Especialistas em conservação na Espanha pediram maior rigor nas leis que controlam os trabalhos de restauração depois que uma cópia de uma pintura famosa do artista barroco Bartolomé Esteban Murillo se tornou a mais recente da longa linha de obras de arte que sofreram reparos ruinosos.
Um colecionador de arte particular em Valência teria sido cobrado em € 1.200 por um restaurador de móveis para limpar a imagem da Imaculada Conceição. No entanto, o trabalho não correu conforme o planejado e o rosto da Virgem Maria ficou irreconhecível, apesar de duas tentativas de restaurá-lo ao seu estado original.
O caso resultou inevitavelmente em comparações com o infame incidente do Macaco Cristo, de oito anos atrás, quando uma tentativa de um paroquiano devoto de restaurar uma pintura do Cristo açoitado, que estava na parede de uma igreja nos arredores da cidade espanhola de Borja, foi alvo de manchetes em todo o mundo.
Paralelos também foram traçados com a restauração fracassada de uma estátua policromada de São Jorge e dos dragão do século XVI no norte da Espanha, que deixou o santo guerreiro parecido com Tintin ou uma figura da Playmobil.
Fernando Carrera, professor da Escola Galega de Conservação e Restauração do Patrimônio Cultural, disse que esses casos destacam a necessidade de que o trabalho seja realizado apenas por restauradores adequadamente treinados.
“Eu não acho que esse sujeito ou essas pessoas possam ser chamadas de restauradoras”, disse Carrera ao Guardian. “Sejamos honestos: são pessoas que estragam tudo. Eles destroem arte”.
Carrera, ex-presidente da Associação de Conservação e Restauradores Profissionais da Espanha (Acre), disse que, atualmente, a lei permite que pessoas se envolvam em projetos de restauração mesmo que não possuam as habilidades necessárias. “Você pode imaginar alguém sem formação autorizado a fazer cirurgias? Ou alguém autorizado a vender quaisquer remédios sem uma licença médica? Ou alguém que não é arquiteto ou engenheiro autorizado a construir um edifício? Embora os restauradores sejam “muito menos importantes que os médicos”, acrescentou, o setor precisa ser estritamente regulamentado para o bem da história cultural da Espanha. “Vemos esse tipo de coisa uma e outra vez e, no entanto, continua acontecendo”.
“Paradoxalmente, mostra o quão importantes são os restauradores profissionais. Precisamos investir em nossa herança, mas mesmo antes de falarmos sobre dinheiro, precisamos garantir que as pessoas que empreendem esse tipo de trabalho tenham sido treinadas. ”
Maria Borja, uma das vice-presidentes do Acre, também disse que incidentes como este de Murillo eram “infelizmente muito mais comuns do que se imagina”. Na entrevista à Europa Press, onde informou “reparo” de Murillo, ela afirmou: “Nós só descobrimos que uma obra foi destruída quando as pessoas denunciam à imprensa ou nas mídias sociais, mas há inúmeras outras situações das quais só ficamos sabendo anos depois ou nunca, pois as coisas desaparecem.”.
As intervenções não profissionais, acrescentou Borja, “significam que as obras de arte sofrem e os danos podem ser irreversíveis”.
Carrera disse que a Espanha tem uma enorme quantidade de patrimônio cultural e histórico em razão da riqueza cultural de todos os diferentes grupos étnicos que passaram pelo país ao longo dos séculos, deixando para trás suas marcas e monumentos.
Outra parte do problema, acrescentou, é que “alguns políticos simplesmente não dão a mínima para o patrimônio”, o que significa que a Espanha não tem recursos financeiros para salvaguardar todos os tesouros de seu passado. “Precisamos focar a atenção da sociedade nisso, para que escolhamos representantes que coloquem a herança cultural em suas agendas”, disse ele.
“Não precisa estar no topo das prioridades, porque obviamente não é como cuidados de saúde ou emprego — mas nossa história é também importante.”
Um militar que acompanhava Bolsonaro na Espanha, onde o avião do débil fez uma escala, foi preso com 39 quilos de cocaína divididos em 37 pacotes em sua mala.
Deve parecer normal para seus eleitores e família.
Ontem, o Óscar Fuchs desenhou sobre o desespero que abate os cartunistas. Mal terminam o desenho de um absurdo e já vem o seguinte e o seguinte e o seguinte. Mas nada se faz contra a usina de escândalos deste “governo”.
Há uma canção de Chico Buarque, Sentimental, onde uma menina de 16 anos que acredita em astrologia afirma simplesmente que “o destino não quis”. Em outro gênero, realmente digno de uma Sherazade, a escritora dinamarquesa Karen Blixen escreveu 5 surpreendentes contos sob o título Anedotas do Destino. Também há uma frase atribuída a Woody Allen: “Se você quer fazer Deus rir, conte a ele seus planos”.
Tudo conspirava para que o jovem Antônio Télvio de Oliveira tivesse uma carreira internacional como tenor. Começou a carreira de maneira fulminante solando a 9ª Sinfonia de Beethoven com a Ospa sob a regência de Pablo Komlós, aos 22 anos. Depois, foi para fora do país, obteve bolsas e mais bolsas de estudo, só que o destino lhe preparou das suas. O mundo deu muitas voltas e Télvio se safou por ter também os talentos de desenhista e técnico em eletrônica. Mas sempre poderá dizer que cantou com Montserrat Caballé antes de ela cantar com Freddie Mercury.
Conversamos com Antônio Télvio em seu apartamento no bairro Petrópolis em Porto Alegre. Vamos à história.
Abaixo, um registro de 1966 onde você poderá ouvir sua voz de tenor. Esta gravação foi realizada na Capela do Colégio Rosário com o organista Camilo Vergara, o Coro de Meninos do Colégio Roque Gonzales e regência de Aloísio Staub.
Guia21: Teu nome completo é?
Télvio: Eu nasci no dia de Santo Antônio, por isso me botaram o nome de Antônio. Antônio Télvio Azambuja de Oliveira, mas eu nunca usei todo meu nome, às vezes uns jornais botavam Antônio Oliveira, outros botavam Antônio Télvio. Na Espanha, me chamavam de “Azambuia”.
Guia21: Como e quando começou o seu interesse pela música?
Télvio: A minha mãe era musicista amadora. Tocava piano de ouvido. A minha vó também tocava piano. A minha casa era muito musical.
Guia21: Faziam saraus na tua casa?
Télvio: Sim. Inclusive minha mãe tinha uma gaitinha de boca que era um chaveiro, ela tocava o Boi Barroso num chaveiro! Era uma musicista nata. Não tenho essa musicalidade.
Guia21: E então, como tudo começou?
Télvio: Bom, quando eu estava no ginásio, havia uns festivais de música, coisa do interior. Minha família era muito social e eu cantava de vez em quando. Então começaram a solicitar que eu cantasse. Eu alcançava uns agudos que nem sei como… Uma vez, nós fizemos uma excursão até Santa Maria para jogar futebol ou basquete. E, à noite, fomos a uma boate chamada Casbah. O local tinha uma decoração de casa de sultão. Aí eu, com meus colegas todos, todos de 18, 19 anos, ouvi alguém gritar: “Esse canta, esse aqui canta!”. E eu tive que cantar no meio de uma boate de estilo Oriente Médio.
Guia21: Sem acompanhamento?
Télvio: Na base da porrada, a cappella mesmo! Cantei umas canções napolitanas naqueles tapetes. Foi um aplauso danado. O cara da boate quis me contratar. Os meus amigos disseram pra ele: “Vai falar com o pai dele, que tu vai levar um corridão”. Meu pai não era muito desses negócios, era o tipo de cara que se escutasse uma buzina de automóvel ou uma canção, era a mesma coisa. E aquilo morreu por ali… Só que eu fiquei com aquilo na cabeça. Aquela música… Eu a cantava em casa. Depois começaram aquelas Ave Marias que eu era chamado para interpretar em casamentos de vez em quando. E eu pensei “Pô, vou estudar canto”.
Guia21: Nisso tu tinhas 16 anos, mais ou menos?
Télvio: Sim, 16, 17, por aí. Naquele tempo eu era meio vagabundo, terminei o ginásio só com 17, não gostava de estudar. Aí vim para o Colégio Rosário em Porto Alegre — vim para fazer o científico, atual segundo grau — e ao mesmo tempo me matriculei no curso preparatório de canto no IBA (Instituto de Belas Artes da Ufrgs) e comecei a estudar. Vamos abrir um parêntese? Minha família costumava veranear em Iraí, naquela estação de águas. Hoje não se fala mais nas águas termais de Iraí, mas naquela época Iraí era um lugar onde ia muita gente no verão… E, certa vez, estava lá dona Eni Camargo. Ela foi uma personalidade muito interessante aqui de Porto Alegre. Ela era cantora e professora na Ufrgs. No hotel onde ficávamos havia saraus de música em que ela cantava e tocava piano. Era uma veranista em Iraí, como nós. Então, em Porto Alegre, antes de começarem as aulas, eu a visitei. Fui lá, me apresentei e a Eni Camargo quis escutar alguma coisa. Eu lembro que cantei Torna a Sorrento. Aí ela olhou pro marido dela, o Osvaldo Camargo, e disse assim: “Olha aí, Osvaldo. Esse cara tem uma voz que parece a do Mario del Monaco. Eu nem sabia quem era Mario… Aí ela me aconselhou a estudar no Belas Artes com a professora Olga Pereira. Eu saí de lá e passei numa loja de discos para ver quem era esse Mario del Monaco, mas a minha voz não era parecida com a dele, nunca foi.
Guia21: E tu entraste no Belas Artes.
Télvio: Comecei a estudar lá em 1959. O canto é um negócio complicado, tu demoras para fazer alguma coisa que preste. Um ano antes de concluir o curso, eu fiz vestibular para Filosofia, que achei que seria fácil de passar. Passei. Entrei na Filosofia por causa do meu pai. Achava que tinha que dar satisfação pro velho, né? Ele queria Direito ou Engenharia. Ele pensava que o Canto não era sério — meu pai ficava estranho comigo quando o assunto era Canto, como se eu fosse viado, sabe como é. O curioso é que eu estudava Filosofia, Canto e gostava muito de eletrônica, vivia criando verdadeiras parafernálias, equipamentos.
Guia21: Tu sempre tiveste duas tendências então, da música e da eletrônica?
Télvio: Desenhava também, mas isso desenvolvi depois.
Guia21: Foi nessa época que tu cantaste a Nona de Beethoven com Pablo Komlós e a Ospa?
Télvio: Aconteceu o seguinte: com o advento do coral da Ufrgs, ficava mais fácil de fazer a Nona. Eu não lembro direito, mas tenho a impressão de que foi a própria Eni Camargo que me apresentou ao fundador do coral propondo que eu solasse a 9ª Sinfonia como tenor. Fui fazer um teste com o Komlós e ele gostou. O Komlós chegou e me disse “depois você vai fazer um dos personagens secundários da ópera Carmen”. Eu respondi que não ia fazer. Ele deve ter me achado o fim da picada, porque eu disse que ele, um dia, ia me convidar para fazer o papel principal. O Komlós me olhou como quem dissesse “que metido!”. (risos)
Guia21: Como era a Ospa naquela época?
Télvio: Naquela época, não havia Ospa como fundação, mas sim como sociedade. Quem sustentava a Ospa era a colônia judaica, que fazia chás e não sei mais o que a fim de sustentar a orquestra. Não era ainda um esquema profissional. Além da sociedade judaica, os descendentes de alemães também ajudaram muito a música de Porto Alegre, eles tinham o Clube Haydn na Sogipa. Então, havia duas orquestras sinfônicas aqui. Para a 9ª, veio para cantar junto comigo o Lourival Braga, do Rio. Uma voz extraordinária, um barítono precioso. Foi uma loucura aquilo! Aí cantamos a 9ª Sinfonia de Beethoven, uma beleza!
Guia21: Onde foi?
Télvio: Foi no Salão de Atos da UFRGS, antes da reforma, claro (foto acima).
Guia21: E o medo do palco? Tu tinhas 21, 22 anos.
Télvio: Eu estava nervoso, é óbvio. Tem aquela história da famosa atriz francesa Sarah Bernhardt. Sarah tinha uma escola de teatro e costumava perguntar para os alunos se eles ficavam nervosos no palco. Um dizia “eu fico bastante nervoso, sim”, outro dizia “eu não fico nada nervoso, entro no palco sem medo” e ela respondia para estes, “é… o nervosismo vem com o talento”.
Guia21: Se o artista não está nem um pouco nervoso, não está mobilizado.
Télvio: Eu sempre fiquei muito nervoso antes de entrar no palco. Me borrando mesmo. Mas, no momento em que dava a primeira nota, eu começava a me sentir poderoso. Acho que com todo músico é assim, apesar de que a música que tu estás sentindo dentro de ti é diferente da que o outro está escutando. Ou seja, tu podes estar te achando o máximo e o resultado não ser o esperado. Quando terminou esse concerto, o presidente da Sociedade de Cultura Artística do Rio de Janeiro me disse que tinha uma bolsa de estudos para dar. Ele me escutou novamente no Belas Artes e me disse que ia me dar a tal bolsa. Eu fiquei num estado de animação total e comecei a contar para todo mundo que tinha ganhado a bolsa, mas não veio nada… Fui trouxa.
Guia21: E seguiste cantando.
Télvio: Depois da Nona, o Pablo Komlós me convidou para cantar O Rei Davi, de Honegger. Eu ensaiei esta ópera como um louco. Até hoje sei tudo de cor, sonho com aquela música. Eu estudei e ensaiei com unhas e dentes aquela música complicada acompanhado pelo pianista Hubertus Hoffmann. Um dia, o Hoffmann me diz que eu não iria cantar O Rei Davi… Que quem ia cantar era a Ida Weisfeld. Eu ri e respondi: “Isso é para tenor, não é para mezzo soprano”. E nem falei com o Komlós, pensei que fosse uma invenção dele. Só que o Komlós realmente fez aquele absurdo e eu ainda assisti. Ela cantou a parte do tenor, acredita? Depois, soube de duas informações contraditórias: a primeira era a de que eu fora considerado muito jovem para o papel, a segunda era a de que eu não tinha aparecido num ensaio geral — o que é uma mentira, eu não tinha sido era avisado. Então, neste ensaio, quando estavam todos me esperando, o Komlós perguntou se alguém podia fazer a minha parte e a Ida apareceu. Deu uma passadinha na partitura com o pianista Roberto Szidon — também ele cantava no coral — e ficou prontinha. É óbvio que aquilo foi uma armação deles, porque ninguém canta O Rei Davi sem muito ensaio, ninguém no mundo canta aquilo à primeira vista. Ela já viera preparada. Assim era a Ospa, um saco de gatos, uma coisa bagunçada, suja. O Komlós criava situações horríveis. Marcava três récitas, convidava a gente para a terceira e ela não saía. Só para fazer a gente ensaiar. Uma vez o Paulo Melo, outro cantor, disse que ia processá-lo se não saíssem todas as récitas. Aí saíram, claro. A Ospa tinha uma aura de sacanagem, de psicopatia.
Guia21: Mas tu acabaste viajando.
Télvio: Sim, com essa mesma 9ª Sinfonia, surgiu uma pequena possibilidade de um curso em Santiago de Compostela. Era um curso de três meses, mas não dava passagem de ida nem de volta. Fui falar com o maestro Komlós e falei pra ele “olha, o Belas Artes me deu uma carta de recomendação para o consulado espanhol”. Então ele escreveu outra, também me recomendando. Eu levei tudo ao consulado e a bolsa surgiu. Tinha um voo da Panair que saía do Rio com desconto só para portugueses e brasileiros. Meu pai fez uma vaquinha para me ajudar. Peguei um ônibus aqui, fui até o Rio e viajei. Passei três meses em Compostela. Só tinha cem dólares, menti para o meu pai que eles iam pagar a viagem de volta. A juventude é assim, né? Não sabia o que eu ia encontrar lá, eu não sabia nada! Parecia que as coisas de lá eram melhores do que tudo aqui, mas não era tanto assim. Na Espanha, cantei em várias audições e recitais, mas quando terminou o curso, bom, e agora José?
Guia21: Teus professores lá eram gente conhecida?
Télvio: Sim. Um monte de lendas: Andrés Segovia, Montserrat Caballé, cantei com ela (foto acima). Estava cheio de artistas internacionais ali. Eu estava apaixonado por uma das cantoras, que era de Barcelona. Outros alunos já estavam se juntando para prestar um concurso em Barcelona e eu pensei “tenho que ir também”. Mas os meus cem dólares não davam cria, pelo contrário! Com recomendações, consegui uma bolsa de 6 meses junto ao Instituto de Cultura Hispânica. Me senti garantido. Me davam cem dólares por mês. Era o suficiente para uma vida bem modesta, então comecei a fazer outros trabalhos, eu sempre desenhei. Lá pelas tantas consegui trabalho. Passaram-se mais 6 meses e renovaram a bolsa. No final deste segundo período, minha professora me perguntou se eu queria retornar para Santiago de Compostela e fazer o curso de lá novamente, tinha todo ano. Eu disse que não, mas me deu medo de ficar sem dinheiro e no fim retornei para Santiago de Compostela, para ganhar por mais três meses. Lá em Compostela foi fantástico. Por exemplo, estreamos uma Cantata do argentino Isidro Maiztegui e eu fiz a parte do tenor.
Guia21: E a paixão?
Télvio: Todas estas andanças pela Europa foram crivadas de paixões por mulheres maravilhosas, muitas delas artistas. E o abandono daquilo lá me deixou muito amargurado. O Sérgio Faraco, que estudou na União Soviética, diz o mesmo. Aquelas mulheres… Entre as cantoras que eu conheci lá há uma que ficou muito famosa e com a qual eu não tive nenhum caso amoroso… Era a Montserrat Caballé. Uma tremenda cantora e um péssimo ser humano. Por exemplo, houve um momento em Compostela que uns cantores argentinos quiseram organizar um recital. E a Montserrat deu apoio, estava auxiliando em tudo. Só que numa aula, ela, com menosprezo, chamou algumas cantoras argentinas de índias. Bem, as argentinas se irritaram, claro. Os brasileiros se uniram a elas e ninguém cantou. Depois, ela foi convidada para cantar no Rio e São Paulo e teve seu visto negado por alguém que sabia daquelas ofensas. Deu a maior confusão e ela só pode vir em outra data. Cantou depois até em Pelotas. Era mais do que temperamental, era uma pessoa deselegante.
Guia21: Cantaste muito na Espanha?
Télvio: Sim, fiz algumas gravações em Barcelona e Madrid. Era estranho porque as pessoas diziam para eu cantar Mozart, mas eu preferia coisas mais pesadas.
Guia21: E no final desta sequência de cursos e bolsas de estudo?
Télvio: Eu falei com Hans von Benda, que se encontrava em Compostela, e ele me sugeriu estudar na Alemanha. Recebi dele uma carta de recomendação para eu levar na Embaixada Alemã. Fui na Embaixada em Madrid. Lá, é claro, me avisaram que eu, como brasileiro, deveria me dirigir à Embaixada da Alemanha no Brasil e não na Espanha. Então eu recebi uma carta que foi decisiva na minha vida. Era uma carta seca, escrita por meu pai, pedindo que eu retornasse imediatamente porque minha mãe estava muito doente, estava mal, seria internada, etc. Houve uma espécie de chantagem emocional, como tu verás. Antes de viajar, eu ainda cantei em Madrid. Lá, entre outras obras europeias, quase todas de câmara, eles sempre pediam para eu cantar brasileiros como Carlos Gomes, Alberto Nepomuceno, etc.
Guia21: E voltaste…
Télvio: Sim, peguei os últimos dólares que tinha, comprei uma passagem de navio e voltei. 15 dias de viagem. Quando cheguei ao Rio, fui à Embaixada da Alemanha – era no Rio na época – e entreguei a carta para estudar lá.
Guia21: E foste ver a família.
Télvio: Bem, a situação familiar em Santiago não era nada trágica. Eles só queriam que eu voltasse. Quando encontrei minha mãe, ela estava bem e disse que quem estava doente era o meu pai. Enfim, era algo confuso. Ninguém estava doente, parecia. Vim para Porto Alegre e, passado um tempo, recebi a resposta dos alemães dizendo que eu tinha que me apresentar em Köln em determinado dia. Voltei a Santiago para me despedir e, talvez, conseguir algum dinheiro com o velho. Então, um tio meu, médico, me disse que meu pai tinha uma bomba no bolso, ou seja, que havia perigo de um enfarto. Me pediu para adiar a viagem em um ano. Concordei em ficar.
Guia21: Perigo.
Télvio: Pois é. Escrevi para a Alemanha solicitando adiamento e os alemães disseram que o adiamento dependeria do orçamento para o ano seguinte. E nunca mais. Eu perdi a oportunidade. Só isso.
Guia21: E o que fizeste?
Télvio: Enquanto eu esperava a tal chamada da Alemanha, voltei a trabalhar com desenho em Porto Alegre. Comecei a me desligar da música. Ainda cantei muito, mas aquilo marcou o início de meu afastamento. Neste período, o Komlós me convidou para cantar I Pagliacci. Eram duas récitas, numa eu ia cantar Canio e em outra o Arlequim. Naquele tempo, era no Araújo Vianna. Tinha um cara que tinha uma carroça puxada por um cavalo, que vendia lanches fora do auditório. E tu sabe que os palhaços tinham uma espécie de carroça onde ficava seu palco.
Guia21: Normal, em O Sétimo Selo, de Ingmar Bergman, os atores têm uma carroça. Eles abriam uma cortina e virava um palquinho…
Télvio: Isso! Exatamente isso! E naquele espetáculo, nós entrávamos, os cantores, os atores, dentro daquela carroça de lanches. O Araújo Vianna é redondo, tem portas largas e o carro entrava no palco conosco dentro cantando, com o cavalo puxando. E começava a história. De noite, o cavalo pastava no gramado ao lado do Araújo Viana. Nunca fugiu. Na segunda récita, veio a maior chuva, foi aquela correria de músicos, com os violinos, tudo. E a ópera não aconteceu mais.
Guia21: O Araújo não tinha cobertura na época.
Télvio: Sim, molhava tudo.
Guia21: E a carreira?
Télvio: Na verdade, eu poderia seguir a carreira de músico fazendo o que a maioria dos cantores fazem: dando aulas. Só que eu detesto dar aulas. Nesta volta, ainda fiz algumas gravações, mas já estava desistindo da carreira. Passado algum tempo, só desenhava e trabalhava com eletrônica. Abri mão de tudo, passei mais de dez anos sem cantar nada, sem dar uma nota. Então, com quase 40 anos, voltei a cantar óperas e cantatas de Bach e Buxtehude. Com a Ospa novamente, ali na Igreja Santa Cecília. A Ospa com suas fofocas e futricos… Bá, eu tinha uma raiva daquilo! Cantei Britten também naquela época.
Guia21: Sobre a tua desistência. Foi uma coisa do ambiente? Não tinha perspectiva?
Télvio: Se eu tivesse ficado na Europa, faria uma carreira musical. Aqui eu não tinha perspectiva. Ninguém tem como seguir só cantando. E eu não queria dar aula.
Guia21: Sim, os cantores dão aula. Quase todos eles dão aula, acho.
Télvio: Eu não gostava e tinha outras maneiras de ganhar dinheiro. Eu publicava revistas de quadrinhos, fazia desenhos para jornais. Cheguei a chefe do departamento de eletrônica da Narcosul Aparelhos Científicos, uma empresa que fabricava aparelhos eletrônicos voltados para a área médica.
Guia21: Sim. Tu te sustentavas, evidentemente. E o que tu publicavas em jornais?
Télvio: Eu criava desenhos para ilustrar matérias, cadernos, tudo. Tenho guardados vários trabalhos meus para o Jornal do Comércio.
Télvio: Já na Narcosul eu fiquei muitos anos. Trabalhei também na Parks com equipamentos para comunicação digital.
Guia21: Mas tu és formado em…
Télvio: Em nada. Fiz um ano de Filosofia só e larguei.
Guia21: Mas e a eletrônica? Como aprendeste, como ela entrou na tua vida?
Télvio: Eu sempre estudei eletrônica. Desde guri, só por diletantismo. Posso mostrar os equipamentos que eu fiz, tu não vai acreditar. Eu até hoje não acredito! No dia em que eu comecei a estudar computadores, a primeira coisa que fiz foi montar um. Fiz ligação por ligação. E funcionava!
Guia21: Mas disseste que voltaste a cantar lá pelo 40 anos.
Télvio: Eu cantava aqui e ali, em concertos e recitais. Com a Ospa, cantei uma operazinha regida pelo Túlio Belardi, mas já me considerava um diletante. Não ganhei dinheiro nenhum com aquilo, nem queria. Aí houve outro fato que aí sim, aí eu disse “não vou fazer mais porcaria nenhuma”. Iam fazer uma ópera sobre os Farrapos e outra sobre as Missões. O autor era Roberto Eggers, que foi o primeiro regente de orquestra aqui em Porto Alegre. Ele escreveu duas óperas: Missões e Farrapos. Dizem que neste fim de semana vão estrear a primeira obra musical que foi escrita sobre a Revolução Farroupilha, uma ópera rock… Não sabem de nada. Um dia, o Emílio Baldini, que era colega meu, professor, me levou até o Eggers para ele me escutar, para a gente fazer a ópera sobre Missões. Aprendi toda a Missões. No dia em que era para começar os ensaios…
Guia21: Isso foi depois do Belardi e as Cantatas?
Télvio: Sim, pós Belardi. Com a Ospa de novo… Confusão daqui, confusão dali, mudaram todo o elenco. O Eggers disse que não ia deixá-los fazer sua ópera. Eu respondi “não, não faz uma coisa dessas. Sou um amador, não vou ganhar dinheiro com isso. Tu não. Não seja bobo. Fica quieto”. Aí, disse para mim mesmo “Bom, encerro. Não quero mais saber desse troço. Enchi o saco”.
Guia21: Tu já estava na Narcosul nessa época.
Télvio: Sim.
Guia21: Na Narcosul tu eras o chefe da eletrônica, certo? E, no desenho, que que tu fizeste?
Télvio: Desenhava para propaganda, desenhava charges, ilustrava matérias, fazia figuras de pessoas. Todo o dia o Jornal do Comércio tinha um desenho meu. Eu guardei algumas coisas, devia ter guardado mais, mas, na época, não dava valor para aquilo.
Guia21: E aí tu te tornaste um ouvinte do PQP Bach.
Télvio: Um grande ouvinte do PQP Bach. Tenho muita coisa de lá.
Guia21: E que papel tem a música hoje na tua vida?
Télvio: Olha, cara, hoje eu estou aposentado, fico no meu canto, mas ouço muita música, sim.
Guia21: Tu passa os dias escutando música?
Télvio: Não. Nunca pensei quanto tempo eu escuto música, mas é bastante. Eu ouço bastante. Só que certamente não ouço mais do que tu.
Guia21: Ouço mais ou menos uma hora por dia.
Télvio: Eu até ouço mais, às vezes.
Guia21: Tu cantarolas por aí?
Télvio: Não. Nada.
Guia21: Nada?
Télvio: Nada.
Guia21: Se tu te entusiasma por alguma coisa, tu não canta?
Télvio: Não canto. Há umas gravações minhas por aí, nem ouço mais. Também fiz várias edições extraordinárias em jornais onde eu desenhava tudo de cabo a rabo, mas não fico olhando.
Guia21: E tu frequentas concertos?
Télvio: Pouco. Esses dias fui ver o ensaio de uma ópera de Mozart. Não cantaram duas árias porque o tenor estava doente. Ele cantou outras, mais fáceis. Não tinha substituto! Isso é inconcebível num lugar sério. Aliás, as substituições são muito comuns, inclusive. Acontece de bons cantores substitutos se aproveitarem dessas oportunidades e roubarem a cena. Isto é, pelo visto a coisa não mudou tanto assim em todos esses anos. Olha, quando tu tens apenas uma opção de vida, “só posso ser cantor”, tu tenta de novo, tu insistes. Quando tu tem várias — eu tinha a eletrônica e o desenho que também me satisfaziam internamente –, tu buscas outra saída.
Guia21: Tu não ficaste frustrado?
Télvio: Eu sempre seria frustrado, porque é impossível abraçar tudo.
Guia21: Porque hoje tu tens 77 anos e a gente ouve que tu ainda tens equipamento, uma voz muito bonita e forte.
Télvio: É, sempre tive uma voz forte, dizem que boa…
Guia21: Isso eu estou ouvindo.
.oOo.
Com decupagem de Nikolay Romanov e revisão de Elena Romanov.
Esse pedaço de Brasil que se convencionou chamar de Rio Grande do Sul passou por maus bocados até que seus limites se consolidassem como hoje se conhece. Em meados do Século XVIII, daria para descrever a situação como uma “zona”, em português atual. Mas sequer era o português que se falava em uma porção surpreendentemente grande de seu território.
Entre 1763 e 1776 os espanhóis, sob o comando do Governador de Buenos Aires D. Pedro de Cevallos, tomaram um belo naco do atual território gaúcho. A confusão começou a partir dos desdobramentos do Tratado de Madri (1750), em que Portugal e Espanha definiram os limites de suas colônias na América em termos mais ou menos geográficos, usando rios, serras e outros acidentes naturais como marco e seguindo o princípio do direito privado romano do utis possidetis, ita possedeatis (quem possui de fato deve possuir de direito). Neste momento, o Tratado de Tordesilhas, raro acordo em que se compartilhava algo que a rigor nem se conhecia, já virara letra morta diante da notável empreitada colonial das duas nações ibéricas.
O novo acordo previa que cada signatário manteria os territórios que então possuíssem. Só que o documento também indicava algumas exceções que incluiriam “mútuas concessões que nesse pacto se iam fazer e que em seu lugar se diriam”. Como pelo jeito nenhum lado havia ficado exatamente satisfeito com o teor do pacto, em 1761 o tratado foi revogado, mas a essa altura dos fatos não havia jeito de resolver a questão de forma pacífica.
O Tratado de Madrid determinava a troca da Colônia de Sacramento, enclave português na boca do Rio da Prata, pelo território das Missões, ainda sob domínio dos jesuítas espanhóis. A ideia parecia correta, mas portugueses e espanhóis esqueceram de combinar com os Guarani, que pelo tratado deveriam mudar de mala e cuia para a margem direita do rio Uruguai. Os Guarani não concordaram e sob o comando de Sepé Tiaraju travou-se o que a história chamou de “Guerra Guaranítica”. Desse episódio ficou a divisa “Esta terra tem dono”, hashtag avant la lettre de inegável apelo de marketing mas algo descolada da realidade, haja vista o desfecho trágico da campanha para os índios.
Embora Portugal e Espanha hajam atuado como uma força de ocupação conjunta para a expulsão dos Guarani, a união assentada em bases muito frágeis pouco durou e em 1763 os espanhóis tomaram a Colônia de Sacramento e ocuparam a vila de Rio Grande, obrigando os portugueses a se refugiarem em Viamão. Nessas circunstâncias, o domínio português se limitava à península de Mostardas ao sul e a um pedaço do vale do rio Jacuí a oeste, até a altura de Rio Pardo, posto avançado de fronteira dominado pela Fortaleza de Jesus Maria José.
Os portugueses tinham plena convicção de que o controle territorial só estaria assegurado se houvesse a ocupação efetiva das terras e desde 1747 estabeleceram-se programas de novas vilas e a migração subsidiada de casais, o que conduz essa história ao ponto que interessa neste momento e que trata da chegada de açorianos ao porto de São José do Tibiquary. Sete casais em 1760 e outros 14 casais em 1764, embora haja algumas dúvidas quanto a esses números.
Quando os açorianos chegaram, por ali já estavam dois bandeirantes paulistas desgarrados, mas o ato inaugural da povoação é de 1764, com a consagração da capela, no mesmo ano em que o Coronel José Custódio de Sá e Faria foi nomeado governador da Capitania do Rio Grande. Se hoje parece um emprego dos mais desgastantes, imagine-se naquela época.
Na metrópole o quadro tampouco era animador. Lisboa havia sido praticamente varrida do mapa pelo terremoto de 1755 e em 1760 o ouro de aluvião das Minas Gerais já havia se esgotado, cortando o fluxo de recursos que permitiu o enriquecimento de uns poucos portugueses e, diz a lenda, ajudou os ingleses a formarem uma reserva que fundou as bases do capitalismo contemporâneo e financiou a revolução industrial.
Largadas no fim do mundo português na América, a pouco mais de 50 km de seu limite efetivo, na cidade de Rio Pardo, longe e demais das preocupações mais comezinhas da corte, a chegada das famílias açorianas não deve ter sido exatamente tranquila, mesmo diante da perspectiva de habitar uma das primeiras – senão a primeira, cidade projetada do vastíssimo território lusitano da margem ocidental do Atlântico.
O Governador Sá e Faria, como sugere seu nome, faria tudo o que estivesse a seu alcance para garantir o sucesso da empreitada colonial e em carta de 10 de janeiro de 1768 ao Vice-rei, Conde de Azambuja, não só informa que o núcleo urbano já estava formado como assevera que “(…) no passo do Rio Tebiquary, fiz um grande forte de terra batida, capaz de vinte peças de artilharia.”
Os espanhóis nunca transpuseram a “tranqueira invicta” de Rio Pardo e do forte de terra batida não restou vestígio, nem mesmo na memória da grande maioria dos taquarienses. Algumas fontes chegam a duvidar de sua existência e, considerando o quadro geral, é bem possível que ninguém da corte se desse ao trabalho de confirmar a afirmação do Sr. Governador, que talvez sabedor da importância de demonstrar eficiência para a manutenção de seu posto possa ter exagerado um pouco na autopromoção em sua comunicação com o Vice-rei.
No Rio de Janeiro
Essa história agora se volta para o que foi o centro do poder colonial, a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Mais exatamente para o Palácio Duque de Caxias, que abriga o Comando Militar do Leste e que foi sede do Ministério da Guerra até a transferência da capital para Brasília. O edifício está na Av. Presidente Vargas, ao lado da Estação Central do Brasil. Quando de sua construção, era o maior prédio público do país e, malgrado a ironia arquitetônica, parece saído diretamente do classicismo soviético.
No vetusto QG está o “Arquivo Histórico do Exército – AHE” e após transporem-se os procedimentos regulares de identificação para o acesso a qualquer dependência militar, aguarda-se em uma sala de espera que revela que os efeitos da crise fiscal não poupou em absoluto a caserna. Cadeiras rotas, uma roleta para identificação com cartão magnético mas que tem ao lado uma soldado relativamente entediada que diz a cada um que se aproxima “é só passar direto”, lembrando sempre que é necessário manter o crachá à vista. No caso dos consulentes do arquivo histórico, é necessário aguardar que um militar desça e os acompanhe até o terceiro andar, onde está a sala de consulta. No turno da tarde, o horário para consulta é o que se pode chamar de enxuto, indo das 13h às 14:45h. Descontando-se a espera de uns vinte minutos pelo militar acompanhante, nesta tarde chuvosa de agosto restaria pouco mais de uma hora para o que se pretende fazer.
Ali, na primeira visita ao acervo, é necessário aguardar o oficial responsável, um simpático e amabilíssimo capitão em trajes civis, que pede que seja novamente identificado o material que se pretende consultar e se preencha uma ficha, embora uma versão já tenha sido enviada anteriormente, quando se fez o primeiro contato necessário ao procedimento de consulta.
Uma dúvida quanto ao teor do que está sendo buscado faz com que o capitão conduza o ansioso pesquisador até uma outra sala e, confirmado o conteúdo, o código de catalogação é anotado em uma ficha que é repassada a outro militar, responsável por buscar o material na mapoteca, que está em outro local do gigantesco complexo. No presente caso era assim: 5 RS 07.03.1480 e 5 RS 07.04.1593.
Mais uma espera, os minutos escoando inapelavelmente, até que duas pastas de cartolina grossa são depositadas sobre a mesa em que se daria a consulta. As pastas são do tamanho exato de seu conteúdo e minuciosamente vedadas com fita adesiva marrom, com a exceção da abertura por onde se retira o material que se pretende analisar.
É uma sensação inusitada. As mãos suam dentro das luvas de vinil e as têmporas vibram um tom acima do normal. De dentro de duas saem a “Planta da Villa de S. Joze que novamente se erige na margem oriental do rio Tabiquary (sic)” e o “Projecto para o Forte do Paso do Rio Tibiquary”. O papel amarelado, algumas marcas, letras manuscritas, o desgaste implacável do tempo, os traços precisos e refinados ali, ao seu inteiro dispor, em um quartel no Rio de Janeiro. Por onde passaram em um quarto de milênio? Quantos taquarienses um dia tiveram essas duas folha de papel em suas mãos? O que se sabe exatamente de tudo isso?
O exército não dispõe de estrutura para a digitalização e a remoção das obras das dependências do AHE nem se cogita. Resta a possibilidade de fotografar e manusear o fantástico material, virar do avesso, tentar entender cada minúcia antes que a sensação única que esse contato permite se perca nos desvãos da memória, nos minutos que restam até o encerramento do horário de consulta.
A Planta da Villa tem 39,5 x 27,5 cm e está emoldurada como um quadro, em um paspatur azul de papel grosso, sem que se veja seu verso. O subtítulo já desperta uma curiosidade que se prevê insaciável. Como assim, “que novamente se erige”? A cidade alta e planejada se contrapunha à ocupação espontânea que teve início junto à foz do arroio Tinguité?
A planta mostra um pedaço da cidade que qualquer um que a conheça identifica à primeira vista. A igreja, a praça e o traçado ortogonal das ruas do entorno, embora se perceba que os povoadores não tomaram a planta ao pé da letra. Há uma estreita “rua para serventia dos quintais” nos fundos da primeira linha de casas perpendiculares à praça que provavelmente foi incorporada aos terrenos ali implantados. Estão também indicadas as “cazas para o vigário” e as “cazas para câmara quando a houver”, uma de cada lado da igreja. Uma cidade nascendo antes mesmo de ter o poder legislativo constituído, antes ainda da Revolução Francesa e da popularização da ideia de separação dos poderes.
Há também a indicação da posição de “Praça para Pelourinho” que se um dia houve foi absorvida pela malha urbana. A cidade colonial evolui engolindo seu passado, mesmo que muitas vezes ele a assombre de uma forma ou de outra.
Na porção inferior da planta encontra-se ainda um “prospecto de hua ilha de cazas para quatro moradores com MN.”, que indica um conjunto de quatro unidades habitacionais que configurariam a frente das quadras desenhadas acima. O padrão janela-porta-janela, o telhado em quatro águas e a cumeeira paralela à rua trazem para os confins da América um pouco de geografia urbana dos açores, revelando a preocupação de quem as projetou de oferecer a seus futuros moradores um espaço algo familiar, ainda que do outro lado do mundo.
Já o “Projecto para o Forte do Paso do Rio Tibiquary”, um retângulo de 43 x 28 cm de uma beleza delicada e repleta de detalhes que revelam claramente a preocupação estética do autor, além dos objetivos defensivos que levaram à sua confecção. Há uma rigidez militar na simetria do polígono forte, apesar das marcadas diferenças entre sua parte frontal e a retaguarda.
É visível o cuidado extremado do autor no acabamento, no sombreamento que sugere a declividade dos talude, no marrom mais claro do fosso, na precisão milimétrica do desenho das baterias e na ornamentação da barranca do rio, onde se veem tufos de vegetação herbácea, o que sugere tratar-se de um sítio já plenamente conquistado, onde a vegetação ciliar já fora previamente removida.
O corte apresentado na direita do projeto permite que se tenha uma ideia da robustez pretendida para a fortificação, embora uma estrutura de terra batida junto à linha d’água pareça algo temerário. Ou quem sabe nesse tempo as cabeceiras virgens do rio enorme atenuassem as grandes cheias que causariam transtornos tantos anos depois?
A tinta usada para colorir o rio deve haver afetado o papel de uma forma distinta do resto do documento, e ali o papel está muito fragilizado, com algumas rupturas e a perda de fragmentos. Todo o documento apresenta marcas de desgaste, com alguns vincos acentuados que dão uma ideia das voltas que pode ter dado até repousar na gaveta de uma mapoteca no centro do Rio de Janeiro.
No extremo superior do projeto, no talude à direita da ponte se vê um elemento curioso, que não se repete em nenhum outro ponto da área fortificada. Ali, serpenteiam duas linhas paralelas que parecem indicar a presença de um curso d’água, um arroio ou uma sanga que quem sabe alimentaria o fosso ou mesmo poderia abastecer de água a guarnição ali instalada, em caso de cerco.
Não há uma rosa-dos-ventos ou um sistema de coordenadas para indicar a posição da estrutura no terreno, mas uma olhada rápida no Google Earth permite que se suponha que o projeto esteja orientado como um mapa, com o norte para cima. O rio Taquari, cujo traçado se orienta no sentido norte-sul de Muçum até encontrar o Jacuí Triunfo, do arroio Tinguité ao passo e na escadaria do porto está orientado de oeste para leste, com a margem esquerda exatamente na mesma posição em que se apresenta no desenho, em um claro indício quanto à localização exata do forte. Se um dia efetivamente existiu, é uma outra conversa.
Contrariando as palavras do Governador Sá e Faria na carta ao Vice-Rei, ao invés de vinte baterias a estrutura do forte indica o posicionamento de dezoito e sua disposição não deixa dúvida quanto à preocupação defensiva. Desses dezoito espaços previstos para a colocação dos canhões, doze estão voltadas para o rio, na parte inferior do projeto. Outros quatro se dirigem aos flancos da estrutura e somente dois guarnecem a retaguarda voltada para a cidade alta e onde se localiza a ponte de acesso ao forte, sobre o fosso, esse, por sua vez, com profundidade suficiente para dificultar qualquer tentativa de escalada.
Além da diferença no número de canhões do desenho do forte e da carta do Governador, outros detalhes reforçam a aura de suspeição que paira sobre sua existência. Nas convenções da época, em vermelho estariam representadas as estruturas já existentes e o amarelo indicaria algo em planejamento ou projetado. Na porção central do desenho, à esquerda, se vê um pequeno retângulo em vermelho, com um detalhe em preto que a primeira vista se parece a uma cruz, mas que também pode ser interpretado como um canhão. Uma única peça em posição mais elevada, quiçá precursora de uma estrutura que pode nunca ter sido efetivamente erigida.
Até onde se sabe, o projeto do forte seria de autoria do próprio Governador, formado em engenharia e arquitetura na Academia Militar das Fortificações de Portugal, em 1745. Sá e Faria foi enviado ao Brasil como membro da Comissão Demarcadora que iria estabelecer os limites das possessões de Portugal e Espanha na América e sua nomeação como Governador, em 1764, está diretamente relacionada à necessidade de reforçar as defesas do território gaúcho por conta da invasão castelhana, posto que deixou em 1769 para regressar ao Rio de Janeiro onde, entre outras tarefas, idealizou o projeto da Fortaleza da Ilha das Cobras.
Apesar da autoria atribuída à Sá e Faria, no canto inferior direito do projeto se lê “pelo Sargento Mor Manoel Vieira Leão”, segundo consta responsável pela construção do forte. Seria dele também a “Planta da Villa”, embora essa informação não conste de seu desenho. O destino desses dois militares cuja presença no território sul-rio-grandense deixou tantas marcas ficou, no entanto, muito distante das glórias que lhes pareciam reservadas diante da importância dos serviços prestados.
Em 1776 os dois estavam no Rio de Janeiro, o Governador Sá e Faria promovido a Brigadeiro e Manoel Leão com o posto de Major, quando foram enviados para Santa Catarina, para organizar as defesas da ilha para conter a iminente tentativa de invasão pelos espanhóis, novamente sob o comando do já notório D. Pedro de Cevallos, agora Vice-rei do Rio da Prata e que desde 1763 andava assombrando as posições portuguesas no sul do Brasil.
Quando os espanhóis tomaram a ilha de Santa Catarina em 1777, coube ao Brigadeiro Sá e Faria negociar os termos da rendição da guarnição portuguesa. Surpreendentemente, de lá partiu com Cevallos para Buenos Aires de onde nunca mais voltou, tendo sido figura de destaque no urbanismo da região, com projetos tanto na capital do Vice-reino como em Montevidéu, Colônia e Maldonado. Viveu o resto de seus dias na Argentina e está enterrado no Convento de Santo Domingo, em Buenos Aires, com o nome castelhano de José Custodio de Sáa y Faria.
Já seu subordinado Manoel Leão teve pior sorte e foi levado preso ao Rio de Janeiro, acusado, juntamente com outros oficiais, de leniência na defesa da ilha de Santa Catarina. Em 1780 teria sido transferido para Lisboa para o cumprimento da sentença até 1786, quando a Rainha D. Maria I o perdoa de todas as acusações e ordena que seja reformado no posto de Major.
Um detalhe curioso é observado na margem inferior, no verso do projeto. Em letra perfeitamente legível está a seguinte indicação “Fortaleza de Taramandahí – Tibiquarí”, no que parece ser um equívoco fixado para sempre do responsável pela catalogação do projeto em algum momento de sua larga trajetória por arquivos militares. A cor da tinta é distinta da que foi usada no lado frontal e a grafia da palavra que corrige o erro é distinta do título que se lê no título do documento (Tibiquarí x Tibiquary).
Não há qualquer indicação de data em nenhum dos dois documentos é muito provável que tenham sido confeccionados em período muito próximo, o que corroboraria o notável esforço empreendido pela coroa portuguesa para a implantação do núcleo urbano perdido nos confins de seu território ultramarino e para sua proteção.
Em qualquer lugar
Três minutos antes do horário marcado, o capitão entra na sala dos pesquisadores e em tom bonachão vai dizendo “bom, todos os mapas já foram vistos e fotografados…” e deixa efetivamente as reticências no ar, enquanto o militar encarregado do transporte de volta para a mapoteca gentilmente ajuda a recolocar o material em seus envelopes e logo desaparece com eles debaixo do braço.
A “Planta da Villa’ e o “Projecto para o Forte” voltarão a repousar em uma sala gelada, a espera de alguém um dia volte a manuseá-los, ou quem sabe até que haja condições para sua digitalização e que a possibilidade de ao menos vê-los no esplendor de seus detalhes esteja ao alcance de qualquer um que se disponha a procurá-los.
A Carta de Pero Vaz de Caminha, a partir da qual se dá a construção da ideia de Brasil, mesmo antes de haver qualquer certeza sobre a real extensão do achamento relatado, está depositada no Arquivo Nacional Torre do Tombo, em Lisboa, e com meia dúzia de cliques é possível ver cada uma de suas página na tela de um computador.
Os documentos sob a guarda do exército brasileiro num quartel no centro do Rio de Janeiro são admiráveis. Neles ainda se percebe o admirável de Portugal, dois séculos e meio depois daquela carta inaugural, para garantir a soberania sobre um pedaço de terra no fim do fundo da América do Sul, identificando Taquari como um local chave para suas pretensões, a tal ponto de prever uma ocupação planejada de sua parte alta e a construção de um forte capaz de deter o invasor espanhol na hipótese, naquele momento bastante plausível, de ele transpor a posição defensiva de Rio Pardo.
Taquari tem o direito a ter acesso, ainda que virtual, a esses documentos fundadores de sua história e que, guardados numa gaveta anônima, são simplesmente desconhecidos da grande maioria de seus cidadãos.
Dentre as figuras exponenciais da cultura do século 20, nenhuma outra teve a sua vida ligada, tão tragicamente, a fatos extremos da polaridade política Direita x Esquerda quanto Federico García Lorca, o grande poeta espanhol assassinado no dia 19 de agosto de 1936, num recanto à margem da estrada Víznar-Alfaca, na sua província natal.
Lorca era andaluz, e foi fuzilado dois dias depois de ser preso por uma milícia fascista, na sua cidade, a Granada da Alhambra encarapitada nos morros que a cercam assim como, até hoje, a memória de Federico segue preenchendo a história granadina e contribuindo para fazer de Andaluzia um dos destinos turísticos mais carismáticos da Europa.
De certo modo, Granada se tornou duas legendas: Alhambra & Lorca – uma no seu esplendor arquitetônico e outro nos seus cantares “gitanos” e, por fim, no pranto de condenado à morte quase podendo ser ouvido pelos amigos e pela família detentora de boas propriedades de gente abastada, na cidade e no campo.
Quando alguém as visita, é possível deduzir, de imediato, que um fuzilamento assim, uma agressão fatal contra o membro mais destacado – intelectualmente – daquela linhagem andaluza, teve algo de “afoito” demais, de muito brutal e despropositado, por assim dizer, mesmo para o bando de fascistas aos quais tudo foi atribuído como intenção de prender, decisão de “julgar” (mais que sumariamente) e ordem, por fim, de executar sem mais delongas.
Quem foi o responsável? E por quê?
Essa pergunta esteve posta desde que começou a circular largamente a notícia da morte do homem que, segundo relatos da época, chorou na madrugada, diante do inacreditável fato de que iriam realmente fuzilá-lo de face para aquela manhã clara da Andaluzia que ele, filho da região, havia cantado em versos imortais.
Haveria motivos para matar um poeta já muito conhecido, um jovem com um vasto círculo de amizades na Espanha e também no exterior? Sabemos que fascistas são temerários (a palavra é essa), mas sempre houve algo de estranho nesse crime, além de obscuridades diversas, telefonemas vários, discussões, ordens e contraordens… e até uma arma apontada para o subgovernador militar de Granada – por um fascista da Falange! – em defesa veemente do preso.
É preciso, na verdade, recontar um pouco dessa tragédia, desde antes da manhã fatídica e, para isso, devemos ver Federico, ainda em Madri, sendo desaconselhado no intuito de seguir “para casa”, justamente para fugir dos perigos políticos da capital, naquele primeiro ano da Guerra Civil. Os amigos tentaram fazê-lo desistir da viagem e permanecer entre eles. Alegavam que, na pequena Granada, ele estaria muito “mais exposto” do que na grande cidade, porém o poeta retrucou que lá, na sua Andaluzia, todos o conheciam e sabiam das suas origens etc. Ninguém conseguiu demovê-lo da ideia de proteção (ligada à família tradicional) e, assim, o poeta viajaria para Granada – e para a morte.
GRANADA PRESTES A EXPLODIR
Os amigos de Lorca tinham razão. O poeta iria encontrar na Granada antigamente “mágica”, os eflúvios de ódios desatados à direita e à esquerda, no estreito ambiente limitado por muros seculares. Sim, ele era conhecido, para bem e para mal, como poeta e jovem boêmio de vida mais ou menos dissipada (e gostariam de dizer, claramente, a palavra derrisória para homossexuais: “maricóns”)…
A cidade estava inevitavelmente alterada por medos, rumores e rancores velhos de antes da guerra. Circulavam boatos em torno de prisões já decretadas, e o seu nome teria sido mencionado. Assim, de acordo com recomendações familiares, Federico se transferiu da sua casa para, algumas ruas depois, uma mansão de amigos dos Lorca-García: os Rosales igualmente bem relacionados, porém com integrantes da Falange ((a sinistra agremiação política identificada com o “nacionalismo” de Franco) dentro de casa, do mesmo modo como também um poeta ainda adolescente, Luis Rosales, mais tarde autor da obra-prima La Casa Encendida. Parecia seguro e conveniente para a proteção do rapaz das noitadas madrilenas.
Neste momento no qual acompanhamos FGL seguindo para abrigar-se no meio dos Rosales, é preciso notar uma primeira discrepância, talvez, com relação ao futuro matiz da lenda que, dias depois, começará a ser fixada pela última manhã do poeta máximo da moderna literatura espanhola (em termos de repercussão internacional). Nela, nessa aurora nascida para a morte – inesperada –, começaria a se compor o retrato sacrificial, isto é, a efígie coberta de sangue de uma vítima republicana a mais ilustre possível: o bardo dos “amores bruxos”, o cantor do romanceiro das estradas de saltimbancos, o vate andaluz, o “herói” em queda pelo lado esquerdo do peito varado pelas balas da Guarda Civil e outras hostes fascistas que levaram o ditador Franco a esmagar a Espanha por quatro décadas de autoritarismo, repressão violenta e controle absoluto de um povo tão difícil de domar quanto um miúra bravo nas “plazas” de areia e sangue.
Sangue, sim, se derrama por toda a ardente península ibérica, mas, ali na Espanha, ele se concentra como coágulos nos Cristos deitados nas catedrais escuras, no espetáculo dos touros (e dos toureiros) e nos ferimentos graves de um conflito interno que, em agosto de 1936, iria envolver o gênio de Andaluzia até arrastá-lo para morrer como um animal de abate, naquele morticínio maldito para todos.
Esse “para todos” introduz a maior parte das dúvidas que vêm se alargando, há anos, sobre quem realmente matou Lorca, ou seja, sobre quais nomes e quais motivos se ocultaram, talvez, num assassinato que ganhou a aura, imediata, de barbaridade máxima nessa confusa quadra da história do pais de Cervantes. E, desde já, parece que temos de abandonar uma querida certeza acalentada por décadas: a do Lorca sacrificado em nome da ideologia – pois há que encarar a face, menos exposta, de um poeta lírico que não foi nenhum Quixote, não pretendia ser um paladino das esquerdas e, pelo contrário, estava em fuga das bandeiras e das fumaças da frente de combate. Federico era praticamente apolítico – segundo a unânime opinião dos que o conheceram – e até teria nutrido, num certo momento, uma velada simpatia por “governos fortes”, por autoridades que pudessem por “ordem” naquela casa, mais do que caótica, da Espanha da primeira metade do século passado.
Isso foi confirmado por Luis Rosales, a respeito de um artista no auge do sucesso, como poeta e dramaturgo, quando a guerra estalou, fraticida. Naquela altura, mais do que nunca um Lorca vivaz, um ser risonho e animado e tudo o mais, mantinha outros interesses muito para além da política que nenhum dos seus colegas da famosa “Residência dos Estudantes” e amigos das letras, do teatro e da boêmia de Madri enxergaram, jamais, no horizonte do rapaz bem nascido, bonito e dândi de todas as fotografias do mito que veio a se tornar Federico, o Assassinado.
Esse é o primeiro degrau que se tem que firmar, a fim de galgar os patamares mais obscuros da tragédia. Ela surpreende o povo de Granada, antes de mais ninguém, e a verdade – ou o que parece ser a “verdade-verdadeira”, tantos anos depois – vem se insinuando no território mais íntimo da família que possuía riquezas e membros ressentidos, parentes insultados e queixosos de negócios em sociedade com o pai de Lorca, o “patriarca” Federico García Rodrigues.
QUEM MATOU FEDERICO GARCÍA LORCA?
Todos que leram a obra do irlandês Ian Gibson (que serviu mais ou menos de “cânone” para estabelecer a versão do assassinato eminentemente político) certamente lembram do nome do pai do poeta como apenas uma referência ao marido de Vicenta Lorca, no registro da filiação do poeta caído “sob os disparos pelas costas, feitos pelos fuzis do ódio fascista” etc.
Nada a contestar sobre a periculosidade dos “ódios fascistas” (é claro), porém as pesquisas mais fundas foram, recentemente, bem mais eficientes no levantar das discórdias e invejas no seio dos quatro ramos familiares, no caso de Lorca: os Roldán, os Benavides, os Alba e os Garcia da linhagem paterna do poeta assassinado.
Longe da idealidade firmada – com as melhores intenções – por Gibson, de imediato ouçamos o historiador andaluz Miguel Caballero, dentre outros que foram revolver os quintais domésticos, na retaguarda da morte: “Afirmar que mataram Lorca por ser homossexual e ‘vermelho’ é uma simplificação que já não se admite. As verdadeiras razões de seu assassinato devem ser buscadas na sua própria família”.
Outro pesquisador incansável, Manuel Ayllón, arquiteto e autor de “Granada, 1936 (Editorial Stella Maris), também é taxativo sobre isso: “Lorca não era um problema político, não ‘militava’ no sentido estrito, podia ser extravagante, incômodo e e afrontador nos seus hábitos joviais, mas nunca foi um perigo para absolutamente ninguém; politicamente, não era visado pelos fascistas, uma vez que era inofensivo. Na verdade, contra ele não houve sequer uma ordem de detenção assinada. Ele foi simplesmente levado da casa dos Rosales, que lutaram para libertá-lo no minuto seguinte e não descansaram nos dois dias subsequentes. O poeta Luis Rosales, irmão de dois falangistas, foi visitá-lo na prisão tão perto de Granada. Ninguém imaginava que ele corresse qualquer risco de vida, ali adentro. Seguiam tentando tirá-lo de lá, quando veio a incrível notícia da sua morte por um pelotão que incluía membros do quarteto de famílias proprietárias da Vega de Granada que, então, estava dando bons lucros a Federico García Rodrigues”…
Não é, de modo algum, uma “teoria conspiratória” surgida oitenta anos depois. Nem envolve somente as pesquisas de Caballero e Ayllón, mas começou a abalar mesmo as antigas certezas do Gibson, que está, no momento, empenhado em rever sua descrição de um crime de “natureza política”, desde o “sequestro” no dia 17 até a execução apenas dois dias depois, sem julgamento e causando até mesmo alguma desagradável surpresa nos círculos mais próximos do quartel-general de Francisco Franco. Claro: um fuzilamento tão brutal não seria, jamais, a melhor propaganda para os fascistas empenhados em tomar o poder na Espanha culta também. Aliás, consta que as primeiras notícias sobre a morte de Lorca foram veiculadas por eles, os nacionalistas pretendendo que o poeta houvesse sido vítima da “loucura republicana” (ironia das ironias) e, quando a Guarda Civil emergiu como a assassina de FGL, fez-se um silêncio sepulcral sobre o assunto, por parte dos amigos do futuro ditador.
“BERNADA ALBA” NA – SINISTRA – BERLINDA DE 1936
Miguel Caballero é quem traz uma surpreendente pista: “A chave para abrir o cofre de estranhezas em torno do fuzilamento sumário de Lorca esteve desde sempre ali, representada, escrita de punho e letra pelo poeta: trata-se de um presságio fatídico que, agora, oitenta anos depois do crime, assume outra dimensão. A Casa de Bernarda Alba foi uma vingança literária – enfatiza o historiador granadino. Ele vê a famosa peça – que correu o mundo – como um dos fios de meada da tragédia, os quais vêm sendo desenrolados por mais de uma dezena de pesquisadores que investigam a história da família desde meados do século 19. Naquela altura, a Vega de Granada estava em poder de uma aristocracia residente em Madri, e vai cair em ruína financeira no alvorecer do século seguinte. As terras foram, então, adquiridas por um grupo da burguesia ascendente em Andaluzia, no qual figuravam o pai de Lorca e seus parentes, os Roldán e os Alba.
Caballero descreve: “Eles vão comprando as terras de modo coletivo, através de sociedades. Estes campos adquirem muito valor para o plantio açucareiro, e Granada se converte numa das províncias mais ricas da Espanha, com 21 engenhos. O pai de Lorca participa como acionista de vários. E a disputa começa com a divisão dos lucros e mais uma tentativa de dividir as terras porque nem todos têm a mesma sombra nem a mesma água, sendo daí que procedem os primeiros desentendimentos entre os Roldán, os Lorca e os Alba. Uma mesma família, na verdade, porque eram endogâmicos: casavam-se entre si, a fim de manter as terras antes de mais nada”.
Ora, para a tragédia rural A Casa de Bernada ALBA, Federico Garcia Lorca foi se inspirar em personagens reais, entre as quais avulta Francisca Alba Sierra, uma mulher forte e que se comporta da forma tirânica mostrada nos palcos, para desagrado dos Alba de carne e osso, pouco afeitos às licenças poéticas. Para eles, a peça cheirava mal e tinha insinuações insultuosas.
A “HUERTA” ASSALTADA ANTES DO ATO FINAL
Os Lorca possuíam uma residência de verão granadina – a Huerta de San Vicente – que foi assaltada, em 9 de agosto de 1936, por alguns primos de Federico, do ramo dos Roldán, que eram conspiradores contra a República. Além dos Roldán, o historiador Miguel Caballero lembra que outros familiares estiveram implicados nos atos de detenção e execução de Lorca, nomeadamente Antonio Benavides, que era sobrinho-neto da primeira mulher do pai do poeta, e que será o homem acusado de disparar, pelas costas, contra a cabeça do artista voltado para a beleza das últimas árvores avistadas entre Alfacar e Víznar, na manhã desatada de ódios não só políticos de mistura com preconceitos etc.
Além desse pano de fundo (nada teatral), existiu ainda uma ameaça vinda diretamente da poesia de Federico Lorca para a sua vida prestes a findar no dia 19: consta que ele foi levado para a morte por um pelotão comandado pelo oficial da Guarda Civil (Nicolás Velasco Simarro) que havia se sentido pessoalmente ofendido pelos versos de Romance de la Guardia Civil española, em virtudes de referências à dura repressão da Guarda contra uma greve em Málaga. Mais: o ressentimento pessoal de Simarro também pode haver sido bem “reforçado” pelo fato de ter trabalhado para um Roldán (Alejandro Benavides) no caso de uma fuga de camponeses da Vega sempre objeto de disputas mesquinhas com o pai de Lorca…
Um rede de ódios e intrigas familiares começa a assumir a frente do assunto “morte do poeta”. Seu cadáver jaz em algum lugar da estrada, na vala comum na qual teria sido abandonado e encoberto de areia e pedras andaluzas? Talvez não. A própria família é, ainda hoje, totalmente contrária (?) às buscas. Isso é muito estranho. Todos os Lorcas velhos parecem saber que Federico não se encontra mais naquela vala comum há muito tempo, e que parece ter sido de imediato exumado (ainda naquele agosto aziago, há oitenta anos), porque não foi um crime propriamente político, não foi a execução de um “maricón rojo” – mas a perda de um ente querido, de um grande poeta e de um mito jogado entre porcos vorazes dignos do romance Os irmãos Karamázov, de Dostoiévski. Mais uma vez, a vida imita a arte, no caso.
.oOo.
Existe no Youtube uma coisa curiosa:
O poeta Luis Rosales — que visitou Federico na prisão durante os dias em que ele lá esteve — estava dando uma entrevista sobre o assunto “morte de Lorca”, filmada por Ian Gibson, e, num certo momento, ele pensou que a câmera estava desligada. Então, fala, em off, sobre Lorca lhe ter manifestado simpatias por um “governo forte” que pusesse ordem na Espanha caótica de então, e — mais incrível ainda — diz, em alto e bom som, que “TERIA SIDO MUITO FÁCIL SOLTAR, LIBERTAR LORCA, caso imaginassem — o pai, a mãe, os amigos — que ele corria qualquer perigo de vida” (SC)!
Rosales — o grande poeta Luis, mais tarde — era, vc sabe, o irmão mais novo dos dois falangistas bem situados na hierarquia fascista de Granada, que realmente lutaram (de fato) pela imediata libertação do poeta, um deles tendo chegado a apontar a arma para o governador militar franquista, “exigindo” que Lorca fosse solto.
O Facebook, um vício irremediável, lançado em 4 de fevereiro de 2004, tem o mesmo número de usuários que a internet toda tinha em 2007. Em âmbito mundial, o Facebook já ultrapassou o número de 1 bilhão de usuários.
Traçando um paralelo simplório — pois desconsidera os perfis de empresas e de outras organizações — , diríamos que 14% da humanidade tem conta no Facebook. Proporcionalmente, o Brasil foi o país que mais deu usuários a Mark Zuckerberg nos últimos anos. O país saltou de 35 milhões de usuários em 2011 para 76 milhões. Mais da metade acessa pelo celular. Todos os dias, 61,4% dos usuários que residem na América Latina conectam-se à rede social. Isso representa uma audiência de 47 milhões de brasileiros, 28 milhões de mexicanos e 14 milhões de argentinos, porcentagem é significativamente mais alta que a média dos outros países.
Atualmente, o Brasil está na terceira colocação em número de usuários, perdendo apenas para os Estados Unidos e a Índia (41,3). Se o Facebook fosse um país, seria o segundo mais populoso do mundo, empatado com a Índia e apenas atrás da China, tendo ultrapassado de longe os Estados Unidos da América com seus 310 milhões de habitantes. Recentemente, o valor da empresa foi avaliado em mais de 100 bilhões de dólares, ficando atrás apenas do Google e da Amazon dentre as empresas da Internet. Mark Zuckerberg, principal proprietário da rede social, tem uma fortuna avaliada em 16,8 bilhões de dólares.
Nesta semana, a empresa lançou um novo e bonitinho produto. Como aos dez anos de idade já dá para ser nostálgico, o Recorde Momentos cria um filme com trilha dramática cheio de fotos animadas do indivíduo desde que este entrou na rede social, também mostra as postagens mais curtidas, os melhores amigos, etc. Foi a forma encontrada pela empresa para que os usuários participassem da festa dos dez anos. Ainda que pareça meio emocionado demais.
Recorde momentos:
As razões do sucesso
Se o Google serve como plataforma de pesquisa, se o Twitter é rápido em suas frases e links e se o YouTube aos vídeos, principalmente os de entretenimento, o Facebook dá um importante retorno emocional a seus seguidores.
Estes veem seus pequenos textos e opiniões aprovadas, veem fotos de amigos sumidos, batem papo um com o outro ou em grupo, formam grupos por interesse, pesquisam sobre os amigos dos amigos (“quem será essa pessoa?”) acompanham se aquela(e) amiga(o) está tendo um “relacionamento sério” com outrem (analisamos quem é e examinamos as fotos, se tivermos permissão), reagem quando um destes status se altera (às vezes com alegria, outras vezes com inveja ou ódio), ficam preocupados com a falta de uma resposta (“será que ele(a) não se conecta ou não deseja responder?”), compartilham imagens e textos entre os amigos (“gostei tanto daquilo que meu amigo escreveu que repassei a todos os meus seguidores”) e bloqueiam seus desafetos (“para que ela(e) não saiba nada de minha vida!”).
Surgem com grande frequência notícias que relacionam o site com fatos que parecem saídos de revistas de fofocas do gênero a-mulher-que-descobriu-que-o-marido-já-era-casado ou pai-descobre-filhos-desaparecidos-há-anos, mas o site — concebido justamente para utilização pessoal — também passou a ser utilizado com finalidades políticas e pelos jornais que buscam interatividade com seus leitores e divulgam suas notícias.
Mas antes um pouco de história. O Facebook foi um sucesso instantâneo. Mark Zuckerberg, juntamente com Dustin Moskovitz, Eduardo Saverin e Chris Hughes, fundou o “The Facebook” enquanto frequentava a Universidade de Harvard. Era 4 de fevereiro de 2004 e, até o final do mês, mais da metade dos estudantes da Universidade foi registrada no serviço. Então Zuckerberg partiu para a promoção do site e o Facebook ficou disponível também para a Universidade de Stanford, Columbia e Yale. Esta expansão continuou em abril de 2004 com as universidades de Cornell, Brown, Dartmouth, Pensilvânia e Princeton. Logo foi aberto para fora do ambiente universitário e… Bem, o número de usuários chegou ao primeiro milhão em dezembro de 2004, apenas 10 meses após a fundação.
O serviço é gratuito e a receita é gerada por publicidade, incluindo banners, destaques patrocinados na coluna de notícias e grupos patrocinados. Os usuários criam perfis que contêm fotos e listas de interesses pessoais, trocando mensagens privadas e públicas entre si. As pessoas e empresas que estiverem interessadas em serem vistas na timeline de usuários escolhidos por profissão, interesses, região etc., podem pagar uma módica quantia que Mr. Zuckerberg divulga a eles. A visualização dos perfis detalhados dos membros é restrita a amigos confirmados e para membros de uma mesma rede, conforme as opções de privacidade. Há também opções de jogos. Trata-se de uma receita aparentemente perfeita e que faz com que cada usuário tenha uma média de 200 amigos e permaneça cerca de 750 minutos por mês no site.
Francisco Javier Martinez, arcebispo de Granada, Espanha, deu conselhos às mulheres crentes evitarem cair em pecado ao praticarem sexo oral com seus parceiros.
“As mulheres podem praticar felatio com seus maridos sempre que eles pedirem. Mas quando o fizerem, devem pensar em Jesus para não se tornarem pervertidas. “Recorda que não és uma pervertida”, disse a sumidade.
O prelado já tinha provocado polêmica com o livro Cásate y sé sumisa (Case e seja submissa), lançado em dezembro passado na Europa. Mulheres, não deixem de ler!
Uma coincidência de datas leva o Sul21 a novamente deslocar seu foco para o Chile. Afinal, uma semana após o inequívoco assassinato de Víctor Jara, houve uma estranha morte: a do poeta, diplomata e comunista Pablo Neruda. A insistência de Manuel Araya, antigo motorista do escritor, em afirmar que o poeta foi assassinado por agentes do regime, levou a Suprema Corte chilena a investigar, ainda sem resultados, a morte do Prêmio Nobel de Literatura de 1971, também nos primeiros dias da ditadura de Pinochet. No livro Sombras sobre Isla Negra, la misteriosa muerte de Pablo Neruda (2012), o jornalista espanhol Mario Amorós dá um panorama bastante amplo sobre as dúvidas que cercam a morte do grande poeta.
Resumindo: a causa oficial da morte foi uma septicemia causada pelo câncer na próstata, ainda em estágio inicial, que o poeta contraíra. Porém a esposa de Neruda, Matilde Urrutia, garantiu que a causa de morte não foi o câncer. Ela afirmava que a causa mortis fora simplesmente uma parada cardíaca e jamais denunciou que seu marido tivesse sido assassinado. Enquanto isto, Araya, designado pelo Partido Comunista como assistente privado e motorista de Neruda, que tinha 20 anos em 1973, testemunhou à Justiça chilena ter visto um médico aplicando uma injeção venenosa em Neruda.
No inquérito aberto, consta a declaração do diplomata mexicano Gonzalo Martínez de que o escritor estava bem e fazia planos para o exílio um dia antes de morrer. “A dúvida é esta: se aplicaram dipirona (analgésico) para amenizar as dores, como afirmou o médico da clínica, ou se injetaram veneno, como testemunha o motorista”, escreveu Amorós.
O então embaixador mexicano no Chile confirmou a informação passada por Araya de que Neruda pretendia viajar ao México a fim de fazer oposição ao governo de seu país a partir do exterior. Ele confirmou também que o governo mexicano havia enviado um avião para buscar, no Chile, Neruda e outros futuros exilados. O problema é que a saída de Neruda não era consenso entre a junta militar desorganizada e assassina daqueles dias. Depois de Allende, o poeta era o cidadão chileno mais conhecido mundialmente e os militares tinham certeza de que ele causaria problemas ao regime no exterior. O juiz Mario Carroza, que preside o processo, concorda e considera plausível a hipótese de assassinato, já que Neruda no exílio representaria uma “situação difícil” para Pinochet.
Como se não bastasse, o ex-presidente Eduardo Frei Montalva, um Democrata Cristão que governou o Chile por seis anos antes de Allende (1964-1970) (não confundir com seu filho Eduardo Frei Ruiz-Tagle, presidente do país entre 1994 e 2000), faleceu em 1982 na mesma clínica, a Santa María, quando liderava uma incipiente oposição ao regime. Sua morte ocorreu devido a complicações ocorridas em uma cirurgia simples. As complicações são as mesmas de Neruda, tudo acabou numa septicemia causada comprovadamente por envenenamento. Em 7 de dezembro de 2009, foram presas seis pessoas implicadas no homicídio de Frei. As perícias indicaram que sua morte foi provocada “pela introdução paulatina de substâncias tóxicas não convencionais e pela aplicação de um produto farmacológico não autorizado”. A intoxicação com as mesmas substâncias usadas na fabricação de gás-mostarda e de veneno de rato, causou o enfraquecimento do sistema imunológico de Eduardo Frei Montalva que facilitou o aparecimento de “bactérias oportunistas”, que “resultaram na causa final da sua morte”. Em outras palavras, uma septicemia como a de Neruda.
Seguindo em nossa história sem cronologia, talvez seja importante ressaltar que, durante a eleição presidencial do Chile, em 1969, Neruda, que era candidato a Presidente, abriu mão de sua candidatura em favor de Salvador Allende. Dois anos depois, em outubro de 1971 , quando Neruda recebeu o Nobel de Literatura, Allende convidou-o para uma leitura de alguns de seus poemas no Estadio Nacional de Chile. Público: 70 mil pessoas.
Aliás, em 1945, Pablo Neruda lera para 60 mil pessoas no Pacaembu, em 15 de julho de 1945, …
Quantas coisas quisera hoje dizer, brasileiros,
quantas histórias, lutas, desenganos, vitórias,
que levei anos e anos no coração para dizer-vos, pensamentos
e saudações. Saudações das neves andinas,
saudações do Oceano Pacífico, palavras que me disseram
ao passar os operários, os mineiros, os pedreiros, todos
os povoadores de minha pátria longínqua.
Que me disse a neve, a nuvem, a bandeira?
Que segredo me disse o marinheiro?
Que me disse a menina pequenina dando-me espigas?
Uma mensagem tinham. Era: Cumprimenta Prestes.
Procura-o, me diziam, na selva ou no rio.
Aparta suas prisões, procura sua cela, chama.
E se não te deixam falar-lhe, olha-o até cansar-te
e nos conta amanhã o que viste.
Hoje estou orgulhoso de vê-lo rodeado
por um mar de corações vitoriosos.
Vou dizer ao Chile: Eu o saudei na viração
das bandeiras livres de seu povo.
(…)
… em homenagem ao líder comunista Luís Carlos Prestes.
Uma vida que mistura poesia e militância
Pablo Neruda é o pseudônimo de Neftalí Ricardo Reyes Basoalto, nascido em Parral, no Chile, em 1904. Desde o primeiro poema, adotou Pablo Neruda, em homenagem ao poeta e contista checo Jan Neruda. Começou a escrever muito jovem e logo foi reconhecido como uma voz distinta. Alcançou reconhecimento no mundo de fala espanhola com Veinte poemas de amor y una canción desesperada (1924), obra que, junto com Tentativa del hombre infinito (1926) são seus principais livros da juventude. Na época, Neruda era um poeta entre o modernismo e a vanguarda. Mas era impossível viver apenas de poesia e eventuais colaborações em jornais e Neruda obteve ingresso na carreira consular, o que o levou a residir na Birmânia, Ceilão, Java, Singapura e, entre 1934 e 1938, na Espanha, onde conheceu García Lorca, Vicente Aleixandre, Gerardo Diego e outros componentes da Geração de 27, fundando a revista Caballo Verde para la Poesía. Desde o primeiro manifesto da revista, tomou partido de uma “poesia sem pureza”, próxima da realidade imediata, o que já indicava sua disposição futura.
Apoiou os republicanos durante a Guerra Civil Espanhola. Reflexo óbvio desta época é España en el corazón. Himno a las glorias del pueblo en la guerra 1936-1937. Pouco a pouco, seus poemas deixaram o hermetismo de sua produção quando jovem e passaram a temas seculares mais sombrios, que se referiam ao caos da realidade cotidiana, à passagem do tempo e à morte.
De volta ao Chile, Neruda ingressou em 1939 no Partido Comunista. Em 1945, foi eleito senador. Também foi o primeiro poeta a ser agraciado com o Prêmio Nacional de Literatura no Chile. Mas seus discursos no senado desagradavam de tal modo a direita chilena que Neruda passou a ser ameaçado fisicamente, o que o levou ao exílio, primeiramente na Argentina. A vida política de Neruda e sua literatura eram aspectos da mesma pessoa e aqueles foram os anos da poesia de inspiração social de Canto General (1950).
De lá, ele foi para o México, e mais tarde visitou a URSS, China e países do Leste Europeu. Após esta longa viagem, durante a qual Neruda escreveu poemas laudatórios e datados às grandes figuras de sua época, recebeu o Prêmio Lênin da Paz e retornou novamente ao Chile. Sua poesia passou a uma nova fase onde a simplicidade formal correspondeu a uma grande intensidade lírica, emoldurada por serenidade e humor.
Sua produção foi reconhecida internacionalmente em 1971, quando foi agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura. No ano anterior, como dissemos, havia renunciado a candidatura presidencial em favor de Salvador Allende, que o nomeou embaixador em Paris logo depois. Dois anos mais tarde, já seriamente doente, ele retornou ao Chile. Sua autobiografia, Confieso que he vivido (1974), foi publicada postumamente.
O poeta
Neruda esteve sempre disponível a todas as influências possíveis. Sua ligação com o movimento surrealista e vanguarda espanhola e americana são claras em seus trabalhos iniciais. Quem lê Residencia en la Tierra (1925-1931) percebe a quantidade de imagens que emergem do inconsciente. As transformações do poeta nunca ocorreram subitamente. Assim, Crepusculario (1923) é fortemente pelo modernismo, enquanto Residencia en la Tierra já é surrealista, com imagens de sonhos de aparente irracionalidade. Mais tarde, em Canto General (1950), ele evolui para uma poesia comprometida com a realidade política e social. De fase em fase, Neruda parece ir trocando lentamente as pedras do mosaico de seus temas, mas mantém o estilo inconfundível, compondo uma obra vasta, coerente e comprometida.
“Minha poesia é meu íntimo, eu a concebo como emanada de mim. Como minhas lágrimas e meu pouco cabelo, ela me integra.” A originalidade da Neruda advém não apenas de seu estilo, mas da escolha de temas. Ele rejeitou os temas mais comuns: o pôr do sol, as estações, os namoros na varanda ou no jardim, etc. Seus assuntos são cidades modernas, os rostos de criaturas monstruosas, a vida cotidiana em seu grotesco de miséria e de marasmo. E a morte, sempre a morte — palpável, inanimada ou ainda em vida. Ela é sua maior obsessão e penetra em tudo, no amor, na ruína, na agonia e na corrupção.
Sua poesia política e combativa não deve ser confundida com palavras de ordem gritadas à multidão. São argumentações nas quais nunca estão ausentes a poesia e a beleza. Neruda foi um homem político de posições claras, mas isto é apenas uma faceta de um grande criador, de um homem que refletiu seu mundo de maneira incomum e abrangente, que foi sensual e trágico, confessional e hermético, simples e filosófico, errante e contemplativo, íntimo e de “utilidade pública”, como ele gostava de ver chamada sua obra.
Reza a lenda que Neruda finalizou Confiesso que he vivido (Confesso que vivi) exatamente no dia 11 de setembro, data do golpe militar e da morte de Allende. Suas casas, entre elas a lendária casa de Isla Negra, foram invadidas. Logo ele foi para a clínica de Santa María e a partir de então tudo são dúvidas, até sua morte em 23 de setembro.
Com informações do artigo Características de la poesía de Pablo Neruda, de Carmen Goimil Peluffo, além de vários livros de e sobre Neruda.
Minha cachorra pastor alemão, a Juno, é adestrada, mas acho que ela não entendeu quando lhe disse para se cuidasse, afinal, o Rei matador de animais vem aí. Enquanto a Espanha debatia-se com a crise, há algumas semanas o rei mandava um elefante calar-se na África, conforme a bela e macha foto abaixo.
Na juventude, o pobre Juan Carlos matou um irmão num episódio de Caim e Abel muito mal explicado. Alfonso veio a falecer devido a um acidente envolvendo uma arma na Villa Giralda, a casa de veraneio da família no Estoril, em Portugal. Foi um acidente, dizem, mas há dúvidas. A arma estava sendo manuseada por Juan Carlos no momento do acidente. O tal irmão era o predileto de D. Juan (o então rei exilado da Espanha), que ficou destroçado pela perda. Sua mãe, dona Maria, caiu doente, em depressão. No velório do filho, o rei, arrasado, ainda insistiu: “Jura que você não o matou de propósito?”. Mesmo com a morte do irmão, Juan Carlos, o filho superficial, “incapaz de ler um livro”, segundo familiares, segue matador, amante das armas. Assim, meio que renegado pelo pai, o jovem Juan tornou-se filho adotivo de um grande homem, o ditador Francisco Franco…
Esta flor de pessoa, chega ao Brasil amanhã, em visita oficial.
Um artigo que saiu no El Mundo da Espanha na semana passada — Los ateos salen del armario — dá conta de que 24% da população espanhola já se declara ateia. No Brasil, abro a Época de hoje e o físico Lawrence Krauss está lá dizendo que a ciência finalmente chegou ao ponto de poder explicar a criação do Universo e que Deus nada tem a ver com isso. “Acreditar que Deus criou o Universo é apenas preguiça intelectual”, afirma ele na página 82 da revista.
Já disse e não canso de repetir: a religião é inextirpável do ser humano, mas há que trabalhar contra ela. Acreditar ou não é algo de foro íntimo. Ela prejudica o mundo, as relações sociais e é a mais funesta das intervenções da subjetividade sobre a sociedade. Creio que a grande vitória a ser obtida por nosso século seja o recuo das religiões.
O ateísmo, meus queridos, como explica o filósofo e escritor Gonzalo Puente Ojea no El Mundo, apenas nega o teísmo. O ateísmo não existe com a finalidade de atacar os crentes (quem faz isso sou eu, por exemplo): “Defendemos a liberdade dos indivíduos para a prática de qualquer religião. Somos racionalistas”, diz Albert Riva, presidente da União dos Ateus e livres pensadores da Espanha no El Mundo. “O número de ateus está crescendo, é uma coisa geracional, mas a maior fábrica de ateus são as religiões”, diz Eugenia Biurrun, coordenadora geral da Iniciativa Atea da Espanha. Ela enfatiza que o objetivo da iniciativa é a ascensão do ateísmo e do laicismo para a criação de uma sociedade secular que permita qualquer religião ou nenhuma.
Claro, isto vai liberar espaço para vários avanços sociais e para lenta extinção dos vários países religiosos, de suas guerras imbecis e também certas bancadas tão reverenciadas por políticos. É a mais inteligente das lutas.
P.S. — A propósito, desde a época que Soninha era uma ídola do PT e da esquerda, eu adivinhava sua estupidez. O sinal? Ora, seu apoio à criação de um estado religioso no Tibete. Não apoio as ações da China, mas também acho ridículo o outro lado. Um estado religioso governado por seu sacerdote supremo? Pelo amor de “Deus” !!!
Vou viajar amanhã no final da tarde e retorno quarta-feira, logo após o Carnaval. Tenho muitos trabalhos pendentes — vocês podem notar isto pela forma como NÃO tenho respondido aos comentários, apesar de lê-los, viu Charlles? Então, usarei estes dias para republicar uma série de posts muito agradáveis a mim. Tudo se passou em 2005 e quem leu a série na época achou legal. Até me propuseram um livro, mas não levei a sério.
Mas começamos por Madrid. Chegamos à cidade na manhã do dia 25 de novembro. Descobriríamos depois o quanto o aeroporto de Barajas poderia ser caótico, mas às 6h da manhã ele ainda estava tranqüilo. Emergimos do metrô no centro de Madrid, perto do Museu do Prado. Foi uma visão desconhecida e meio fantasmagórica: era noite ainda, estava um frio de rachar e pudemos ver a cidade amanhecer enquanto passeávamos pelas ruas próximas ao Museu. Já manhã clara, entramos num simpático café onde consumimos sem arrependimento 11,20 euros numa refeição cuidadosamente imitada aos madrilheños presentes. A Claudia faz sempre questão de mimetizar-se com os habitantes da cidade, de ir aos lugares onde eles vão, de pegar os ônibus e metrôs deles e de conversar. Sábia, ela.
O Museu abre às 9h e pegamos uma fila cheia de japoneses. O ingresso custava 6 euros e tínhamos insuficientes 2h30 para percorrê-lo, já que às 11h30 nos encontraríamos com Nora Borges na porta norte do Prado. Não me decepcionei com os esperados Velasquez e Goyas, porém minha surpresa maior foi a de ter encontrado lá importantes quadros de Bosch, Brueghel e Dürer. Minha estupenda ignorância não os imaginava ali. Se houve um momento mágico, foi quando olhei para um canto e vi O Triunfo da Morte de Brueghel.
Detalhe
Foi um soco no peito. Aquela visão inesperada poderia me deter por horas naquela sala, mas segui adiante e — nova surpresa — dei de cara com o tríptico O Jardim das Delícias de Bosch (ou El Bosco, como indicava a ficha).
Detalhe
Uma maravilha para se examinar longamente, sentado no banco que há para esta finalidade frente ao quadro. É um quadro (ou são três?) de dimensões muito menores do que eu imaginava, apesar das centenas de detalhes. Esperava Goya e Velasquez, mas meus primeiros pasmos foram para “estrangeiros”. Sobre Goya: apesar de tudo, nesta curta visita, minhas preferidas foram as salas dedicadas a ele. Sabia que isto iria acontecer. Ele sempre conta histórias que me interessam. É um narrador e Alejo Carpentier tinha razão quando dizia que, para inspirar-se, bastava olhar para um trabalho de Goya e imaginar o que aquelas pessoas pensavam, como viviam, como se divertiam e o quanto sofriam.
Detalhe
Às 11h30 em ponto estávamos na tal porta norte. Reconheci a Nora de longe. Veio sorridente, abanando para nós. Estava na companhia de seu marido Pepe e logo deu para ver o quanto ela NÃO é fotogênica. Ao vivo, é uma mulher muitíssimo mais bonita; é alta, alegre, viva, daquelas nas quais os movimentos só vêm aumentar os atrativos. Minha irmã já tinha me falado a respeito e pensei que o Pepe, quando a viu no Recife, deve ter planejado imediatamente sua imigração. Ele queria saber como ela tinha me reconhecido com tanta facilidade e ela respondeu:
— Ora, ele é a Iracema de barba!
Tá bom, Nora.
Passamos inteiramente às mãos — ou aos pés — do Pepe. Depois de termos conseguido um calçado adequado à Claudia, ele comandou uma pedestre e espetacular visita relâmpago à Madrid, inteiramente voltada aos monumentos históricos e, principalmente, à gastronomia. Começamos num bar cuja visão exterior era esta:
Estou ali no meio, acho
Bebemos vinho e comemos tapas. Pepe explicou-nos a história das tapas espanholas. O Rei Afonso X, El Sabio, sabia mesmo das coisas. Tinha mais a ver com a Claudia do que com nosso Afonso. (Nada como uma agressão gratuita para manter a forma…) Ele, o Sábio, simplesmente proibiu que o vinho fosse servido desacompanhado de alguma coisa para comer. O motivo? Ora, evitar as brigas de bêbados diluindo álcool à proteína e ao amido. Então, por lei, o vinho passou a ser servido juntamente com pães, batatas, berinjelas, croquetes, calamares, outros frutos do mar, etc., que se tornaram parte da arte gastronômica espanhola e que eram entregues ao cliente num prato que cobria o copo, tapando-o. Daí, o nome tapas.
… el Rey Sabio dispuso que en los mesones de Castilla no se despachara vino si no era acompañado de algo de comida, regia providencia que podemos considerar oportuna y sabia para evitar que los vapores alcohólicos ocasionaran desmanes orgánicos en aquellos que bebían….
Depois, continuamos as caminhadas com estratégicos e oportunos pit stops gastronômicos. Um para a cerveja, onde a Nora tirou esta bela foto de nós três (o Pepe fora),
Eu, Claudia e a Nora (refletida)
o seguinte para comer numa das Cuevas Luís Candelas – El Mesón de la Cava -, onde a comida e o vinho eram tão fantásticos que comi com gosto até umas imensas azeitonas – detesto azeitonas, ninguém é perfeito. Detalhe: eu não lembro do que comemos. (A Claudia esclarece: morcilla – com incrustrações de arroz! -, cogumelos, pimientos, azeitonas, jamón, pães – aqueles grissinis gordinhos e compridos – e sabe-se lá mais o quê). Lembro apenas que estava maravilhoso e só posso transcrever a frase do Gejfin: “Amigos, tudo”. O vinho auxiliou-nos a recortar e a pôr sobre a mesa alguns retalhos do sempre renovável tecido da delicadeza. Conversamos muito, falamos sério e rimos como velhos amigos, contamos histórias, dissemos um monte de besteiras e saímos dali para a Nora comprar o presente do Tiagón e presentear a Claudia com um livro de receitas de tapas. Literalmente, amor à primeira vista de todos para com todos.
Voltando as cuevas: elas são locais belíssimos e misteriosos, tudo – paredes, chão e teto – é feito de pedra e está assim desde… durante los años 1825 a 1837, por su constitución y sus múltiples salidas al exterior, sirvieron de guarida y cobijo a los célebres bandidos capitaneados por Luís Candelas. En la actualidad se conservan en gran parte tal y como fueron usadas por aquel bandido.
A Entrada das Cuevas
Antes de nos deixarem em Barajas, ainda tomamos café num bar e conhecemos o bar, a mesa e a cadeira da vinoteca em que minha irmã… (censurado) …tornando-se uma das principais atrações e local de peregrinação da capital espanhola.
Despedimo-nos lá pelas 18h e, na fila do check-in para Roma, conversamos sobre a certeza de que veríamos aqueles dois novamente. A existência simplesmente não pode ser algo tão injusto que permita ter sido este nosso primeiro e último encontro.
Gisele Bündchen doou US$ 1,5 milhão ao Haiti; Madonna, US$ 250 mil; este menino conseguiu quase U$ 300 mil; vários países, inclusive o Brasil, fizeram vultosas doações. Ontem, José Saramago, anunciou que a editora com a qual trabalha em Portugal e na Espanha, a Alfaguara, relançará A Jangada de Pedra em edição cuja renda irá 100% para o país caribenho. Em nota, Saramago explicou que a iniciativa é da sua fundação e só foi possível graças à “pronta generosidade das entidades envolvidas na edição do livro”. As entidades são a editora, distribuidoras e livrarias ibéricas. Uma bonita atitude, uma atitude esperada. Saramago completa: “Se chegássemos a 1 milhão de exemplares vendidos, seriam 15 milhões de euros de ajuda. Diante da calamidade que atingiu o Haiti, a soma não seria mais que uma gota d’água”. O livro terá relançamento no dia 28 de fevereiro a partir da campanha “Uma jangada de pedra a caminho do Haiti”.
Uma vez, durante uma entrevista a que estava presente, ouvi Saramago dizer que A Jangada de Pedra era uma decepção. A plateia protestou com razão. Ocorre que o romance começa quando uma falha separa a Península Ibérica do resto da Europa e a transforma em uma enorme balsa de pedra à deriva no Atlântico. Saramago disse que um romance não pode começar por um fato tão extraordinário que jamais poderá ser superado depois. Bobagem, Saramago leva o livro brilhantemente até seu final. Não contarei o final. É muito significativo e, sim, meu caro Saramago, tão extraordinário quanto o início da Jangada. Acho o livro muitíssimo consistente e bom.
Achei a ideia maravilhosa e tentarei comprar um exemplar.
Estou esperando. Esperando o livro? Sim, também. Mas antes espero que Lasier Martins reclame do comunista Saramago, assim como criticou o meia-esquerda Lula por sua ajuda humanitária. Para quem não é do Rio Grande do Sul e não conhece a estupidez que nos impinge a “Globo daqui”, indico este post.