Papéis Reencontrados

O dia 24 era um domingo e, no dia seguinte, 25 de setembro de 2006, minha filha completaria doze anos. No mesmo dia 25, o mundo musical comemoraria os cem anos de nascimento de Dmitri Shostakovich. Lá pelas tantas, naquele domingo em acontecimentos, resolvi olhar os e-mails. Havia um do escritor Fernando Monteiro.

Era um poema, uma litania que Fernando escrevera e dedicara a mim — seu geograficamente longínquo amigo — e a Bárbara. Fiquei honradíssimo com a dedicatória, li o poema para minha companheira de dedicatória e aquela Litania nos cem anos de Shostakovich acabou publicada em alguns jornais. Lembro que planejei fazer referências a estas publicações, mas nunca as fiz.

Hoje, ao procurar uns papéis, encontrei a Litania grampeada a outros dois papéis: um da imagem de uma página de 23 de fevereiro de 2007 do caderno “Anexo – Idéias” do jornal A Notícia de Joinville, onde a Litania tinha sido publicada, e outro, um e-mail de Fernando, explicando-me que as alusões “venezianas” do poema — detritos, crianças, gradis, febre, scirocco –, eram uma homenagem a Mahler que, para ele, é o que Shostakovich é para mim.

Fernando, digo-te que meu coração musicalmente promíscuo também coloca Mahler antes do amado Shostakovich…

No final, antes de escrever este post, examinei demorada e amorosamente a primeira folha, a da litania sozinha, onde há a linda e enorme letra infantil de minha filha. Bem sobre o B.R., ela escreveu Bárbara Ribeiro.

Litania nos cem anos de Shostakovich

Fernando Monteiro

Para M.R. e B.R.

O torso de beleza afastando-se
Como se afasta um afogado
Das margens da praia
Também recuada para trás
De onde o Mediterrâneo
Vinha beijar os pés das sílfides,
Debaixo do sol silencioso.

Abandonados pelas crianças,
Os brinquedos da marina
Zunem de calor no metal
Aquecido como as águas.

O planeta está mais quente
E mais enlouquecido
Entre os pios nublados
Do pássaro escondido
Em árvores molhadas
Da chuva ácida que se filtra
De um céu de tempestade.

Aviões caíram nesta manhã,
Levando passageiros
Para o fundo de uma laguna
E o nenhum lugar da selva
Remota que irá retomar
Seu espaço sobre azulejos
Encardidos e embalagens
Não-degradáveis
Num mundo que prefere o desastre.

Tudo o prenuncia, de certa forma,
E nada está perdoado
Nem foi esquecido
Com todas as coisas que já foram
E com aquelas que ainda serão
Ou que apenas dormem na tarde
À espera dos anos sem emoção.

Os humanos repousam
No sono da sombra de toldos
Estalando na Veneza insalubre
Deste lado do Atlântico
De exímios nadadores
que não viram as crianças
Se afogando.

Sim, eu prefiro estar
Por apanhar um resfriado
Antes da peste
No limite da cerca-viva
De mato e detritos do lixo
Avançando até o antigo gradil
De gladíolos brancos.

É minha a opção de não manter
A saúde, fumar e perder esperança
Na vigilância sem objeto,
Exposto ao vento da tarde,
Ao siroco da mente
Igualmente desistindo
Das perguntas a ninguém
Muito depois de Pã
Anunciado como morto
Antes da morte dos mares.

Então, não importa molhar
Os sapatos da espuma de solfejos
Rumorejando as queixas do Adriático
Como outrora o mar dos gregos
Deixava leve gosto de salgado
Entre os artelhos limpos
De náiades banhando-se
Nos oceanos mitológicos
Que hoje são de plástico
Cor de chumbo.

Haydn para blefadores

A série de livros de “Manual do Blefador” (Ediouro) dá dicas a pessoas que não querem passar vergonha entre entendidos. Há vários desses livrinhos: sobre música, vinhos, literatura, arte moderna, filosofia, teatro, etc. Eles são ótimos, engraçadíssimos, como demonstra este verbete sobre Haydn:

Haydn.

O pai da sinfonia. Ao contrário do normal, ninguém soube quem foi sua mãe. Haydn decidiu que as sinfonias deviam ter princípio, meio e fim, primeiros movimentos nas sonatas, nas missas e nos trios. Beethoven, em seu estilo grosseiro, desconsiderou e estragou esse belo modelo convencional.

O sentimento geral é de que Haydn podia ser tão bom quanto Mozart se não tivesse sido tão incuravelmente feliz durante a vida. Esse espírito de contentamento insinuou-se por toda sua música e diluiu-se. As últimas sinfonias foram compostas em Londres para ganhar dinheiro vivo, e a sombra do contrato que pairava sobre ele acrescentou-lhe aquela pitadinha de desgraça que tanto lhe faltara antes. Talvez somente um homem verdadeiramente sem coração poderia ter composto algo tão assombrosamente feliz quanto o final da Sinfonia Nº 88.

Existem muitas e muitas sinfonias que praticamente não são tocadas e que você pode considerar suas favoritas, mas o excelente comentário sobre Haydn é afirmar que o melhor de suas músicas foram as missas — e não haverá necessidade de falar sobre isso.

Peter Gammond — Manual do Blefador: Música

Chacona da Partita Nº 2 para violino solo, BWV 1004, de J. S. Bach, em transcrição espetacular de Ferruccio Busoni e no original

Um dia, eu fiz a seguinte brincadeira aqui no blog:

Numa noite fria do século XVIII, Bach escrevia a Chacona da Partita Nº 2 para violino solo. A música partia de sua imaginação (1) para o violino (2), no qual era testada, e daí para o papel (3). Anos depois, foi copiada (4) e publicada (5). Hoje, o violinista lê a Chacona (6) e de seus olhos passa o que está escrito ao violino (9) utilizando para isso seu controverso cérebro (7) e sua instável, ou não, técnica (8). Do violino, a música passa a um engenheiro de som (10) que a grava em um equipamento (11), para só então chegar ao ouvinte (12), que se desmilingúi àquilo.

Na variação entre todas essas passagens e comunicações, está a infindável diversidade das interpretações. Mas ainda faltam elos, como a qualidade do violino – e se seu som for divino ou de lata, e se ele for um instrumento original ou moderno? E o calibre do violinista? E seu senso de estilo e vivências? E o ouvinte? E… as verdadeiras intenções de Bach? Desejava ele que o pequeno violino tomasse as proporções gigantescas e polifônicas do órgão? Mesmo?

E depois tem gente que acha enfadonha a música erudita…

Há que acrescentar a transcrição (esplêndida, esplêndida) de Busoni para o piano até chegarmos às mãos da belíssima e talentosa Hélène Grimaud. Talvez seja a obra mais perfeita que conheço, ao lado das Goldberg e da Arte da Fuga.

E aqui, o original para violino. Maxim Vengerov — meu violinista preferido dentre os da nova geração — interpreta a obra enquanto caminha pelos corredores e exteriores de Auschwitz. O filme faz parte do filme Holocaust: A musical memorial film from Auschwitz. É absolutamente arrepiante, principalmente porque Vengerov não quis limpar a gravação de seus pequenos pecados. Como o conheço de várias entrevistas, sei que ele gosta de registros ao vivo e não costuma corrigi-los. Deveria repetir a sessão em Gaza.

Are you going with me?, de Pat Metheny e Lyle Mays

Fiquei muito chocado quando uma amiga minha chamou Are you going with me? de “Música de Boate”. Das duas, uma: ou não é ou é e eu perco muito por não frequentar boates. Infelizmente, não encontrei nenhum show do Pat Metheny Group com Mays e a catrefa habitual. O filme abaixo traz Metheny e a North Sea Jazz Festival em 2003. A gravação original de estúdio está no disco Offramp (Turn Left), de 1981.

Inacreditável (e bom) arranjo da Suíte Gogol, de Alfred Schnittke

Não há mais dúvidas que Alfred Schnittke foi um gênio e aqui temos o Scherzo Quartet (“scherzo” significa “brincadeira”, em italiano) interpretando um resumo da engraçadíssima Suíte, a maior das homenagens que poderia receber o mais cômico dos escritores ao lado de Jonathan Swift: Nikolai Gogol. Sendo um emaranhado sensacional de citações, o original para orquestra prevê inclusive que parte dos músicos bebam vodka escondidos do regente, durante a execução. Irreverência pouca é bobagem.

Para não deixá-los só no blá-blá-blá, aqui está o trecho em que os músicos se embebedam. Há uma indicação na partitura para que os músicos tomem vodka e não outra bebida qualquer (a fim de que conseguirem uma interpretação dentro do espírito da música…). O concerto mostrado aconteceu no Conservatório de Kazan.

Schumann: Quinteto para piano, Op. 44 (2 mvto: In modo d'una marcia)

A mim, esta música sempre lembrou meu pai, que a ouvia muito. Após Fanny e Alexander de Bergman, passou a ser a música deste filme. Porém, sobraram outras cem que me trazem o Dr. Milton à memória… Interpretação de Renaud Capuçon e Sayaka Shoji (violinos), Lars Anders Tomter (viola), Mischa Maisky (violoncelo) e com a belíssima Hélène Grimaud ao piano.

El Teorema de Thales & Concierto Grosso alla Rustica & Payada de la vaca, dos Les Luthiers

Uma das muitas criações GENIAIS do Les Luthiers é o Teorema de Tales de Mileto, Op. 48, de Johann Sebastian Mastropiero. A ilustração visual realizada por dois fãs apenas valoriza a música dos cômicos argentinos.

A introdução, lida por Marcos Mundstock no disco original, é a seguinte:

Johann Sebastian Mastropiero dedicó su divertimento matemático, op. 48, el “Teorema de Thales”, a la condesa Shortshot, con quien viviera un apasionado romance varias veces, en una carta en la que le dice: “Condesa, nuestro amor se rige por el Teorema de Thales: cuando estamos horizontales y paralelos, las transversales de la pasión nos atraviesan y nuestros segmentos correspondientes resultan maravillosamente proporcionales”. El cuarteto vocal “Les frères luthiers” interpreta: “Teorema de Thales” op. 48, de Johann Sebastian Mastropiero. Son sus movimientos: Introducción, Enunciazione in tempo di menuetto, Hipotesis agitatta, Tesis, Desmostrazione, ma non troppo, Finale presto con tutti.

O irresistível Concierto Grosso alla Rustica, Op. 58, de Johann Sebastian Mastropiero, é a junção da “sofisticação musical barroca” e de um conjunto de música andina. Não há um mote ou piada claros. É apenas perfeito. ¡Bueno!

A engraçadíssima Payada de la Vaca é, como se pode imaginar, uma payada — trova “gaúcha” em formato de pergunta e resposta.

Para quem não conhece, o Les Luthiers existe há mais de 40 anos e interpreta apenas suas próprias composições. O compositor Johann Senastian Mastropiero é, obviamente, um personagem criado pelo grupo. Sua biografia é crescente.

As letras do Teorema e da Payada:

El Teorema De Thales

Si tres o más paralelas, si tres o más parale-le-le-las
Si tres o más paralelas, si tres o más parale-le-le-las
Son cortadas por dos transversales
Son cortadas por dos transversales
Si tres o más parale-le-le-las
Son cortadas, son cortadas
Dos segmentos de una de estas, dos segmentos cualesquiera
Dos segmentos de una de estas son proporcionales
a los dos segmentos correspondientes de la otra.

a paralela a b,
b paralela a c,
a paralela a b, paralela a c, paralela a d
OP es a PQ
MN es a NT
OP es a PQ como MN es a NT
a paralela a b,
b paralela a c
OP es a PQ como MN es a NT

La bisectriz yo trazaré y a cuatro planos intersectaré
Una igualdad yo encontraré: OP más PQ es igual a ST
Usaré la hipotenusa
Ay no te compliques, nadie la usa
Trazaré, pues, un cateto
Yo no me meto, yo no me meto.

Triángulo, tetrágono, pentágono, hexágono,
heptágono, octógono, son todos polígonos
Seno, coseno, tangente y secante,
y la cosecante, y la cotangente
Thales, Thales de Mileto
Thales, Thales de Mileto
Que es lo que queríamos demostrar.

Quesque loque loque queri queri amos
demos demos demostrar.

Payada de la vaca

Dígame usted compañero

Dígame usted compañero y conteste con prudencia
Cual es la mansa paciencia que puebla nuestras
praderas
Y en melancólica espera con amnegada paciencia
Nos da alimento y abrigo
Fingiendo indiferencia

VERSO 2

No me asusta el acertijo
No me asusta el acertijo y ya mi mente barrunta

Por donde viene la punta de la un la tan difícil
historia

La destreza y la memoria son buenas si van en yuntas
No se ofende si le digo me repite la pregunta

VERSO 1
Nómbreme uste el animal
Que no es toro ni cebú
Que pa ayudar la salud y pa que a usted la aproveche
Le da la carne y la leche en generosa actitud
Tiene cola y cuatro patas
Y cuando muje hace muuuuuu

VERSO 2
No me asusta el acertijo
No me asusta el acertijo porque a mi no me asusta el acertijo
LA VACA!

(Discusión)

VERSO 2
Ya le rimo la respuesta
Ya le rimo la respuesta que de la duda nos saca
El animal que usted dice tiene por nombre la vaca

VERSO 1
Me extraña mucho compadre
Me extraña mucho compadre que sea tan ignorante
Una payada brillante octo sílabos precisa
En el final finaliza y empieza por adelante
Debe tener 8 versos y ser de rima elegante

VERSO 2
No me asusta el acertijo
Le contesto en 8 versos asi su enojo se aplaca
El error que usted me achaca no es error ni es para tanto
En octosílabos canto con rima que se destaca
Con elegancia lo digo sin hacer tanta laraca
La vaca

All that mythology

Pertenço àquele grupo de pessoas que adoram de música e gravações ao vivo. Claro que uma gravação de estúdio deve ser tão perfeita quanto o possível, mas é ao vivo que o artista faz contato direto com seu público; é ao vivo e no entusiasmo causado por esta interação física que temos a expressão mais sincera e direta; é sem a mediação de engenheiros de som, produtores e outros que tais que o verdadeiro artista criará a expressão só passível de ser inventada na presença do receptor. É apenas numa apresentação ao vivo que a música pode ser maior do que quem a executa. Nesses momentos, o artista pode escolher sentimento à técnica e mandar a perfeição às favas em nome da celebração. Mas me entusiasmo e tergiverso…

Acho que nunca Porto Alegre assistiu ao Orfeu de Claudio Monteverdi (pronuncia-se montevêrdi). Por isso e pela beleza da música, foi oportuno o Concerto do StudioClio da última sexta-feira, dedicado a seleções do Orfeu entremeados com explicações de Francisco Marshall a respeito de all that mythology. Num ambiente muito tranquilo e de bom humor, a Confraria Música Antiga apresentou, na primeira parte do programa, algumas peças instrumentais e árias do primeiro grande gênio da música ocidental.

Monteverdi causou sensação com Orfeu, a primeira ópera de todos os tempos. Até aquele momento, em 1607, apenas a poesia lírica fora musicada. Os madrigais duravam de dois a quatro minutos. Então Monteverdi compôs um poema pastoral — uma fábula, como ele próprio a batizou — de uma hora e meia de duração. A tarefa não era nada simples. Ele tinha apenas que descobrir como dar coerência a uma peça com elementos e situações muito diversas por meio de uma nova forma. O que ele tinha na mão? Ora, o madrigal, o recitativo (espécie de canto falado) e sua imaginação. O que ele conseguiu em termos de dramaticidade é espetacular, apesar de utilizar estruturas muito simples e lineares. A história começa alegre e termina em tragédia — com Eurídice (diz-se, em italiano, Euridítche) no quentinho do inferno. Só um gênio com o talento dramático de Monteverdi conseguiria inventar uma nova linguagem que pudesse auxiliar a contar uma história tão cheia de variações de espírito em seu personagem principal. Há um momento especialmente complicado: aquele quando Orfeu pensa que salvará Eurídice e já está prévia e equivocadamente feliz.

A Confraria Música Antiga esteve impecável com Fernando Cordella (cravo). Cíntia de Los Santos (soprano) e Nikolaj De Fine Lichts (flautas) cometeram pecadilhos que só um IMBECIL não relevaria. Pensemos: estamos em Porto Alegre, assistindo a uma peça inédita, preparada para apenas uma noite, pois não há público para mais; ademais, sabemos que a segunda apresentação, aquela para a qual nossa triste cidade não tem público para assistir, é sempre melhor; como se não bastasse, temos uma orquestra sinfônica que só percorre o repertório mais básico, nauseante e batido. Considerando-se tudo isso, eu seria ridículo se perdesse meu tempo apontando os pequenos (mesmo) e DESCONSIDERÁVEIS erros cometidos por quem FAZ CULTURA na cidade. Ainda mais que o conjunto, o ambiente e as explicações nos colocaram perfeitamente no contexto de Monteverdi e de sua ópera.

A segunda parte de all that mythology contou com uma surpreendente e ótima peça de Francisco Marshall e Dimitri Cervo. Solis invictus foi solarmente interpretada por Cíntia de Los Santos, César Rodrigues Pereira (tenor), Dimitri Cervo (piano) e Javier Balbinder (oboé, excelente). Deixou aquele gostinho de ECM New Series no ar. Quem conhece a ECM e seus novos trabalhos sabe que este é um elogio que raros merecem, pois estamos falando ao mesmo tempo de absoluta qualidade e contemporaneidade.

Amanhã à noite (segunda-feira, 21/12), tem mais. O soprano Luísa Kurtz e o pianista Carlos Morejano vão dar um recital certamente superior à foto que acompanha o programa… Conheço o pianista Morejano — é excelente. Luísa Kurtz é colecionadora de boas críticas e pode ser ouvida na gravação abaixo, de som não muito bom, mas onde ficam claras sua potência e belos agudos. O duo está indo para a Itália e o concerto tem nome dramático: Concerto d’addio. Para que não pensemos que se trata de intenção ou ato falho, não seria melhor já deixar agendado um Concerto di ritorno? Hã? Hã?

Carla Bley e seu Tango Reacionário (Reactionary Tango)

Social Studies, um dos discos de capa mais legal que conheço, contém algumas obras-primas da irônica compositora, pianista, militante comunista, arranjadora, big band leader e very big band leader Carla Bley. Ele abre com Reactionary Tango.

Este é um registro de um concerto realizado em Varsóvia em 1981. Notem como a plateia polonesa não entendeu patavina do inglês de Carla e aplaudiu entre os “movimentos”. Carla Bley está ativa aos 73 anos. A absolutamente confiável Camila Pavanelli colocou seu disco de 2007, The Lost Chords Find Paolo Fresu como um dos melhores dos anos 2000. Sim, os títulos de todos os CDs de Bley são lindos.

Abaixo, a primeira parte do notável Reactionary Tango:

E aqui, as partes 2 e 3:

Carla Bley – Piano
Steve Swallow – Bass (genial!)
Arturo O’Farrell – Piano, Organ
Dee Sharp – Drums
Earl Mackintyre – Tuba
Gary Valente – Trombone
Vicent Chancey – French Horn
Steve Slagle – Alto Sax
Tony Dagradi – Tenor Sax
Michael Mantler – Trumpet

Música Mundana, de John Neschling

As pessoas que não gostam de futebol costumam criticar os altos salários dos técnicos e jogadores. É curioso, pois a maioria destas pessoas costumam dobrar-se às regras do mercado em outras áreas e talvez, se a situação fosse outra, achassem absurdo e injusto que aqueles que movimentam tanto dinheiro, com tamanha visibilidade, vendas de ingressos, artigos esportivos, TV a cabo, etc. ganhassem pouco. Começo assim a resenha porque me parece que o grande problema enfrentado por John Neschling, durante sua gestão na Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp), era o salário de R$ 100.000,00.

Pesquisando as críticas que são feitas a John Neschling, noto que há uma fixação em seus ganhos mensais e nos concursos para músicos que eram promovidos pela Osesp. Há fóruns remanescentes que documentam a indignação sobre os concursos. Num deles, mães de candidatos discutem, defendendo seus filhos e atacando os vencedores. Patético. Não o desqualificam por suas interpretações, não o criticam por ter exigido a construção da Sala São Paulo dentro das mais rígidas normas, não falam na profissionalíssima formação da melhor orquestra da América Latina, falam apenas de aspectos periféricos.

Este talvez seja o maior elogio que lhe é feito. Ninguém consegue chamá-lo de incompetente e as dissonâncias que cercam seu nome são uma algaravia menor. Tudo torna-se mais estranho ainda quando pensamos que, se o desejo do Estado de São Paulo era o de ter uma orquestra de primeira linha em âmbito mundial, teria de pagar valores compatíveis com os… das melhores orquestras. Não me parece muito complicado de entender que, para se ter um time de primeira linha, há que pagá-lo.

Música mundana passa ao largo destes aspectos conhecidos dos jornais. Neschling não cita seu salário, nem o justifica ou reclama de quem gostava de divulgá-lo. Também fala pouco sobre a súbita e surpreendente demissão. O cerne do livro é a luta para a formação da orquestra e a construção da Sala São Paulo. É uma bela, gloriosa história, contada com detalhes, precisão e tranquilidade. Os capítulos do livro não obedecem à ordem cronológica; Neschling, inteligentemente, alternou os fatos recentes com outros do passado, que servem de apoio e justificativa para aqueles. Talvez nem precisasse, pois seu amor pela música e pela orquestra que criou está claro em cada palavra e entrelinha. São muito bonitas as narrativas do Rio de Janeiro do final dos anos 50 até a metade dos 60, dos primeiros anos de Europa, dos amigos e do carinho com que são referidos seus professores e o Maestro Eleazar de Carvalho. Além disto, o livro é um pequeno manual de como se fazer uma orquestra. E estas informações são preciosas pelo fato de mostrar como é complicado contar com o arredio serviço público quando o projeto envolve as palavras “inovação”, “primeira vez” e “comprometimento” acrescido de outra: “seriedade”.

John Neschling, apesar de emocionado, culto e elegante, não é um escritor. Há pecados literários em Música mundana. Há repetições e a utilização de lugares comuns aqui e ali. Mas penso que tais falhas fiquem submersas dentro da exemplar e coerente história contada por ele. E a história é a uma variação muito particular de nosso contumaz viralatismo, incapaz de lidar com o sucesso de alguém que, mesmo com o nome de John Neschling, é brasileiro. A reação ao êxito do maestro em primeiro conseguir aval para a construção da melhor sala de concertos da América Latina, depois na criação de uma grande orquestra nacional, e para completar, no imenso sucesso artístico da empreitada, com gravações para a Bis sueca e excursões internacionais, além dos – insuportáveis, insuportáveis – bons resultados iniciais em fazer a orquestra autogerir-se (a Osesp já pagava 20% de suas caras contas através de vendas de ingressos, assinaturas e CDs), veio primeiramente de um grupo de músicos que preferia uma sinecura ao trabalho, mas principalmente do governador José Serra e do presidente do Conselho da Osesp, Fernando Henrique Cardoso.

E tudo por uma entrevista do autor, na qual ele dizia que, não obstante seu amor pela orquestra, admitia ser substituído, apenas discordando dos métodos de escolha. Acabo de reler a entrevista. Nada demais.
As orquestras sinfônicas são um organismo complexo. São mais de cem músicos de diferentes nacionalidades e opiniões, há os instrumentos, uma estrutura cara, divulgação, um conservatório – pois muitos destes são professores e autoridades em seus instrumentos – , ou seja, são egos e mais egos para administrar. E há o mais importante: a qualidade artística. Não é possível administrar tudo isso sem conflitos e não é por acaso que existe farta bibliografia relatando atitudes autoritárias, histéricas, loucas e fascistas por parte de regentes. É que, obviamente, existe uma ligação entre o controle e o desempenho de toda essa gente. John Neschling, é claro, contribuía para aquela bibliografia. Era uma estrela. Para alguns, estrela demais.

Música mundana narra em detalhes toda a experiência daquele que criou uma orquestra de primeira linha no terceiro mundo. Há algo de Fitzcarraldo na grandeza do sonho. Às vezes, parece que o sonhador é perfeitamente razoável, outras vezes parece alucinado. Mas o que podemos fazer se por fim ele conseguiu que o barco singrasse por morros e matas, só morrendo com uma assinatura idiota, tão idiota que não quis nem reconhecer o claríssimo vínculo empregatício de Neschling, fato já reconhecido pela Justiça?

Do Caderno de Anna Magdalena Bach: Bist du bei mir

Paira alguma dúvida sobre quem seria o autor desta ária. O famoso Caderno de Anna Magdalena Bach são dois, um de 1722 e outro de 1725. Os dois são presentes que Bach, seus filhos e alunos deram à segunda esposa de Johann Sebastian. Ela era uma cantora e musicista bastante talentosa e a intenção era a de que ela o utilizasse em casa, para divertir a si e à família. Em ambos, cada um deles escreveu alguma música simples, delicada e curta. Apesar da vontade que todos têm de dar sua autoria ao marido, parece que a apaixonada e severamente definitiva Bist du bei mir, do Caderno de 1725, é obra de um jovem aluno de Bach, um certo Gottfried Heinrich Stölzel. A interpretação é de Klaus Mertens, barítono, e Ton Koopman, órgão.

Ou aqui.

Outro dos muitos motivos pelo qual adoro Brahms

Dando continuidade a este post, mais um movimento lento de Brahms, o Andante do Quarteto para Piano, Nº 3, Op. 60, absurdamente lindo com Martha Argerich (piano), Dora Schwarzberg (violino), Lyda Chen (viola) e Mischa Maisky (violoncelo) em concerto realizado em 15 de junho de 2009 na cidade de Lugano, Suíça. Tratado como deve ser, como uma canção, é de ser ouvir de joelhos.

Ou aqui.

O Imprescindível na Música Erudita – Parte II

Continuando esta empreitada maluca e superior a mim

1722: O Cravo Bem Temperado (Vol.1) – BWV 846-869, de Johann Sebastian Bach (1685-1750).

Um verdadeiro golpe de estado na música. O que Scarlatti fizera apenas instintivamente, Bach sistematizou. O império da separação rigorosa de tons maiores e menores começa aqui. A pureza de cada uma das tonalidades e a faculdade de se utilizar, em qualquer composição, todas as 24 tonalidades possíveis encontra aqui sua Bíblia. É uma profissão de fé a favor das tonalidades (ou temperamentos) iguais. A primeira das duas coletâneas de 24 prelúdios e fugas sob o estranho nome de “Cravo Bem Temperado” é um marco na história da linguagem musical. Trata-se de um manifesto sonoro. É a conclusão, o resultado de um século e meio de pesquisas, por meio das quais a música passou, progressiva e empiricamente, do sistema modal e de temperamento desigual, à estrutura sonora que foi utilizada desde o classicismo e romantismo até a época moderna. Só isso. Como se não bastasse, os 24 prelúdios e fugas deste volume 1 tornaram-se parte do repertório dos pianistas e cravistas por seus méritos musicais, além dos teóricos. Mesmo durante a época em que tantas outras obras-primas de Bach caíram no esquecimento, O Cravo Bem Temperado continuou a ser estudado e trabalhado por pianistas. Até hoje é assim. São modelos perfeitos de escritura polifônica para teclado. Muitíssimas gravações. Destaco as grandes e clássicas gravações de Wanda Landowska (cravo) e de Glenn Gould (piano), mas atualmente fico com a gravação maravilhosa e cheia de detalhes surpreendentes de Daniel Chorzempa (Philips, 4 CDs 446 690-2). Maurizio Pollini acaba se aventurar no volume 1 com excelente resultado.

1723: Magnificat – BWV 243, de Johann Sebastian Bach (1685-1750).

Por que não dizer que são é a versão vocal dos Concertos de Brandenburgo, de tal forma esta música está impregnada de alegria e otimismo? Emoldurados por dois corais (inicial e final), seus movimentos são breves e de características emocionais bem definidas. É grande música; suave e etérea. Talvez tenha que pensar muito para encontrar outra música de tamanha simplicidade e exuberância. Em 1730, Bach revisou esta obra em latim, que é muito utilizada no Natal e na Páscoa pelas igrejas. Nos outros dias do ano, costuma ser ouvida em muitos templos profanos… como nossos apartamentos. A gravação da Naxos (8.550763) é barata e boa.

1723: Os Concertos para Violino – BWV 1041-1043 e 1052, de Johann Sebastian Bach (1685-1750).

Minha mulher não deve ler isto, mas a verdade é que aqui está o melhor Vivaldi que se tem notícia. Bach passou anos estudando, transcrevendo para o órgão e arranjando os concertos de Vivaldi, Marcello e Corelli — compositores italianos que amava. Só que um dia o inevitável ocorreu: ele mesmo resolveu compor concertos italianos e os fez muito melhor que seus modelos. Há muitíssimas gravações excelentes desta música tão popular. Novamente indico a Naxos com seus CDs de bom preço. O Vol.2 dos Complete Orchestral Works (8.554603) é uma jóia. A regência é de Helmut Müller-Brühl e a orquestra é a Cologne Chamber Orchestra.

1729: A Paixão Segundo São Mateus – BWV 244, de Johann Sebastian Bach (1685-1750).

A maior obra de Bach? Talvez. É tão dramática quanto os Oratórios de Handel, sobretudo nos coros do povo, curtos e incisivos; é da mais profunda e sincera emoção religiosa, “capaz de converter um ateu”. Seria preciso escrever muitos posts para dar idéia do terreno em que acabo de entrar. Trata-se de uma obra colossal, síntese incomparável da mística gótica, da devoção luterana e da inspiração dramática do barroco. E é, acima de tudo, acima mesmo de qualquer determinação estilística ligada a este ou àquele período histórico, como uma mensagem que nos chega de um outro mundo que por misericórdia se digna a falar nossa língua. É a Revelação , no sentido bíblico. E aqui escreve um ateu. Dois coros (mais um de crianças), duas orquestras, dois órgãos que se respondem de partes distantes da igreja – herança dos venezianos, novamente – solistas vocais e instrumentais. As árias desta música… Se começo a descrever não paro mais. Aqui serei mais firme: penso que a melhor gravação seja a que John Eliot Gardiner fez para a Archiv com The Monteverdi Choir, The London Oratory Junior Choir e The English Baroque Soloists (427648-2). É cara.

1730: Sonatas para cravo, de Domenico Scarlatti (1685-1757).

Quando alguém fala em Scarlatti, está se referindo ao pai, Alessandro, e não a Domenico, o filho. Este homem tímido escreveu 555 pequenas sonatas de um movimento para cravo e não precisou de mais nada. Durante os dez anos em que esteve ligado à corte portuguesa como mestre de capela e professor de música da jovem princesa Maria Bárbara, D. Scarlatti compôs quase toda sua obra. Há indícios de um “caso psicológico” aqui. Enquanto seu pai era vivo, Domenico escreveu óperas sem importância; depois da morte de Alessandro, enveredou por caminhos totalmente diversos e tornou-se um grande compositor. Maria Bárbara — que depois tornou-se rainha — salvou seu professor do anonimato, fazendo publicar, para seu uso pessoal, os 13 volumes das famosas sonatas, que hoje estão fora de moda. Por quê? Não sei. Entre os anos 70 e 80 gravava-se D. Scarlatti aos borbotões. É música de primeira linha, alegre, onde soam as expressões mais íntimas ao lado dos sons das festas populares ibéricas. As gravações que Ralph Kirkpatrick e Gustav Leonhardt fizeram das sonatas são extraordinárias. Difícilmente alguém encontrará melhor introdução à música erudita do que as belas sonatas no esquecido Scarlatti.

1731: Cantatas BWV 80 e 140, de Johann Sebastian Bach (1685-1750).

Poderíamos passar horas discutindo sobre a melhor das Cantatas de Bach. Há para todos os gostos, mas, além da que já destaquei, tenho que citar estas duas. A espetacular BWV 140 trata da parábola das virgens prudentes e imprudentes, mas ouça antes de rir… O coral central (o famoso Coral dos Tenores) é esplêndido. À melodia do hino que é entoada pelos tenores junta-se uma melodia completamente diferente vinda dos violinos. É de uma doçura raramente encontrada nas cantatas de Bach: aí se descreve a graciosa procissão das donzelas saindo ao encontro de Jesus, o noivo celeste. Já disse, ouça a música antes que seu sorriso se congele. É uma obra-prima! A BWV 80 é uma festa e foi escrita para isso mesmo. Foi ouvida pela primeira vez no Festival da Reforma de 1724 e revisada depois. É música absurdamente bela, cheia de contrastes em que os temas de Bach cantam poemas do próprio Lutero. Um espanto! Só ouvindo. O primeiro coral e a primeira ária (dueto) são inesquecíveis. São cantatas facílimas de achar. A Naxos tem uma grande gravação da BWV 80, mas não sei se ela gravou a BWV 140.

1736: Stabat Mater, de Giovanni Battista Pergolesi (1710-1736).

Morreu aos 26 anos. Dizem que era muito bonito e um conquistador inescapável. Uma lenda conta que um marido ciumento o envenenou. Mas outros o descrevem como feio e aleijado. Não dá para saber. Seu Stabat Mater é muito gravado e executado. Também é de pouca profundidade emocional e NUNCA deve ser ouvido após qualquer obra de Bach. Mas é tocantemente lírico e tem muitos admiradores, inclusive eu. É bonito. A polifonia passa longe de Pergolesi — ele é um melodista e, talvez, um compositor de óperas nato –; os críticos hostis gostam de lembrar que sua grande obra seria a ópera-cômica La Serva Padrona, mas isto só a Claudia, minha mulher, pode avaliar. A ópera é terreno dela. Estou fora. A gravação de 1985 de Claudio Abbado com a London Symphony Orchestra é impecável.

1738: Missa em Si Menor, BWV 232, de Johann Sebastian Bach (1685-1750).

A maior. A campeã. Ler aqui.

Paro ao examinar quais seriam as próximas músicas. São duas obras que mereceriam posts exclusivos, assim como a Missa em Si Menor acima: o Messias, de Handel, e as Variações Goldberg, de Bach.

Bibliografia além da memória:
– Encartes de milhares de CDs e vinis.
– História da Música Ocidental, de Jean e Brigitte Massin. Editora Nova Fronteira, 1997, 1256 págs.
– Johann Sebastian Bach, de Karl Geiringer. Jorge Zahar Editor, 1985, 366 págs.
– Uma Nova História da Música, de Otto Maria Carpeaux. Alhambra, 1977, 356 págs.

Alguns vídeos raros de Shostakovich e um nem tanto de Bernstein

Shosta finalizando com uma rapidez que hoje não se usa mais seu Concerto Nº 1 para Piano e Orquestra, também conhecido como Concerto para Piano, Trompete e Cordas.

Ou aqui.

Tocando ao piano sua Sinfinia Nº 7, Leningrado, em filme russo aos pedaços.

Ou aqui.

Um filme de Shosta fumando e caminhando na rua. Ao fundo, a décima sinfonia, acho eu.

Ou aqui.

Shostakovich acompanhando o ensaio de um de seus quartetos de cordas em 1975, ano de sua morte.

Ou aqui.

E, abaixo, Leonard Bernstein mata a pau no último movimento da quinta sinfonia. Copio aqui em razão de — porra! — este vídeo ter sido visto quase 500.000 vezes no YouTube.

Ou aqui.