“As personagens que James Stewart desempenhou em três filmes de Hitchcock — Janela Indiscreta, O homem que sabia demais e Um corpo que cai – são perseguidas por uma trupe de vilões dos filmes de Stanley Kubrick.
Por outras palavras: esta é uma curta-metragem com James Stewart e Jack Nicholson nos papéis principais. The Red Drum Getaway junta dois atores que nunca contracenaram e dois realizadores cujos universos jamais se cruzaram. Foi criado por uma agência francesa de criativos ligada à Publicidade, Gump.
Vejam-no -– se gostam deste tipo de experiências, vão adorar. É mais um tributo às maravilhas do digital e do mashup. Mashup, para quem não sabe, designa uma combinação de elementos diferentes e às vezes opostos — em vídeo ou em música — para criar uma obra derivada: os elementos que a constituem são familiares mas os resultados podem ser humorísticos, sarcásticos, críticos ou simplesmente bizarros.
Uma preciosidade criativa para cinéfilos, portanto.
Que Horas Ela Volta? entrou modestamente em cartaz, mas logo ganhou críticas entusiasmadas e o público apareceu. Lançado em 27 de agosto, o filme dobrou o circuito de exibidores e público em poucos dias. O número de ingressos vendidos por semana subiu 116% em um mês e o filme já está em terceiro lugar entre os mais vistos no Brasil em 2016, acima de produções como Missão Impossível – Nação Secreta e outros blockbusters.
A situação do brasileiro de classe média que vê Que horas ela volta? é bastante peculiar, pois o filme é um retrato seu na intimidade com seus serviçais. De certa forma, o filme acusa sua plateia. Por exemplo, hoje, eu não tenho empregada doméstica, porém, ver o filme foi como observar o mundo através dos olhos da velha Inah que morava com minha mãe. E minha familiaridade com o tratamento que Val recebe foi acrescida pela lembrança dos péssimos costumes de algumas pessoas com as quais convivi.
A história é simples e brasileiríssima. Depois de deixar a filha com a avó no interior de Pernambuco e passar 13 anos como babá de um menino de classe média em São Paulo, a empregada Val vive certa estabilidade financeira. Manda dinheiro para a família, orgulha-se do que tem em seu pequeno quarto nos fundos da casa, junta algum, mas convive com a culpa de não ter criado sua filha Jéssica.
Neste período, Val tornou-se uma segunda mãe para o menino Fabinho e também a administradora da casa dos patrões. Porém, às vésperas do vestibular do menino, ela recebe um telefonema da filha. Ela quer apoio para vir a São Paulo também fazer vestibular.
Aquilo parece uma segunda chance para Val. Afinal, ela finalmente poderá ser uma mãe para sua filha.
Val fala com os patrões e eles aceitam hospedar a menina junto com a mãe no quartinho. A família paulista está disposta a receber bem a menina por um tempo, porém, como ela não segue as regras de comportamento esperadas para uma filha de serviçal, a situação se complica. A menina é livre demais, inteligente demais, participante demais, não se submete com naturalidade às regras da casa.
Esses conflitos farão com que Val precise finalmente se movimentar. Regina Casé faz o papel de Val. Sua interpretação é notável, arrasadora mesmo, e saímos do cinema com a certeza de que ela passou a vida inteira trabalhando como empregada daquela casa.
É uma aula de Brasil, uma aula cheia de detalhes brilhantes. A Elena chamou atenção para a cena logo após o resultado do vestibular. A mãe reclama que o filho só aceita ser abraçado por Val, mas quando a situação subitamente se inverte — contar o motivo da inversão seria contar o filme –, o filho a abraça e é ela quem fica indiferente ao filho. O Idelber chamou a atenção para a cena da festa. Val serve quitutes sem que ninguém a olhe. Ela não existe. A cena é toda filmada do ponto de vista da empregada e é maravilhosa.
Mas o símbolo principal e visível do filme é a mítica piscina da classe média. Ali, nenhum serviçal que conheça seu lugar entra. Tal veto é uma cena chocante, notavelmente encenada por Muylaert.
Enéas de Souza disse que o filme é um pouco dilmista. Verdade. Ele se utiliza de alguns sonhos do período lulista, como a ascensão da classe C. O tema de fundo é o do preconceito de classe, essa instituição desumanizadora brasileira. A simpatia que sentimos por Val, a que nasceu sabendo seu lugar na sociedade, parece nascer menos dela e do fato de ser engraçada e mais do comportamento superior e asqueroso dos patrões. Causa-nos desconforto ver as mesquinharias típicas da classe média — como separar partes da casa para si e alimentos mais simples para os empregados.
O filme é discretamente libertário. Talvez boa parte de seu brilhantismo venha do desencanto. Não se sabe o futuro da filha Jéssica, mas a cena em que Val entra na piscina quase vazia é muito clara. Val entrou lá, comemorou e até deu uma tímida imitadinha no Gene Kelly de Cantando na Chuva. Mas a diretora e roteirista Muylaert fez com que ela entrasse lá à noite, de roupa, escondida, com a água pelas canelas. Motivo? Ora, a piscina acabara de ser limpa pela desconfiança da existência de “ratos”.
Deixo aqui no blog um registro do melhor momento do dia de ontem. A edição especial de O Divã e a Tela, dedicada aos 50 anos do livro de Enéas de Souza, Trajetórias do Cinema Moderno, foi uma bela lição de cinema. Enéas e seu parceiro Robson Pereira receberam a visita de Ivonete Pinto e o trio deu um show de informações, contextualizações e interpretações acerca de Cantando na Chuva, um filme que eu, assim como muita gente da plateia, considerava menor.
A escolha de Cantando em uma comemoração dessas ficou inteiramente justificada. Não vou me alongar procurando repetir as falas do trio — o fato é que saí de lá muito feliz e com alguns centímetros a mais. Da altura de Cyd Charisse de salto alto, por assim dizer, já que temos os mesmos 1,71m.
O filme foi girado na mão de cada um dos palestrantes de forma a que o víssemos sob várias e novas perspectivas. Dizem que isso é cultura. Só me resta agradecer à generosidade de gente que faz isso há dez anos sem ganhar nada que não sejam as nossas caras e palavras de admiração.
Enéas de Souza é tão multifacetado que precisamos alertar que esta entrevista não é sobre economia, nem filosofia, nem psicanálise. É sobre cinema. Porém, todas as faces que formam este grande humanista são inseparáveis. Suas críticas cinematográficas jamais deixam de lado o economista, filósofo e psicanalista. Então, o leitor deve reformular o início deste parágrafo. O cinema é apenas o ponto de partida.
Conversar com Enéas de Souza faz o tempo passar rápido. Muito culto, de trato fácil e gentilíssimo, ele fez com que nosso encontro ao final da tarde de quarta-feira fluísse de tal forma que o diálogo foi finalizado, sem que notássemos, em plena escuridão. O pretexto era o cinquentenário de seu livro Trajetórias do Cinema Moderno, publicado pela primeira vez em 1965 e que recebeu várias edições, revisões e ampliações nestas cinco décadas.
Eu possuía a edição original do livro. Enéas viu meu pequeno volume, foi à biblioteca e me presenteou com a última edição. Ela tem o dobro do tamanho do original.
Os leitores do Sul21, acostumados ao colunista Enéas de Souza, talvez estranhem o que seria um lado B do grande economista. Tentei preservar o tom coloquial que mantivemos na sala cheia de livros e DVDs do apartamento do entrevistado.
Sul21 — Como surgiu o livro Trajetórias do Cinema Moderno?
Enéas de Souza — De tanto ver filmes. Na época era assim. Passava um filme. Se tu não o visses duas, três, dez vezes na primeira semana, talvez nunca mais o visses. Às vezes, dois ou três anos depois, vinha uma reprise, mas não era garantido. É curioso, há muitos autores que eu adorava, mas que não estão nesse livro porque eu não tinha condições de revê-los. Hitchcock é um exemplo. Quando o Ruy Carlos Ostermann me convidou pra escrever o livro, eu tinha na cabeça alguns filmes que tinha visto recentemente. Outros não. Por exemplo: o cinema americano – que é uma filmografia de que gosto bastante — não tinha. Como é que eu ia escrever sobre Raoul Walsh, se não conseguia ver muitas vezes seus filmes? Então, era muito difícil escrever alguma coisa. Claro, a grande novidade que o livro possui é a de falar longamente sobre o cinema brasileiro. Na época, escrevia-se muito pouco a respeito. Por exemplo, sobre o Joaquim Pedro de Andrade, que eu gosto muito, não pude escrever porque tinha visto só uma ou duas vezes. Tudo o que é citado no livro veio de memória. Hoje, tu sentas e vê vinte vezes o mesmo filme em todos os detalhes. Na época não dava.
Sul21 – Aos 27 anos tu escreveste o Trajetórias. Eu queria que tu falasses um pouco da tua formação. Me conta como chegaste a ele.
Enéas de Souza — Na verdade eu sempre vi muito cinema, desde pequeno. Minha mãe me levava no cinema quando eu era guri. Meu pai gostava bastante de cinema também. A gente ia junto. Naquela época, as famílias iam juntas ao cinema. Meu pai gostava muito de música, adorava Chopin. Eu lembro que tinha um filme, À noite sonhamos... É uma cinebiografia de Chopin. Acho que o vimos um monte de vezes, porque ele nos levava sempre. A minha avó tocava no cinema mudo, era pianista. Então havia uma cultura cinematográfica na minha família. E eu era um grande vagabundo. Eu não queria fazer grande coisa. E cheguei à conclusão que seria uma boa ideia fazer Filosofia, pois a partir dela poderia pensar tudo, até o cinema. Aí fiz vestibular, passei e logo vi que era mesmo o melhor para mim. A primeira coisa que me inquietou muito foi o fato de que, na época, se dizia que o único pensar era a Filosofia. E eu combatia esta ideia. A obra de arte pensa, a música pensa e, obviamente, o cinema também pensa. Na época, muita gente dizia que cinema não era arte, por incrível que pareça. Foi aí que eu comecei a vincular meu passado histórico de ver cinema, a minha capacidade de poder de interpretar o cinema, à filosofia. Isso me possibilitou ver o cinema de uma forma um pouco diferente. O cinema era uma forma de pensar.
Sul21 — E a crítica?
Enéas de Souza — A critica de cinema em Porto Alegre da minha geração tinha uma presença muito forte nas publicações e na cultura do RS. Tem uma coisa importante nessa realidade: nós, no Brasil, tanto os cineastas quanto os críticos, viemos da literatura. Essa passagem da literatura para o cinema se fez por uma verdadeira pedagogia prática da cinematografia. A gente discutia e debatia muito. A Rua da Praia era um grande teatro de discussão, era a nossa ágora grega de Porto Alegre. A gente discutia no Matheus e na frente do relógio, na esquina da Ladeira com a Rua da Praia. O cinema tinha horários fixos – 14, 16, 18, 20 e 22h – era fácil de se encontrar. Saíamos do cinema e pronto. Eram 6, 7 ou 8 estreias na semana. Nós víamos todos os filmes. Então existia um ambiente cultural muito forte em termos cinematográficos. O Hélio Nascimento escrevia diariamente em jornais, o P. F. Gastal também. Eu escrevia na Revista do Globo. O Gastal abria espaço para nós escrevermos no Correio do Povo e depois na Folha da Manhã. Os outros eram o Goida, o Zé Onofre e outros. A gente vivia de cinema. Era um amor fantástico.
Sul21 – E a economia, como ela entrou na tua vida?
Enéas de Souza — Bem, isso foi muito depois. Na verdade esse período cinematográfico entra 1964 adentro. A derrota das forças políticas de esquerda e a ditadura transformaram a crônica cinematográfica. Ficou muito difícil escrever. Tínhamos muitos filmes que refletiam o movimento mundial de repensar o capitalismo. Descrever isso era um problema. Para tentar entender o que aconteceu com o Brasil, eu fui fazer Economia. Quando eu estava na Filosofia, comecei a ler textos do Celso Furtado. Foi ele quem me abriu as portas desta área. Então eu fiz Economia aqui na UFRGS e depois na Unicamp. Lá na Unicamp eu peguei a ‘’nata’’ dos economistas da época: a Maria da Conceição Tavares, o Beluzzo, o Antonio Barros de Castro e uma série de outros economistas importantes. O próprio Serra foi meu professor. A Unicamp era uma universidade que aproximava alunos e professores, sobretudo quando os professores moravam em Campinas. A gente ia na casa deles. Eu nunca estudei com tanto entusiasmo como nessa época. Fui para Campinas em 77. Em 79, voltei pra cá.
Sul21 – E a psicanálise?
Enéas de Souza — A psicanálise vem ainda depois. A questão da subjetividade não era incorporada nessas análises de economia. Mas me interessavam. Qual era a natureza do sujeito? E a sua expressão? Nada mais próximo da psicanálise do que a expressão, a palavra, o desejo… Todas essas coisas se misturaram, mas eu continuava sempre atento ao cinema, apesar de ter parado um tempo de escrever sobre ele.
Sul21 – Mas, com tantas atividades, a psicanálise não veio como diletantismo, não chegaste lá como autodidata?
Enéas de Souza — Essa é uma história muito curiosa. Eu fui pro Rio de Janeiro porque fora escolhido como diretor da Finep, financiadora de estudos e projetos, que é um órgão que apoia as universidades, a pesquisa universitária e também empresas que fazem renovação em pesquisas tecnológicas. Eu me interessava pela psicanálise, mas não tinha muito tempo nem sequer de ler. Acontece que eu passava tanto tempo em aeroportos, que comecei a ler os livros de Lacan. Quando fui a Paris nos anos 70, conheci Lacan. Eu era um cara da filosofia que gostava dele. Os outros meus colegas o achavam abominável. Assisti as aulas dele por um determinado período lá e achei o cara espetacular, de ideias interessantíssimas. Este amálgama todo me suscitou uma série de questões. Creio que a pessoa que se dedica à filosofia, deve se preocupar com todas as coisas. O movimento em direção à psicanálise e à política foi natural. Eu fui Secretário de Tecnologia, Sub-secretário de Desenvolvimento, mas, olha, te garanto que o cinema foi a verdadeira educação, uma possibilidade imensa de refletir sobre os valores do mundo, sobre as pessoas, sobre as relações humanas, sobre tudo.
Sul21 – Qual é a diferença do teu entusiasmo com cinema nos anos 60 e o que veio depois?
Enéas de Souza — Olha, o cinema tem um olhar e um pensamento muito fortes sobre a realidade contemporânea. Nunca perdi meu entusiasmo, porque através do cinema tu consegues enxergar as tendências que a sociedade está desenvolvendo, o nível das relações humanas, o nível das relações sociais e seus valores, de como eles vão se desenvolvendo. Digamos que o entusiasmo foi variando mas nunca diminuiu. Eu tive uma formação absolutamente singular, porque a minha formação foi Filosofia, mas aí o que é que eu fazia: eu começava a me preocupar sobre o que quer dizer o filme. Lia sempre o Cahiers du Cinéma. Lembro de um filme que me motivou uma grande reflexão, que foi A Marca da Maldade, do Orson Welles. Na revista tinha uma grande quantidade de trabalhos a respeito do filme, aquilo foi extraordinário. Na época em que nós começamos a discutir o cinema, acontecia o seguinte: os filmes levavam seis meses para chegar aqui. Então eu via o filme e eu lia o Cahiers depois. Lendo o Bazin e o Cahiers era inevitável criar uma metodologia de análise. O Cahiers foi a grande fonte. O Bazin foi um critico excepcional, ele tinha uma formação existencialista muito forte e a revista também tinha outros autores, que depois se tornaram grandes gênios do cinema, como Godard, Truffaut, Rivette, etc. Além disso, tinha um companheiro de geração um pouco mais velho que eles, que era o Resnais. Logo saiu o Hiroshima mon amour, que foi um sucesso. Eu lembro que o vi no cinema Ópera, entre a rua Uruguai e a Ladeira. O Hiroshima foi uma coisa de imenso impacto. Tinha uma utilização muito forte da palavra, com aqueles versos recitativos. Para tu imaginares o impacto disso, tens que considerar o contexto: havia filmes de detetive, de faroeste, tudo com muita ação e de repente aparece um cinema altamente poético, com as pessoas verbalizando versos líricos. Nós passamos dias discutindo Hiroshima.
Sul21 – O cinema é ideal como material de discussão. Por exemplo: uma pessoa média leva mais ou menos uma semana pra ler um livro. Um filme tem uma duração determinada e bem mais curta. É mais fácil de eu conhecer um filme em comum contigo do que um livro.
Enéas de Souza — Esta é outra vantagem, claro, a possibilidade de tu veres um filme em duas horas e de teus colegas terem visto mais ou menos ao mesmo tempo. Vimos o Hiroshima, saímos para a rua e havia pessoas discutindo a respeito. Agora, o filme que mais rendeu discussões e debates foi O ano passado em Marienbad, que era geométrico, matemático, cheio de dificuldades. Eu me lembro que, quando terminou o filme, eram mais de 50 pessoas no meio da rua em pequenos grupos. Os mais velhos estavam furiosos dizendo que aquilo era um absurdo. Nós, jovens, entendendo ou não o filme, adoramos.
Sul21 – Tu disseste uma vez que um filme exige muito mais que um romance ou artes plásticas.
Enéas de Souza — Provavelmente, o que eu queria dizer é que o filme tem múltiplas dimensões. Em primeiro lugar, ele é imagem visual. Para tu leres uma imagem visual, para decodificá-la, entender o que está escrito, tu tens que pegar muitos aspectos. A direção, as escolhas, a encenação, a montagem, os cortes. Então é bem complicado. Um filme é roteiro, encenação, filmagem e montagem. Além disso é sonoro, é imagem sonora. E no som tu tens o ruído, as vozes e a música. Ora, para tu captares tudo isso em movimento, a dificuldade é muito grande. Quer dizer: as pessoas muitas vezes se surpreendem quando eu digo que vi dez vezes um filme. Mas como tu viste dez vezes? Não encheu o saco? Eu digo que não, porque eu estou vendo outras coisas no filme. Ou seja, um filme é tão complexo que tu tens que ver várias vezes para entender cada uma de suas dimensões. A apreensão e a inteligibilidade dos filmes são difíceis de assimilar porque o filme passa rapidamente e muitas vezes tu não consegues captar tudo. Quando tu vês pela quinta ou sexta vez, já sabes o que os caras falaram e vês mais diretamente o filme. Então, o que eu estava querendo dizer com isso é que há muitos itens envolvidos, o que distingue o cinema da literatura e das artes plásticas.
Sul21 – O Robson Pereira diz que tu és um sujeito muito musical, mas, nas tuas análises, a música ocupa muito pouco espaço.
Enéas de Souza — Eu sou muito musical na generosidade dele. Voltando ao que eu disse antes: o cinema é imagem visual e imagem sonora, isso tudo ao mesmo tempo. Ele forma um bloco de sensações. Há, no entanto, uma prioridade sensível, que é a imagem visual. O que tu vês é o que te toca mais e a música entra sobretudo para acentuar ou dar o clima. Eu gosto muito de música, mas não tenho capacidade de perceber a música em todos os seus sentidos.
Sul21 – Um critico precisa ver quantas vezes um filme?
Enéas de Souza — Bom, aí é que está. Se tu és um crítico diário, terás uma dificuldade muito grande, porque tu vês uma vez e tem que escrever. O texto será quase um esboço de uma conceitualização. Tu estás no primeiro impacto, o qual é sempre muito forte. Por outro lado, tu não viste tudo. O Sartre dizia uma coisa extraordinária: ‘’A percepção é global e ao mesmo tempo individualizada”. Ou seja, nós apreendemos a cena como um todo e fazemos análises pontuais, só que essas análises pontuais são infinitas, porque vamos discriminando cada questão da imagem. Cada ponto da imagem tem centenas de perspectivas. Quando tu é um critico diário, tu tens somente a ideia principal do filme.
Sul21 – A crítica atual é muito baseada na sinopse, não?
Enéas de Souza — Sim, hoje, os caras descrevem o filme através de sua sinopse. Quanto tu vês um filme, vês o pensamento do autor na forma de imagem sobre determinada ideia, que pode ser a vingança, a saudade, a luta, a morte, o ódio, enfim, todas as temáticas humanas e ontológicas. Cada um fará isso de uma forma diferente. É importante referir-se sobre como essas coisas são mostradas. Como é que as ideias foram desenhadas, figuradas, expressas, encenadas, montadas. Para mim, montagem não é tu cortares o filme, pra mim ela já começa quando tu fazes a escolha do ângulo. A montagem é uma seleção. Eu seleciono o teu rosto, seleciono um objeto. O discurso narrativo em imagem e o som trazem a ideia. Um diretor botou uns ovos na cena… Bem, mas o que significam os ovos? E ele respondeu: não sei, botei porque senti necessidade de colocá-los ali naquela cena. E o que é a critica? A critica é tu desmontares essa máquina e ir além do que o cara pensou racionalmente, porque ele fez aquilo num impulso artístico. A grande virtude do crítico para o artista, é a de iluminar aquelas zonas das quais o artista não tem plena consciência de seus motivos. A mesma função tem o crítico para os espectadores. Tu vais ver um filme, tu sentiste o filme. Tu gostaste, não gostaste, não importa. Mas tu sentiste o filme. Mas tu não sabes muitas vezes teus motivos e o crítico pode te ajudar a dizer: olha, eu gostei por causa disso.
Sul21 – Tu gostas muito de cinema francês, não?
Enéas de Souza — Eu gosto do cinema que acho de boa qualidade. Eu não tenho uma prioridade nacional. Obviamente, eu gosto do cinema brasileiro. Nosso cinema tem nossa maneira de sentir o mundo, traz nossos valores. Por exemplo, um filme como Tatuagem é tremendamente sarcástico, extremamente zombeteiro, debochado e é extraordinário como cinema. Claro, provavelmente ele me toca desse jeito porque sou brasileiro, mas não quer dizer que não seja bom. É excelente. Sobre o cinema francês: Godard me toca muito. É um artista que está permanentemente refazendo ou ampliando o que fez. Seu último filme, Histórias do Cinema, me deixou embasbacado. O filme é feito em vídeo e nele é repensada toda a história do cinema, assim como a história do século XX. São oito divisões onde ele faz uma revisão do cinema e diz que o cinema é ressurreição. Há um momento extraordinário quando ele mostra o filme de King Vidor Duelo ao Sol. Este filme tem uma cena final em que é mostrada a incompatibilidade total dos dois personagens, que ao mesmo tempo se amam e se odeiam. E eles morrem amando-se. Godard pega a cena e corta e corta. Então a cena dá saltos, numa imagem cinematograficamente diferente da que criou Vidor. E, ao mesmo tempo, ele acrescenta uma cor mais vermelha, de paixão, de sangue. Há uma ressurreição na imagem que é reinventada.
Sul21 – Tu falaste no cinema brasileiro. O que tu tens a dizer a respeito desses filmes nordestinos que vieram agora e que de certa forma, na minha opinião, contrapõem-se ao estilo da Globo Filmes. Me fala um pouco sobre isso.
Enéas de Souza — É, eu acho que o cinema pernambucano está em grande movimentação e tem grande presença no Brasil. Eles têm a capacidade de fazer filmes diferentes, filmes distintos, que mostram grande pujança. Por exemplo, o caso do filme Som ao Redor. O filme é absolutamente extraordinário. Ele mostra a transformação da sociedade pernambucana a partir de uma determinada situação numa rua do Recife onde a expansão do capital imobiliário é fortíssima. E aquela rua começa a ter problema de assaltos. Os caras não são donos do capital imobiliário, estão a reboque do mesmo. E, na verdade, são as pessoas que vieram do engenho. O filme vai fazendo a desmontagem da gênese pernambucana do engenho. É o que Gilberto Freyre escreveu. E tu vais moldando a compreensão do que é Pernambuco. E isso se contrapõe à Globo no seguinte sentido: a Globo tenta uma estética, vamos dizer assim, bonita. Ali o Brasil é um país maravilhoso, cheio de pequenos melodramas, mas no fim todos somos felizes, somos todos vencedores.
Sul21 – Tu viste ‘’Que horas ela volta?’’
Enéas de Souza — Ah, pois é. Tem tudo a ver. Vi sim e gostei bastante. Não gostei da história, que é muito ‘’dilmista’’. Ela defende a ideologia que se aplicou recentemente: a de que os pobres que melhoraram de vida são classe média. Isso é uma mentira. Não existe isso. Agora, o trabalho da diretora é espetacular, tanto pictórica quanto cinematograficamente. Mas a história não me tocou de jeito nenhum. Gostei do trabalho de direção. A produção também é complicada. Por exemplo, os quartos: tu nunca vês as coisas completas, é tudo fragmentado. Qual é o tamanho dessa sala? Eu posso fazê-la pequena ou grande, eu posso fechar o plano, abrir o plano. Os personagens dizem suíte, mas a gente não vê a suíte.
Sul21 – Tu vais ao cinema ou vês filmes preferencialmente em casa? Como é que tu te relaciona com o DVD, o Netflix, etc.
Enéas de Souza — Para mim, cinema é tela grande e sala escura. Esse é o princípio geral. Agora, eu não tenho nenhum problema de ver em casa. Às vezes tu tens que ver em casa porque tu não tens condições de ir ao cinema ou o filme não chegou ao cinema. É claro que tu tens que ter uma capacidade de imaginação além do filme para sentir o impacto do trabalho. Me lembro que a primeira vez que eu vi em DVD aquele filme do Kubrick, 2001: Uma Odisseia no Espaço… Lembrava muito bem dos sentimentos que eu tive vendo aquele inicio com a música de Richard Strauss e todo aquele balé. Mas quando eu o vi na televisão, fiquei demolido. Felizmente eu percebi que era por causa da tela, não por causa do filme. Então tu tens que recompor o filme, pensar em qual o impacto que o diretor quis dar. Uma vez, eu tive uma discussão com o Goida. Ele era hostil aos VHS naquela época. Porque, além de tudo, o VHS deformava a cor e eu dizia para ele que preferia VHS – em que pelo menos tinha um vislumbre do que era o filme. Tem uma história que eu acho fantástica. Um escritor adorava uma cena de um filme de Fritz Lang. Aí foi ao cinema e a cena não existia. Ou seja, ele construiu outro filme. Nós reconstruímos filmes. As imagens vão ficando na cabeça da gente e… Assim como tu reconstróis o teu passado, tu reconstróis também os filmes que não consegues rever, que tu não viste há muito tempo. Quando ele escreveu isso, eu já tinha meio que percebido, mas não tinha conseguido transformar em palavras. Depois que eu li, pensei: pô, é isso mesmo! Então, é melhor tu teres um filme em DVD do que não teres. Mesmo antigamente, eu preferia ver o VHS do que ficar imaginando o filme. É mais fácil tu imaginares como o filme era a partir do esboço que aparece na tela do que simplesmente imaginar. A memória vai deformando. São raras as pessoas que têm essa memória com precisão.
Sul21 – A primeira vez que eu vi o filme ‘’O Cavalo de Turim’’ foi em DVD. Achei um filme menor. Depois quando eu vi lá na sala P.F. Gastal mudou tudo. Ele tinha todo um ritmo que me escapara.
Enéas de Souza — É, claro. E acontece o contrário, se tu viste muitas vezes o filme no cinema e depois vês novamente em DVD, é necessário recompor aquela imagem geral. Mas eu acho isso que é um problema da nossa geração, porque essa nova geração não vê muitos filmes em cinema, eles veem ou em DVD ou baixam o filme. Por exemplo: tu pegas um celular. Claro, ali tem a imagem, mas o tamanho da imagem é fundamental no cinema. Mesmo que o celular reproduzisse proporcionalmente o tamanho da tela, o impacto daquela fração do espaço da imagem em ti é diferente quando tu vês num celular ou quando tu vês num cinema. Além do mais tem a coisa do ritual. As pessoas mais velhas têm essa experiência. Uma cena de sexo, uma cena de guerra… Há emoções que tu só sentes literalmente quando estás no cinema. E também há a emoção de quem está a teu lado. Ela se transmite. O cinema é outra realidade, outro mundo.
Sul21 – Posso te fazer uma sacanagem? Se tu fosses para uma ilha deserta, o que tu levarias? Eu serei um carcereiro bonzinho, vou te dar uma sala de cinema particular e tu vais poder levar bastante coisa.
Enéas de Souza — É, isso é complicado. Com direito a me arrepender, eu levaria… Bem, levaria filmes de vários autores. Por exemplo, o Hitchcock tem vários filmes maravilhosos, mas pra mim o Vertigo [Um Corpo que Cai] é excepcional. Eu levaria uns quatro ou cinco dele, mas, se tivesse que levar um, levaria Vertigo. Eu levaria Hiroshima, mon amour. Talvez a nova geração não goste muito dele, mas para minha geração foi uma marca extraordinária. É um pensamento de uma realidade que eu vivi e foi maravilhosa. Eu levaria. Acho que, levaria algum filme do Tarantino. Seja Django ou Kill Bill, que acho um belíssimo filme. Do cinema brasileiro eu levaria o Glauber, Terra em Transe, um filme fundamental para a minha geração. É o único filme do Glauber de que eu gosto muito, porque marca exatamente o que se passou na época do golpe. Todo aquele movimento, aquela pouca inteligibilidade, aquele não entendimento entre os diversos grupos sociais. E, ao mesmo tempo, o fracasso das relações humanas, a dispersão social, enfim, esse filme é extraordinário. Eu levaria Histórias do Cinema, de Godard. Também A Estrada Perdida, de David Lynch. Um que tu deves amar é Don Giovanni, de Joseph Losey, baseado na ópera de Mozart, um filmaço.
Sul21 – E O Criado?
Enéas de Souza — É mesmo! Eu vi esse filme em Paris e logo fui visitar a Inglaterra. Casualmente, entrei num restaurante e percebi como é que funcionavam as coisas na Inglaterra. Um senhor chamou um garçom para pedir um cigarro, deu dinheiro para o cara. Nesse restaurante tinha um quiosque, mas o garçom demorou a entregar a encomenda. Eu estava bem na frente no comprador e consegui ver todos os gestos do cara. Depois de uns 10, 15 minutos, ele começou a procurar o garçom com os olhos e este, que estava longe, percebeu. Então ele se apressou, foi ao quiosque, comprou o cigarro e veio trazer para o cara que estava inquieto. Ele chegou perto do comprador, fez um gesto super gentil, da mais alta classe, abriu uma caixa, botou um cigarro para fora e disse uma frase gentilíssima. É o filme do Losey. O garçom, na verdade, é quem manda e organiza as coisas, se quiser. Ou seja, eu tinha visto o filme ontem e fui para a Inglaterra. Quando cheguei lá, o filme se repetiu.
Sul21 – Voltemos à lista.
Enéas de Souza — Bem, Bergman. Sarabanda é um filme notável. Persona eu acho muito bom. Para dizer a verdade, eu gosto de quase tudo do Bergman. Um grande filme é O Circo, que é uma das obras que mais me impactaram. Mas levaria Persona. E quase todos os outros. [risadas] Eisenstein, apesar de eu achar que é um cinema muito elitista, também é um cinema com um trabalho formal absolutamente notável. Ele é brilhante. Eu levaria também algo do Howard Hawks. O cinema americano tem um lado negro, a questão da justiça. Como é que se impõe a lei. O Tarantino pega um pouco disso. Django é um exemplo. Este filme pergunta: como é que se instaura a lei numa terra sem lei, onde a violência e a prepotência mandam.
Sul21 – Nem entramos na França e na Itália…
Enéas de Souza — Alguns filmes do Truffaut… Eu acho Jules et Jim admirável. Visconti… Morte em Veneza é genial. Eu vi o “making of” dele. São pequenos detalhes que transformam o filme, tornando-o brilhante. Do Fellini… A Doce Vida e Oito e Meio são filmes que eu certamente levaria.
Sul21 – Meu deus, e Antonioni?
Enéas de Souza — Eu sou vidrado no Antonioni. A Aventura é um dos maiores filmes que vi. A cena final entre a Monica Vicci e o personagem masculino é brilhantérrima, porque o cinema se faz com pequenos gestos e ali são os gestos que vão construindo a narrativa. Tu vais sendo envolvido por aquela dimensão sensível que te emociona profundamente. Aquela cena final é brilhante. Gosto muito de A Noite e de O Eclipse. Antonioni foi um tremendo cineasta. Gosto também do Bertolucci. Os Sonhadores é muito interessante e Beleza Roubada é muito bom também. A relação de um cara que tem AIDS e de uma menina que busca saber a sua origem. Manoel de Oliveira… Acho esplêndido o Cinema Falado. A carta também. Mas, voltando para o Brasil… Gosto do João Moreira Sales, do Eduardo Coutinho. O Moreira Sales tem dois filmes extraordinários, que é Nelson Freire e Santiago, que é um filmaço. Do Coutinho, o Edificio Master é muito bom. Eu levaria este ou o Cabra, que também é muito bom. A capacidade que o Coutinho tem de pensar o cinema, as relações entre diretor e entrevistado, é impressionante. E como ele tem empatia e, ao mesmo tempo, uma certa distância para com os personagens. O Últimas Conversas tem aquela cena final com a menina. De repente brota alguma coisa entre os dois. O Coutinho estava enfadado daqueles adolescentes e a menina altera completamente o contexto. Ela é altamente espontânea e o final é brilhante, porque ele vai se despedir dela com um aperto de mão e ela bate na palma da mão dele como no esporte. Aquilo é completamente imprevisto. Surge dali uma dimensão poética emocional lúdica, algo surpreendente e eles seguem. Ele tem essa capacidade de captar um instante e aproveitar isso. Então eu gosto muito dessa cena, sobretudo.
Sul21 – O que faz o crítico em meio a toda esta opulência cinematográfica – falo de qualidade e quantidade.
Enéas de Souza — A dificuldade do critico do cinema é que tu não consegues ver tudo de todas as filmografias. Por exemplo: sei muito pouco do cinema africano, do cinema asiático idem. E mesmo do cinema latino-americano! Eu me lembro da primeira vez que fui à França, no final dos anos 60. Eu vi um monte de filmes que eu jamais tinha ideia que existiam, era o cinema do leste europeu. Havia filmes fantásticos dos quais eu não tinha nenhum conhecimento. Tem uma coisa que o Borges diz que acho curiosa e que, bem, quem sabe?: “Provavelmente o grande escritor do século XX seja alguém do meio da África que nós nem sabemos quem é e que refletiu melhor o século XX do que nós fizemos até hoje”. Hoje eu vejo alguns filmes notáveis e penso se não serão eles os grandes filmes que vão marcar nossa época.
Sul21 – As mudanças de suporte podem criar outros clássicos com rapidez nunca vista.
Enéas de Souza — O cinema é tecnologia e essas transformações tecnológicas mudam completamente a realidade do cinema. Hoje há essa capacidade de ver cinema no youtube, no celular, é tudo diferente. Há uma dispersão na reprodução. A questão do cinema é MUITO mais do que a encenação, é o que significam as imagens. Nós estamos em uma época muito complexa – e que ficará ainda mais dispersa e complicada – e é difícil imaginar o que vai atravessar nossa época. Lembro que achava alguns filmes maravilhosos, mas, com o passar do tempo, eles foram esquecidos, não sei se para sempre.
Nós — eu e minha querida Elena — pegamos alguns DVDs emprestados da Liana Bozzetto e do Alexandre Constantino. São 4 filmes clássicos: O homem que sabia demais, versão de 1956 (que se chama O homem que sabia demasiado em Portugal); A sombra de uma dúvida, de 1942 (Mentira!,em Portugal) –, ambos de Alfred Hitchcock; Doutor Jivago (1965), de David Lean e O Sétimo Selo (1957), de Ingmar Bergman. Não vimos ainda o Bergman. De todos, só não tinha visto A sombra de uma dúvida.
O homem que sabia demais foi filmado duas vezes por Hitchcock. A primeira versão, de 1934, não tinha saído a contento, na opinião do diretor. É curioso como Hitch foca-se no drama pessoal que quer contar, deixando de lado o contexto. É o que interessa a ele. Ele quer que nos preocupemos com o drama do casal norte-americano formado por Doris Day e James Stewart. Não está lá para discutir política internacional ou deitar teses. Claro, a parte política do filme é tensa, mas ela pouco importa na criação do desejado clima de suspense. Então, sabe-se que alguém quer matar o primeiro ministro, que os terroristas têm caras de bonzinhos mas que podem se tornar terríveis para quem se interponha a seus intentos, que o plano era secretíssimo e que o homem comum, Dr. McKenna (Stewart), casualmente soube do que não deveria saber. O velho Hitch usa desbragadamente o artificialismo e a inverossimilhança, mas traz para nós todo o suspense que apreciamos.
Hitch costumava usar romances de segunda linha como base de seus roteiros. Era um artesão muito específico: estava ali para contar bem uma história que mantivesse o espectador ligado durante aqueles miraculosos 90 minutos. E consegue.
A sombra de uma dúvida é um filme de suspense em que os fatos parecem ainda mais complicados de se acreditar. Se não fosse aquele encantado e incondicional amor de irmã, como é que Joseph Cotten obteria morar com a família? E o banana do investigador? E aquele marido abilolado? Como é que ele não via o drama de sua filha Charlie e o entra-e-sai de detetives? Só que tudo isso é necessário para criar a situação.
Cotten está maravilhosamente canastrão no papel principal. Foi um ator de rara inteligência e sensibilidade. Não consigo visualizar um diretor moderno pedindo uma atuação daquele gênero a Cotten, ator que recém saíra do dito melhor filme de todos os tempos, Cidadão Kane (1941), e de Soberba (1942), ambos de Orson Welles. Cotten trabalhava para os filmes, não para si. Ele está perfeito no papel complicado de assassino bonzinho.
E chegamos a Doutor Jivago. Vimos os primeiros 120 minutos, veremos o restante amanhã. Por enquanto, é uma tragédia contida, mas acho que os elementos para um dramalhão já estão em seus lugares. Lara (a belíssima Julie Christie, minha atriz preferida, no papel de Lara Antipova) tem um filho com, provavelmente, Victor Komarovsky (Rod Steiger), que a estuprou na época em que ela, com 17 anos, namorava o jovem romântico e revolucionário Pasha Strelnikov (Tom Courtenay). Por outro lado, Omar Sharif (Yuri Jivago) é casado com a “aristocrata legal que vai sofrer”, Tonya (Geraldine Chaplin). Então a revolução bolchevique bagunça tudo e Lara acaba trabalhando com Jivago num hospital do interior. Lá, ele se apaixona por ela, mas Lara, correta, dá-lhe um pé na bunda. Só que a família de Jivago vai para o interior e ele certamente se encontrará novamente com Lara. Strelnikov? Ora, pensava-se que ele estivesse morto, só que não: o jovem e simples revolucionário tornou-se um imparable bolchevique comedor de criancinhas. Como espetáculo, está valendo a pena ver, apesar do pouco espírito de Pasternak presente. A poderosa cenografia de Lean tem que ser considerada. O cara era um mestre. Mas…
Ah, Elena, que nasceu na Bielorrússia e lá viveu até os 29 anos, não sentiu um ambiente muito russo…
Então você liga a TV e fica procurando um filme nestes cardápios que as emissoras à cabo oferecem atualmente. Quer um filme leve e divertido, mas fica meio perdido entre tantas comédias românticas. Acho que há várias muito boas, algumas excelentes. Hoje, vou dar a vocês duas dicas que penso serem irresistíveis. A primeira é O amor não tira férias. Duas mulheres, Cameron Diaz e Kate Winslet, vêm de grandes desilusões amorosas e acertam pela internet uma troca temporária de residências. Cameron vai para a fria Inglaterra e Kate para a ensolarada Califórnia. Tiram férias dizendo uma a outra que querem apenas calma e solidão para superarem suas crises. Mas dá tudo errado e quem aparece é o amor, claro. Afinal, trata-se de uma comédia romântica. A segunda é Hitch — Conselheiro Amoroso. No filme, Will Smith é um lendário, tecnicamente perfeito e anônimo cupido. Em troca de determinada taxa financeira, ele faz com que seus contratantes homens conquistem as mulheres de seus sonhos. Enquanto trabalha para o hilário Kevin James, um contador que se apaixonou pela socialite vivida por Amber Valetta, Hitch conhece a mulher que acredita ser a de sua vida, Sara (Eva Mendes). Apaixonado, Hitch decide conquistá-la, mas ele é muito melhor dando conselhos do que agindo em causa própria. Recomendamos.
2
Então seu filho vai fazer vestibular na UFRGS e aquele livro aparece na sua frente. O nome é esquisito: Dançar Tango em Porto Alegre. Provavelmente isto aconteceu porque este livro de Sérgio Faraco é uma das leituras obrigatórias para o Vestibular da UFRGS de 2016. Quando seu filho ou filha deixar ele de lado, pegue porque é muito bom. São dezoito contos escritos por um autor que preza, antes de tudo, a palavra exata, a melhor expressão. A exigência artística de Faraco é muito alta, imaginem que ele produz uma média de apenas dois contos por ano, trabalhando e retrabalhando seus textos. Mas a leitura desses contos é fluente e o resultado é bom demais. São três os temas principais dos contos de Dançar Tango em Porto Alegre. Primeiro, o das histórias que acontecem na paisagem rural fronteiriça do Rio Grande do Sul, onde os protagonistas ficam no dilema entre manter os valores de um passado que se esvai e a aceitação da modernização. O segundo é o grupo de histórias sobre o final da infância, através das fortes experiências emocionais da adolescência e da iniciação sexual. Por último, há os contos sobre o indivíduo que, melancólico e solitário, não se adapta ao espaço urbano. Tudo isso contado por um escritor de primeiríssima linha que, ouso dizer, ocupa o posto informal de melhor escritor do sul do país. A edição da L&PM sai por R$ 21,90.
3
Com cabelos brancos e alguma dificuldade com os agudos, Caetano Veloso e Gilberto Gil fizeram um tremendo show no Araújo Vianna. Para os dois artistas é simples, basta pinçar as canções mais representativas de seus vastíssimos repertórios. Somados, os dois artistas gravaram mais de 50 discos e CDs só de músicas inéditas. Com a dupla, o público pode recordar grandes sucessos que datam desde os anos 60. Mas houve um importante porém. Antes do show, muitos protestaram contra o valor das entradas. E com razão, pois os valores dos ingressos variaram entre R$ 150 — para quem aceitasse ficar em pé — e R$ 750. São preços talvez condizentes com a Europa, não com o Brasil. Para efeito de comparação, o concerto da dupla em Madri, no dia 21 de julho, tinha opções entre 130 e 215 euros, equivalentes a R$ 449 e R$ 742. Agora, depois do show, ninguém reclamou porque o que viu foi magnífico. Foram 26 canções de primeiríssima linha, quase todas de autoria dos dois amigos. Gil e Caetano mostraram-se imbatíveis nas artes do bem compor, bem cantar e melhor ainda em seduzir, mesmo que mal tenham dado boa noite ao público. E também mostraram-se, sem dúvida, imbatíveis na arte de bem envelhecer (*). A qualidade técnica do espetáculo acompanhou soberbamente os dois baianos. Quem viu, viu. Quem não viu, fica pra próxima. Se der pra ir.
A história filme búlgaro A Lição (Urok), de Kristina Grozeva e Petar Valchanov, poderia se passar no Brasil. Na verdade, poderia se passar em qualquer país capitalista, mas cabe melhor em países capitalistas pobres onde a corrupção — do sistema e das pessoas — esteja consolidada. Houve um roubo de dinheiro na sala de aula da correta professora primária Nadezhda ou Nade (Margita Gosheva). Ela tenta de várias maneiras descobrir quem é o ladrão. Por outro lado, um dia, voltando da escola para casa, descobre que a crise financeira do marido é bem mais profunda do que parecia e que a casa deles pode ir a leilão.
Nade irá aos infernos a fim de procurar manter sua posição social e integridade pessoal. Porém, ela é quebrada em três cenas que valem o filme. Negando-se a jogar um jogo que não é o seu e, à princípio, com a coragem de um Michel Kohlhaas de saias, Nade é colocada em uma série de situações que fazem dobrar uma ética que parecia inquebrantável.
Curiosamente, A Lição foi inspirado na história de uma professora búlgara e é a primeira parte de uma trilogia pautada pela proposta dos diretores de transformarem notícias de jornal em filmes.
O trabalho do elenco é impecável, com destaque para as cenas no banco e no agiota, diferentes faces de atividades irmãs.
O tom geral do filme é dramático, a câmera e a fotografia são secas e a ausência de música aprofunda o realismo, mas o humor aparece na terrível sucessão de acontecimentos. Os diretores recorrem à hipérbole, intensificando a crise até o inconcebível. A tragédia pessoal da Nade não é descaracterizada pela hipérbole e esta só se torna humor sinistro quando colocada contra o fundo do que seria o dia a dia ideal da professora. Nade é ética, é correta, mas foi jogada num pântano. Ela aprende que dentro do caos qualquer movimento faz diferença. O clímax do filme é muito bem preparado. Envolvida pela sociedade e perdido definitivamente o fio da ética, Nade toma uma decisão inesperada.
Vi no Guion Center 3 (aquela sala comprida que parece um ônibus). O novíssimo equipamento digital lá instalado falou bem alto. Recomendo a sala e o filme.
Foi com certo esforço que selecionamos os dez melhores filmes de 2014. Conversamos com diversas pessoas da área e a conclusão geral era a de que fora um ano muito fraco. Foi complicado chegar ao implacável número dez. Então, podemos dizer que selecionamos oito filmes e colocamos dois intrometidos no final.
Para nossa sorte, A Grande Beleza estreou em 17 de janeiro de 2014. O italiano forma o pódio com outros dois excelentes filmes, o argentino Relatos Selvagens e o indiano The Lunchbox. O cinema brasileiro está na lista com três filmes: o gaúcho Castanha, o suspense O Lobo Atrás da Porta e documentário Os Dias com Ele. Os três foram pouco vistos, infelizmente.
Segue a lista:
~ 1 ~
A Grande Beleza, de Paolo Sorrentino
A Grande Beleza é uma ressurreição — quiçá efêmera — do cinema italiano. Trata-se de uma estupenda releitura tanto de A Doce Vida, de Federico Fellini, como de A Noite, de Michelangelo Antonioni, transposta para a berluscolândia atual, palco do vazio e do carreirismo. Há dois lados no filme: o desconsolo, a necessidade de arte, sentido e inspiração que sente o debochado escritor Jep Gambardella (Toni Servillo) e a vida dos novos ricos e quem eles exploram, um leque do que há de pior na elite romana, maculando o cenário milenar da cidade. O formato vertiginoso escolhido pelo diretor Sorrentino cabe perfeitamente para contar a história do escritor Gambardella, que reflete sobre sua vida durante um verão romano. Com 65 anos de idade, não concluiu nenhum outro livro desde o grande sucesso do romance O Aparelho Humano, escrito há décadas. Desde então, a vida de Jep se passa entre as festas da alta sociedade, os luxos e privilégios da fama. Um dia, fica desorientado, chafurdando no tédio e na nostalgia. Quando lembra de sua juventude, Jep pensa finalmente em mudar sua vida. Talvez saia do vácuo e volte a escrever. Um tremendo filme.
~ 2 ~
Relatos Selvagens, de Damián Szifron
A distância entre o cinema e a arte em geral brasileira e argentina talvez nunca tenha sido tão grande. Basta comparar qualquer comédia nacional com o humor sofisticado e inteligente deste que é o filme de maior sucesso comercial argentino dos últimos anos. Nada de flatulências ou eructações como em nossas comédias globais, apenas bom roteiro, direção, atores, etc. São histórias simples sobre fatos rotineiros que por isso provocam identificação quase imediata. Com ironia, Szifron faz um comentário tão inteligente quanto engraçado sobre a falta de civilidade e a selvageria urbana. São personagens unidas pelo fato de estarem fora de controle, dispostas a fazer justiça pelas próprias mãos: um músico reúne todos os seus inimigos em um só lugar, uma garçonete que tem a chance de se vingar do homem que arruinou sua família, uma briga de trânsito, um engenheiro indignado com uma multa indevida e a burocracia sem limites, um milionário que tenta livrar o filho da cadeia, uma noiva que descobre a traição do marido. E um filme espetacular.
~ 3 ~
The Lunchbox, de Ritesh Batra
Os Dabbawalas indianos são as pessoas, que fazem parte de um complexo sistema de entrega que recolhe marmitas de comida recém feitas pelas esposas no final da manhã e faz a entrega aos maridos no horário de almoço, em seus locais de trabalho. São utilizados vários tipos de transporte, com predomínio de bicicletas. As marmitas retornam vazias para as esposas ao final da tarde. É considerado um sistema infalível, onde circulam milhões — sem exagero — de refeições diariamente. The Lunchbox recebeu, compreensivelmente, Prêmio do Público no Festival de Cannes de 2013. Uma entrega equivocada coloca em contato uma jovem dona de casa e um desconhecido já no fim da vida. Ela enviara quitutes especiais para o marido, porém, quando este chega em casa, não comenta nada. No dia seguinte, ela envia um bilhete junto com a refeição e recebe outro, só que de um estranho. Então, começam uma inusitada troca de mensagens nas marmitas. A conversa é cheia de interesse humano. Filme delicado e cheio de detalhes.
http://youtu.be/RZdpPui8DqY
~ 4 ~
Castanha, de Davi Pretto
O ator João Carlos Castanha tem 52 anos, trabalha no teatro, faz participações em filmes e, à noite, se apresenta em boates gays de Porto Alegre como transformista. Vive com a mãe, Celina, de 72. Dia após dia, João passa a confundir a realidade que vive com a ficção que interpreta. Este é o mote e a marca do filme, que tem as situações da vida do ator — vividas ou imaginadas — como roteiro do documentário ficcional. A linha entre o real e o possível é delineada de forma fluida, e a intenção do diretor, Davi Pretto, não é deixar claro o que do que está na tela realmente aconteceu. Complementam o dia-a-dia de filho e mãe a morte como fantasma presente na figura do pai, internado em um asilo, e a do sobrinho viciado em crack, que interfere na rotina dos dois. (Roberta Fofonka)
~ 5 ~
Boyhood: Da Infância à Juventude, de Richard Linklater
Para gravar Boyhood, o diretor Richard Linklater trabalhou doze anos, acompanhando o crescimento do ator Ellar Coltranem, que interpreta o protagonista do filme. Ele gravou poucos dias por ano com o elenco, a fim de contar a história do menino que cresce em meio à separação dos pais, dos cinco aos 18 anos de idade. Mesmo se não fosse muitíssimo aclamado pela crítica, ainda valeria a pena ser visto pela sua forma de filmagem peculiar. Feito de maneira inédita, o filme ainda tem o mérito de retratar com verossimilhança a passagem do tempo e as mudanças que ela provoca, tanto no âmbito coletivo e político (ao mostrar a evolução dos celulares e tecnologias com o passar dos anos, por exemplo), quanto no âmbito particular. (Débora Fogliatto)
~ 6 ~
O Lobo Atrás da Porta, de Fernando Coimbra
Um excelente e surpreendente thriller de suspense brasileiro, gênero praticamente ignorado no país. Talvez Hitchcock ficasse em dúvida entre chamar o filme de um whoduint (ou who done it?, quem fez isso?) ou de um macguffin (filme onde onde todos procuram o alguma coisa, apelidado de macguffin), pois O Lobo é tanto um quanto o outro. Quem fez o sequestro? Onde está a menina? Uma criança é sequestrada, o que faz seus pais, Bernardo (Milhem Cortaz) e Sylvia (Fabiula Nascimento), irem até uma delegacia. O caso fica a cargo do delegado (Juliano Cazarré), que resolve interrogá-los separadamente. Logo descobre que Bernardo mantinha uma amante, Rosa (Leandra Leal), que é levada à delegacia para averiguações. A partir de depoimentos do trio, o delegado descobre uma rede de mentiras, amor e ciúmes. Há drama nas cenas entre os pais e comédia nas cenas da delegacia. Grande final. Extraordinária estreia em longa metragem do diretor Fernando Coimbra.
~ 7 ~
Ninfomaníaca I e II, de Lars von Trier
É uma convenção — é até chique — falar mal de Lars von Trier, mas o criador de Ondas do Destino, Dançando no Escuro, Dogville, Anticristoe Melancolia é um enorme e provocativo artista. E ele não chega de outra forma com este Ninfomaníaca. Os cartazes são impressionantes, o marketing associado é muito diverso do habitual, mas talvez as exigências do diretor sejam ainda mais: ele exigiu que os atores praticassem as relações sexuais do filme e não apenas as simulassem. Um filme erótico? Ora, a crítica do The Guardian tem uma frase que resume bem esta faceta: Contains sex in abundance, but is often rigorously unsexy. O Volume 1 tem duas horas, o 2, outras duas. A exibição integral, de seis horas, só foi vista no Festival de Berlim. Joe (Charlotte Gainsbourg na maturidade, Stacy Martin na juventude) confessa-se a Seligman (Stellan Skarsgard), que a encontrou desacordada e ferida num beco. Ela se vitimiza ao contar sua história de vida, ele é racional e age como um terapeuta sem sê-lo. O distanciamento e certos aspectos burlescos produzem não somente espanto, mas reflexões de que, na verdade estamos assistindo a um filme sobre… Bem, vá e veja!
http://youtu.be/Bd5dnx-eAgA
~ 8 ~
Os dias com ele, de Maria Clara Escobar
Os dias com Ele, de Maria Clara Escobar, é um grande documentário. A cineasta tenta fazer um filme com seu pai, Carlos Henrique Escobar, intelectual auto-exilado em Portugal, com quem teve uma relação mínima. Nesse filme, a diretora quer resgatar a memória da ditadura em seu pai, relacionando-a com a memória ausente da relação dos dois. Logo na primeira cena, as regras do jogo se esclarecem: Carlos afirma não querer fazer uma entrevista convencional; Maria Clara, fora de quadro, tenta guiar o pai para conseguir o que deseja. Ao aviso da realizadora, seu pai, assume uma personagem, formal, articulada, fria — o intelectual que Maria Clara quer derrotar para alcançar seu pai. Carlos não quer fazer o filme proposto por Maria Clara; e esta não quer o filme que seu pai está disposto a fazer. Os dias com Ele é uma luta em pai e filha, o conflito é o motor de condução do filme. Assim, o filme parte da força dessas duas personagens que vão pouco a pouco mostrando suas armas, questionando-se mutuamente, expondo-se, colocando em perigo a existência do filme.
~ 9 ~
Mommy, de Xavier Dolan
Canadá, 2015. Diane Després (Anne Dorval) é surpreendida com a notícia de que seu filho, Steve (Antoine-Olivier Pilon), foi expulso do reformatório onde vive por ter incendiado a cafeteria local e, com isso, provocado queimaduras de terceiro grau em um garoto. Mãe e filho voltam a morar juntos, mas Diane enfrenta dificuldades devido à hiperatividade de Steve, que muitas vezes se torna agressivo. Os dois apenas conseguem encontrar um certo equilíbrio quando a misteriosa vizinha Kyla (Suzanne Clément) entra na vida de ambos. A trama se passa em um Canadá fictício, onde uma lei permite que pais infelizes com o comportamento de seus filhos problemáticos, possam interná-los em um hospital. O diretor Dolan é um fenômeno: de apenas 25 anos de idade, já conta com seis longas-metragens. No Festival de Cinema de Cannes de 2014, o jovem realizador foi não só o mais jovem da competição, como também foi uma das grandes sensações. Conquistou o Prêmio do Juri e teve a maior ovação do público, sendo aplaudido efusivamente de pé.
~ 10 ~
Filha Distante, de Carlos Sorín
Carlos Sorín retorna com mais um belo filme. Autor de Histórias Mínimas e O Cachorro, o diretor volta à Patagônia neste Filha Distante, confusa tradução do título original argentino Días de Pesca. Marco Tucci (o excelente Alejandro Awada) é um homem de 50 anos, que está largando o álcool e que decide viajar à Patagônia para reencontrar a filha Ana (Victoria Almeida). Nesta tentativa de restabelecer os vínculos familiares, Tucci procura a filha, pesca em cenário belíssimos da região e acaba por… Os sofrimentos passados são sutilmente destacados. Há uma cena absolutamente tocante em que Alejandro canta uma ária que habita a memória da filha. Mas não espere grande arroubos. Sorín é um cineasta e roteirista sutil, que narra suas histórias de forma quase silenciosa.
O seminário sobre Cinema e Psicanálise da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), O Divã e a Tela, completa dez anos este mês. O Sul21 conversou com os coordenadores do projeto, Enéas de Souza e Robson de Freitas Pereira, numa mesa do Restaurante Santo Antônio, onde, para decepção dos garçons da casa, eram servidas carradas de observações a respeito de clássicos e não-clássicos da tela ao invés de carnes e bebidas.
Enéas é crítico de cinema, psicanalista e economista, tendo trabalhado como pesquisador da FEE/RS. Robson exerce a clínica psicanalítica e participa ativamente do diálogo entre psicanálise e cultura como autor. Os seminários da dupla normalmente consistem de uma introdução, em que cada um dos coordenadores fazem uma rápida exposição sobre o filme, a apresentação completa do mesmo, um intervalo e uma discussão pós-filme. A próxima sessão de O Divã e a Tela — a última deste ano — será em 28 de novembro com Glória feita de Sangue, de Stanley Kubrick. As sessões ocorrem sempre nas últimas sexta-feiras do mês, na sede da APPOA, na Rua Faria Santos, 258.
Inicialmente, os filmes apresentados obedeciam apenas à preferência dos coordenadores do Seminário. Depois, passaram a ser escolhidos de acordo com o trabalho desenvolvido pela APPOA durante o ano. Atualmente, além deste critério, diz Robson, são utilizados outros dois: o de “dar espaço ao cinema nacional e seus diretores” e também aos “filmes clássicos, importantes na história do cinema”.
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Sul21 – O Divã e a Tela completa 10 anos. Como surgiu a ideia?
Enéas – Ali por volta de 2004 eu comecei a pensar na hipótese da gente fazer um evento que relacionasse cinema e psicanálise. Principalmente porque eu tinha os pés nas duas áreas, e eu, o Robson e outros amigos, conversávamos muito sobre cinema. Então eu propus ao Robson um encontro e a coisa começou.
Sul21 – Tu já fazias alguma coisa na APPOA, não, Robson?
Robson – Sim, antes mesmo da APPOA, eu fazia parte de um grupo que se chamava Centro de Trabalho e Psicanálise. E nós fazíamos discussões periódicas sobre cinema e psicanálise.
Sul21 – Mas isso foi bem antes de 2004, não é?
Robson – É, nos anos 90.
Enéas – Na época tinha muita coisa pipocando. Se um filme era importante de se discutir, a gente discutia dentro um seminário. Então a ideia foi fazer alguma coisa mais sistemática, um trabalho que reunisse seis ou sete filmes por ano.
Robson – Nossas reuniões ocorrem entre abril e novembro, sempre na última sexta-feira do mês. Geralmente são sete ou oito filmes, no máximo. A gente usa dezembro e janeiro para conversar sobre a programação do ano seguinte. Porque nós procuramos, de alguma maneira, colocar o foco não só sobre o diálogo entre cinema e psicanálise, mas também colocar a discussão em conjunção com os temas que a APPOA está desenvolvendo durante o ano.
Enéas – A APPOA tem um eixo, e a gente procura trabalhar em torno desse eixo.
Robson – Por exemplo, nesse ano que passou, o eixo foi em relação ao gozo e ao corpo. Então, nós abrimos com O Império de Sentidos, que é um filme marcante para a psicanálise. Lacan comentou a respeito nos Seminários. Outro que nós pegamos, dentro dessa temática, é Um Método Perigoso, que fala da relação entre Freud e Jung. O filme permitiu que a gente tocasse na história da psicanálise, da história dos conceitos, de como foram se desenvolvendo.
Enéas – Vamos dizer assim: a partir do terceiro ou quarto ano, a gente começou a fazer um alinhamento com os temas da APPOA. Nós dialogamos com os temas. Porque uma das coisas importantes é que a gente não aplica a psicanálise ao cinema. Não é uma relação aplicativa. Ela é uma relação de diálogo. Ou seja, os conceitos cinematográficos são trabalhados como conceitos cinematográficos e os conceitos da psicanalise como psicanalíticos. A gente não tenta fazer uma fusão. Aquilo que é cinema, pode fertilizar os conceitos psicanalíticos e vice-versa. Vou dar um exemplo, a questão do olhar em Lacan. Isso é, obviamente, algo bastante importante no cinema. Nessa dialética entre cinema e psicanálise, nós não “cinematizamos” a psicanálise e nem “psicanalisamos” o cinema. O Lacan tem uma frase muito bonita, que diz o seguinte: “Não se psicanalisa personagens em papel”. No caso, nós não psicanalisamos personagens em imagem.
Sul21 – Pensei que os cineastas imitassem a vida enquanto vocês desconstruíam os filmes a fim de analisar os pedaços… O fato de ter um ator na tela, de ele ser um terceiro, facilitaria esta ousadia?
Enéas – A gente faz a discussão do filme. Essa é a proposta. Por quê? Porque tu não deves botar a psicanálise no filme, a economia no filme. O filme tem uma forma que deve ser respeitada.
Robson – É fundamental reconhecer que o filme não está ali como uma ilustração, seja pra buscar a psicopatologia de um personagem, seja para buscar uma contribuição da psicanálise para a cultura. Por exemplo, em O Som ao Redor, a ideia não era dissecar os personagens pensando na psicopatologia. Como o Enéas lembrou, o Lacan dizia que não se interpreta personagens de ficção, nem se faz a psicopatologia desse personagem. Nesse sentido, ele nos ajuda a pensar de uma maneira mais geral. Quantas e quantas vezes, do ponto de vista psicológico, se disse que Hamlet era obsessivo? Que graça tem ir lá e dizer isso, “tá aqui o obsessivo e a sua relação com o pai, com o desejo, etc.”? Mas, é possível falar da relação de um sujeito com o seu desejo, com o desejo da mãe, ou seja, abrir essa discussão metapsicológica, abrir essa discussão sobre a obsessividade em geral, sobre a relação do homem com o desejo, com a morte.
Enéas – Por exemplo, Sarabanda, de Ingmar Bergman. É uma história familiar completamente diferente do que normalmente se lê nos livros. Os filmes trazem novidades, trazem as vanguardas da sociedade para que os psicanalistas possam dialogar sobre o que aconteceu, sobre aquilo que ele vai ver na sua clínica.
Sul21 – Vi vocês analisando O Som ao Redor. Não sei se foi casual ou não, mas vocês se dividiram. O Robson analisou mais a questão de um personagem, dos personagens, da história, e o Enéas se dedicou mais a questão econômica, ao engenho. Vocês costumam fazer essa divisão?
Enéas – Bom, isso é possível, porque nós temos um diálogo entre nós. E mais, um filme tem uma multiplicidade de fatores e elementos que ninguém consegue discutir totalmente. Pelo menos não em um comentário do filme. Alguns desses fatores poderiam dar um seminário, porque aí nós poderíamos analisar mais profundamente cada aspecto. A totalidade de alguns deles é muito ampla. Quanto mais quente melhor rendeu uma bela discussão de cinema e de psicanálise. Uma das coisas mais fantásticas que eu já vi na minha vida — quando terminou o filme, que recebeu uma plateia culta, de psicanalistas, historiadores, arquitetos, etc., o pessoal bateu palmas. Aplaudiu o filme. Isso nunca tinha acontecido. Em uma plateia que não é de especialistas, isso nunca teria acontecido.
Sul21 – É um filme muito moderno. Há a questão da troca de sexos, e tudo sem preconceito.
Enéas – Sim, e o filme passa muita energia.
Sul21 – Há o prazer de vocês envolvido, não?
Enéas – Sim, mas a gente faz também para avançar no conhecimento. Mas é claro que o lado do prazer está totalmente inscrito. Pega um filme como esse ou Amarcord, de Fellini, que é outro filme que adoraram. Trabalhamos também os grandes filmes nacionais. Santiago, do João Moreira Salles, Tropa de Elite, além de filmes mais antigos, como os de Glauber Rocha.
Robson – Há a ideia pedagógica de dar uma formação em relação à história do cinema, com relação aos conceitos psicanalíticos e também como o que tu falaste, ou seja, essa ideia do prazer, a questão lúdica, que me parece fundamental seja em relação ao cinema, seja em relação à matemática, por exemplo. Se não existe uma relação lúdica, não vai. Agora, queria voltar à forma de escolha dos filmes. Porque dentre os espectadores, ao longo dos anos, se formou um grupo fixo. Eles são os nossos interlocutores diretos nessa história. E também são os nossos consultores em relação à programação. Quer dizer, a decisão final é nossa, mas a gente está sempre em diálogo com eles. Então esse grupo é nosso cartel de trabalho, nosso “núcleo duro”.
Enéas – Tem outra coisa, nós já fizemos reuniões fora da APPOA, por exemplo, lá no Santander sobre Hamlet, e por exemplo, nós já fomos convidados para fazer discussões sobre filmes fora da POA. A gente não incrementa muito isso por causa da dificuldade de datas, etc.
Robson – Há colegas nossos que, a partir da nossa experiência, resolveram abrir seus locais. Por exemplo, em São Paulo e no Rio de Janeiro, também foram formados ciclos permanentes de discussão de cinema e psicanálise.
Sul21 – Um filme intimista, como por exemplo, o já citado Sarabanda, de Bergman, ou um filme de Antonioni… Eles seriam mais fáceis de serem analisar por psicanalistas? Vocês pegam poucos blockbusters. OK, já fizeram com A Origem, mas é raro.
Robson – Não são necessariamente mais fáceis. Eu acho que isso tem a ver com a própria história do movimento psicanalítico aqui na cidade. Houve um momento em que, quando se falava em cinema e psicanálise, tu ias para o filme intimista, ia para o Bergman, filme para psicanalista. Mas nós desejamos pensar a relação com a cultura. Isso devia ser expandido. Nós discutimos filmes como O Som ao Redor ou Tropa de Elite, que te permitem também leituras muito diversificadas e multifacetadas. Hoje é muito diferente de trinta anos atrás, onde tu tinhas que ter um filme que delineasse um personagem, que fosse uma coisa mais intimista. Hoje, eu acho que daria pra discutir Batman.
Enéas – A questão é sempre a seguinte: o valor principal da sessão é o filme. Sempre o filme e o que o cineasta propõe. Nós temos sempre o objetivo de mostrar o que o cineasta fez. O filme é sempre visto pelo lado da cultura. Nas sessões vão arquitetos, economistas, sempre tem uma série de grupos que vão lá. Tratamos o cinema como algo cultural que permite o diálogo com a psicanálise e com as outras áreas. Esse é o tema importante. Nós não temos aquela ideia de “vamos aplicar a psicanálise”. E o fato de nós estarmos vinculados com o eixo da APPOA, não significa que nós vamos fazer exatamente o que vai ser feito nos seminários da APPOA. O que eu acho que é importante no nosso seminário é que ele é um trânsito dentro da cultura. E esse trânsito tem pés em várias áreas às quais as pessoas estão vinculadas. Então nós também dialogamos transversalmente. Quando tu trabalhas a questão do cenário, tu trabalhas as questões da arquitetura. Quando tu trabalhas a questão da história, no caso de O Som ao Redor, por exemplo, tu trabalhas a formação histórica do Brasil. Essa é a questão importante. Ou seja, o filme dentro da história das imagens, o filme dentro da história da cultura. E é isso que nos permite esse diálogo com todas as áreas. E permite a cada um que está lá, frutificar, semear e fertilizar a sua área de trabalho. Nós criamos energia para que outros caras e para nós mesmos, desenvolvam essa realidade.
Sul21 – E como é a participação das pessoas no seminário?
Robson – A participação vem crescendo bastante. Como se trata de um seminário, eu e o Enéas somos os coordenadores. Então é esperado que nós façamos uma apresentação do filme, um comentário inicial. E aí, depois, abrimos para as pessoas comentarem.
Enéas – Primeiro assim, tem uma apresentação inicial de cinco minutos, é apresentado o filme, depois eu e o Robson fazemos um comentário de dez a quinze minutos e começa a discussão. Até esgotar.
Robson – Dependendo do filme, claro. Esse ano um filme que nos surpreendeu foi Rocco e seus irmãos, de Visconti. Ele prendeu a atenção, as pessoas ficaram discutindo, houve uma participação incrível.
Enéas – Porque tem isso, alguns vão lá só para verem um determinado filme.
Robson – Porque a gente já sabe que, por exemplo, se passarmos um David Lynch, o setor jovem aparece lá. Então tem um determinado público.
Enéas – Bergman é para o pessoal mais antigo.
Robson – E tem aquele pessoal que diz assim: “Eu aceito ver filme velho brasileiro porque vocês vão passar, e porque vamos extrair alguma coisa de interessante”.
Sul21 – Quer dizer, aceitam pelo comentário?
Robson – Exatamente.
Enéas – Isso é uma coisa interessante. Como as pessoas se comportam em relação aos filmes. Tem todo um folclore…
Sul21 – Por exemplo…
Enéas – Por exemplo, tinha uns caras que chegavam lá e queriam ser analisados na sessão. “Eu por exemplo… na minha situação…” (risadas) Isso foi muito raro, aconteceu pouco porque a gente meio que cortou isso. Mas, por exemplo, para Fellini, é certo que comparecerá um determinado tipo de público para vê-lo. E vai outro para ver o cinema brasileiro. Para o cinema americano, outro.
Sul21 –Você devem ter diversos casos curiosos…
Robson – Temos, mas olha, é o seguinte: inevitavelmente, ao longo desses dez anos, aprendi uma coisa, temos que sempre chegar mais cedo para testar a aparelhagem. Isso que tem uma empresa contratada que vai lá, que faz a instalação, os ajustes, etc. Nos primeiros anos, eu ia lá horas antes e ficava junto com os caras. Depois eu achei que tudo bem, que os caras resolveriam e só dava instruções “olha, esse filme é em preto e branco, precisa abrir mais o brilho, a iluminação, o contraste”. Mas, inevitavelmente, tem que chegar lá e testar, porque tu nunca sabes se vai estar funcionando.
Enéas – Outro aspecto interessante nosso é que fomos a primeira entidade do Brasil a apresentar Sarabanda. Porque Sarabanda não tinha vindo pra cá.
Robson – Assim como fomos os primeiros a passar Pina. Eu tinha voltado da França, consegui uma cópia.
Sul21 –Antes do cinema comercial?
Robson – Sim.
Enéas –Sarabanda também.
Sul21 –Tu tens uma predileção por Sarabanda, não é? Eu também.
Enéas – Eu gosto muito. Normalmente, quando o cara, no caso Ingmar Bergman, faz um último filme, é um filme médio. Esse não, esse filme é excepcional.
Robson – Com exceção do John Huston, que finalizou com Os mortos.
Enéas – Sarabanda tem novidades antropológicas, novidades psicanalíticas, novidades cinematográficas. É notável a forma como ele faz a exposição do roteiro através de uma série de segmentações utilizando, principalmente, o ponto de vista cenográfico, do ambiente, da roupa. As cenas são densas porque o que acontece com o personagem principal é mostrado fisicamente no filme e cinematograficamente com as roupas e cenário e na própria relação dele com a Liv Ullmann. Uma outra cena importante é a que mostra o incesto do pai e da filha. Ela é absolutamente excepcional. Bergman mostra o pai deitado, a filha deitada na frente, o movimento de câmera mostra a relação dos dois, e ao mesmo tempo tu tens a presença da mãe no retrato. Ali há todo tipo de reflexão e é uma cena de simplicidade absoluta. A relação da Liv Ullmann com a neta… A forma como elas conversam, o crescimento do vermelho no rosto, a bebida, a intimidade, a relação, marca a possibilidade dessa guria se afastar daquele cara.
Sul21 – A cena da igreja…
Enéas – Aquela cena da igreja é genial. Toda a construção é fabulosa.
Robson – Tu tinhas falado, Milton, a respeito dos filmes intimistas, que possibilitam talvez um diálogo maior com a psicanálise. Ali está todo o estilo do Bergman, que mostra o tempo todo o fracasso da função paterna e de várias relações. Aquele avô jamais conseguiu transmitir alguma coisa para o filho dele, a não ser a relação de ódio. A relação é instrumental, digamos assim, “eu sustento, eu sou o provedor, as coisas tem que ser construídas da minha maneira”.
Enéas – Esse é o tipo do filme para o qual tu podes fazer uma análise perfeitamente psicanalítica, tranquila, sem nenhum problema, ou uma análise cinematográfica. E as duas dialogam. Esse filme dá uma ideia do que se pode fazer.
Sul21 –Vocês puxam muitos detalhes, coisas que normalmente passam por cima do olhar mais desatento.
Enéas – É aquela história, o diabo passa nos detalhes. É o que se diz na psicanálise também. O que diferencia um filme bom de um filme ruim é como o cara trabalha os detalhes.
Sul21 –Falando em bons e maus filmes, como vocês comparam a situação cinematográfica do ano passado e desse ano? O ano passado parece que trouxe muita coisa boa e esse ano foi uma desgraça.
Enéas – Nada sobrevive num ano de Copa do Mundo e eleições, não é?
Robson – Talvez a gente possa entrar no lugar comum, e dizer que a realidade superou amplamente nossa capacidade de sonhar e de ficção.
Enéas – A questão é: como é que os caras iam fazer uma programação cinematográfica de grande qualidade tendo jogos todos os dias?
Robson – E vamos insistir na ironia: que roteirista conseguiria financiamento para um filme em que o Brasil tomava 7 a 1 da Alemanha? Quem é que ia financiar isso? (risadas)
Enéas – Só os alemães, e olhe lá. E como eram jogos muito seguidos, a programação de cinema ficou “ilhada” naquele mês. Mas realmente, tem pouco filme aí. Há um velho fato: o problema da distribuição no Brasil, que já esteve muito melhor. A produção europeia chega pouco e o que dizer dos chineses, japoneses, coreanos, russos? Mesmo filme alemão não chega. Chega filme americano e alguns filmes franceses. Então fica muito difícil fazer uma boa programação. Além do mais, acho que tem um outro problema, que é um problema da realidade contemporânea, que é um certo afastamento dos jovens do cinema. Porque eles baixam os filmes. Veem no celular, no tablet, etc. Então tu tens uma modificação nos dispositivos. Nós somos da geração em que o cinema era a tela, a sala escura. A gurizada não pensa assim.
Robson – Eles talvez tenham substituído a qualidade da imagem, a qualidade da projeção, pelo acesso mais rápido e direto.
Enéas – Mudou o suporte. Em vez da tela, tu tens uma tela de computador, ou uma tela de celular, a recepção do filme tornou-se individual. E mais, os filmes são vistos sob a luz de lâmpadas, caminhando, no carro, em lotação, etc. O cinema tradicional, a meu ver, hoje está mais na função que o teatro tinha quando o cinema começou a existir. Ou seja, quem vai ao cinema são os caras que gostam de especiarias.
Sul21 –Eu noto que os blockbusters entram e saem rapidamente. O ciclo é curto.
Robson – Eles precisam faturar alto e rápido. No primeiro fim de semana já sabem se vai dar certo ou não. No segundo final de semana já sabem quando vai morrer.
Sul21 –Há uma produção interessante que jamais chega aqui, da qual a gente apenas lê ou baixa. Ela poderia ser passada, em algum lugar. Em seu último livro, o Hobsbawm fala que a música erudita, assim como jazz, acabou se transformando em “Produto de Festivais”. Vocês acham que o cinema artístico pode acabar também ilhado ou apresentado apenas em Festivais?
Robson – Eu não sei o que dizer, não tinha pensado nisso. Mas talvez a tendência de estar nos festivais venha e abranger o cinema e a música. Com a queda de vendas dos CDs, os músicos divulgam seus trabalhos na internet ou se apresentam ao vivo em festivais. Tu vês que, internacionalmente, aumentou a proliferação de grandes festivais de música. O Lollapalooza virou uma franquia, o Rock in Rio também é outra franquia que no ano que vem vai acontecer no Rio de Janeiro e nos Estados Unidos. É onde tu consegues reunir o maior número de pessoas.
Enéas – E tem o problema econômico. Há uma forma oligopólica de dominar a divulgação de um filme. Ou seja, a cadeia de divulgação está totalmente dominada pelas grandes empresas. Então, por exemplo, veja a jovem produção do cinema brasileiro. O que acontece é que normalmente esses filmes vão para os festivais em busca de espaço. Ou seja, é uma forma de constituir um circuito.
Sul21 – E, para finalizar, falemos um pouco sobre o filme da próxima sexta, Glória feita de Sangue, de Stanley Kubrick?
Robson – São 100 anos da Primeira Guerra, a que inaugura a guerra moderna. O personagem principal é um oficial que, fora dali, é advogado.
Enéas – Era uma guerra de trincheiras, os caras tinham que avançar até a próxima posição e não conseguem ou nem tentam, por medo. Aí são escolhidos três covardes de cada batalhão para serem julgados. E Kirk Douglas é o advogado e o comandante daquele batalhão.
Robson – O filme é baseado em fatos reais. A partir da metade da guerra, a França não tinha mais condições de bancar avanços. Eles não tinham como se rearmar para investir contra a Alemanha. A situação era tão precária e as ordens tão absurdas que começaram as deserções e a insubordinação no exército francês. Havia uma óbvia recusa a participar deste suicídio.
Enéas – Sim, quem saía da trincheira para avançar era metralhado. É um filme curto, denso e muito bom. Naquela época — anos 50 e 60 –, os filmes não eram tão longos. Eu sou do tempo que as sessões de cinema eram assim: às duas, quatro, seis, oito e dez horas da noite. E, antigamente, quando eu era menino, às três horas tinha matinê. Às vezes tinha às seis da tarde, que era a matinê das moças.
Fechado há dois anos, quando saiu dali uma igreja evangélica que o locava, o ex-Cine Presidente está despejando na sarjeta da Av. Benjamin Constant, 1773, as pastilhas de sua bela fachada. No imagem em anexo (abaixo), uma amostra das pecinhas de cerâmica que emolduram os murais (na verdade, paredais) do prédio dos anos 1960, cuja arquitetura foi claramente influenciada pela construção de Brasília.
O que eu escrevo hoje dialoga vagamente com o artigo de Paulo Gleich, publicado há algumas horas pelo Sul21. Ontem à noite, soube que ia passar o excelente Motores Sagrados (Holy Motors), de Leos Carax, num desses canais Max da Net. Eu simplesmente precisava rever este filme tão surpreendente quando crítico em relação ao cinema atual. Seguindo a trilha do prefixo “re”, digo que rever e reler são as formas de reter conhecimento e impedir a fuga de referências de nosso cérebro. É melhor apelar para os clássicos, mas um belo filme contemporâneo, como Holy Motors, faz o serviço.
Tudo começa com um cinema lotado, onde todos dormem. Há projeção e som, mas todos dormem, estáticos. É exatamente o que sinto muitas vezes ao ver a produção comercial norte-americana e a da Globo Filmes. Enquanto a gente vê, já vai inserindo tudo o que nos entra pelos olhos e ouvidos no escaninho “Para esquecer”. A gente vê como se estivesse dormindo ou, mais consistentemente, perdendo tempo. Pois bem, voltemos ao filme de Carax. Nele, o Sr. Oscar — vivido por Denis Lavant, ator onipresente nos filmes do diretor — tem um estranho trabalho. Anda de limusine por Paris, recebendo ordens para atuar em diversos papéis que lhe são passados por uma estranha organização. Por que lhe são dadas aquelas ordens? Quem o paga? Quem é sua plateia? Onde estão as câmeras? Qual sua verdadeira identidade? E Oscar percorre a cidade cumprindo uma série de compromissos sem nexo entre si, onde humor e drama não estão ausentes. Há uma cena de dança, outra em esgotos e cemitérios, há outra em o Sr. Oscar morre de forma tocante (e subitamente acorda para o próximo compromisso), em outra comete um assassinato e assim vamos visitando diversos gêneros cinematográficos que deságuam numa intrigante cena final, onde várias limusines comentam que o mundo não quer mais emoção nem surpresas. O que Carax nos mostra em Holy Motors é uma super-fetação de emoções.
Extremamente bem acabado, cheio de cenas de virtuosismo arrebatador, Holy Motors carece de unidade. Esta é sua maior qualidade. Michel Piccoli, chefe de Oscar, aparece em uma cena e pergunta o que o leva a seguir fazendo aquele trabalho. A resposta é simples: “A beleza do gesto”. Se carece de unidade, o filme tem muito humor, o humor anárquico de que tanto gosto. Holy Motors só pode ser compreendido em cada um de seus módulos e na tese geral de Carax de que o cinema de nossos dias… é muito chato. Ele tem razão. Na cena final, todas as limusines da “empresa Holy Motors” entram numa garagem e travam um diálogo antes de dormir. O filme foi aplaudido por dez minutos após ser apresentado em Cannes 2012. Claro que não levou nada. Por algum motivo, o humor e o sarcasmo passam ao largo das comissões julgadoras, que talvez se julguem desprestigiadas se premiarem algo que não parece sério, mesmo que seja seríssimo.
Vi este tremendo filme pela primeira vez em 2013, no saudoso Instituto NT. Fui sozinho. Estava me separando de Pâmela. O notável é que a ligação de Holy Motors é com o NT e com o fato de, coisa rara, eu tê-lo visto sozinho. Em minha mente, a obra ficou Pâmela-free. Ótimo.
Enquanto escrevo isso, o Latuff me chama para discutir a trilha sonora de O Iluminado. Falamos de meu ídolo Bartók. Frase do Latuff: “Alguns artistas têm fácil acesso às sombras, caso do Kubrick”. Bartók também tinha, Latuff. Elegemos o filme de Kubrick, mais Psicose e O Exorcista como os melhores filmes de terror que vimos. Nada original. Gostaria agora de acrescentar um mais recente: O Silêncio dos Inocentes.
Depois de uma noite consagradora para… mim, já que acertei 100% dos oscares principais (confira aqui), volto ao tapete vermelho para escolher as mais elegantes da noite.
Cate Blanchett recebe a medalha de bronze:
Scarlett Johansson recebe a de prata.
And the Oscar goes to… Naomi Watts!
Em outro nível, Emma Stone tenta esganar Jennifer Aniston. A luta pelo Oscar foi duríssima:
Não pensem que entendo de moda ou que deixei de ser daltônico, tá? Para que as mulheres não reclamem, deixo aqui uma foto do apresentador Neil Patrick Harris na noite de ontem.
Robert Altman fez dezenas de filmes, alguns muito bons, outros lastimáveis. Como a maioria das pessoas, tenho grande admiração por suas histórias polifônicas como Short Cuts, Nashville, O Jogador, O Casamento, etc., mas meus preferidos são aquelas obras que ficaram perdidas lá nos anos 70, Como McCabe & Mrs. Miller (Onde os homens são homens), Brewster McCloud (Voar é com os pássaros) e Três Mulheres.
McCabe & Mrs. Miller é um falso western. Dentro de uma narrativa melancólica, Warren Beatty é um fanfarrão covarde e sonhador, que chega a um remoto lugarejo do oeste americano com a finalidade de montar o primeiro puteiro da comunidade. Mrs. Miller, vivada por uma lindíssima Julie Christie, é a cafetina que vai recrutar moças e garantir pelo gabarito do salão… Como era de se esperar, o local torna-se um sucesso, chamando a atenção de forasteiros que desejam adquirir a casa. Beatty não se dá conta de que a violência é habitual de naquele povoado onde não se dá muita importância a seu charme e carisma. Quando vi No country for old man (Onde os fracos não têm vez), dos irmãos Coen, logo pensei numa longínqua inspiração neste “western” de Altman. Acredito ter razão.
É o mais úmido e barrento dos filmes. Há uma névoa sobre todas as tomadas externas. É como se aquele não fosse um bom lugar para alguém que tão narcisista, cheio de si e “civilizado” como o personagem de Beatty. A trilha sonora de Leonard Cohen sublinha notavelmente o ambiente.
Depois do The Guardian, mas com mais informações, quem sabe…
O Último Concerto (2012), de Yaron Zilberman, ora em cartaz em todas as capitais brasileiras, é uma boa e inesperada surpresa. É um retrato sincero, inteligente, não muito sentimental — considerando-se que é um filme norte-americano — e bem-construído sobre um músico que foi diagnosticado nos estágios iniciais do Mal de Parkinson. Por favor, esqueçam Amor, de Michael Haneke.
Christopher Walken dá um desempenho suave a Peter, um violoncelista muito amado e admirado, verdadeiro eixo emocional da trama e do Fugue Quartet, o qual trabalha junto há 25 anos. Ele é mais velho e mais sábio do que os outros: o primeiro violinista Daniel (Mark Ivanir), o segundo violinista Robert (Philip Seymour Hoffman) e Juliette (Catherine Keener), os dois últimos formando um casal.
O anúncio de Peter a seus atordoados parceiros desencadeia todos os tipos de repercussões dolorosas de grupo. Quando ouvem a notícia percebem que não são livres. O grande sucesso artístico e a história do quarteto comprova que eles cresceram juntos, organicamente, como uma família. Porém, confrontados com a perda de presença tranquila e apaziguadora de Pedro, eles entram em colapso e passam a duvidar de suas escolhas.
O roteirista teve o bom gosto de centralizar a música apenas no Quarteto, Op. 131, de Beethoven, uma peça de maturidade que exige o mesmo do quarteto. Ela, em seus sete movimentos encadeados, fala sobre a finitude, assunto principal de um filme que também nos mostra como funciona a intimidade de um grupo de pessoas talentosas e de como seus egos acomodam-se. Ou não.
Um belo filme adulto. Gostei muito, porém…
Aviso aos músicos: Apesar do enorme esforço e do trabalho que tiveram para aprender a imitar movimentos de músicos profissionais, para a Elena, minha namorada, o filme foi mais complicado. Violinista de sólida formação musical, ela tinha fechar os olhos para não ver as barbaridades cometidas pelos atores nas posturas dos atores fazendo-se de músicos. Por exemplo, quando Robert testa um violino, ele extraiu um vibrato perfeito para uma peça de Sarasate, só que sua mão esquerda está parada…
Era uma noite de concerto da Ospa e já haviam me alertado que os ensaios de segunda e terça-feira tinham sido bons e que eu poderia elogiar alguns solos de inédita compreensão musical, mas, infelizmente, só posso comentar o que vi e ouvi, da forma como vi e ouvi. E, como a Elena estava em recuperação em casa, não fui, não vi nem ouvi. Mas vi um filme por indicação dela. Por ela e ele, fiquei em casa e ri, muito.
Para Roma, com amor é um filme de 2012 de Woody Allen que não tinha visto nos cinemas. É um exemplar que se destaca dos últimos filmes de Allen por ser extremamente engraçado. Nele, são contadas alternadamente quatro histórias. Numa delas, um casal americano, papéis de Woody Allen e Judy Davis, viaja para Roma a fim de conhecer a família do noivo de sua filha, cujo pai revela-se um extraordinário cantor de ópera, mas apenas quando sob o chuveiro. Outra história envolve um italiano comum, papel de Roberto Benigni, que se torna uma inexplicável celebridade. Um terceiro episódio retrata um arquiteto da Califórnia, Alec Baldwin, que visita a Itália com um grupo de amigos, vendo seu passado na pessoa de um rapaz que é seduzido por uma dessas mulheres que buscam, cheias de artifícios, a atenção sexual dos homens em torno. Por último, temos dois jovens recém-casados do interior da Itália. Tudo parece ir muito bem até que a moça se perde pela Roma histórica atrás de alguém que lhe arrume o cabelo. O filme foi um grande sucesso, tendo arrecadado 73 milhões de dólares.
Lembro que o filme irritou alguns italianos destituídos de uma das formas da inteligência, a auto-ironia. Bobagem. Talvez a mais hilariante das histórias seja a do produtor musical “à frente de seu tempo” Woody Allen. Ele resolve levar ao estrelato o cantor de banheiro. O conhecido tenor Fabio Armiliato vive este papel de forma absolutamente brilhante, trazendo para o filme todo o fanatismo dos italianos pela ópera, além da arte milenar dos cantores de chuveiro… Judy Davis está perfeita no papel da cética psiquiatra, esposa de Allen. Nesta história, aparece a primeira italiana típica: a indignada cuidadora do marido cantor e dos filhos. Na segunda história, Roberto Benigni é um burocrata sem graça, até que começa a ser perseguido pela praga romana dos paparazzi, presentes no cinema italiano desde Fellini. Nestas duas partes, temos mais dois arquétipos: a italianuda esbelta, peituda e gostosona e a que esposa que preserva seu casamento, não obstante… não obstante qualquer coisa. A mais internacional das histórias é a da moça cheia de artimanhas que conquista todos os homens que lhe aparecem pela frente. Voltamos à Itália na história do casal que se perde um do outro. É tão engraçada quanto a do cantor. Como muitas vezes ocorre, a mulher é muito mais esperta do que o homem, que casou virgem e que acaba envolvendo-se com uma prostituta vivida magnificamente pela mimética Penélope Cruz. A mulher do interior, coitada, provavelmente jamais será feliz com seu marido catolicão.
O filme é muito bom. Foi saudado tanto por minhas risadas quanto pelas da Elena, cuja cabeça encontrava-se no meu ombro.
Nos últimos meses, estrearam em Porto Alegre dois filmes europeus que tratam os políticos como idiotas. Não que muitíssimos deles não mereçam, mas aqueles retratados no francês O Palácio Francês e no italiano Viva a Liberdade demonstram a decepção do continente com a classe e com a política em geral. Penso ser este um fenômeno mundial e, no âmbito cinematográfico, muito diferente do que víamos no cinema político italiano dos anos 60 e 70. Este repercutia a sociedade da época sob uma grande variedade de enfoques, sempre com políticos e personagens claramente posicionados. Com os pés no neorrealismo de Rossellini e De Sica e forte influência do jornalismo e do documentário, apareceram uma série de extraordinários trabalhos de Bertolucci, Pasolini, Bellocchio, Scola, Monicelli, Risi, Rosi, etc. Eram trabalhos e personagens que defendiam ideias, enquanto que os filmes citados e outras obras atuais revelam um niilismo que vai contra os políticos e a política.
O Palácio Francês nos mostra um político assustador. Com enorme capacidade de trabalho e nenhuma ideologia, ele está em todos os lugares despejando bobagens, além disso, conhece todo mundo, infelizmente. Sem o menor pensamento político, suas decisões e afirmativas dependem do contexto ou das páginas aleatórias de um livro de citações que ele abre em momentos de decisão. O que nos apavora é que qualquer pensamento ou ser pensante corre o risco de ser atropelado pelo político ou por suas conveniências. Conheço um exemplar desses. Onde ele está neste momento? Tentando entrar na política. É candidato a deputado estadual no RS. É assustador, repito, pois não tem a menor formação política, apenas é insuportavelmente ativo.
Já Viva a Liberdade nos mostra um político de esquerda que não tem para onde ir. Com ideias antiquadas e repetitivas, precisando de antidepressivos para seguir a vida, ele opta por sumir quando vê seus índices minguarem nas eleições próximas. Sorrateiramente, o partido o substitui por um irmão idêntico recém saído do manicômio. O que poderia gerar boas risadas, só nos causa tristeza. Os índices eleitorais sobem através de um discurso que não tem nada demais, é apenas sincero. OK, o irmão é bem-humorado e irônico. Também sorri para o público, enfrenta os jornalistas e a oposição. Nada demais, repito. Mas as pessoas se entusiasmam com a novidade que, bem, apenas é mais assemelhada com um ser humano.
Fico contrariado com este voluntarismo ou burrice sem ideologia. A vitória da vontade sobre a inteligência, do oportunismo sobre a ideologia, da disposição sobre o conhecimento, da ação e do senso comum sobre o pensamento é lamentável. Você perguntará: mas Milton, onde está a novidade? A novidade está em que há um crescente espectro de diretores de cinema, roteiristas e produtores — gente que deveria ter um perfil mais ou menos intelectual — que se afastam das ideologias e mesmo da mais simples consideração: a de verificar como alguém se coloca frente ao capital e ao trabalho. Pois, apesar da descrença generalizada, as ideologias permanecem, não obstante as características pessoais.
Ah, as listas de fim de ano… Como suportá-las? E como não lê-las, nem que seja para se irritar com a ausência do filme querido ou com a presença daquilo que se detestou visceralmente? Como resultado de ampla discussão no ambiente Sul21, chegamos a dez livros, mas, devido aos muitos e exaltados apartes, não obtivemos chegar ao mesmo número de filmes. Resultado: são dez livros e onze filmes. Os filmes foram comparados e colocados em ordem de preferência. É a cultura pública e comum de nosso tempo. Já os livros não foram lidos por todos, o que tornou a discussão menos drástica.
Aliás, na lista de livros, tivemos a colaboração de Lu Vilella, da Bamboletras, que não apenas fez sua lista como repassou a lista dos livros mais vendidos de sua livraria, talvez a de público “mais literário” de Porto Alegre. E, nos filmes, algo de estranho: contrariamente aos últimos anos e em contrariedade à legenda da foto abaixo, temos onze filmes consistentemente bons.
Além de Lu Vilella, colaboraram os jornalistas Iuri Müller e Débora Fogliatto, além do historiador Éder Silveira e diversos sites de editoras, dos quais utilizamos textos.
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Os onze melhores filmes de 2013:
~ 1 ~
Tabu
Tabu é grande cinema. E esta afirmativa vem carregada de significados. Pois são as imagens da segunda parte do filme, “O Paraíso Perdido” — trecho com som, mas sem diálogos –, que dão sentido a esta elogiadíssima obra do português Miguel Gomes. Aliás, a seção “O Paraíso Perdido” é uma arrebatadora reconstrução da memória de tempos idos. Tabu foi filmado em glorioso preto e branco e conta uma história de amor. Dele emana um charme passadista, mas sem ranço, devido a uma estrutura narrativa lotada de artifícios inteligentes e de bom gosto. Tudo em Tabu trabalha para a poesia e para a história. Um filme imperdível.
~ 2 ~
Holy Motors
Leos Carax filma pouco, infelizmente. Seus Sangue Ruim (1986) e Os Amantes de Pont-Neuf (1991) são filmes de referência para os cinéfilos. Holy Motors (2012) não é uma obra destinada àqueles que desejam uma história linear e convencional. O Sr. Oscar — vivido por Denis Lavant, ator onipresente nos filmes de Carax — tem um estranho trabalho. Anda de limusine por Paris, recebendo ordens para atuar em diversos papéis que lhe são passados por uma estranha organização. E percorre a cidade cumprindo uma série de compromissos sem nexo entre si, onde humor e drama não estão ausentes. Há uma cena de dança, outra em esgotos e cemitérios, há outra em o Sr. Oscar morre de forma tocante (e subitamente acorda para o próximo compromisso), outra é um crime e assim vamos visitando diversos gêneros cinematográficos que deságuam numa intrigante cena final, onde várias limusines comentam que o mundo não quer mais emoção, no que parece uma crítica ao cinema atual. Quem é sua plateia? Onde estão as câmeras? Qual sua verdadeira identidade?
~ 3 ~
A Bela que Dorme
A Bela que Dorme, o último filme de Marco Bellocchio, tem como eixo narrativo a história real de Eluana Englaro, italiana que passou vinte anos vivendo de maneira artificial e gerou enorme debate sobre a eutanásia no país. Assim, diversos personagens e situações convergem para o drama de Eluana – como o senador que se vê em crise com a política e se posiciona de forma contrária ao seu partido sobre a questão, a filha religiosa do político que se apaixona por um manifestante, e a suicida que busca as janelas de um hospital italiano para pôr fim à vida. Em A Bela que Dorme, estão contidos os temas pendentes da Itália de hoje e o direito à salvação – da ou pela morte – dos seus taciturnos personagens. (Por Iuri Müller.)
~ 4 ~
O Cavalo de Turim
O que Béla Tarr propõe é uma experiência sensorial e semântica inteiramente distinta do que é possível em qualquer outro gênero artístico. O jogo que o diretor estabelece com o tempo apenas é possível no cinema, talvez no teatro. O Cavalo de Turim mostra seis dias de dois personagens — pai e filha — que vivem numa casa de pedra na zona rural da Hungria entre a aridez, o vento e o frio constantes. Falta tudo, tudo é monotonia e tudo é vida, dor e trabalho. (Coincidência, não?) Eles só têm batatas para comer, têm também um poço minguante, um destilado que deve ser parecido com a vodka, creio, e um cavalo velho e doente. Seus dias são iguais, com poucas variações, sempre no aguardo de condições melhores. Talvez a melhor descrição de O Cavalo de Turim seja a de um filme de cenas quase iguais — mas sempre filmadas de forma diferente — sobre a pesada rotina de vidas sacrificadas. Tarr vai curiosamente acumulando tempo sobre tempo e sua insistência acaba por mostrar a força e o cansaço, equilibrando-se entre a tão somente sobrevivência e a provável aniquilação, numa compassiva melancolia da resistência. Duro, mas imperdível.
~ 5 ~
O Som ao Redor
Filmaço. A narrativa é um mosaico de histórias de moradores de uma rua de classe média do Recife. Nela, reside o empresário que expandiu seus negócios na base da especulação imobiliária — e que antes era um senhor de engenho — , o filho temeroso da violência urbana, os dois netos — um que trabalha alugando os apartamentos da família e outro um estudante que arromba carros –, outra família gerida por uma mãe estressada que não suporta os latidos de um cão de guarda. Ou seja, pessoas rotineiras, comuns. Então, o que faz de O Som ao Redor um filme tão significativo e bom? Ora, os excelentes diálogos, as boas atuações e a ousadia e inventividade do diretor Kleber Mendonça, que fez uma inteligente abordagem de alguns temas como o preconceito de classe, a especulação imobiliária, a violência, o racismo estilo Brasil, o consumismo. O Som ao Redor não é um filme experimental, ao contrário, ele abre portas para o diálogo com o público, ao estabelecer um corpo-a-corpo com seu tempo histórico. Filmaço.
~ 6 ~
Amor
Justamente elogiado e premiadíssimo — a fim de dar chance a outras produções, Michael Haneke pediu para ficar de fora de algumas disputas após vencer Cannes e o Globo de Ouro — , Amor é um retrato realista e digno da velhice. É a história de Anne (Emmanuelle Riva, 85 anos, a mais velha indicada ao Oscar de melhor atriz) e Georges (Jean-Louis Trintignant, 82), dois professores de música aposentados que vivem tranquilamente em Paris. O casal faz compras, vai a concertos, cozinham, tomam café da manhã e convivem após décadas de amizade, cumplicidade e amor. É quando Anne tem um AVC, ficando com um lado do corpo paralisado e precisará de auxílio. O filme é extraordinário. Michael Haneke é um dos raros diretores contemporâneos que têm acumulado filmes relevantes, nada esquecíveis. Código Desconhecido, Caché, Violência Gratuita, A Professora de Piano e A Fita Branca são claras comprovações de que este austríaco veio para marcar deixar sua marca no cinema do início deste século.
~ 7 ~
A Caça
Thomas Vinterberg é um grande cineasta. Talvez sua produção seja superior — qualitativamente — a de seu conterrâneo e ex-companheiro de Dogma 95 Lars von Trier. Penso até que Vinterberg seja o que von Trier pretende ser. O diretor tem duas obras-primas em seu currículo: Festa de Família (1998) e Submarino (2010). Neste A Caça, Lucas (Mads Mikkelsen) trabalha em uma creche. Boa praça e amigo de todos, ele tenta reconstruir a vida após um divórcio complicado, no qual perdeu a guarda do filho. Tudo corre bem até que, um dia, a pequena Klara (Annika Wedderkopp), de apenas cinco anos, diz à diretora da creche que Lucas lhe mostrou suas partes íntimas. Klara na verdade não tem noção do que está dizendo, apenas quer se vingar por se sentir rejeitada em uma paixão infantil que nutre por Lucas. A acusação logo faz com que ele seja afastado do trabalho e, mesmo sem que haja algum tipo de comprovação, seja perseguido pelos habitantes da cidade em que vive.
~ 8 ~
Um Toque de Pecado
Um filme extraordinário. Quatro histórias que dialogam entre si, todas elas tiradas da crônica policial, retratando a violência e a mudança de valores na China. Há a cena do funcionário que tenta denunciar a corrupção em sua vila — o resultado é que toma uma surra espetacular e acaba decidindo pegar em armas. Há a cena da moça que, confundida com uma prostituta, recusa os avanços de um “cliente” e é por ele esbofeteada com um maço de cédulas de dinheiro. Pois bem, o capitalismo toma conta do país e o simbolismo de confundir e esbofetear alguém com dinheiro é claro. Aqui, Jia Zhang-Ke faz seu filme mais universal, abordando a criminalidade de um país emergente, misturando gêneros — o policial, a ação taiwanesa, o filme de samurai — para construir uma crônica polifônica da China atual, que é, na verdade, um faroeste.
(Só encontramos o trailer do filme com legendas em inglês. Pedimos desculpas).
~ 9 ~
Azul é a Cor mais Quente
Primeiro filme baseado em quadrinhos a ganhar a Palma de Ouro em Cannes, Azul é a cor mais quente narra a história de amadurecimento, amor e sofrimento da jovem Adèle (chamada Clementine no livro). No início da trama, ela é uma adolescente insegura que encontra uma menina de cabelos azuis e, ao se aproximar dela, entra em conflito com sua própria ideia de sexualidade, com sua família e colegas. O relacionamento de Adèle e Emma, intenso e conturbado, é interpretado de forma realista e sensível pelas atrizes Adèle Exarchopoulos e Léa Seydoux, que também foram reconhecidas com o prêmio de Cannes. As cenas de sexo explícito entre as duas garotas causaram polêmica e geraram críticas da autora da história original ao diretor Abdellatif Kechiche, chegando a classificá-las como pornográficas e a dizer que foram claramente pensadas do ponto de vista de um homem heterossexual. Apesar das pesadas críticas, o coração da HQ de Julie Maroh está no filme: o retrato de uma garota apaixonada lidando com a sua sexualidade, suas angústias e a intolerância da sociedade. (Por Débora Fogliatto).
~ 10 ~
Tatuagem
Com Irandhir Santos em dia ainda mais brilhante do que em “A Febre do Rato” e “O Som ao Redor”, Tatuagem tem na desenvoltura dos seus atores o motivo para os maiores elogios. Ambientado em Recife, o filme de Hilton Lacerda narra a história de amor entre o líder do grupo de teatro “Chão de Estrelas” e um jovem soldado do Exército brasileiro – durante a ditadura militar. A nudez onipresente, a forma com que a dramaturgia toma conta do enredo e as cores do insólito relacionamento (entre cálido, inocente e impossível) fazem com que o encantamento permaneça firme durante os 110 minutos. (Por Iuri Müller).
~ 11 ~
Depois de Maio
Em 1971, nos arredores de Paris, Gilles é um jovem estudante imerso na atmosfera criativa e política da época. Como os seus colegas, ele está dividido entre o investimento radical na luta política e a realização de desejos pessoais. Entre descobertas amorosas e artísticas, sua busca o leva à Itália e ao Reino Unido, onde ele deverá tomar decisões essenciais ao resto de sua vida. Antes de ser o painel de uma geração, Depois de Maio é um filme sobre escolhas. Na primeira cena, um professor diz que entre céu e inferno existe a vida. Na cena seguinte, Gilles já está panfleteando na frente da escola, lembrando que a manifestação foi proibida pela polícia. A manifestação e uma batalha campal acontecem. Os policiais batem a valer. Para onde ir? Belo filme de Olivier Assayas.
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E os dez livros, em ordem alfabética:
Antologia da literatura fantástica,
de Jorge Luis Borges, Adolfo Bioy Casares, Silvana Ocampo
Numa noite de 1937, ao conversar sobre ficções fantásticas, três amigos – Jorge Luis Borges, Adolfo Bioy Casares e Silvina Ocampo – resolveram criar uma antologia com seus autores preferidos. Três anos depois, foi lançada a Antologia da literatura fantástica, consolidada em sua edição definitiva 25 anos depois, obtendo enorme sucesso não só de estima como de público. Do filósofo Martin Buber ao explorador Richard Burton, passando pela tradição dos contos orientais, além de Cortázar, Kafka, Cocteau, Joyce, Wells e Rabelais, são 75 histórias – não só contos, como fragmentos de romance e peças de teatro – que nos apresentam uma literatura marcada pelo imaginário e por um modo diferente de representar a realidade. (Do site da Cosac Naify).
Assim na terra,
de Luiz Sérgio Metz
A longa viagem de Luiz Sérgio Metz pelo sul – viagem talvez de toda vida, mas certamente de um romance – foi publicada ainda em 1995, poucos meses antes da morte do escritor. Editado outra vez em 2013, pela Cosac Naify, Assim na terra pode agora ir além dos elogios da crítica especializada, algo que de alguma maneira já havia conseguido na época do lançamento, para então alcançar os leitores que o romance não teve na década em que foi pensado e escrito. Em Assim na terra, desfilam ideias e escritores, aparecem modernos tratores e seres perdidos no caminho, surgem as transformações que impactam no ambiente rural e no homem. Romance distinto de quase todos os outros, Assim na terra reaparece para os leitores quase vinte anos depois – com a impressão de que ali estão palavras novas, frases que ainda não haviam sido lidas. (Por Iuri Müller).
Barba ensopada de sangue,
de Daniel Galera
Neste quarto romance de Daniel Galera, um professor de educação física busca refúgio em Garopaba, um pequeno balneário de Santa Catarina, após a morte do pai. O protagonista (cujo nome não conhecemos) se afasta da relação conturbada com os outros membros da família e mergulha em um isolamento geográfico e psicológico. Ao mesmo tempo, ele empreende a busca pela verdade no caso da morte do avô, o misterioso Gaudério, que teria sido assassinado décadas antes na mesma Garopaba, na época apenas uma vila de pescadores. Sempre acompanhado por Beta, cadela do falecido pai, o professor esquadrinha as lacunas do pouco que lhe é revelado, a contragosto, pelos moradores mais antigos da cidade. Portador de uma condição neurológica congênita que o obriga a interagir com as outras pessoas de modo peculiar, o professor estabelece relações com alguns moradores: uma garçonete e seu filho pequeno, os alunos da natação, um budista histriônico, a secretária de uma agência turística de passeios. Aos poucos, ele vai reunindo as peças que talvez lhe permitam entender melhor a própria história. (Do site da Companhia das Letras).
Barreira,
de Amilcar Bettega
Fátima mostra Istambul através da janela, como que alcançando a cidade com a mão. Aponta o Haliç, os bairros de Fener e Balat, identificáveis apenas através das luzes. Quem observa do outro lado da câmera é Ibrahim, pai de Fátima, que está em Porto Alegre. Ele logo viajará a Turquia, mas Fátima não estará no aeroporto e tampouco na pensão onde costumava se hospedar. Barreira, primeiro romance do escritor gaúcho Amilcar Bettega, começa com o desespero de Ibrahim, mas se esparrama pelas ruas de Istambul, chega a Paris e não para de encontrar situações mal resolvidas. “Eu queria um livro intencionalmente construído a partir de e entre buracos e pontos obscuros, de maneira que ao final fosse impossível ter-se uma versão incontestável daquilo que o romance contava”, disse o autor sobre o livro que integra a coleção “Amores Expressos”, da Companhia das Letras. (Por Iuri Müller).
Divórcio,
de Ricardo Lísias
O ponto de partida de Divórcio é bastante simples: com cerca de quatro meses de casamento, Ricardo Lísias encontra o diário de sua esposa. Ao abri-lo, lê uma passagem e fica estarrecido. A mulher com quem acabara de se casar, uma jornalista da área de cultura e critica de cinema, se revelava nas páginas de seu diário uma fria arrivista, que via Ricardo com desprezo. Afinal, apesar de ser um escritor promissor, ele passava os seus dias lendo e escrevendo e não possuía grandes ambições materiais. A partir dessa descoberta, acompanhamos pari passu a luta do autor para se recuperar e voltar a escrever e a desconstrução que ele opera do lugar de onde a sua ex-esposa saiu, a redação dos grandes jornais e revistas do país, a partir de um retrato duro de seus atores, os jornalistas. (Por Éder Silveira)
Essa coisa brilhante que é a chuva,
de Cíntia Moskovich
Depois de lançar Por que sou gorda, mamãe?, um dos mais apreciados romances brasileiros em 2006, Cíntia Moscovich apresenta ao público Essa coisa brilhante que é a chuva, volume que reúne contos inéditos escritos ao longo de seis anos e que teve o patrocínio de Petrobras Cultural e do Ministério da Cultura. Com muita originalidade e impressionante sensibilidade, Cíntia Moscovich aborda temas corriqueiros e inevitáveis: o ciúme do filho pela mãe, a adoção de um cachorro abandonado, um jovem casal às voltas com uma reforma na casa. Valendo-se de muito humor — e da tragédia sempre correspondente —, a autora conseguiu uma reunião de contos tão coesos, e tão divertidos, que mais parecem uma só narrativa, tornando a leitura uma experiência única. (Do site da editora Record).
Poética,
de Ana Cristina César
Ana Cristina Cesar deixou em sua breve passagem pela literatura brasileira do século XX uma marca indelével. Tornou-se um dos mais importantes representantes da poesia marginal que florescia na década de 1970, justamente pela singularidade que a distanciava das “leis do grupo”. Criou uma dicção muito própria, que conjugava a prosa e a poesia, o pop e a alta literatura, o íntimo e o universal, o masculino e o feminino – pois a mulher moderna e liberta, capaz de falar abertamente de seu corpo e de sua sexualidade, derramava-se numa delicadeza que podia conflitar, na visão dos desavisados, com o feminismo enérgico, característico da época. Entre fragmentos de diário, cartas fictícias, cadernos de viagem, sumários arrojados, textos em prosa e poemas líricos, Ana Cristina fascinava e seduzia seus interlocutores, num permanente jogo de velar e desvelar. Cenas de abril,Correspondência completa, Luvas de pelica, A teus pés, Inéditos e dispersos, Antigos e soltos: livros fora de catálogo há décadas estão agora novamente disponíveis ao público leitor, enriquecidos por uma seção de poemas inéditos, um posfácio de Viviana Bosi e um farto apêndice. A curadoria editorial e a apresentação couberam ao também poeta, grande amigo e depositário, por muitos anos, dos escritos da carioca, Armando Freitas Filho. Dos volumes independentes do começo da carreira aos livros póstumos, a obra da musa da poesia marginal – reunida pela primeira vez em volume único – ainda se abre, passados trinta anos de sua morte, a leituras sem fim. (Do site da Companhia das Letras).
Toda poesia,
de Paulo Leminski
Paulo Leminski foi corajoso o bastante para se equilibrar entre duas enormes onstruções que rivalizavam na década de 1970, quando publicava seus primeiros versos: a poesia concreta, de feição mais erudita e superinformada, e a lírica que florescia entre os jovens de vinte e poucos anos da chamada “geração mimeógrafo”. Ao conciliar a rigidez da construção formal e o mais genuíno coloquialismo, o autor praticou ao longo de sua vida um jogo de gato e rato com leitores e críticos. Se por um lado tinha pleno conhecimento do que se produzira de melhor na poesia – do Ocidente e do Oriente -, por outro parecia comprazer-se em mostrar um “à vontade” que não raro beirava o improviso, dando um nó na cabeça dos mais conservadores. Pura artimanha de um poeta consciente e dotado das melhores ferramentas para escrever versos. Entre sua estreia na poesia, em 1976, e sua morte, em 1989, a poucos meses de completar 45 anos, Leminski iria ocupar uma zona fronteiriça única na poesia contemporânea brasileira, pela qual transitariam, de forma legítima ou como contrabando, o erudito e o pop, o ultraconcentrado e a matéria mais prosaica. Não à toa, um dos títulos mais felizes de sua bibliografia é Caprichos & relaxos: uma fórmula e um programa poético encapsulados com maestria. (Do site da Companhia das Letras).
Todos nós adorávamos caibóis,
de Carol Bensimon
Cora e Julia não se falam há alguns anos. A intensa relação do tempo da faculdade acabou de uma maneira estranha, com a partida repentina de Julia para Montreal. Cora, pouco depois, matricula-se em um curso de moda em Paris. Em uma noite de inverno do hemisfério norte, as duas retomam contato e decidem se reencontrar em sua terra natal, o extremo sul do Brasil, para enfim realizarem uma viagem de carro há muito planejada. Nas colônias italianas da serra, na paisagem desolada do pampa, em uma cidade-fantasma no coração do Rio Grande do Sul, o convívio das duas garotas vai se enredando a seu passado em comum e seus conflitos particulares: enquanto Cora precisa lidar com o fato de que seu pai, casado com uma mulher muito mais jovem, vai ter um segundo filho, Julia anda às voltas com um ex-namorado americano e um trauma de infância. Todos nós adorávamos caubóis é uma road novel de um tipo peculiar; as personagens vagam como forasteiras na própria terra onde nasceram, tentando compreender sua identidade. Narrada pela bela e deslocada Cora, essa viagem ganha contornos de sarcasmo, pós-feminismo e drama. É uma jornada que acontece para frente e para trás, entre lembranças dos anos 1990, fragmentos da vida em Paris e a promessa de liberdade que as vastas paisagens do sul do país trazem. Um western cuja heroína usa botas Doc Martens. (Do site da Companhia das Letras).
Vida querida,
de Alice Munro
Os contos de Vida querida são ricos como romances – com personagens, tramas e vozes desenvolvidas em toda sua potencialidade -, mas, precisos como pede a tradição do gênero, prescindem de qualquer elemento que não seja essencial. O leitor, conduzido por narradores capazes de segurar a tensão do começo ao fim, se entrega a percursos surpreendentes, anunciados com sutileza e maestria em pistas esparsas. É o caso do conto que abre o livro, “Que chegue ao Japão”: Greta se despede do marido e parte com a filha numa viagem de trem que acaba se tornando uma aventura conflituosa pelos caminhos do desejo feminino; em “Dolly”, um casal de idosos decidido a acabar com a própria vida num gesto de cumplicidade e harmonia recebe uma visita inesperada do passado que irá abalar profundamente seus planos. Como nas demais coleções de contos da autora, mestre da forma breve, nos vemos diante de personagens que caminham nas beiradas da existência, arrancadas do cotidiano por golpes incisivos do destino e da loucura. Mas este Vida querida tem um diferencial que o coloca num nível novo; coroando uma carreira brilhante, a última parte do livro traz as quatro únicas narrativas autobiográficas já publicadas por Munro, que emprega toda a sua habilidade literária para refletir sobre o ato de narrar, a ficção e os temas que regem sua obra: memória, trauma, morte. Vida: vida. (Do site da Companhia das Letras).
Dois grandes atores, um excelente filme de John Schlesinger, um Oscar de melhor de atriz, uma boa história. Tudo isso faz de Darling (1965) um filme muito querido a este blogueiro de sete leitores. Como se não bastasse, Julie Christie e Dirk Bogarde são grandes referências deste que vos escreve. Se o segundo é uma referência cultural, a primeira é sexo-cultural, por assim dizer. Sim, o adolescente e o jovem Milton Ribeiro amavam Julie Christie. Aliás, até hoje não podemos deixar de observar com interesse sua extraordinária beleza. Fiquem com ela.
Eu atravessei a arte moderna e nunca caí na armadilha da melancolia. Eu não proponho ideologias, soluções. Eu creio na luz. Minha luz é fabricada em estúdio, onde fiz até o mar. Eu atravessei o século 20 com personagens da minha infância. Eu fui comunicativo e fácil, quando o correto era o hermetismo intelectual.
Federico Fellini
Fellini foi um grande mentiroso. Tinha o hábito de inventar histórias, de relatar fatos de seu passado que jamais aconteceram. Tais histórias, cheias de pedaços de realidade entremeadas da mais pura fantasia, atrapalha seus biógrafos, os quais concluem que seus depoimentos eram construídos como os filmes do diretor, misturas de sonho e realidade — a maior característica do período final de Fellini. Assim como teria fugido de um circo quando criança, Federico, em seus últimos anos, tratou de se auto-intitular um diretor fácil, comunicativo e alegre. Ele também foi isso, mas dois de seus maiores filmes, talvez os mais vistos, excetuando-se Amarcord – A Doce Vida e 8 ½ – têm, para dizer o mínimo, um mar de melancolia, a armadilha do século XX na qual ele dizia nunca ter caído.
A carreira de Fellini demonstra um realizador em constante evolução. A estrada da vida (1954), A trapaça (1955) e Noites de cabíria (1957) mostram um diretor ainda ligado ao neorrealismo praticado por Roberto Rosselini, com quem tinha trabalhado antes de criar seus próprios filmes. A estrada da vida foi um grande sucesso de público, dando-lhe o Leão de Prata do Festival de Veneza e o primeiro Oscar de melhor filme estrangeiro.
Logo depois, já década de 60, Fellini torna-se mais e mais pessoal, além de caminhar lentamente na direção de incríveis extravagâncias. É a vez do esplêndido A Doce Vida (1960), considerado uma dos maiores filmes de todos os tempos e que inicia sua parceria com Marcello Mastroianni. A Doce Vida mostra a decadência moral e o vazio existencial, cultural e político da sociedade burguesa italiana. Também inaugura um estilo que seria muito utilizado no futuro: o filme coral. Mesmo que ainda mantenha o personagem principal, a tela é povoada por dezenas de personagens que entram e saem de cena sem que o espectador lhes conheça muito mais do que suas feições. Eles entram em cena, dizem uma frase, fazem alguma coisa e vão embora. É também quando aparecem as mulheres fellinianas, normalmente de enormes seios, em La Dolce Vita na pele da belíssima sueca Anita Ekberg.
No filme, Mastroianni é um jornalista que trabalha para uma publicação sensacionalista, enquanto sonha em escrever sobre assuntos sérios. Ele passa a perseguir a atriz hollywodiana Sylvia Rank, personagem de Ekberg, por quem fica fascinado. É através do jornalista que vemos uma Roma entre a dúbia sofisticação e a franca decadência. O repórter tem várias amantes e a cena protagonizada na Fontana di Trevi por Ekberg e Mastroianni é uma das maiores sequências de todo o cinema. Abaixo, colocamos toda a famosa cena. Outra sequência célebre é a da abertura, na qual o jornalista, num helicóptero que transporta uma estátua de Jesus até o Vaticano, encontra uma mulher tomando sol numa cobertura e pergunta pelo seu número de telefone. O barulho do motor impede que ambos possam se entender. Aliás, ninguém parece se entender neste grande clássico.
O notável Fellini 8 ½ (1963) tem sua gênese numa crise interna do diretor. O longa trata minuciosamente da vida de um realizador que não sabe que filme deseja fazer. O título do filme tem origem numérica, pois Fellini fizera 7 filmes e ½, dirigindo seis longas, dois episódios de filmes e co-dirigido outro. É uma grande homenagem ao cinema, assim como O desprezo, de Jean- Luc Godard e A noite americana, de François Truffaut.
O irmão gêmeo de 8 ½ é Julieta dos espíritos (1965) realizado em homenagem à sua esposa, Giulietta Masina. Aqui, a personagem feminina passa por uma crise que a obriga a confrontar seus medos. As sequências visuais fantásticas já fazem antever o último Fellini, o dos exageros.
Roma de Fellini (1972) é outra obra-prima. Meio ficcional, meio documentário, o filme tem atores conversando com o diretor — aqueles olhando para a câmera, prova de total improviso –, cenas cuidadosamente preparadas como a do desfile de moda eclesiástica, e conversas com trabalhadores romanos como em um documentário. Em imensa colagem, Fellini capta toda a loucura, a arquitetura, os habitantes, os turistas, o desrespeito e a sujeira da cidade. Sem trama geral e com ritmo arrebatador, Roma de Fellini faz irrelevantes os personagens. Estes funcionam como catalizadores de cenas; depois, caem fora.
O delicioso Amarcord (1973) explora várias histórias da juventude de Fellini. Foi seu último grande sucesso comercial, escolhido para abrir o Festival de Cannes de 1973 e vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro. Amarcord (forma de se dizer io me ricordo — eu me lembro — em Rimini, cidade natal do diretor), é um verdadeiro manual de casos e sacanagens adolescentes. Entre os personagens estão a família e suas brigas e loucos; um padre que escuta confissões só para dar asas à sua imaginação; Gradisca, a linda cabeleireira; Volpina, a ninfomaníaca; o tocador de acordeão cego; um grupo absolutamente sedutor de estudantes. É um filme alegre e solar, mesmo tendo como fundo o fascismo italiano dos anos 30, como quando o pai é interrogado e torturado por supostamente tocar a International Comunista em um gramofone.
Após a realização de um filme sobre as memórias de sua infância, o diretor dirige seu foco para a famosa figura de Casanova (1976). Trata-se de uma versão pessoalíssima do grande amante. Caro e, em todos os outros sentidos, exagerado, o Casanova de Fellini não agradou ao público e muito menos à crítica.
Ele tratou de compensar a grandiosidade de Casanova em seu próximo filme: Ensaio de orquestra (1979), uma parábola sobre uma orquestra anárquica, filmada em apenas 15 dias, usando apenas um único cenário. Apesar de bastante fora do estilo do diretor, Ensaio de Orquestra é maravilhoso.
Nos anos 1980, depois de ter realizado alguns filmes menores e o grandiosamente mal-sucedido Cidade das Mulheres (1980), ele volta sua atenção para a grande ópera em E la nave va (1985). O longa, que traz um retrato do convés da alta sociedade e dos trabalhadores que estão no porão a sustentar o navio, é um verdadeiro microcosmo da sociedade.
Com seu filme seguinte, Ginger e Fred (1986), ele apresenta uma crítica irônica sobre o mundo da televisão, com seus programas de variedades repletos de anúncios, e sobre o poder magnético das celebridades.
Federico Fellini morreu no dia 31 de outubro de 1991. É considerado um dos mais populares representantes da alma italiana, tendo recebido 4 Prêmios Oscar da Academia de Hollywood. Respeitado pelos cinéfilos mais eruditos, criou uma forma absolutamente única de filme coral. Foi, mais do que nada, um enorme talento que soube contar como ninguém as histórias de grandes e pequenos personagens, de celebridades e de anônimos, sempre com sonho, magia e humor.