelona | Foto: Reprodução de Arquivo Pessoal

Guia21: E voltaste…

Télvio: Sim, peguei os últimos dólares que tinha, comprei uma passagem de navio e voltei. 15 dias de viagem. Quando cheguei ao Rio, fui à Embaixada da Alemanha – era no Rio na época – e entreguei a carta para estudar lá.

Guia21: E foste ver a família.

Télvio: Bem, a situação familiar em Santiago não era nada trágica. Eles só queriam que eu voltasse. Quando encontrei minha mãe, ela estava bem e disse que quem estava doente era o meu pai. Enfim, era algo confuso. Ninguém estava doente, parecia. Vim para Porto Alegre e, passado um tempo, recebi a resposta dos alemães dizendo que eu tinha que me apresentar em Köln em determinado dia. Voltei a Santiago para me despedir e, talvez, conseguir algum dinheiro com o velho. Então, um tio meu, médico, me disse que meu pai tinha uma bomba no bolso, ou seja, que havia perigo de um enfarto. Me pediu para adiar a viagem em um ano. Concordei em ficar.

Foto: Joana Berwanger / Sul21

Guia21: Perigo.

Télvio: Pois é. Escrevi para a Alemanha solicitando adiamento e os alemães disseram que o adiamento dependeria do orçamento para o ano seguinte. E nunca mais. Eu perdi a oportunidade. Só isso.

Guia21: E o que fizeste?

Télvio: Enquanto eu esperava a tal chamada da Alemanha, voltei a trabalhar com desenho em Porto Alegre. Comecei a me desligar da música. Ainda cantei muito, mas aquilo marcou o início de meu afastamento. Neste período, o Komlós me convidou para cantar I Pagliacci. Eram duas récitas, numa eu ia cantar Canio e em outra o Arlequim. Naquele tempo, era no Araújo Vianna. Tinha um cara que tinha uma carroça puxada por um cavalo, que vendia lanches fora do auditório. E tu sabe que os palhaços tinham uma espécie de carroça onde ficava seu palco.

Guia21: Normal, em O Sétimo Selo, de Ingmar Bergman, os atores têm uma carroça. Eles abriam uma cortina e virava um palquinho…

Télvio: Isso! Exatamente isso! E naquele espetáculo, nós entrávamos, os cantores, os atores, dentro daquela carroça de lanches. O Araújo Vianna é redondo, tem portas largas e o carro entrava no palco conosco dentro cantando, com o cavalo puxando. E começava a história. De noite, o cavalo pastava no gramado ao lado do Araújo Viana. Nunca fugiu. Na segunda récita, veio a maior chuva, foi aquela correria de músicos, com os violinos, tudo. E a ópera não aconteceu mais.

Guia21: O Araújo não tinha cobertura na época.

Télvio: Sim, molhava tudo.

Guia21: E a carreira?

Télvio: Na verdade, eu poderia seguir a carreira de músico fazendo o que a maioria dos cantores fazem: dando aulas. Só que eu detesto dar aulas. Nesta volta, ainda fiz algumas gravações, mas já estava desistindo da carreira. Passado algum tempo, só desenhava e trabalhava com eletrônica. Abri mão de tudo, passei mais de dez anos sem cantar nada, sem dar uma nota. Então, com quase 40 anos, voltei a cantar óperas e cantatas de Bach e Buxtehude. Com a Ospa novamente, ali na Igreja Santa Cecília. A Ospa com suas fofocas e futricos… Bá, eu tinha uma raiva daquilo! Cantei Britten também naquela época.

O programa do concerto de Télvio e da Ospa apresentando Cantatas | Foto: Reprodução de Arquivo Pessoal

Guia21: Sobre a tua desistência. Foi uma coisa do ambiente? Não tinha perspectiva?

Télvio: Se eu tivesse ficado na Europa, faria uma carreira musical. Aqui eu não tinha perspectiva. Ninguém tem como seguir só cantando. E eu não queria dar aula.

Guia21: Sim, os cantores dão aula. Quase todos eles dão aula, acho.

Télvio: Eu não gostava e tinha outras maneiras de ganhar dinheiro. Eu publicava revistas de quadrinhos, fazia desenhos para jornais. Cheguei a chefe do departamento de eletrônica da Narcosul Aparelhos Científicos, uma empresa que fabricava aparelhos eletrônicos voltados para a área médica.

Guia21: Sim. Tu te sustentavas, evidentemente. E o que tu publicavas em jornais?

Télvio: Eu criava desenhos para ilustrar matérias, cadernos, tudo. Tenho guardados vários trabalhos meus para o Jornal do Comércio.

Caderno sobre a Revolução Farroupilha ilustrado por Antônio Télvio | Foto: Reprodução de Arquivo Pessoal

Télvio: Já na Narcosul eu fiquei muitos anos. Trabalhei também na Parks com equipamentos para comunicação digital.

Guia21: Mas tu és formado em…

Télvio: Em nada. Fiz um ano de Filosofia só e larguei.

Guia21: Mas e a eletrônica? Como aprendeste, como ela entrou na tua vida?

Télvio: Eu sempre estudei eletrônica. Desde guri, só por diletantismo. Posso mostrar os equipamentos que eu fiz, tu não vai acreditar. Eu até hoje não acredito! No dia em que eu comecei a estudar computadores, a primeira coisa que fiz foi montar um. Fiz ligação por ligação. E funcionava!

Guia21: Mas disseste que voltaste a cantar lá pelo 40 anos.

Télvio: Eu cantava aqui e ali, em concertos e recitais. Com a Ospa, cantei uma operazinha regida pelo Túlio Belardi, mas já me considerava um diletante. Não ganhei dinheiro nenhum com aquilo, nem queria. Aí houve outro fato que aí sim, aí eu disse “não vou fazer mais porcaria nenhuma”. Iam fazer uma ópera sobre os Farrapos e outra sobre as Missões. O autor era Roberto Eggers, que foi o primeiro regente de orquestra aqui em Porto Alegre. Ele escreveu duas óperas: Missões e Farrapos. Dizem que neste fim de semana vão estrear a primeira obra musical que foi escrita sobre a Revolução Farroupilha, uma ópera rock… Não sabem de nada. Um dia, o Emílio Baldini, que era colega meu, professor, me levou até o Eggers para ele me escutar, para a gente fazer a ópera sobre Missões. Aprendi toda a Missões. No dia em que era para começar os ensaios…

Guia21: Isso foi depois do Belardi e as Cantatas?

Télvio: Sim, pós Belardi. Com a Ospa de novo… Confusão daqui, confusão dali, mudaram todo o elenco. O Eggers disse que não ia deixá-los fazer sua ópera. Eu respondi “não, não faz uma coisa dessas. Sou um amador, não vou ganhar dinheiro com isso. Tu não. Não seja bobo. Fica quieto”. Aí, disse para mim mesmo “Bom, encerro. Não quero mais saber desse troço. Enchi o saco”.

Guia21: Tu já estava na Narcosul nessa época.

Télvio: Sim.

Guia21: Na Narcosul tu eras o chefe da eletrônica, certo? E, no desenho, que que tu fizeste?

Télvio: Desenhava para propaganda, desenhava charges, ilustrava matérias, fazia figuras de pessoas. Todo o dia o Jornal do Comércio tinha um desenho meu. Eu guardei algumas coisas, devia ter guardado mais, mas, na época, não dava valor para aquilo.

Matéria do Jornal do Comércio com ilustração de Antônio Télvio | Foto: Reprodução de Arquivo Pessoal

Guia21: E aí tu te tornaste um ouvinte do PQP Bach.

Télvio: Um grande ouvinte do PQP Bach. Tenho muita coisa de lá.

Guia21: E que papel tem a música hoje na tua vida?

Télvio: Olha, cara, hoje eu estou aposentado, fico no meu canto, mas ouço muita música, sim.

Guia21: Tu passa os dias escutando música?

Télvio: Não. Nunca pensei quanto tempo eu escuto música, mas é bastante. Eu ouço bastante. Só que certamente não ouço mais do que tu.

Guia21: Ouço mais ou menos uma hora por dia.

Télvio: Eu até ouço mais, às vezes.

Guia21: Tu cantarolas por aí?

Télvio: Não. Nada.

Guia21: Nada?

Télvio: Nada.

Guia21: Se tu te entusiasma por alguma coisa, tu não canta?

Télvio: Não canto. Há umas gravações minhas por aí, nem ouço mais. Também fiz várias edições extraordinárias em jornais onde eu desenhava tudo de cabo a rabo, mas não fico olhando.

Guia21: E tu frequentas concertos?

Télvio: Pouco. Esses dias fui ver o ensaio de uma ópera de Mozart. Não cantaram duas árias porque o tenor estava doente. Ele cantou outras, mais fáceis. Não tinha substituto! Isso é inconcebível num lugar sério. Aliás, as substituições são muito comuns, inclusive. Acontece de bons cantores substitutos se aproveitarem dessas oportunidades e roubarem a cena. Isto é, pelo visto a coisa não mudou tanto assim em todos esses anos. Olha, quando tu tens apenas uma opção de vida, “só posso ser cantor”, tu tenta de novo, tu insistes. Quando tu tem várias — eu tinha a eletrônica e o desenho que também me satisfaziam internamente –, tu buscas outra saída.

Guia21: Tu não ficaste frustrado?

Télvio: Eu sempre seria frustrado, porque é impossível abraçar tudo.

Guia21: Porque hoje tu tens 77 anos e a gente ouve que tu ainda tens equipamento, uma voz muito bonita e forte.

Télvio: É, sempre tive uma voz forte, dizem que boa…

Guia21: Isso eu estou ouvindo.

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Com decupagem de Nikolay Romanov e revisão de Elena Romanov.

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Bombinhas: o 6º Encontro Internacional PQP Bach

Bombinhas: o 6º Encontro Internacional PQP Bach

Em meu vocabulário de ateu, uma única palavra é sagrada: a amizade.
Milan Kundera — A Festa da Insignificância

Já estamos indo para a primeira década do PQP Bach e ainda não conheço todas as pessoas que fazem este grande blog. Um morava no Casaquistão e agora está em Moscou. Não o conheço, apesar de já ter-lhe enviado partituras de autores brasileiros que foram interpretados em recitais moscovitas. (Sim, a coisa é chique). Já jantei com outro de São Paulo e com nosso homem em Vitória (ES). Mas não conhecia nosso agente secreto de Blumenau, assim como não conheço o restante da turma. O Luiz Blasi é a pessoa com a qual mais converso sobre música e as postagens bagunçadas do blog.

Ontem, domingo (25/01), ele e sua esposa Rose desceram até Bombinhas para fazer o reconhecimento mútuo. Para os iniciados na terminologia pequepiana, foi o encontro de PQP Bach com FDP Bach, dois filhos bastardos de Johann Sebastian. Simples assim. O casal visitante chegou secretamente à pequena cidade em carro próprio, por volta das 7h da manhã de domingo, trazendo um pen drive com a integral das Sonatas de Beethoven, tocadas por Maurizio Pollini, e o filme dos 125 anos do Concertgebow de Amsterdam, concerto completo. Sem se anunciarem, é claro, ficaram ocultos na recepção até que eu e Elena descemos às 8h, cuidando para não sermos vistos.

A Andréia, dona de nossa Pousada, recebeu a todos com um belo café. Eu e a Elena comemos pouco devido aos acontecimentos traumatizantes da noite anterior, mas espero que o Luiz e a Rose tenham aproveitado, porque os cafés da Andréia são esplêndidos.

Após o café fomos a Zimbros, uma bela e calma praia ideal para crianças.

A praia de Zimbros | Foto: Luiz Antonio Blasi
A praia de Zimbros | Foto: Luiz Antonio Blasi

Mas lá havia aquilo que nos persegue onde quer que compareçamos: a boa gastronomia. O maestro Tobias Volkmann, através de bate-papo no Facebook, dirigiu-nos de forma firme e afinada ao restaurante Berro D´Água. Meu deus, o que foi aquilo?

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Olha, até agora, 36 horas depois, ainda estamos comentando aquela massa. A boa comida conhece caminhos inescrutáveis para nos alcançar. Eu nem queria comer muito depois da vandalização do dia anterior, mas o que podemos fazer além de aceitar a felicidade que nos chega a um custo adequado?

Depois de várias fotos documentais …

Milton Ribeiro e Luiz Antonio Blasi

Milton Ribeiro e Luiz Antonio Blasi 2

… e de uma uma amizade virtual passada ao mundo real, despedimo-nos de nossos amigos, não sem antes termos um curioso encontro no estacionamento. Ali estava uma família de corujas buraqueiras, hoje raras. A Elena sempre diz que é uma coruja. Refere-se, é claro, ao modo como fica alerta à noite. O encontro dela com os pássaros foi tímido.

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Abaixo, uma foto de Luiz Antonio Blasi mostrando o making off das fotos acima.

Foto: Luiz Antonio Blasi
Foto: Luiz Antonio Blasi

Rose e Luiz, foi um belo encontro. Nada surpreendente que vocês fossem exatamente como nós imaginávamos: de fala mansa, boa e inteligente conversa e muito agradáveis. Não querem se mudar para Porto Alegre a fim de que a gente se veja mais vezes?

Gostei tanto de vocês dois que deixei minha mochila no porta-malas deles… A coisa já está voltando por Sedex…

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Pessoal, eis o cartaz de meu novo filme, “Não fechem minhas abas!”.

Pessoal, eis o cartaz de meu novo filme, “Não fechem minhas abas!”.

A obra é do amigaço Carlos Latuff, como não seria? Obrigado.

Milton Ribeiro era um homem pacato, até que...
Milton Ribeiro era um homem pacato, até que…

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Latuff invade minha mesa de trabalho

Latuff invade minha mesa de trabalho

Eu gosto de manter as 12 abas de meu Google Chrome organizadinhas… Elas sempre estão na ordem que segue: as 4 primeiras são as do Sul21 (post que está sendo trabalhado, capa, geração da capa, Sul21), depois vêm as dos blogs Milton Ribeiro e PQP Bach, PqpShare, Gmail, Feedly, Facebook, Gmail do PQP Bach e Google Calendar. Posso trabalhar com mais, mas estas 12 primeiras são fixas.

Só que frequentemente aparecia um xarope que, depois de meu horário de saída, esculhambava esta ordem de comprovada eficácia, apagando parte das abas ou todas. Então, coloquei um post-it no meu monitor ameaçando os invasores. Ele dizia: EU MATO QUEM APAGAR (EXCLUIR) AS ABAS DO GOOGLE CHROME!

Ontem, na minha ausência, meu pequeno post-it ganhou um desenho do Latuff. Ficou sensacional.

Abas de Milton Ribeiro

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A crítica musical em nossa província: isso também pode ter ideologia

A crítica musical em nossa província: isso também pode ter ideologia
A Mona Lisa de Duchamp
A Mona Lisa de Duchamp: de bigode

Lembro que quando começamos o PQP Bach, tínhamos que decidir o tom das postagens. Os poucos blogs do gênero só mostravam a capa do disco, as obras que continha e o link. Nós queríamos ser um pouco mais explicativos, dada a baixa informação do público brasileiro sobre música erudita. A ideia era a de fazer uma espécie de curadoria. Como criador da coisa, tratei de utilizar delicadamente meus argumentos a fim de não constranger meus pares. E fiquei muito feliz quando meus companheiros tenderam naturalmente ao tom bem-humorado e zombeteiro. Era o que eu queria.

Após anos lendo programas de concertos (e contracapas de discos) absolutamente horríveis — os quais utilizavam as metáforas de maior mau gosto que já li até hoje –, fiquei feliz de poder demonstrar ao público da internet minha ideologia de que a arte é filha da criatividade, da habilidade, do conhecimento, da inteligência e do artifício. E que todos estes itens guardam parentesco maior com a alegria do que com a sisudez.

Mais do que qualquer outra, a música erudita costuma se encastelar em torres inacessíveis. Muitos não gostam da crítica. E uma das formas de evitá-la é a de exigir a presença da filha maior da burrice: a seriedade. As alegações são as de qualquer professor inseguro: falta de respeito ou desconhecimento. Na Europa, algumas publicações já furaram este bloqueio e os músicos aprenderam a conviver com esses possíveis opositores. Mas em alguns locais como a provinciana Porto Alegre, permanece o ranço e muitos músicos só conseguem suportar o aplauso. Quando criticados, ficam amuados e, é óbvio, voltam à tradição de se considerarem intocáveis e de reclamarem dos termos seculares utilizados. Ou seja, exigem respeito quando nunca houve desrespeito…

“Minha ideologia” é antiga e, na verdade, não é nada minha. No Brasil, ela começou lá com os modernistas e, por alguma razão, ficou fora das avaliações musicais e acadêmicas. Em 1919, Marcel Duchamp já pintava uma Mona Lisa de bigodes. É claro que era uma brincadeira, mas uma brincadeira muito séria, que mostrava a disposição modernista para dessacralizar a arte. Pois a arte partiu há muito tempo do sagrado para o profano e mesmo aquela música que era ouvida apenas em igrejas vê que suas novas catedrais são as salas de concerto.

Detesto coisa sem graça. Então, corro não apenas da má literatura na ficção. Acho que a má literatura da crítica — vide o que se escreve no Brasil e em nossa aldeia, com raríssimas exceções — consegue afastar boa percentagem dos candidatos a ouvintes. Não é casual que não sejam lidos. O ar de grande importância que estes textos dão a si mesmos constroem um assustador espantalho em parceria com alguns músicos que se consideram semideuses por serem membros de uma orquestra qualquer.

Essas pessoas são tão bobocas.

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Ospa: Brahms e Tchai na noite chuvosa de ontem

Brahms: entrando no meio da conversa.

A Sinfonia Nº 4 de Brahms é estranha. Quando começa, temos a impressão de termos sido jogados direto na recapitulação de um tema. A coisa vem sem maiores apresentações, parece que entramos numa conversa ou numa reunião que já vai pela metade e em que as pessoas apresentam uma segunda pauta e desenvolvem-na em forma-sonata. É como se ele entrasse subitamente em meio a uma DR (Discussão de Relacionamento) entre Clara e Robert declarando tranquilamente: “OK, confesso, eu como a Clara e isto deve gerar tensões que deixam qualquer um louco”. Então descobrimos que a recapitulação era na verdade uma exposição. Coisa mais linda este movimento, fico louco de felicidade com ele. O nada otimista segundo movimento é seguido pela galinhagem do terceiro — o que é mais uma coisa estranha: um raro momento humorístico de alguém que se caracterizava pela densidade e seriedade. O último movimento abre uma janela para o barroco — outro fato inusual para uma sinfonia tão romântica — , baseando-se numa passacaglia.

Longe vão os dias em que temíamos a gataria dos sopros da Ospa. Com a graça do bom deus (que não existe), os últimos concursos da orquestra serviram para botar os gatos num saco a fim de matá-los, como manda o bom senso reinante nas colônias alemãs de nosso estado. Pois bem, a quarta de Brahms, assim como a abertura-fantasia Romeu e Julieta, de Tchaikovsky, executada na primeira parte do concerto, exigiam muito das madeiras e metais. A resposta deles foi estupenda, tarefa facilitada pelo excelente maestro lituano Robertas Servenikas. Como diz PQP Bach, há algo na água do Báltico que torna as pessoas daquele mar bons músicos.

Eu costumo não gostar de Tchai, mas há exceções como o Concerto para Violino, Romeu e Julieta e outras poucas peças. Romeu e Julieta me remete imediatamente a meu amado Shostakovich. As sombras que ameaçavam o pobre casal veronês são um prenúncio do que depois faria Dmitri. Certamente, ele estudou a fundo esta peça, pois ontem, no auditório da Assembleia Legislativa, havia certa fragrância de Shosta no ar. Bem… deixa eu tentar explicar melhor. Sendo mais lógico, há tal presença de Tchai em Shosta que, como explorei mais Shostas, sinto como se este tivesse influenciado aquele, se me entendem. Romeu e Julieta é das obras mais suadas de Tchai. Ele a escreveu em  1870, aos 30 anos, mas houve duas revisões bastante profundas, a última em 1880.

Olha, foi um tremendo concerto. Curto, coerente e todo bom. Só não gostei daqueles insistentes (e poucos) aplausos em meio aos movimentos de Brahms. O pessoal não se flagra mesmo.

Agora, não sei se reunirei forças para ir ao concerto da próxima terça-feira. A programação indica uma dose letal do pianismo meloso de Rachmaninov. Estou muito velho para nadar em algodão.

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Livros melhores que filmes — A Reação! — e um conto de PQP Bach…

A Caminhante, certa vez escreveu um post falando sobre a sistemática superioridade dos livros sobre os filmes análogos. Penso que ela tenha razão em grande parte e deixei o assunto em suspenso, mas ontem, ao comentar o fato com meu filho Bernardo, ele teve uma reação inesperada. Primeiro uma risada. E depois o argumento:

— Pai, empresta para ela A Laranja Mecânica do Burgess, Jules e Jim do Roche, O Conformista (1) e A Estratégia da Aranha (2), feitos pelo Bertolucci, todos os livros em que o Kubrick se baseou e todos os que usou o Hitch! Nada a ver! Vá se …

Dear Walker, perdoa os 19 anos do menino.

(1) De Alberto Moravia
(2) De Jorge Luis Borges

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A Décima de Beethoven (*)

— E daí, gatinha, tenho uma coisa pra te mostrar.

— Xiii…, eu não curo reumatismo, viu?

— Nada disso, princesa, quero te mostrar aqueles motivos curtos e repetitivos.

— Repetitivos está OK, mas curtos…?

— Sim, e afirmativos.

— Em riste?

— Certamente! Vamos para aquele cantinho ali? Me parece mais adequado.

Os dois vão e sentam, a mulher prepara-se para os amassos quando o homem tira um fone de ouvidos do bolso e um celular. Arruma tudo e enfia no ouvido da gata.

— É a 10ª de Beethoven.

A mulher faz uma cara de decepção e responde.

— Um, eu não estou aqui para ouvir eruditos, quero testosterona, meu! E, dois, Beethoven jamais chegou à décima, assim como tu jamais chegarias à 2ª, quiçá à 1ª!

— Minha cara, nada disso. Acabam de remontar o primeiro movimento da décima.

— Quem?

— Um Wyn qualquer coisa.

— Vin? A propósito, podias ser um cavalheiro e pedir um vinho pra aquecer.

— Garçon!

— Então podemos retirar Beethoven da “Maldição da Décima”?

— O que é isso?

— Véio, tu não sabes que Bruckner, Mahler, Dvorargh, Beethoven e Spohr escreveram nove sinfonias e aí veio um raio e fulminou com todos? Isto é, com um de cada vez… Não sabia?

— Mas Mahler fez o Adagio da Décima.

— Sim, mas era um adagio, não tinha muita ação. Aquilo lá devia estar moribundo como o teu Ludwig van.

— Então a décima é perigosa? Pode matar?

— Sim, haja disposição para chegar lá…

— Eu tenho.

Ele bem que tentou, mas acabou por deixar a terceira inacabada. Ainda hoje se encontram. Ela, feliz, faz o papel de furacão maduro, ele, não menos, o de pau amigo.

(*) PQP Bach não deu título à sua narrativa. Desto modo, batizei-o eu.

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Milton Ribeiro entrevista PQP Bach

MR: Como começou o blog PQP Bach?

PQP: Olha, o PQP começou como um spam para os amigos. Eu sempre fui um distribuidor de música e livros… Na adolescência, uma admiradora me chamava de “o guri dos discos” porque eu estava sempre levando discos para alguém ou trazendo de volta para casa. Então, alguém me pedia um CD e eu convertia para mp3 e mandava. Depois, passei a mandar para um grupo de conhecidos interessados em música. Alguns poucos agradeciam, outros silenciavam. Mas dois dias depois, eu ia no rapidshare e via que mais de 20 tinham baixado o CD. Era uma popularidade incrível (risadas…). Aí, pensei que seria legal deixar disponível para a blogosfera, apesar da blogosfera ser pouco musical…

MR: A blogosfera não é musical?

PQP: O mundo é muito pouco musical. Ou raramente ouve música de qualidade, óbvio. A porcaria grassa.

MR: Espere! Vamos por partes. A gente já falou superficialmente sobre popularidade e já estamos na qualidade. Voltemos à popularidade. 20 downloads em 2 dias?

PQP: Isso naquela época. Hoje, há 20 downloads em duas horas. Sei lá como os caras descobrem as postagens. Talvez pelo RSS. O que sei é que os caras se atiram em cima. Chego a me sentir mal quando não postamos um CD por dia. Temos que alimentar essa gente! Hoje, postamos mais de um por dia, em média.

MR: Por que vocês fazem este, digamos, serviço?

PQP: Sinceramente, não sei. Desconheço o motivo de algumas pessoas fazerem blogs anônimos para distribuir a música que gostam. Nunca ganhei nada fazendo isso. Talvez seja uma manifestação de minha culpa por possuir uma obscena quantidade de discos de vinil, uns 1200, uma cedeteca enorme e gigas de mp3. É nojento e obsceno ser dono de tudo isso. Dou muitos de meus CDs com músicas repetidas e que acho que não vou mais ouvir. É necessário e, para ser politicamente correto, ecológico reaproveitar esse material precioso, muitos deles fora de catálogo. Mas, internamente, eu não vejo a coisa pelo lado da generosidade ou da solidariedade. Talvez a coisa toda se resuma na necessidade que tenho de conversar e dialogar com pessoas que tenham interesses parecidos. Então, ofereço o que tenho e os caras aparecem.

MR: Então os comentários são fundamentais ao blog.

PQP: Pô, sem dúvida. Eu quero e busco o papo. Temos que nos unir de alguma forma. Acho que a cultura relevante está se tornando coisa de especialista. E isto também na literatura. Os amantes da literatura de primeira linha tem que ir ao blog do Sérgio Rodrigues ou a alguns outros poucos para ler algo mais atualizado sobre o movimento editorial. É irritante. Não há uma crítica literária ou musical que seja pública. Os cadernos de cultura estão tomados por uns caras chatos pra caralho – exceção feita à Rascunho. Parecem uns acadêmicos precisando de mais titulação. Ninguém fala para o leitor comum nem para o conhecedor. Quem lê aquela merda mesmo?

MR: Sei lá. Meu maior ídolo literário é Tchékhov. Conheço profundamente o cara. Dia desses, li um sujeito que tornava Tchékhov um chato, ou que parecia… parecia que suas teses sobre Tchékhov poderiam se aplicar a qualquer outro escritor. Era um troço dificílimo de ler, todo verboso e intrincado. Mas, quando reli e tentei entender… era uma idiotice sem conteúdo, sem direção, merda pura. O cara não dava opinião, parecia um tucano em cima do muro. Era “correto”.

PQP: Sim, o vazio intelectual está presente também na música. Procuro escrever de forma sempre compreensível, ou copio caras que escrevem de forma clara e também meio irreverente e acessível. Porque Beethoven e Bach e Mozart e esses gênios não foram pessoas reverentes ou politicamente corretas. A partir do momento em que alguém tem algo a dizer — e eles tinham, como pensar que não? — , algo para expressar, eles vão provocar concordância ou não, consonância ou dissonância. Só a mediocridade provoca reação nenhuma. E hoje ser controverso é uma ofensa. O bom é ser incontroverso, ou seja, comum, medíocre, produtor de coisinhas inodoras.

MR: É, você tem razão. Mas como surgiram seus companheiros de blog?

PQP: Olha, não conheço nenhum deles pessoalmente… E um é de Porto Alegre, veja só. Primeiro veio o FDP Bach, um cara de Blumenau que conheci no Orkut. O que eu apreciei logo nele é que ele gostava da música que para mim é quase nada, a romântica. Ele vinha com os Chopins, Rachmaninovs, Liszts e assemelhados da vida e via transcendência naquilo… Quando vi que não daria conta das postagens quase diárias que hoje fazemos, pensei nele. Eu não queria um segundo eu que postasse as mesmas músicas. Queria outra personalidade, queria um diálogo com alguém diferente. E ele é um cara perfeitamente maduro, compreende que somos diferentes. O Blue Dog veio pela enorme capacidade que o cara tinha de descrever música. Uma vez, pedi que o Blue Dog desse uma noção de jazz para meu filho. Passou uma semana e o cara me mandou um e-mail com mais de 20 páginas e mais dois CDs pelo correio. Uma coisa brilhante que o cara fez improvisadamente, na hora. Um absurdo a inteligência e capacidade do cara. Não tive outra escolha. Adoro jazz, claro, e o Blue Dog gosta de meu ídolo Charlie Mingus. Era uma escolha lógica. Este foi o núcleo inicial. Depois, dentro do mesmo critério, vieram o CDF Bach – música moderna – , o Ciço Villa-Lobos – música brasileira –, o Marcelo Stravinsky e o Carlinus – tudo e mais um pouco – e o Avicenna, que faz um belo e inédito trabalho sobre a música colonial brasileira. Todos partem destes pontos, mas podem postar o que quiserem.

MR: Vai entrar mais gente aí?

PQP: Não sei. Provavelmente sim.

MR: Podemos voltar à questão da qualidade?

PQP: Sim, como?

MR: (risadas) Ora, como vocês escolhem as obras? Há uma coerência? Um plano?

PQP: Não, de modo algum. A regra é agir sem estresse. Ninguém corre para atender pedidos e nem para postar. Faz quando quer. Meu critério é o de postar o que ando ouvindo. O PQP não é um curso de música ou uma sistematização para formar uma discoteca básica para nosso público (risadas), faço uma bagunça mesmo. Não me preocupo com os pedidos, a não ser que o cara acerte em cheio ou perto a música que estou ouvindo. Acho que os outros também agem assim.

MR: Então vcs só ouvem música de qualidade?

PQP: Olha, talvez sim. Posso falar por mim: não sou mais um jovenzinho, não posso perder tempo com porcaria.

MR: Pois é, isso é incrível. Dia desses, um amigo me pediu para ler o Marcelino Freire, uma bosta de escritor nascido nos blogs. Eu não quis ler. Disse que preferia seguir lendo a obra de Bolaño e Freud.

PQP: Ah, é óbvio. Sim, eu li aquela menina gaúcha. Blogueira, Clara….

MR: Averbuck?

PQP: Sim, li um livro dela e uma tradução que ela fez de Swift.

MR: Bem, você é masoquista. Isto é uma novidade. Os ouvintes do PQP jamais imaginariam…

PQP: (risadas) É, era tão ruim que fiquei fascinado… Nem chega a ser kitsch, é pré-kitsch, pré-escrita, pré-antigo, pré-rupestre.

MR: Mas, voltemos à questão da qualidade e de vcs ouvirem só boa música.

PQP: Não, eu não ouço só música de qualidade. Há muita porcaria e eu posto no mesmo jeito. Digo que não gostei, posto porque alguém pode gostar ou querer conhecer. Não sou politicamente correto, não fico só elogiando. O politicamente correto implica, NECESSARIAMENTE, em concessão.

MR: As gravações vêm do teu acervo de CDs comprados?

PQP: Sim, uns 70%. Apesar do preço absurdo, ainda compro CDs. A Amazon vende usados. É uma boa e sou um pouco fetichista. Gosto de girar o CD nas mãos enquanto ouço. Gosto de ler os libretinhos, as opiniões, a história, as circunstâncias, o escambau.

MR: Daí, o acervo, a tal cedeteca.

PQP: Claro.

MR: O PQP tem textos.

PQP: Sim, e é o que mais gosto nele. A música se consegue. Uma opinião, mesmo uma bem imbecil, vale muito, principalmente se o leitor conhece pouco, se não tem vivência. Acredito que se aprende a ouvir com os outros, com o contato. O contato motiva, certo?

MR: Certamente. Cria um ambiente propício. Deixa a pessoa mais ligada, talvez.

PQP: Sim.

MR: Onde você aprendeu tanto sobre música?

PQP: Veja bem, eu não sei nada. Não leio partituras nem toco nenhum instrumento. Sou um fenômeno do século XX e XXI: sou um ouvinte. Um cara que pode ficar 12 horas ouvindo continuamente música, um gênero de pessoa impossível nos séculos passados. Aprendi muito sobre história da música — consulto muito pouco quando escrevo minhas pequenas introduções, gasto um tempo mínimo — , aprendi lendo e ouvindo. Mas os músicos elogiam o blog deste ignorante. De tanto ler e ouvir, posso ter desenvolvido alguma sensibilidade. Já não sei onde aprendi isto ou aquilo, onde aprendi e reconhecer isto ou aquilo, devo estar sempre pecando contra o rigor e a precisão, cometendo absurdos, mas os leitores são bonzinhos e deixam passar… Mas meus erros provém de convicções desenvolvidas ao longo dos anos, de meus gostos e sentimentos, então são convincentes! Tá pensando o quê?

MR: É importante ser convicto, mesmo que equivocado! (risadas) E a questão das interpretações com instrumentos autênticos?

PQP: Olha, cada época tem seus instrumentos e sua forma de interpretar. O importante não é utilizar os instrumentos de acordo, mas não misturar. O Celibidache toca a Missa de Bach e é brilhante, tudo com instrumentos atuais. Ele tem o direito, ele tem o que dizer sobre a Missa. E ele, assim como qualquer outro, não está proibido de tocar, desde que possua senso de estilo e que saiba “criar beleza”, por assim dizer. Assim como as interpretações do Leonhardt, do Harnoncourt e do pessoal do Musica Antiqua, que só usam instrumentos originais. O que não pode é o cara que usa instrumentos atuais fazer uma coisa hesitante e sem estilo, como o Karajan fazia quando tocava Bach ou Vivaldi. E nem pode o cara da instrumentação original pensar que está livre de interpretar a música. Normalmente, a gente é indulgente com o sujeito que respeita a sonoridade de época. É ridículo! O executante tem que tentar tornar a coisa interessante sempre!

MR: Sim, e é muito empobrecedor para nossa época pensar que não podemos renovar e demonstrar novas riquezas na música do passado.

PQP: Claro, isto é o mesmo que dizer que Glenn Gould era um inútil. Ele passou a acentuar notas e coisas que eram antes ignoradas. Ele acabou com a Landowska… Ele, com um piano moderno, virou tudo de cabeça para baixo. Ele criou a interpretação monumental do Hantaï para as Goldberg. Ou seja, ele criou o cara que veio a superá-lo. É óbvio.

MR: Mais diálogos.

PQP: Sim, claro. Tudo é assim. A gente sobe nos ombros dos visionários, como dizia Newton. Não tu, falo do Newton com “N”. Do Isaac.

MR: Um epígono dos muitos que tenho…

PQP: (risadas) Por falar em epígonos, fomos copiados no PQP.

MR: Ah, eu vi. Um guri copia o post inteiro para seu blog e não diz quem é o autor.

PQP: Pois é. É a putaria da Internet. Não custa nada fazer um link dizendo: olha, copiei daqui.

MR: Para terminar, e os muitos links expirados?

PQP: Olha é impossível manter mais de 1500 posts com os links ativos. As gravadoras mandam tirar. Não podemos ser um repositório ou uma biblioteca de música. As pessoas têm de baixar logo. É uma caçada, a gente deixa disponível ali; então, vêm uns caras vindos do éter e detonam com parte da coisa. É horrível.

MR: Bom, vamos acabar o papo. Podemos fazer aquela frescura do Questionário do Proust?

PQP: Bernard Pivot? Tu gosta daquele questionariozinho… Putz, mas não garanto nenhum brilhantismo.

MR: Qual é o defeito que você mais deplora nas outras pessoas?

PQP: A incapacidade de colocar-se no lugar de outro. A falta de empatia.

MR: Como gostaria de morrer?

PQP: Sonhando.

MR: Qual é seu estado mental mais comum?

PQP: Um tumulto generalizado. Muitas coisas por fazer. Atraso. Preocupações. Estresse.

MR: Qual é o seu personagem de ficção preferido?

PQP: Adrian Leverkühn ou eu mesmo.

MR: Qual é ou foi sua maior extravagância?

PQP: Não sou nada extravagante. Mas acho que uma biblioteca ou uma cedeteca grande é uma extravagância, não?

MR: Qual é a pessoa viva que mais despreza?

PQP: Desprezo são algumas atitudes, omissões. Ninguém é 100% desprezível.

MR: Qual é a pessoa viva que mais admira?

PQP: A mesma coisa, admiro atitudes, posições. Não existe alguém 100% admirável!

MR: Se depois de morto tivesse de voltar, em que pessoa ou coisa retornaria?

PQP: Num CD Player ou numa daquelas luzinhas de ler à noite. Ou em qualquer cara rico, heterossexual e de bom gosto.

MR: Em quais ocasiões costuma mentir?

PQP: Eu exagero as histórias que conto. Elas se tornam outra coisa.

MR: Qual é sua idéia de felicidade perfeita?

PQP: Um jantar com Mônica Bellucci; ao fundo, as suítes para violoncelo de Bach. Depois do jantar, em local mais confortável e horizontal, uma Cavalgada na Valquíria, mas sem a música, só com o espírito dela.

MR: Qual é seu maior medo?

PQP: O de tornar-me um peso para os outros.

MR: Qual é seu maior ressentimento?

PQP: Tenho ressentimento contra a injustiça do tempo, de não ter tempo para tudo, de envelhecer, de cansar.

MR: Que talento desejaria ter?

PQP: O de adivinhar os pensamentos das mulheres. (risadas)

MR: Qual é seu passatempo favorito?

PQP: Ouvir música, ora.

MR: Se pudesse, o que mudaria em sua família?

PQP: Daria um velho riquíssimo e moribundo à minha mãe. Bem moribundo e apaixonado. E, fundamentalmente, generoso.

MR: Qual é a manifestação mais abjeta de miséria?

Dizer que os miseráveis não sofrem tanto, que se acostumam a sua situação. E deixar assim.

MR: Onde desejaria viver?

PQP: Numa Porto Alegre mais culta e menos quente. Numa cidade com mais teatros, música e literatura. Numa cidade que mereça esta denominação.

MR: Qual a virtude mais exagerada socialmente?

PQP: A inteligência. Pois a pessoa precisa ser mais completa, né?: deve ser um pouco inteligente, um pouco solidária, um pouco atenta aos outros, não deve mudar demais face às circunstâncias nem ser egoísta, deve ter reações adequadas e calmas, etc. Mas o cara que é só inteligente é o mais admirado.

MR: Qual é qualidade que mais admira num ser humano?

PQP: A serenidade, como tu escreveu dia desses. Ela é alegria, tranqüilidade, clareza e… E?

MR: Sabedoria.

PQP: Tudo numa só palavra.

MR: Foi Marcelo Backes quem escreveu isso. Não fui eu. Concordo com ele. Qual é a maior das músicas?

PQP: Hoje, a Oferenda Musical de Bach. Amanhã, pode ser outra.

MR: E os cinco maiores compositores?

PQP: Meu pai, Brahms, Beethoven, Bartók e Mahler.

MR: Quando e onde você foi mais feliz?

PQP: Acontece muito quando ouço música.

MR: Acabou.

PQP: A entrevista? Nem doeu muito.

MR: Ótimo.

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Tudo em doses homeopáticas, até a cerveja

Há noites em que nada acontece e há outras em que tudo acontece no mesmo horário. Ontem, eu receberia uma pessoa aqui em casa às 19h, neste horário começaria um debate sobre a ficção de gênero na Palavraria. Meu compromisso caseiro acabou logo e corri para o debate. Nossa, estava ótimo — em outra faixa, pude comprovar meio constrangido a popularidade deste espaço…, algumas pessoas quase fizeram tietagem, fiquei feliz demais, imagina se não? — , o Xerxenesky, o Samir e o Carlos André Moreira conhecem literatura, são bem-humorados e sabem se expressar, o que nem sempre ocorre com escritores. Só que eu tinha prometido ir ao concerto da OSPA com minha mulher, o qual começaria às 20h30. Saímos (sumimos) à francesa e chegamos am cima da hora na OSPA. Credo, a primeira noite dedicada aos 200 anos de nascimento de Schumann absurdamente chata, realizada por músicos sem o menor tesão. Salvou-se a Sinfonia Nº 4 na segunda parte do Concerto, mas eu estava com uma fome de anteontem e só pensava no jantar com o Branco e a Jussara, muito mais legais do que aquilo que acontecia no palco.

Resultado: chegamos em casa muito tarde para uma terça-feira e a cerveja Bluehead foi a culpada de eu começar o dia de hoje com uma hora de atraso. Ah, por falar em musica, deixo-vos com duas resenhas alucinadas de P.Q.P. Bach, do blog erudito de mesmo nome, ambas publicadas nesta semana.

J. S. Bach (1685-1750): Bach Attributions

Por uma dessas coisas inexplicáveis, a obra para órgão de Bach está fora de moda. Algumas pessoas acham que o som do órgão é tão irritante quanto os padres pedófilos de Ratzinger — o qual parece preferir sexo com crianças do que entre adultos — , mas é bem no órgão que Bach realiza suas maiores experimentações. (Ah, acharam que eu ia fazer uma piada com o órgão sequiçual, né?) Mas retornemos ao que interessa: o que há de peças amalucadas na Orgelwerke é uma grandeza! E eu gosto. Muito! Este CD é sensacional por diversas razões.

(1) O organista é do caralho (ou do órgão, como queiram);
(2) O repertório, apesar de evitar os experimentalismos, está longe dos lugares-comuns;
(3) A produção da Hyperion é fodal;
(4) O CD está fora de catálogo até em Marte e
(5) Fique tranquilo, você não terá de ouvir a Toccata e Fuga em Ré Menor de novo.

E ah, vocês sabem como era a nossa família. Vinte filhos e aquele entra e sai de alunos, todos interpretando peças de sua preferência e criando outras. Então, alguns historiadores de ejaculação precoce pegaram tudo isso e disseram que era de Johann Sebastian, mas nem sempre era… Neste disco há peças de vários Bachs, de outros agregados que tentavam comer minhas irmãs e de todo o tipo de gente que queria a cerveja de meu pai. Havia por lá um certo Ratz que só se interessava pelos meninos e meninas de menos de dez anos… Bem, era uma zona e até isso se reflete neste baita CD.

CD IM-PER-DÍ-VEL !!!! (como diria o véio Ratz observando um pré-púbere)

Béla Bartók (1881-1945): Sonata for Solo Violin / Leoš Janáček (1854-1928): Violin Sonata / Claude Debussy (1862-1918): Violin Sonata / Serguei Prokofiev (1891-1953): Violin Sonata Nros 1 e 2 / Igor Fyodorovich Stravinsky (1882-1971): Divertimento

Viktoria Mullova é um das preferências absolutas deste filho de Bach, que também a acha bonita, apesar da notícia que FDP Bach me passou: ela agora estaria jogando em nosso time, disputando as moças. Como provavelmente não iria comê-la mesmo, tanto faz. Mas a sonoridade desta moscovita é coisa de louco.

A peça de Bartók é uma peça de Bartók, isto, é, é esplêndida e o mantém entre os 3 maiores Bs da música erudita, os quais permanecem como os maiores mesmo quando se usa todas as outras letras do alfabeto. Quem são os três? Ora, Bach, Brahms, Beethoven e Bartók.

A peça de Janáček é igualmente sensacional. Música bem eslava, sanguínea e cheia de surpresas e belas melodias, combinando perfeitamente com Bartók.

Depois a gente brocha. Debussy… Debussy… Debbie…, o que dizer? Claude, apesar do tremendo esforço que fez para movimentar-se no primeiro movimento, é um gordo. Portanto, é meio estático. Para piorar, é também extático. Bem, hoje faz um lindo dia e dizem que é o Dia do Beijo, o que significa que eu deveria ir para a rua ver o que consigo. (Mas, olha, foi das melhores coisas que já ouvi do gordo Debbie).

Prokofiev! Ah, Serguei é outro papo. Já de cara ele mostra quão fodão é naquele tranquilo Andante assai e no furioso Allegro brusco que o segue. Sem dúvida, é um cara que valoriza o contraste… Nós também detestamos o total flat, a gente gosta tanto dos mares piscininha quanto das descidas vertiginosas; afinal, os acidentes geográficos é o que faz a beleza da paisagem, né? As duas Sonatas de Prokofiev são notáveis.

Stravinsky… Sei que meus pares aqui no blog são admiradores do anão russo e adoro provocar, só que não dá, o cara é bão demais, raramente erra. Será que o gordo Debbie escreveu alguma coisa chamada “Divertimento”? Ele se divertia com o quê?

IM-PER-DÍ-VEL !!!!

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Quinteto Villa-Lobos de graça em Porto Alegre

O Quinteto Villa-Lobos traz de volta seu amor, desata macumbaria, doenças mandadas e da carne. Traz seu emprego de volta — assim como o desejo –, cura doenças e faz com que ela chame seu nome mesmo que esteja junto de outro homem. Faz tudo ao contrário e vice-versa se você for mulher.

Não perca, imbecil!

Anúncio copiado de PQP Bach.

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Algumas reflexões irresponsáveis sobre música

Não sou tão original quanto Glenn Gould. Gosto de concertos e de gravações ao vivo. Acho as últimas quase sempre superiores às de estúdio. Frequento concertos – principalmente aqueles de preços camaradas – e creio que eles sejam experiências fundamentais tanto para o músico quanto para a platéia. Ver uma obra ser interpretada é uma experiência muito diferente de apenas ouvi-la. O jogo entre os instrumentos, a dinâmica, o trabalho dos grupos instrumentais de uma orquestra, por exemplo, é algo que enriquece muito a audição e, quando voltamos a ouvir a mesma música em nossa casa, as imagens da execução nos acompanharão.

Mas tenho restrições à escolha de repertório da esmagadora maioria dos concertos, quase conservadoras e heterogêneas. A escolha é conservadora porque o solista e o produtor não gostam de arriscar, trilhando via de regra o batido mainstream do repertório. Porém, amigos, há uma imensa distância entre o repertório destes museus sonoros que são nossas atuais salas de concerto e a variedade da oferta de música em CD ou em mp3. Tal distância não precisaria ser tão grande, até porque, excetuando-se os casos Gould-like, quem grava normalmente já apresentou a obra em concertos. Mas nos concertos terceiromundistas… Mesmo que um solista ou grupo tenha maior intimidade com determinado compositor ou período, os executantes apresentarão as obras mais óbvias e conhecidas, as de aplauso fácil. Não parece haver grande interesse em surpreender o público com algo diferente. E a heterogeneidade? Credo, dia desses fui a um concerto onde eram interpretados Mozart, Rossini, música para “trompa alpina”, Shostakovich e Bartók. Alguém pode conceber cardápio mais variado? Qual é a intenção? É a de satisfazer o maior número de ouvintes ou irritá-los?

Já no amplo mundo dos CDs existe oferta de todo o tipo de música, há a possibilidade de se ouvir 90% das obras dos principais compositores. Os catálogos das gravadoras são potencialmente sempre crescentes, podem ir se ampliando através dos anos (principalmente no caso da Naxos, que tem este objetivo). Hoje — se pudermos dispor de muito dinheiro e de um considerável limite de crédito em nosso cartão internacional –, podemos realizar qualquer desejo auditivo. Se você quiser a integral das Cantatas de Bach, por exemplo, basta pagar uns R$ 3.000,00 que logo chegarão via Sedex centenas de cantores berrando a sua casa.

A parte financeira é um tremendo problema para alguém que seja doido por música clássica. Os blogs como PQP Bach e seus congêneres resolvem parcialmente o caso. Nossa necessidade de ouvir diferentes gravações de uma obra que amamos é uma coisa que o ouvinte comum não entende. Uma vez que The White Album dos Beatles foi adquirido, o problema está resolvido. O Álbum Branco sempre será o melhor registro do Álbum Branco, creio. O resto são regravações de músicas isoladas. O mesmo não vale para uma sonata de Beethoven, até porque Beethoven não deixou quaisquer registros sonoros… Simplesmente temos uma grave compulsão por ouvir a sonata x por Pollini, Arrau, Freire, Uchida, Richter, Gould, Pires, Kissin, Gilels, etc. Amigos meus que só se interessam por literatura ficam pasmos ante a necessidade de se ouvir (ou possuir) várias gravações da mesma sonata. Para quê, perguntam eles? Eles não imaginam a nossa felicidade ao descobrirmos aquele pequeno detalhe, aquela sutil intenção do compositor que apenas Pollini ou outro regente ou solista soube mostrar. Eles não imaginam como podemos discordar alegremente elogiando ou detratando uma concepção que esteja muito perto ou longe daquilo que nosso ouvido considera o ideal.

A gente é assim, não adianta. A gente gosta é disso que transcrevo a seguir (transcrição ipsis litteris deste post, que é meu):

Numa noite fria do século XVIII, Bach escrevia a Chacona da Partita Nº 2 para violino solo. A música partia de sua imaginação (1) para o violino (2), no qual era testada, e daí para o papel (3). Anos depois, foi copiada (4) e publicada (5). Hoje, o violinista lê a Chacona (6) e de seus olhos passa o que está escrito ao violino (9) utilizando para isso seu controverso cérebro (7) e sua instável, ou não, técnica (8). Do violino, a música passa a um engenheiro de som (10) que a grava em um equipamento (11), para só então chegar ao ouvinte (12), que se desmilingúi àquilo.

Na variação entre todas essas passagens e comunicações, está a infindável diversidade das interpretações. Mas ainda faltam elos, como a qualidade do violino – e se seu som for divino ou de lata, e se ele for um instrumento original ou moderno? E o calibre do violinista? E seu senso de estilo e vivências? E o ouvinte? E… as verdadeiras intenções de Bach? Desejava ele que o pequeno violino tomasse as proporções gigantescas e polifônicas do órgão? Mesmo?

E depois tem gente que acha chata a música erudita…

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As 100 obras essenciais da música erudita segundo a Bravo! ou Vendendo ignorância

Sou um sujeito que está sempre rindo. Morro um pouco a cada dia, mas abstraio-me autenticamente do fato. Então, às vezes quero escrever uma coisa bem alegre ou criativa, esquecendo a Mônica Leal e a Pâmela, mas não dá. Me chamam de volta para que eu meta o pau.

A lista de cem obras essenciais da música erudita da revista Bravo! parece ter sido feita… Sei lá, quem sabe por ocorrências no Google? Proponho um acerto com você, caro leitor. Acho que você concorda que é fácil fazer listas e, quanto mais longas forem, mais fácil fica, certo? Se a lista contiver alguns absurdos, você diz que é questão de gosto e fim. Pois a Bravo! conseguiu fazer a lista errada, aquela que demonstra claramente que seus autores não têm a menor vivência na audição de obras do gênero erudito. Essa lista não é questão de gosto, é questão de polícia.

Moacy Cirne, neste post, já havia destruído a relação da e com a Bravo! utilizando como arma apenas uma obra ausente, as Vésperas da Virgem, de Claudio Monteverdi. Bastou. Trata-se de uma omissão que realmente desqualifica toda a lista. Tem razão a maior autoridade brasileira das histórias em quadrinhos, uma lista de uma centena sem as Vésperas é como deixar de fora Grande Sertão: Veredas ou Cidadão Kane em listas análogas de romances brasileiros ou cinematográfica. Mas não apenas o Moacy merece divertir-se, eu também! Analisarei uma poucas coisinhas… HÁ absurdos inacreditáveis na lista.

82º) Concerto para Oboé, de Mozart: é óbvio que o autor da lista não fez teste de bafômetro. Por favor, meu caro ouvinte, ouça este concerto e depois a Sinfonia Concertante para Violino e Viola, ou quaisquer dos Concertos para Piano de 23 a 27 do mesmo Mozart. Um bêbado, sem dúvida.

71º) Tocata e fuga em ré menor: aqui, tenho a primeira convulsão séria. Obra menor de Bach, o alcoolizado autor da lista deixou de FORA TODOS OS SEIS CONCERTOS DE BRANDENBURGO!!!

57º e 83º) A Morte e a Donzela e Trio Op. 100, de Schubert: são obras excelentes, mas esquecer o Quinteto de Schubert é embriaguez de cair deitado.

49º) Missa em Si Menor, de Bach: aqui, a piada foi a de colocá-la atrás da Sinfonia Fantástica de Berlioz. Não, a piada foi muito maior. Há certo consenso que a Missa seria uma espécie de Cidadão Kane da história da música, ou seja, que seria estaria no topo de todas as listas, mas o chumbeado autor coloca-a lá no meio…

11º) Dichterliebe, de Schumann: HAHAHAHAHA, os lieder de Schubert ficaram de fora — exceção feita aos Winterreise — e o Quarteto e Quinteto de Schumann também, mas essas cançõeszinhas de Schumann, simplesinhas e humildes, quase chegaram ao Top 10 do borracho.

4º) O cachaceiro botou a Sagração da Primavera, de Stravinski, em quarto lugar. Será necessário um alongamento muito severo para que alguém razoável admita que a obra esteja colocada no Top 10. Muuuuuito alongamento.

13º) Mais risadas, um único quarteto de cordas de Beethoven está na lista e não é o 130, nem o 132, nem a Grosse Fugue, Op. 133. Estranhamente o pinguço acertou bem onde não devia: no meio. O Op. 131 é belo com seus sete movimentos e um Andante avassalador, mas convenhamos.

84º) Questão de gosto: a Pastoral não poderia estar nesta lista. Mas o bebum a trouxe.

58º) O que faz Dvorak aqui? Hein, beberrão?

38º) Sinfonia “Inacabada”, de Schubert: essa entrou no carteiraço. E a Nona, conhecida como “A Grande”, biriteiro? Em que ela é menor? É por ter sido “Acabada”?

22º) Quadros de uma Exposição, de Mussorgski, é a vigésima-segunda obra essencial de todos os tempos do ébrio…

48º) Réquiem, de Verdi: é uma surpresa encontrá-lo aqui, mas já que o gambá o conhecia, por que deixou-o apenas em 48º? Merecia o Top 20!

95º) 4`33, de Cage: bem, se A Sagração estava em quarto pela importância histórica, esta obra de Cage deveria estar nas imediações, junto de algo de Stockhausen, um dos grandes ausentes da lista, pau d`água.

93º) Intermezzo, Op. 118, de Brahms: a imensa música de câmara — sonatas para violoncelo e clarinete, trios, septetos — de Brahms está inteiramente ausente da lista… Por quê, meu Deus, o esponja escolheu isto?

76º) Carmina Burana, de Orff: sem comentários. Viu, chupa-rolha?

É absolutamente necessário rir de uma publicação dessas, senão vêm as dores de cabeça, úlceras, etc. E citei apenas os primeiros absurdos que me ocorreram, nem explorei os despautérios cometidos ao barroco. Não me perguntem onde vai parar um jornalismo cultural que orienta assim os jovens e inexperientes. O cara que fez esta lista estava desnorteado, aturdido. Menos mal que o blog P.Q.P. Bach recebe 60.000 visitas por mês. E está à distância de um clique. E não custa nada.

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