E Borges venceu Calvino…

Por 4 x 2 ou 4 x 3, não lembro bem. Acho que o jogo estava 4 x 2 mas, quando li os últimos parágrafos de As Cidades Invisíveis, o italiano descontou.

Olha, foi uma ótima partida. Mas antes quero agradecer aos comentaristas deste post pelos belos textos que me deixaram (lá também está a explicação sobre o que estou falando). Imprimi tudo, levei todos comigo e, algumas horas antes da palestra, dei uma olhada. Gostei muito de conhecer o “Luiz Penetra”. Mas foi meio apavorante, porque a conclusão a que cheguei foi a de que houve pouca concordância. Fiquei pensando se plateia também não teria suas opiniões pessoais sobre Ficções e o livro de Calvino. Tinham, claro. O resultado foi uma boa discussão sobre os livros. E o legal foi como  todos sabiam muito bem do que estavam falando e suas disposições para defender suas teses: por exemplo, o Luiz Paulo Faccioli parece saber de cor até a ordem dos contos de Ficções; a Cíntia Moscovich, muito veemente, deu um show; um arquiteto defendeu Calvino invocando As Cidades Delgadas 1; Lu Thomé defendeu-o com absoluta paixão; enquanto eu e a Tatiana Tavares estávamos dispostos a fazer Borges vencer…

Foi a primeira vez que as pessoas pediram o microfone para discordar, concordar, opinar, acrescentar, etc.

O grande diferencial desta edição do Sport Club Literatura foi a participação intensa do público. Borges x Calvino trouxeram as pessoas para a discussão. Não deixa de ser um grande elogio à Feira do Livro.

Na manhã de sábado, soubemos que nossa iniciativa tinha vencido o Prêmio Fato Literário 2011 no juri popular. Agora vamos ver o que decidirá o outro juri. Parece que vai ter festa se vencermos.

Anotações parciais e não revistas para o jogo entre As Cidades Invisíveis e Ficções

No próximo sábado, dia 12, às 16h, serei um dos árbitros do jogo de fundo (?) da série Coliseu, entre As cidades invisíveis (Le città invisibili, 1972), de Italo Calvino (Santiago de las Vegas, Cuba, 1923 – Siena, Itália, 1985) e Ficções (Ficciones, 1944), de Jorge Luis Borges (Buenos Aires, Argentina, 1899 – Genebra, Suíça, 1986). O evento dar-se-á na Sala Pasárgada da Feira do Livro de Porto Alegre.

Acabo de reler ambos os livros e o verdadeiramente estranho é que comecei a traçar paralelos entre eles, coisa que supunha impossível. São muito diferentes, mas, lidos um logo após o outro, transparecem algumas semelhanças. Não que interesse, claro.

Escolhi para mostrar aqui a capa de uma edição portuguesa que estampa A Torre de Babel, de Pieter Brueghel, o Velho… Bem, é apenas uma pequena brincadeira que os leitores de Borges logo entenderão. Nesta leitura, realizada com muitas interrupções, o livro de Calvino me pareceu melhor do que na primeira vez, anos atrás. Se naquela oportunidade fiquei um pouco cansado pelo fato de cada um dos 55 relatos de pouco mais de uma página descreverem sempre uma nova cidade, desta vez não ocorreu nada disso. Mas antes devo explicar rapidamente do que trata As Cidades Invisíveis. No livro de Calvino, Marco Polo conta a Kublai Kan, imperador dos tártaros, sobre as cidades que conheceu no caminho para o Oriente. São 55 retratos de cidades obviamente inventadas, todas com nomes de mulheres. As narrativas são de beleza poética impar, tanto que me fizeram lembrar Baudelaire e seus Pequenos Poemas em Prosa. As narrativas são fantásticas e delicadas, com o autor as classificando em 11 grupos, As cidades e a memória, As cidades e o desejo, As cidades e os símbolos, As cidades delgadas, As cidades e as trocas, As cidades e os olhos, As cidades e o nome, As cidades e os mortos, As cidades e o céu, As cidades contínuas e As Cidades ocultas. As breves descrições (ou poemas descritivos) são aqui e ali intercaladas por diálogos entre Marco Polo e Kublai Khan. Mas Polo não descreve as cidades fisicamente, antes as humaniza e, de certa forma, as ama.

Marco Polo (1254–1324), célebre mercador, embaixador e explorador, foi um dos primeiros ocidentais a percorrerem a Rota da Seda. O relato de suas viagens pelo Oriente, foi durante muito tempo uma das poucas fontes de informação sobre a Ásia no Ocidente. Meu pai me obrigou ler o livro As Viagens de Marco Polo quando eu tinha menos de dez anos. Lembro que foi uma péssima experiência. Ainda há dúvidas se Marco Polo fez realmente tudo o que disse ter feito ou se simplesmente narrou histórias que ouviu de outros viajantes. Calvino não tem nenhuma intenção de verossimilhança e seu estilo tem toques de surrealismo. A figura do imperador Kublai Khan parece representar os limites do poder. Por mais territórios que domine, nunca dominará ou conhecerá tudo e todos. Por outro lado, Marco Polo não prescinde do sonho e da imaginação em suas descrições. Neste ponto, ele parece uma Sherazade não ameaçada, deixando fascinantes e mágicas suas cidades que, mais que locais de domicílio com esta ou aquela característica física, são locais surpreendentes, cheios de símbolos e sonhos.

Se em As Cidades Invisíveis há grandes ligações temáticas e de estilo entre as histórias, o mesmo não se pode dizer de Ficções, que é um livro de contos divididos em duas partes — O jardim dos caminhos que se bifurcam (1941) e Artifícios (1944) — onde o próprio autor, em dois curiosos prólogos, destrói qualquer ilusão de unidade.

O problema de Ficções é que… é que… é que… é um livro que parece ter sido feito não apenas para leitores, mas para aquele determinado gênero de leitores preocupados com o fazer literário. Enormemente influenciado por Macedonio Fernández, o brilhante autor do Museu do Romance da Eterna, Borges nos mostra não apenas um portal de novas possibilidades, como a demonstração das mesmas. Tendo sido, até os anos 30, ensaísta e crítico, Borges passa a fazer ficções de leituras imaginárias. Os textos que antes provocavam seus comentários agora são imaginados. Mas isto é uma redução, pois não apenas de comentários sobre livros e mundos fictícios se fazem os contos de Ficções. Há grandes personagens — na maioria das vezes leitores — e belíssimas representações de outras camadas da realidade. Por exemplo, A Loteria de Babilônia pode receber as mais variadas interpretações — na minha opinião, por exemplo, ela representa a igreja. Há a representação do infinito em A Biblioteca de Babel e a da insônia em Funes, o Memorioso. Há uma notável argumentação sobre a forma moderna de ler textos em Pierre Menard, autor do Quixote — onde Borges nos demonstra como um mesmo trecho do Quixote pode ser lido de duas formas inteiramente diferentes. E há crimes, labirintos, violência, homens que formam outros homens em imaginações.

E, quando lemos tudo isso, parece-nos que tínhamos lido em algum lugar aquilo antes. Ou que vimos no cinema, sei lá. Pois não é culpa nossa estarmos abraçando o ícone. Pois a criação de Borges, vinda de Macedonio e lida por centenas de outros escritores desaguou em Italo Calvino, em Roberto Bolaño, em Georges Perec, em Sebald, em Vila-Matas. Pois ler Borges é como ouvir a Nona Sinfonia de Beethoven ou os Concerto de Brandenburgo de Bach. É como ler as peças de Shakespeare e achar que o que se lê é um emaranhado de citações e situações conhecidas ligadas por um enredo. Parece que conhecemos tudo, ou que o texto que lemos já estava pré-instalado em nossa memória e sensibilidade, mas não se enganem, meus amigos, mesmo isso saiu de Borges.

Charlles Campos escreveu:

Ficções é uma obra fundadora. Não só na literatura hispânica, mas mundial. Semana passada mesmo li Claudio Magris, um borgeano treinado e muito afiado. Pode-se colocar Ficções entre as maiores realizações do século passado. Já o Cidades fica diminuído, apesar de ser ótimo; mas a base de comparação nos faz cair no pecado da relativização, e vermos o Cidade como uma obra entre tantas, que não gerou escola, não difundiu tanta influência, não é citada de forma tão enfática como os contos do argentino.

E o Farinatti respondeu:

Mas que clássico é esse! Dois dos meus favoritos. Veja lá o que vai fazer, hein Seu Ribeiro. Sei que não poderiam estar em mãos melhores mas… PqP como comparar esses dois livros infinitos, esses dois universos? Dois mundos criados por escritores cerebrais, de estilo igualmente despojado… Se o critério fosse a ideologia, seria fácil decidir. Mas, sendo a arte. Sei lá… O Sul, Funes, As Ruínas Circulares, Pierre Menard… Contra todas aquelas cidades-mulheres do Calvino.
Eu preguei os últimos parágrafos de As Cidades Invisíveis no meu mural. Ele é meu breviário político. Leio todos os dias… Ah… sei lá… surtei completamente com essa!

E o Vinícius matou a charada:

Uma ideia para próxima feira: Naked Girls Reading. Podia rolar no sábado. Confiamos em você, Milton.

Tubular Bells e a Caminhante

Por motivos semiprofissionais tenho que ler rapidamente As Cidades Invisíveis, de Italo Calvino, e Ficções, de Jorge Luis Borges. O Calvino já foi lido e hoje comecei o argentino. Li-o há tanto tempo que — bem, pensava lembrar-me de tudo, mas não é exatamente assim. O curioso é que quando indagorinha comecei a ler o livro de Borges, veio-me à cabeça o disco Tubular Bells (1973) de Mike Oldfield. Nossa, faz mais de trinta anos que não ouço esse vinil! Pensei nos anos de leitura de um e de audição do outro e soube o que vocês, meus sete espertos leitores, já descobriram. Sim, tudo da mesma época.

Acabo de baixar o CD e o ouço neste momento. É mais ou menos um pastiche de coisas que tem tanto a ver uma com a outra como o livro de Borges tem com o de Calvino. Não, Borges e Calvino têm mais a ver, certamente. São narrativas curtas, cheias de fantasia (acepção antiga da palavra) e nas páginas há mundos sendo permanentemente construídos como em poucos livros. Reli os dois primeiros contos — Pierre Menard, autor do Quixote é enlouquecedoramente belo em sua concisão e Tlön, Uqbar, Orbis Tertius é excelente — o que não é perfeito neste livro? — , mas os contos seguintes me agradam ainda mais, sei disso.

Amanhã, vou buscar a Caminhante (2 links) no aeroporto. Depois, sábado à tarde, chegam a Nikelen e o Farinatti. São uns chatos, vão ficar dando voltinhas pela cidade antes de virem para cá, os putos. Encontro de blogueiros é algo tão démodé quanto Mike Oldfield, então chamemos de um encontro entre amigos que se conheceram por via virtual. Hã? Nem isso, pois apenas vale para a Caminhante, porque os outros foram (re)conhecidos pelas vias convencionais.

Já ouço o lado 2 do disco. Bem ruinzinho…

Lá vou eu de novo, agora na Feira

Porto Alegre, Feira do Livro, sábado, 12 de novembro, às 16 h, ocorrerá mais uma temeridade. O Sport Club Literatura estará na Tenda Pasárgada da Feira do Livro e eu, juntamente com Tatiana Tavares, serei o árbitro de As Cidades Invisíveis, de Italo Calvino x Ficções, de Jorge Luis Borges. A Tenda Pasárgada, para quem conhece a Praça da Alfândega de Porto Alegre, estará localizada de modo discreto e quase invisível como as cidades de Calvino na notória posição entre o Memorial do RGS e o Santander Cultural. Haverá um outro jogo, arbitrado por Joana Bosak e Rubem Castiglione reunindo Crônica de uma Morte Anunciada, de García Márquez e Travessuras da menina má, de Vargas Llosa. Dois jogaços. Dois clássicos de arrebentar… com os comentaristas.

Nestes dias, releio os livros que me couberam. Estou no Calvino, que é bem melhor do que eu lembrava. Logo após relerei Borges, mas talvez nem fosse necessário, pois Ficções parece estar instalado há mais de vinte anos em meu cérebro. À leitura!

Charles Kiefer, o incendiário tranquilo

Charles Kiefer diz que gostaria de ser um homem calmo como foi seu avô. Porém, após conhecê-lo, fica difícil imaginar alguém mais mais tranquilo que o escritor. Kiefer recebeu o Sul21 em seu gabinete na PUCRS e a impressão que tivemos é a de que poderíamos ter conversado muito mais do que a uma hora e quarenta minutos que está resumida a seguir.

Nascido em Três de Maio, no noroeste do Rio Grande do Sul, Kiefer tem 30 livros publicados, foi oito vezes finalista do Prêmio Jabuti – ganhou três -, dá aulas na universidade, comanda oficinas literárias, fundou uma associação de incentivo à leitura e guarda na gaveta mais de um livro quase pronto para publicação. Toda essa atividade parece natural ao sorridente professor.

Suas notas biográficas apontam que nasceu em 1958 e que estreou na ficção em 1982, com Caminhando na chuva, novela que já está na 20ª edição e vendeu 100 mil exemplares. Sairá uma nova edição em 2012, comemorativa aos 30 anos de lançamento do livro, pela editora Leya. Porém, logo abaixo saberemos que Caminhando é seu quarto livro e que os anteriores são comprados e queimados pelo próprio autor.

“A literatura não tem mais esse espaço formador da sociedade, mas ela é um relicário, é a coisa mais bonita que a língua pode reproduzir, e é esse papel que ela tem nas sociedades desenvolvidas” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – Há algumas décadas atrás, o escritor era considerado o reflexo ou uma espécie de reserva moral da sociedade, uma figura importante, ouvida sobre vários assuntos de sua época. Hoje ele foi deslocado deste papel. Qual é, atualmente, o papel do escritor na sociedade?

Charles Kiefer – Boa pergunta, hoje dei uma aula sobre isso. Discutimos sobre o realismo e a função social do escritor. Mas eu começaria a responder falando sobre um livro que eu adoro, chamado Era uma Vez a Literatura, de José Hildebrando Dacanal, no qual ele diz que numa sociedade iletrada, onde a base social são analfabetos ou semiletrados, o escritor vira gigante, pois ele domina um código oculto. Então, numa sociedade de baixo nível cultural, a literatura toma um papel fundamental, assim como nas sociedades recém-formadas. Quando tu não tens um conceito de nação, a literatura é quem faz o papel de construtora da identidade nacional. No Conesul, se não existisse o romance de Ricardo Güiraldes, Don Segundo Sombra, essa imagem do gaúcho que temos hoje não existiria. A literatura está por trás disso. Ela é quem trouxe a imagem que chamamos, na teoria, de mitopoética, que acaba reproduzida pela população.

Podem falar o que quiserem do Lula, mas ele fez a maior distribuição de renda da história do país. E tudo sem guerra, numa revolução social feita em silêncio.

Sul21 – Isso numa sociedade rebaixada.

Charles Kiefer – Sim, daí vem um negócio chamado democracia… Podem falar o que quiserem do Lula, mas ele fez a maior distribuição de renda da história do país. E tudo sem guerra, numa revolução social feita em silêncio. Por exemplo, aqui na PUCRS, 40% dos meus alunos vêm do Prouni, são bolsistas e alunos maravilhosos, pois sabem que aquela é a única chance deles, e a agarram com tudo. Enfim, o que está acontecendo é que nós estamos entrando para o que antigamente a gente chamava de concerto das nações. Antes a gente tocava um bumbo lá no fundo e de forma desafinada, agora somos primeiro violino, dando tom para o resto da orquestra. A literatura ainda tem um espaço num contexto destes? Não. E sim, ao mesmo tempo. Ela não tem mais esse espaço formador da sociedade, mas ela é um relicário, é a coisa mais bonita que a língua pode reproduzir, e é esse papel que ela tem nas sociedades desenvolvidas. Ela conserva e reproduz beleza artística, assim como o cinema, o teatro, a música, a pintura. Aquela coisa do “doutô” da literatura, que é letrado e superior, acabou, não há mais distinção. Agora nós temos um papel de ator coadjuvante. E a outra coisa que aconteceu foi a internet. O conhecimento, que antes era um feudo, está distribuído, o poder está distribuído. Com a internet cada vez mais barata, tu escreves o teu texto, tu fazes o teu jornal. Essa disseminação da informação, essa democratização, tem consequências ainda desconhecidas, muito interessantes, como as que houve nos países do norte da África e na Espanha.

“Nós não enxergamos as coisas maravilhosas que estão feitas pois quem as está realizando são nossos vizinhos, nosso amigos, colegas, contemporâneos” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – Vários ensaístas reclamam que nas últimas décadas houve uma decadência geral na qualidade artística, tu concordas?

Charles Kiefer – Isso é uma baita bobagem. Nós não enxergamos as coisas maravilhosas que estão feitas pois quem as está realizando são nossos vizinhos, nosso amigos, colegas, contemporâneos. Quando a gente tiver distanciamento crítico a gente vai ver a qualidade de muitas coisas. Talvez estejamos vivendo uma nova Renascença. Leio textos fantásticos até em sala de aula.

Sul21 – E os grandes temas estão mantidos?

Charles Kiefer – Amor, dinheiro, poder, guerra e paz?

Sul21 – Eu diria morte, também, e deus.

Charles Kiefer – Sim, sim, mas eu gosto de colocar as coisas em duplas dialéticas, amor e ódio, vida e morte, guerra e paz, fé e ciência. Acho que os grandes temas estão presentes desde o início do tempos, senão não interessa. Apenas mudou a abordagem.

Sul21 – E é curioso como a literatura dialoga com o restante das artes. Se tu melhoras o nível da leitura, melhoras todo o resto em termos culturais, a música, o cinema, o debate político, a visão de mundo…

Charles Kiefer –– … até o cabelo, a roupa, a arte muda totalmente uma pessoa.

Se, como diz o Harold Bloom, Shakespeare inventou o humano, Poe inventou o homem moderno.

Sul21 — Voltando à questão dos grandes temas, a literatura busca novos temas, ou ela usa mesmos do passado?

Charles Kiefer – Eu escrevi um livro todo sobre isso, A Poética do Conto: de Poe a Borges – um passeio pelo gênero. O último cara na civilização ocidental que acrescentou coisas novas ao imaginário popular foi Edgar Allan Poe. Isso em 1840, 1849… naquela década. Olha só o que o Poe inventou literariamente: ele inventou o romance policial, o alienígena, as viagens espaciais, inventou também o romance psicológico, dedutivo. A única coisa que ele não inventou é toda essa comunicação de internet. Ele quase chegou a criar isso, num conto dele, de um jogador de xadrez automático.

Sul21 – O Autômato Jogador de Xadrez.

Charles Kiefer – Exato! Ali já é um computador. Ele poderia ter ido adiante e inventando algum sistema eletrônico que resolvia o negócio. Se, como diz o Harold Bloom, Shakespeare inventou o humano, Poe inventou o homem moderno. Entretanto ele não é um grande escritor, as histórias dele são mecânicas, os personagens são maníacos, muito neuróticos, o amor é pouco natural, não há nele seres humanos verdadeiros, há obsessões, ele abriu o caminho para Stephen King, Lovecraft.

“Dacanal me disse uma vez que o meu último livro bom foi Valsa para Bruno Stein. Talvez ele tenha razão pois acho que agora eu me volto muito para o lado da razão, não deixo tanto a emoção extravasar” Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 Como funciona o projeto Associação Jovem Leitor?

Charles Kiefer – Nós temos muitos escritores, está faltando é leitores. A AJL é uma entidade civil, pública. Eu e os meus alunos fazemos projetos de leitura, criamos bibliotecas e doamos livros para crianças e jovens das comunidades menos aquinhoadas. Temos vários tipos de projetos para atender várias necessidades. Aproveitei o momento em que era patrono da Feira do Livro para dar maior visibilidade ao projeto.

Sul21 – Como foi montado?

Charles Kiefer – Eu fui para os Estados Unidos há anos atrás e vi as tais Gideon Bibles, umas bibliazinhas pequenas onde estava escrito take it, coloquei no bolso e pensei “que coisa legal”. E dentro estava escrito que aquilo era resultado da decisão de alguns ricos empresários cristãos que distribuíam bíblias de graça. E pensei “por que não fazer isso com literatura?”. Eu estava sempre com essa ideia de ficar um dia rico, e quando estava hospitalizado – passei dezessete dias sem nada para fazer -, fiquei pensando, lendo, e constatei que grande parte do PIB do Estado passava pela minha sala de aula nos ensinos particulares. Há gente riquíssima estudando e pensei “por que não reunir todo esse pessoal para fazer algo? Vamos fazer uma associação”. E então mandei um e-mail para os meus alunos e a coisa explodiu. Agora temos CGC, eu fui o primeiro presidente, agora é o Ayala Aguiar. Trabalhamos em parceria com a Câmara Riograndense do Livro. Há muita gente que conseguiu vencer e ganhar dinheiro na vida sem grande instrução. Há muitos alunos de mais idade e bom poder aquisitivo em oficinas minhas, eles notam que estão atrás do resto dos alunos e me pedem indicações de livros, de coisas para preencherem estas lacunas e vencer o atraso. Eles conseguem e sabem o quanto é importante o complemento cultural.

Sul21 – Teu primeiro livro foi escrito aos 17 anos. Soube que tu desejas jogar fora todos os exemplares, queimar se possível…

Charles Kiefer – Verdade, eu compro nas livrarias e queimo. E é pior, porque são três livros, na verdade: O Lírio do Vale, Vozes Negras e Os Caminhantes Malditos. Me arrependo de tê-los publicado. Mas é lógico que não posso tirar o primeiro degrau da escada. Eu era jovem, imaturo, o peso da emoção naqueles livros era infinitamente maior que o da razão. Com essa idade você é só sentimento. E, enfim, depois veio Caminhando na Chuva, que é o primeiro livro do escritor, enquanto os outros são livros do adolescente. Ele é na verdade meu quarto livro, mas a própria editora colocou-o como o primeiro.

Sul21 – Caminhando na Chuva é um grande livro.

Charles Kiefer – Com 53 anos eu posso olhar para trás e achar interessante, mas na época eu nem percebia. (risos) Quando eu tinha 22 anos, morava ali na Avenida Pará, em Porto Alegre, em cima de um açougue, num lugar horrível, e daí eu pensei que minha adolescência estava acabando e que nunca mais teria aqueles sentimentos e emoções. Eu estava vendo novas coisas surgindo em mim, sabia que estava mudando; foi então que decidi, é agora ou nunca, ou registro isto ou nunca mais vou ter a oportunidade. Sentei e escrevi o livro em 17 dias. Quando eu comecei a escrever, queria fazer um memorial de adolescente, sob o ponto de vista de alguém que está saindo dessa fase mas ainda está nela. Por isso tem aquele ar de autenticidade, eu consegui o equilíbrio. O Dacanal me disse uma vez que o meu último livro bom foi Valsa para Bruno Stein, “depois tu só escreveste porcaria”. Talvez ele tenha razão pois acho que agora eu me volto muito para o lado da razão, não deixo tanto a emoção extravasar, apesar de ter feito coisas meio loucas como O Escorpião da Sexta-feira.

“Vi parentes e amigos sendo considerados selvagens, como se viessem do interior para matar e destruir a civilização ocidental” Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – Onde tu colocas a questão da razão e da emoção no excelente Quem Faz Gemer a Terra?

Charles Kiefer – Ah, esse livro foi muito repensado, eu passei uns seis meses pensando “de que ângulo vou partir para contar essa história?”. Eu vi aquela briga do Olívio (Dutra, na época prefeito de Porto Alegre) enfrentando baionetas, eu vi tudo ao vivo, e quando cheguei em casa a imprensa já estava transformando todos em marginais, era tudo uma mexicanada zapatista e eu me enfureci, um furor santo, e decidi escrever o livro. O fato de eu ser de Três de Maio também me feriu, pois vi parentes e amigos sendo considerados selvagens, como se viessem do interior para matar e destruir a civilização ocidental. Então, quando eu fiz o recorte, vi que tinha o problema do foco narrativo e pensei muito. Até que chegou o momento em que concluí que tinha que contar do ponto de vista do colono. E eu precisava expressar isso numa linguagem ou do colono ou minha, mas escolhi um meio termo, pois ele está preso, o fato aconteceu cinco anos antes e ele recebeu muitas visitas, até de jornalistas, e contou tanto a história, tantas vezes, que o discurso já está polido. Foi o modelo estrutural ideológico que desenvolvi para conseguir equilibrar a visão do personagem com a minha sem errar muito.

Foi feita uma tremenda injustiça contra os seres humanos que formavam o Movimento dos Sem Terra. Já eram ladrões de terras e viraram monstros assassinos.

Sul21 – Lembro dos jornais no dia seguinte. A morte de um brigadiano foi tratada como “massacre”. Era um caso difícil, havia um corpo e os jornais apareciam cheios de argumentos para não dar nenhuma dimensão humana ao sofrimento dos colonos. Parecia que o mundo burguês ia acabar pelas mãos do MST.

Charles Kiefer – O acontecimento foi grave, claro. Mas foi feita uma tremenda injustiça contra os seres humanos que formavam o Movimento dos Sem Terra. A imprensa já os tinha transformado em ladrões de terra. Viraram monstros assassinos. Indignado com isso, escrevi o livro. Até hoje essa pecha segue associada ao MST. O fato é que eles enfrentam o setor mais conservador da sociedade, então parece adequado qualificá-los como sua antítese, o que não é verdade. O livro é um relato muito autêntico.

Eu era muito na minha, não visitava muito os outros, tinha poucos amigos. Eu tinha uma relação ruim com a minha terra.

Sul21 – E o colono veio morar na Avenida Pará… Tu eras um menino pobre de Três de Maio que ouvia Bach, Mozart e Beethoven.

Charles Kiefer – Eu era muito na minha, não visitava muito os outros, tinha poucos amigos. Eu tinha uma relação ruim com a minha terra. É complicado… Eu era pobre, estudava numa escola de crianças ricas, pois minha mãe conseguiu uma bolsa de estudos para mim. Eu não tinha dinheiro para comprar sequer comida no recreio, levava um pãozinho de milho com melado que abria para comer. Era a piada da escola. Eu tinha que ir comer bem afastado num campo de futebol para ficar em paz.

“Lembrei das vezes que fui correndo para um homem sentado numa cadeira de balanço, lendo, e daí, quando desejo ir para o colo dele, minha avó me segura e diz ‘Não vai lá porque ele está lendo'” Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – Bullying?

Charles Kiefer – Eu acho que sim, eles implicavam com um blusão de lã que eu tinha, eles pegavam no meu pé, eu coloco isso no Caminhando na Chuva. Era um blusão que eu tinha ganhado da minha mãe e usava ano após ano, era o que ela tinha conseguido me dar, enfim. Mas nada disso me influenciou muito, o que realmente tem peso são meus avós, meu avô paterno era um grande leitor e ainda era músico. Lembro de quando era criança, eu sentado no colo do meu avô, ele contando as histórias do Charles De Coster, como As Aventuras de Till Eulenspiegel. Esse autor ninguém conhecia aqui no Brasil. Meu avô era violinista também, chegou a tocar numa orquestra em Cachoeira do Sul, ele e um irmão dele. Eles casaram com duas mulheres irmãs e foram viver no mesmo terreno, mas as mulheres brigaram, e um dia o irmão do meu avô, de madrugada, bateu com o facão na porta gritando “vem pra fora se tu é homem”. Meu avô, que era muito calmo – era o homem que eu gostaria de ser e não sou – , me contou que, se pegasse o facão e saísse, seria um morto ou um assassino. Então ele não saiu, mas fez as trouxas dele para ir embora para sempre com a mulher. Naquela madrugada, estava saindo um comboio de carroções, como no faroeste, de pessoas indo para a serra. Ele já tinha sido convidado para ir mas não aceitou, daí mudou de ideia e colocou a mulher, os dois filhos, e foi embora, durante dezoito dias no meio do mato até chegar em Três de Maio. Havia três localidades, uma perto da outra – Consolata, Vista Alegre e Caravaggio –, formadas de minifúndios. Mas, enfim, a influência mitopoética que mais me influenciou foi quando eu descobri, numa análise em divã, a imagem do meu bisavô. Lembrei das vezes que fui correndo para um homem sentado numa cadeira de balanço, lendo, e daí, quando desejo ir para o colo dele, minha avó me segura e diz “Não vai lá porque ele está lendo”. Aquilo era um misto de sentimentos, de ciúmes do livro, da magia daquele negócio. Ele tinha aquela caixinha mágica, eu ficava esperando que dobrasse aquele monte de papéis, fechasse a caixa, para então ficar livre para ir lá no colo dele. E ele contava, abria a caixinha e mostrava o que estava dentro. Eu lembro disto, do louco desejo de conhecer aquilo, por isso já estava lendo aos três anos. Ele gostava muito do que se chama Bildungsroman.

Pois esse meu bisavô era um assassino. Ele matou o outro e jogou o corpo no mar, pegou os documentos, e virou Losekann. Quando chegou aqui viveu a vida do outro.

Sul21 – O romance de formação de origem alemã.

Charles Kiefer – Sim, ele lia bons livros e é uma figura mítica para mim, ele era de uma leva de alemães que foram para a Rússia, e se deram muito mal por lá, ficaram miseráveis e tiveram que migrar. E bem, há um crime na minha família, que foi o que originou meu primeiro romance que vou ter de reescrever logo. Pois esse meu bisavô era um assassino. Numa viagem de navio, uma mulher que tinha um jovem marido se apaixonou por outro homem, ele. E ele matou o outro e jogou o corpo no mar, pegou os documentos, e meu bisavô, que era qualquer coisa, virou Losekann, quando chegou aqui, viveu a vida do outro. Claro, não havia foto nos documentos, ninguém o conhecia, não deve ter sido difícil mudar de identidade.

Sul21 – Que história fantástica.

Charles Kiefer – Eu precisava escrever um romance sobre isso, né? Não podia ignorar. A minha bisavó, quando estava para morrer, livrou-se da angústia chamando toda a família ao pé da cama, e contou para seus filhos que o pai deles era um assassino. Ela até falou o nome real dele mas ninguém anotou, ninguém teve coragem. Eu até procurei, mas ninguém lembrava.

“As grandes editoras têm uma política de o escritor ter de vender um determinado número de exemplares para eles te tornarem top da editora, para elas investirem de fato em ti” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – Uma família alemã de sangue quente essa… Mas eu li no teu blog um texto reclamando que teus livros passaram para a Record e tu achaste que ia aumentar muito as vendas, mas não foi o que ocorreu.

Charles Kiefer – É, é uma coisa meio lamurienta mesmo. O ponto principal é o fato de que quem vendia x exemplares por ano, hoje vende muito menos, e isso é para todos. Com a internet, o pessoal lê menos livros, mas veja como são as coisas: eu publiquei aquele ensaio Para ser escritor e em menos de 40 dias o livro esgotou a primeira edição. Já está na 2ª ou 3ª e circula em oito países. Mas ele não é ficção. Há uma estatística da Associação Mundial do Livro que revela que a ficção está caindo 20% ao ano nas últimas duas décadas. Para isso acho que há uma explicação psicanalítica, psicológica. Hoje em dia, as novas mídias já nos suprem completamente a necessidade de ficção. Na internet você vê filmes em poucos cliques, dentre tantas outras coisas. Há milhares de textos, interesses, estímulos. Por que você vai então ler? Além disso, há problemas de distribuição. As grandes editoras têm uma política de o escritor ter de vender um determinado número de exemplares para eles te tornarem top da editora, para elas investirem de fato em ti. Elas tem uma curva de equilíbrio que tem de ser atingida em tantos dias, e se isso não acontece você fica meio de lado. Elas também não ajudam a tua performance pois não fazem reposição. E bem, aumentou geometricamente o número de autores no mercado, e eu até contribuí com isso através de minhas oficinas. Somando-se a isso o problema de distribuição e a internet, a venda vai lá embaixo. Hoje em dia tenho certamente mais leitores dos meus blogs do que dos meus livros. Eu já até fiz uma coisa louca com a Editora Leya. Eu não cobro direito autoral adiantado. Nunca sei se vou morrer ou não, não quero ficar com conta para pagar. Então, depois de três meses eles me apresentam a primeira prestação de contas. É um dinheiro efetivo que entra. Pela Record, eu recebi já por 3 mil exemplares de uma edição e estou em dívida, pois eu só vendi 6 exemplares no último trimestre. O livro, que é de contos, está em débito com eles, vou demorar uns 50 anos para pagar. Meu novo livro está pronto, Dia de Matar Porco, mas eu preciso revisar, fechar bem ele, e falei para minha editora fazer um contrato para daqui dois anos e sem adiantamento.

Hoje em dia tenho certamente mais leitores dos meus blogs do que dos meus livros.

Sul21 – Me diz como foi tua experiência como secretário municipal de Cultura e secretário adjunto?

Charles Kiefer – Não quero falar disso… o que passou passou.

Sul21 – Foi tão ruim?

Charles Kiefer – Foi bem ruim, mas… Aconteceu uma coisa maravilhosa, que foi minha filha Sofia. Acabei me envolvendo de fato com a Marta nessa época porque a política nos ajudou, a gente estava sempre se encontrando. Casamos e tivemos a Sofia. Foi o que de melhor me trouxe a política…. o resto é resto and the rest is silence (risos).

Sul21 – Tu tens três Prêmios Jabutis, né?

Charles Kiefer – Sim, e fui oito vezes finalista. Perdi até para o Chico Buarque…

Sul21 -Tu perdeste para Budapeste ou para Estorvo?

Charles Kiefer – Foi um estorvo na minha vida. (risos) Olha, talvez tu me perguntes sobre o caso Edney x Chico…

“Todo mundo nasce para ser escritor, basta ter as condições para isso, condições culturais, sociais para ser galado do ponto de vista da literatura” Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – É óbvio.

Charles Kiefer – Ser jurado de prêmio é muito complicado. Eu dou um prêmio, o Prêmio Sofia de Literatura, dou 3 mil reais para o primeiro lugar, e mais 3 mil reais para o primeiro lugar dos alunos. Eu contrato especialistas em literatura para dar um dos prêmios, e os próprios colegas dão o outro. Esse ano aconteceu algo incrível: os especialistas deram seus prêmios e os alunos deram exatamente a mesma coisa, só que na ordem inversa… Isso mostra que cada pessoa lê um livro diferente.

Sul21 – Com quais livros tu ganhaste o Jabuti?

Charles Kiefer –Com o O Pêndulo do Relógio, Um outro Olhar e Antologia Pessoal.

Daí eu me dei conta de que uma coisa que funcionava maravilhosamente bem eram as oficinas literárias, os workshops. Então pensei em ganhar um extra e abrir um curso.

Sul21 –Bem, vamos falar das tuas oficinas, há alunos épicos que estão há 18, 19 anos contigo.

Charles Kiefer –Engraçado né? Isso começou quando eu estava em Iowa, nos Estados Unidos, convidado pelo governo americano para o International Writing Program. Lá, além de frequentar algumas aulas na universidade, a gente fez um grupo de escritores latino-americanos e alguns asiáticos e europeus. Nos reuníamos nas quintas à noite, no salão de festas de nosso prédio, para apresentar textos uns aos outros. A gente contratava uma moça alemã para nos traduzir, o  Marcelo Carneiro da Cunha também traduziu vários contos meus também. Mas olha… eu gastei cerca de 51 mil dólares lá, um dinheiro nada meu, o governo americano pagava todo o transporte e estadia. Quando a gente quisesse viajar era só ligar para Washington – talvez por isso estejam tão mal hoje… E eu ainda trouxe dos EUA um dinheiro suficiente para comprar um apartamentinho ali na Santo Antônio onde eu coloco minhas quinquilharias, é meu escritório. Mas enfim, daí eu me dei conta de que uma coisa que funcionava maravilhosamente bem eram as oficinas literárias, os workshops. Então pensei em ganhar um extra e abrir um curso. Foi na Casa de Cultura Mário Quintana. Daí, no dia que cheguei para a primeira aula, a Simone Schmidt, que era chefe do departamento de literatura da Biblioteca Lucília Minssen, me disse que teríamos que cancelar: tinha apenas três inscritos. Eles não poderiam me pagar o cachê. Então eu decidi fazer de graça para respeitar o trio. Se Mozart fez concerto para apenas um em Paris, por que o Charles Kiefer não daria aula para três? Hoje eu tenho sete turmas particulares, dou aula aqui de noite (na PUCRS), de manhã na Palavraria, e tenho 1400 pessoas em lista de espera. Tem gente há oito anos esperando uma vaga. Eu desmanchei os dois grupos de sábado pois vou dar aula aqui também, e ali estava o Reginaldo Pujol Filho, que participava há 17 anos.

Sul21 – Eu sou um cético em relação às oficinas…

Charles Kiefer – Como o Dacanal…

Sul21 – Ele tem um livro contra as oficinas. Quais seriam os teus argumentos a favor então?

Charles Kiefer – Uma vez, um professor que me entrevistava fez uma pergunta mais ou menos assim. Daí eu brinquei com ele e disse que todo o ovo nasce para ser galo ou galinha, mas se o ovo não for galado não vai ser nada além de um ovo. Todo mundo nasce para ser escritor, basta ter as condições para isso, condições culturais, sociais para ser galado do ponto de vista da literatura. Bem, eu estou participando da equipe que está montando o Curso de Mestrado e Doutorado de Escrita Criativa. Pela primeira vez na América Latina haverá um curso assim, com cadeiras específicas, de estudo de cinema, teatro, literatura, poesia. Olha, é um curso integral, fascinante.

A respeito de Moby Dick, Jorge Luis Borges escreveu:

(É que falei tão bem de Huck Finn que me senti em falta com Mody Dick. Então, invoco Borges, que normalmente está disponível para equilibrar as coisas. Além da famosa citação abaixo, Borges também referiu-se a Moby Dick como “um caos não apenas perceptivelmente maligno aos gnósticos, como também irracional”).

Página a página, o relato se agiganta até superar o tamanho do cosmos: a princípio o leitor pode supor que seu tema é a vida miserável dos arpoadores de baleias; em seguida, que o tema é a loucura do capitão Ahab, ávido por acossar e destruir a Baleia Branca; depois, que a Baleia e Ahab e a perseguição que esgota os oceanos do planeta são símbolos e espelhos do Universo.

Pura verdade.

Sobre Ernesto Sabato, autor de duas obras-primas, falecido hoje

Faleceu hoje um dos três maiores escritores vivos: o argentino ERNESTO SABATO — os outros dois seriam, por ordem, Ismail Kadaré e Philip Roth. O realmente grande Sabato, autor de pelo menos duas obras-primas (“O Túnel” e “Sobre Heróis e Tumbas”) iria completar 100 anos no dia 24 de junho próximo.

(Fernando Monteiro)

Com a morte de Sabato, o país latino-americano mais esquecido, humilhado e ofendido pela indiferença dos acadêmicos suecos que decidem o Nobel, passa a ser a Argentina. Deixaram de premiar Borges e Sabato, nem mais nem menos.

(Fernando Monteiro)

Fernando, acrescente Saer na listinha do país ofendido.

(MR)

CONCORDO inteiramente com vosmicê, Milton. Juan José Saer estaria na ordem direta de grandeza de Borges e de Sabato, neste momento, caso não houvesse falecido relativamente moço, ainda. Atenção, Feicebuque: LEIAM J. J. SAER!

(Fernando Monteiro)

Sabato foi um grande físico, chegando a trabalhar no Laboratório Curie, em Paris. Nos anos 40, depois de questionar esse mundo tão racional — que lhe provocava, segundo suas palavras, “um vazio de sentido” — , abandonou a ciência para se dedicar à literatura e à pintura. Publicou livros de ensaios e romances, poucos em quantidade — só três romances — , mas de uma qualidade incontestável. Destaca-se nesse conjunto a obra-prima Sobre heróis e tumbas, lançado em 1961 e com edição recente no Brasil pela editora Companhia das Letras, com tradução de Rosa Freire d’Aguiar.

O romance é dividido em quatro partes, mas antes há uma nota, supostamente tirada de um jornal de Buenos Aires, pela qual ficamos sabendo que Alejandra matou seu pai, Fernando Vidal Olmos, e depois ateou fogo no próprio quarto, se suicidando. Na primeira parte, “O dragão e a princesa”, passamos a conhecer melhor essa impressionante personagem a partir das percepções de Martín, jovem que se apaixona por ela. Misteriosa, imprevisível e de personalidade forte, Alejandra só não é mais estranha do que os parentes que habitam a casa, gente ligada à antiga aristocracia argentina, cujos antepassados participaram da luta pela independência do país. Esses antepassados podem ser os heróis do título no que seria uma interpretação político-social da obra, colocando Alejandra como metáfora para a própria Argentina. Prefiro, no entanto, a chave mais existencial, sendo que o título dessa segunda parte nos leva a esse sentido. Seria o dragão Martín e a princesa Alejandra? Ou seria a jovem uma princesa-dragão, soltando fogo através de suas duras palavras?

Na segunda parte, “Os rostos invisíveis”, a história se desenvolve com mais comentários sobre a história da Argentina, inclusive sobre a era peronista, as paixões anteriores de Alejandra e aparece pela primeira vez Fernando Vidal Olmos, esse o rosto invisível em boa parte do enredo, mas que começa a se revelar. É dele o manuscrito que seria encontrado posteriormente no quarto incendiado e que corresponde à terceira parte, talvez a mais perturbadora de todo o enredo: “Informe sobre cegos”.

O texto é uma narrativa enigmática, que reflete a mente perturbada de Fernando em sua tentativa de encontrar a Seita dos Cegos. Percorre, inclusive, os esgotos subterrâneos de Buenos Aires, como a descida de Ulisses ao Reino de Hades em busca das respostas do cego Tirésias, contada na Odisseia, de Homero. Paradoxalmente, busca a luz nas trevas. Na verdade, a busca representa a jornada nas tumbas da nossa mente, por isso as menções ao sexo desenfreado, aos canalhas de todas as estirpes, ao lixo produzido pelo homem. Tudo alegorias das questões morais do ser humano. Mais do que isso eu não falo sobre o “Informe”. Leia-o. Repito, leia-o. E mais uma vez: leia-o, mesmo que seja só essa parte. Vai te deixar perturbado durante dias, mas é esse o objetivo de todas as grandes obras literárias.

[…]

(Cassionei Petry)

Al llegar al hotel me dieron un paquete sobre que me habían dejado de parte de Sabato. Contenía un libro, Sobre héroes y tumbas, y una carta en la que me pedía disculpas por no acudir al concierto. Me explicaba que mi música le había salvado en momentos de depresión. Lo curioso es que cuando hice el servicio militar en Nis, en la época comunista, robé de la biblioteca del cuartel un ejemplar de ese libro. Lo tuve en mi casa de Sarajevo durante años y lo perdí. Con la guerra perdí todo, también mi biblioteca. Puedes empezar dos veces tu vida, pero no puedes empezar dos veces una biblioteca. Todas las cosas grandes que me han pasado están guiadas por cosas pequeñas que se vuelven grandes, como el libro de Sábato.

(Goran Bregovic)

Neste momento em que andam ensinando tantas tolices, principalmente em “oficinas” literárias que começam por duvidar da eficácia do narrador na primeira pessoa, Ernesto Sabato dá sua lição de graça: “Adotei a narrativa na primeira pessoa em O Túnel, depois de muitas tentativas, porque era a única técnica que me permitia passar a sensação da realidade externa tal como a vemos, a partir de um coração e de uma cabeça, a partir de uma subjetividade total…”

(Fernando Monteiro)

Ernesto Sabato não escreveu muitos livros de ficção, talvez tenha escrito três ou quatro, mas os que li foram muito marcantes: O Túnel e Sobre Heróis e Tumbas.

O Túnel é de 1948 e insere-se decidamente no existencialismo. Albert Camus era um entusiasta da obra e recomendou sua tradução para a Gallimard, o que tornou Sábato uma celebridade da noite para o dia. Lembro que gostei demais daquele vertiginoso monólogo escrito na primeira pessoa por um narrador que resolve contar o ato que cometeu. Traz perturbadores — esta é a palavra qiue mais descreve Sabato — debates de consciência, demonstrando as dualidades e desvios que empurram os seres humanos a pensamentos e atos nem sempre justificáveis.

Porém seu grande romance é Sobre Heróis e Tumbas de 1961. São três narrativas que se completam: a do amor algo doentio de Martín por Alejandra — esta uma das maiores personagens que já conheci — ; a da morte no exílio do general Juan Lavalle, heroi da independência argentina; e o melhor de todos: O Informe sobre Cegos, que chegou a ser publicado separadamente há alguns anos. As duas primeiras, apesar de totalmente diversas entre si, são clássicas histórias de decadência de uma certa aristocracia, contadas sob a perspectiva da morte. Já O Informe está no limite do fantástico e é a respeito de uma seita maléfica dotada de poderes esotéricos e que une todos os milhões de cegos do mundo.

[…]

(MR)

Eu tenho aqui um volume de diálogos entre o Sabato e o Borges que é delicioso, editado pela Globo. Numa das conversas, o moderador os recebe em um bar de Buenos Aires; Borges pede água e Sábato whisky. Sábato fala da mitificação inconsequente dos leitores superficiais, e cita alguém da crítica que disse ser o Dashiel Hammet tão bom quanto Faulkner. Quem diz isso, continua, só pode ser um leitor esporádico, alguém pronto para escrever para periódicos, não um leitor profissional. Mas o melhor é ver Borges tão cordial, de certa forma infantilmente indefeso, o que se vê pouco entre grandes escritores (que se preocupam em passar uma imagem de rigidez literária como se pronunciassem sentenças imortais no simples ato de irem ao banheiro). Perguntado sobre música — Borges também era compositor de tangos, reunidos nos quatro volumes da Globo numa seção de milongas — , disse que uma sobrinha ou uma outra menina de sua família, ligou o rádio para que ele escutasse uma canção. Era uma canção tão linda e tocante que ele não resistiu ao choro. Terminada, perguntou quem cantava, ao que a menina respondeu: mas valha-me deus, o senhor nunca ouviu os Beatles?

Semana passada mesmo sublinhei essa frase, de um dos Prólogos dos Prólogos: “Nada mais distante da beleza que a simetria perfeita”.

(Charlles Campos)

Professor de escola pública quando jovem na “Era Perón, Ernesto Sabato foi demitido por ter assinado documento de repúdio à violência policial contra estudantes dispostos a comemorar a vitória das Forças Aliadas sobre o nazi-fascismo. Era, então, sua única fonte de renda. Muito bem. Quando caiu o regime de Perón, e Sábato ficou sabendo que muitos peronistas (seus antigos inimigos) estavam sendo torturados em nome do movimento “libertador”, o escritor sem medo assumiu o ônus de condenar a prática da violência contra os ex-violentos. Será preciso dizer mais sobre as imposições da consciência a este “homem que lutou só”?

(Fernando Monteiro)

González recordó que en los ’40 publicó “El Túnel”, que había sido elogiada por Albert Camus en Francia, “el escritor más leído en aquella poca”. Y señaló que “también Camus veía un orden moral agredido por la civilización contemporánea tecnológica y había pensado en una suerte de estadío intermedio entre los movimientos de liberación nacional, las izquierdas y las posiciones de derecha”. “‘El Túnel’ de Sabato era una novela inspirada un poco en Camus, que también buscaba en medio de la oscuridad el sentido de la vida”, planteó.

Luego, `Sobre Héroes y Tumbas` en los 60 “fue su novela conmocionante”, definió el titular de la Biblioteca Nacional y agregó que fue “una novela sobre la Argentina, una búsqueda también del sentido de la verdad y la existencia, pero a través de distintos personajes”. “Fue una novela que realmente conmocionó la literatura argentina, también en medio de un mundo sin valores o sin sentidos, sobre todo la ciudad de Buenos Aires, que él pinta con cierto sentido metafísico interesante”. También agregó que “los personajes son como sonámbulos que se buscan a si mismos en medio de una sociedad que les da la espalda y esa novela durante muchos años fue la marca que dejaba Sabato a los nuevos lectores, y no pocas otras escrituras se inspiraron en `Sobre Héroes y Tumbas`”.

(Horacio González, no Página 12)

O poeta e jornalista Franco Mogni – um dos jovens escritores dos quais Sabato jamais se apartou, ao longo do tempo – fez-lhe justiça nesta apresentação de entrevista para a revista Che, nos anos de 1970:

“Está sentado num dos últimos cafés de ar verdadeiramente portenho, com uma camisa azul escura que reforça o seu ar de monge e de anarquista ao mesmo tempo. Sábato é o último dos moicanos da retidão que não nega encarar os dilemas. Ele os vê com os olhos ziguezagueantes atrás dos óculos, num rosto que mescla traços de Chestov e Kierkegaard. E diz: ‘Se o homem é mortal em qualquer parte do mundo, aqui é muito mais mortal’. Tira os óculos e sorri meio de lado, acentuando as linhas do rosto sofrido. Vê-se, então, que é um homem só. O último dos moicanos.”

(Fernando Monteiro)

La ardua gestación de la mejor novela del Siglo XX

Compleja y extensa como pocas resultó para Ernesto Sabato la gestación de “Sobre héroes y tumbas”, considerada por los críticos como la mejor novela del siglo XX y en la que conjura sus obsesiones autobiográficas para reflexionar sobre la historia argentina y avanzar en la investigación de la relación entre la conciencia y el mundo exterior al sujeto.

Publicada en 1961, “Sobre héroes y tumbas” mutó sus variables literarias en numerosas oportunidades desde el primer bosquejo ideado por Sabato en 1938 bajo el título de “La fuente muda”, inspirado en un poema del poeta español Antonio Machado que dice “está la fuente muda y está marchito el huerto”.

La escritura de esta novela fue abandonada durante años, hasta que el desaparecido diario Sur publicó un fragmento en el que se percibe cómo el escritor inaugura con ella un curioso experimento, con páginas a dos columnas: la izquierda utilizada para lo que el personaje va soñando y la derecha para narrar los hechos que le suceden.

De esta historia, Sabato retomó algunos elementos con los que construyó el primer bosquejo de “Sobre héroes y tumbas”, al que le anexó fragmentos de otra novela, “Memorias de un desconocido”, sobre los pensamientos delirantes de un nihilista -que sustentaron el “Informe sobre ciegos”. Y de una tercera, “El desafío”, acerca de un joven solitario que se encierra a esperar que aparezca Dios.

La versión definitiva de “Sobre héroes y tumbas” es el resultado de un proceso en el que desaparecieron capítulos enteros -además de diluirse personajes y cambiarse el nombre de familias enteras- y sufrieron transformaciones radicales los recursos narrativos: aún así, las alteraciones rindieron a favor de la historia, considerada la mejor novela argentina del siglo XX.

[…]

(Julieta Grosso)

O homem é feito não apenas de desesperança, mas também, e fundamentalmente, de fé e esperança; não somente de morte, mas também de ânsias de vida; tampouco unicamente de solidão, mas também de comunhão e amor. A obra de Saint-Exupéry mostra como a literatura pode ser profunda e, não obstante, estar impregnada de cálidos sentimentos positivos. Disse Nietzsche que um pessimista é um idealista ressentido. Se modificarmos levemente o aforismo, dizendo que é um idealista desiludido, daí poderíamos passar a sustentar que é um homem que não termina jamais de se desiludir, pois há na condição psicológica do idealista uma espécie de ingenuidade inesgotável. E assim como a desilusão nasce da ilusão, a desesperança surge da esperança; mas uma e outra, desilusão e desesperança, são curiosamente o signo da profunda e generosa fé no homem.

(Ernesto Sabato)

Relatório Pessoal sobre a Flip 2005

Publicado em 13 de julho de 2005

Quando saímos de Porto Alegre, o termômetro que temos em frente de casa indicava 3 graus, mas quando chegamos a São Paulo estava quente e eu já suava. A Mônica, do Crônicas Mônica, e seu marido vieram nos buscar em Cumbica e fomos direto a Parati. Viagem boa, conversa fácil. Compramos os ingressos para as mesas que nos interessavam e finalizamos o primeiro dia indo ao show de Paulinho da Viola. Um espanto. Duas horas de clássicos e de algumas músicas novas. Nem deu para sentir o inimigo insidioso que preparava-se. Quando saímos do espetáculo, ele já estava armado: um inesperado frio de rachar. Mesmo querendo dar uma de gaúcho e desejando dizer que tantos agasalhos era frescura de cariocas, não havia como negar. Eu tremia e representava mal a coragem gaúcha para o frio.

Então, começamos a nos aquecer com a pinga de Parati. Para quem não está acostumado a beber álcool, aquilo tinha um efeito muito confortável. O frio passava e já não sabia se nossos amigos Mônica e Luiz eram realmente agradáveis e engraçados ou se era apenas mais um dos efeitos das Salinas, Nêgas Fulos, Coqueiros e Santa-Não-Sei-O-Quê que bebíamos. O resultado no outro dia? Nada. Nenhuma dor de cabeça, só uma vontade louca de dormir que nos fez perder as primeiras palestras da FLIP.

Conseguimos apenas assistir à mesa 3, às 15h do dia seguinte. Marina Colasanti, Vilma Arêas e Benedito Nunes falavam sobre Clarice. Apesar do enorme conhecimento de Vilma, foi médio. Ficou a impressão de que se ela estivesse sozinha, seria fantástico. Depois pulamos para a mesa de David Grossman e Michel Ondaatje, que foi monótona para quem não conhecia suas obras. Eles se referiam demasiadamente a questões judaicas bem conhecidas e Grossman parecia muito ressentido com o mundo, enquanto Ondaatje queria falar sobre poesia. Havia um chiado preocupante que parecia sair dos altos falantes. Uma falha técnica? Não! Era a chuva, que viera para acompanhar o frio. Fomos para o Restaurante do Fogo. Ali, eles flambam tudo com cachaça e é aquele fogaréu. Entramos molhados pela chuva fria e começamos a função tomando uma Gabriela, que é uma cachaça licorosa, com cravo e canela. Muito boa. A comida era excelente, apesar das porções resumidas. Resolvemos reforçar o estômago com uma sobremesa. Entramos num bar em que havia música esplêndida de jazz e bossa nova. Os caras eram ótimos mesmo. Não sei quem eram. Comemos e ficamos assistindo ao grupo acompanhados novamente daquele líquido, agora em versão incolor, apesar do apelido de “branquinha”. Ficamos com sono – eu e a Claudia – e fomos para o hotel. Perdi o grande momento em que a Mônica foi convidada a cantar desafinada, ops, Desafinado, Garota de Ipanema e todo o cerne do repertório jobiniano. Ela costuma cantar enquanto caminha, enquanto anda de carro, enquanto come, ela está sempre cantando. Tem uma voz grave, rouca e afinada. Cantava em sua mesa no bar e foi chamada ao palco. O problema é que seu marido começou a fazer gestos indicando que o couvert teria de ser dividido entre ele – agora travestido de empresário – e os músicos; desta forma, sua carreira foi abortada por uma dispensa entre risos. Perdi tudo isto! E, para completar, as fotos estão sob inflexível censura.

No dia seguinte, tornamo-nos intelectuais sérios. Assistimos à melhor palestra da FLIP: Beatriz Sarlo e Roberto Schwarz (Um Lugar para as Idéias). Deveria ter sido gravada. Foi uma inesquecível lição sobre Jorge Luis Borges, Machado de Assis, engajamento, compromisso intelectual e Juan José Saer.

Fomos almoçar no Bartolomeu, que tem boa comida e uma loira gostosa que olhava para mim e que provocou ciúmes não na Claudia, mas no Luiz, pois ele não fora aquinhoado com os mesmos olhares… Depois chegaram outras mulheres lindas – lindas mesmo – e ele dizia: tudo bem, me dá a pior e eu fico satisfeito! Eu e a Mônica ficamos boiando enquanto ele e a Claudia conversavam de forma minuciosa sobre comida. Antes de 2002, não conhecia pessoas assim. A Claudia estava encantada, porque o Luiz “pensava” a comida de forma semelhante a dela. Trocavam receitas e receitas, inventavam pratos, faziam variações mentais a respeito e elas pioravam ou melhoravam. Concordavam em tudo e reviravam os olhos de prazer, enquanto eu e a Mônica observávamos. E informo-lhes que estavam sempre sóbrios. (Descobri um fato que desconhecia. Esses chefs em potencial escolhem seus restaurantes pelo cheiro. É ele que determina se a comida oferecida é boa. Estou definitivamente fora desta especialidade. Sou um insensível.)

Deixamos minha loira e fomos para Orhan Pamuk (Mar de Histórias II: As Mil e uma Noites). A Flip tinha engrenado. O turco Pamuk é uma metralhadora informativa. Explicou-nos a imensa influência de Borges na divulgação das Mil e Uma Noites no mundo e a visão do oriente e do ocidente sobre o livro. Pamuk não esperava pelas perguntas, interrompia o entrevistador, sorria aparentemente sem motivo, mexia pernas e mãos para falar, era de tal forma agitado que era difícil manter a atenção em seu discurso. Depois de uma hora, a Claudia irritou-se e disse que não conseguia mais fixar sua atenção naquele maluco. Foi embora, enquanto eu jogava o corpo para a frente, tentando não perder nada do diferenciado conhecimento daquele homem que estava física e intelectualmente sobre aquela ponte de Istambul que é Àsia de um lado e Europa de outro e que tomava os dois mundos num só olhar. Outra grande palestra. À noite, assistimos a um recital es-pe-ta-cu-lar de Hamilton de Holanda. Garanto-lhes que o homem é um gênio e que nunca tinha visto alguém tocar bandolim daquela maneira.

O dia seguinte começou com a concorrida mesa de Arnaldo Jabor e do rapper MV Bill. Não a assisti, mas toda Parati estava lá. A mesa seguinte teve uma Parati desatenta e dispersa, mas foi do mesmo nível da de Schwarz e Sarlo. Chamava-se Zona de Conflito e foram entrevistados os correspondentes de guerra Jon Lee Anderson (Guerra do Iraque) e Pedro Rosa Mendes (Guerra de Angola). O educadíssmo americano Anderson cedeu grande parte de seu tempo para que o português falasse sobre uma guerra desconhecida e sobre o seu multi-premiado livro Baía dos Tigres, que descreve a guerra. Desculpem, não dá para resumir. Ouvimos um tremendo documento humano sobre uma população paupérima – e em grande parte mutilada pelas minas – subjugada por interesses de vários países, entre eles Portugal, Estados Unidos, Cuba e Brasil (Petrobrás e Odebrecht) e curvado por interesses tribais e de grupos armados como UNITA, MPLA, FNLA, FRELIMO, RENAMO, etc., etc. etc., além de por ditadores riquíssimos que dominam o cenário, o qual é literalmente tão minado e estropiado que criou uma cultura dantesca. Por exemplo, alguns angolanos cortam suas vacas a fim de tirar-lhe alguns bifes, depois, costuram alguns pontos e tratam de recuperá-la, pois não podem sobreviver sem ela. Assim, todos são mutilados. Lembrei do Holy Grail (do Monty Phyton), lembrei daquele guerreiro que quer lutar sem braços e pernas, mas aqui não tratava-se de comédia.

Saímos de lá e vimos a Sílvia Chueire. Estava acompanhada do escritor português Paulo José Miranda, que me presenteou com um livro de sua autoria onde a ficção entrelaça-se com metáforas sempre musicais. Li um pouco e parece tratar-se de algo muito bom. Recebeu alguns prêmios, mas esqueci-me deles. Desculpa, Paulo. Os dois foram encantadores e Paulo fez-nos dar risadas com suas histórias, além de revelar-se um exímio conhecedor de futebol.

** Atualização feita no mesmo dia, às 14h40. Nos comentários a este post, o Paulo explica: O prémio que esqueceste é o primeiro prémio José Saramago (que é extensivo a todos os países de língua portuguesa). Mas não tem problema, não! Problema mesmo é essa sua fixação pelo SLB (Benfica). Abraço, Paulo. **

À noite, chegou a vez de Salman Rushdie (O Equilibrista), que fez uma mesa muito alegre, inteligente e comovente. Fez a platéia emocionar-se – é um perfeito ator! – durante a leitura de um trecho de seu último livro em que refere-se a sua Caxemira natal, depois endureceu dizendo que só um idiota escreveria um simples livro pastoril de memórias sobre a Caxemira, que a literatura deve espelhar a realidade e que impôs-se a destruição daquela Caxemira, tal como o fizeram indianos e paquistaneses. Disse que chorava ao escrever a segunda parte do livro e perguntava-se a cada momento se valia a pena torturar-se daquela forma, mas concluíra que tinha de ir em frente. Naquela noite, não houve festa, pois a Claudia e a Mônica tombaram de cansaço.

No último dia, almoçamos num indiano ótimo (Ganges) que a Claudia descobrira pelo cheiro, é claro… Foi nossa melhor refeição, não foi, Luiz? Depois, assistimos à palestra O Sabor da Letras, de Anthony Bourdain, ex-chef do badalado restaurante “Les Halles”, de Nova York, e que escreve sobre gastronomia, além de trafegar na área da literatura policial. O cara, que é excelente escritor, já era conhecido do Luiz e, por sugestão deste, era a leitura da Claudia durante a FLIP. Ela engoliu as 400 páginas do livro Cozinha Confidencial em tempo recorde e chegou entusiasmada, como todos nós, para assistir à mesa. Mas a entrevistadora era uma débil mental. Acho que foi ela quem tornou o excelente Bourdain tão desbocado e desmotivado.

Tiagón perguntou-me ontem: o chef que a Claudia engoliu é o Bourdain? Essa era a mesa que eu mais queria assistir. Li Cozinha Confidencial umas dez vezes… Viram? O cara tem leitores realmente qualificados.

Foi uma boa Flip. De resto, houve as merecidas babações para Clarice, o contínuo frio estranho que impediu as escunas de saírem e que nos atirou para dentro dos restaurantes, bares e casas de espetáculos (todos os músicos bons estavam lá, incrível!) e… para a pinga salvadora. Ah, e houve o susto de Parati, pois a prefeitura de Ouro Preto quer desesperadamente sediar a próxima edição. Porém Liz Calder já disse: no way, ficamos em Parati. O evento é daqui. Alívio dos nativos.

Como no ano passado, retiramos-nos já com saudades e planejando a Flip 2006. Porém, é indiscutível que o fato principal da edição 2005, do ponto de vista pessoal, foi a presença da Mônica. Ela é a pessoa com quem tenho a relação mais curiosa da blogosfera. Em dois anos de amizade, tivemos duas enormes brigas. A primeira, causada por um comentário horrível e desajeitado que fiz em seu blog, durou uma semana; a segunda durou muito mais, houve um afastamento de uns quatro meses e conseguimos conversar somente após a providencial intervenção de sua irmã . Não éramos obrigados a reatar, não somos parentes e nem nos conhecíamos pessoalmente, mas os vínculos que a blogosfera e as palavras criam não podem ser chamados de fracos ou descartáveis. Já amiguinhos de novo, acertamos a viagem dos dois casais através do MSN e foi a decisão mais correta. Estas viagens são de alto risco; podem ser chatas pelo contato intensivo, pelo comportamento inesperado de alguém, pelas manias que se revelam, por coisas que não sabemos avaliar previamente, etc. Fazíamos juntos as refeições e o festerê, mas hospedamo-nos em hotéis separados. Quando a coisa parecia demais, ou seja, quando já estávamos muito tempo juntos, o casal Mônica e Luiz sumia como que por encanto (como eles adivinharam a hora certa?), a ponto de eu pensar se não tinha cometido nenhuma grosseria (quem não é um pouquinho paranóico?). Depois, nos reencontrávamos e a mágica se restabelecia. A Claudia e o Luiz são pessoas encantadoras e tranqüilas, e demonstraram perfeita disponibilidade para conhecerem-se e conviverem, com cachaça ou sem. Sempre houve um sincero interesse de uns pelos outros, rimos muito (o Luiz é um piadista nato) e tudo foi simples como conversar com velhos amigos num bar conhecido. Passamos a noite de domingo na belíssima casa deles em São Paulo e, ao saírmos de madrugada (3h45) para ir ao aeroporto, pisamos – eu, a Claudia e o taxista – em volumosos cocôs de cachorros que decoravam a calçada. Dizem que é sorte.

(Mais, melhor e a origem das fotos: aqui.)

O Nobel de Doris Lessing

O Prêmio Nobel de Literatura é uma láurea às vezes geopolítica, às vezes literária. Foi geopolítica, por exemplo, a premiação de Nadine Gordimer em 1991 — lembrem que o apartheid foi abolido em 1990 por Frederik de Klerk e a Academia Sueca entendeu ser interessante mostrar ao mundo que havia escritores por lá — ; foi novamente geopolítico quando deu seu polpudo cheque à ridícula Toni Morrison em 1993 — presumiram que seria a hora de premiar uma mulher negra? — ; chegou a níveis rasantes quando chamou Alexander Soljenítsin em 1970, logo após ter concedido um prêmio verdadeiramente literário a Samuel Beckett em 1969. Aliás, a premiação a Soljenítsin parece ter causado tal espanto aos próprios acadêmicos – o único e duvidoso mérito literário do escritor era o de ser um notório dissidente soviético — que, no ano seguinte, resolveram dar o prêmio ao comunista Pablo Neruda durante o governo de Salvador Allende.

Pode acontecer também de um prêmio geopolítico alcançar grandes escritores. Em 1976, a Academia quis dar TODOS os prêmios a norte-americanos em razão do bicentenário de sua independência e o Nobel de Literatura acabou com o grandíssimo Saul Bellow — na verdade um canadense naturalizado. No ano passado, outro gol: quiseram dar uma demonstração de como oriente e ocidente poderiam conviver pacificamente e deram a grana ao extraordinário Orham Pamuk, autor nascido e naquela época morador de Istambul, a cidade que em que se pode ir da Europa para a Ásia e vice-versa atravessando-se uma ponte. No retrasado, a Academia quis ser apenas literária e deu a Harold Pinter um belo Nobel.

Já o de Lessing é mais complicado de interpretar. Dona de um sobrenome que encontra melhor eco na literatura alemã, ela é uma escritora que foi lidíssima entre os anos 60 e 80 e que curtia uma dourada quase-aposentaria na Inglaterra. Era feminista e comunista, tornando-se apenas o primeiro nos anos 90. Aos 87 anos, ainda publica livros cada vez menos lidos e elogiados. É, de fato, uma escritora que deveria parar ao invés de seguir publicando novelinhas secundárias.

Eu li mais de vinte livros dela e considero The Golden Notebook (1962; no Brasil O Carnê Dourado), Memoirs of a Survivor (1974; no Brasil Memórias de um Sobrevivente) e The Summer Before the Dark (1973; no Brasil, O Verão Antes da Queda) livros autenticamente grandiosos e importantes. Ela também escreveu duas famosas pentalogias: a muito esquerdista série Filhos da Violência, que é bastante boa e onde aparecem dois notáveis personagens: Martha Quest e Anton Hesse; e a chatíssima Canopus em Argos: Arquivos, que ficou famosa no Rio Grande do Sul por ser amada e idolatrada por Caio Fernando Abreu. Coisas de nosso Rio Grande…

Doris Lessing não é uma escritora de linguagem sutil. Sua frase é direta, rápida e não podemos falar numa prosa elegante. Tem notável habilidade para construir personagens e a polifonia de seus livros é bastante original, pois não é formada por apenas por vozes de personagens, mas estes recebem o auxílio de situações e ações, que muitas vezes os contradizem. Não é pouco, porém…

Thomas Pynchon, Philip Roth e Antonio Tabucchi mereceriam muito mais o prêmio. Permanecem, contudo, na excelente companhia de Tolstói, Proust, Joyce e Borges.

O Brasil só poderia ganhar um prêmio geopolítico, só que andamos muito pouco dramáticos. Não punimos torturadores, não nos preocupamos com o papel da Amazônia no aquecimento global e achamos Ariano Suassuna um gênio… Nosso estilozinho deslumbrado low-profile não está com nada.

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A visita de Cláudio Costa foi o esperado, isto é, perfeita. Convenceu-nos a uma retribuição em Minas. Vamos, é claro. Ninguém nos convida impunemente… Não nos surpreendeu o fato de ele ser casado com uma pessoa tão querida e agradável quanto a Amélia, a gente sempre fica maravilhado ao ganhar mais uma amiga. Incrível seu entendimento com a Claudia.

Publicado em 15 de outubro de 2007

Ernesto Sábato completa 99 anos / Saramago entrevista María Kodama

Ernesto Sábato não escreveu muitos livros de ficção, talvez tenha escrito três ou quatro, mas os que li foram muito marcantes: O Túnel e Sobre Heróis e Tumbas.

O Túnel é de 1948 e insere-se decidamente no existencialismo. Albert Camus era um entusiasta da obra e recomendou sua tradução para a Gallimard, o que tornou Sábato uma celebridade da noite para o dia. Lembro que gostei demais daquele vertiginoso monólogo escrito na primeira pessoa por um narrador que resolve contar o ato que cometeu. Traz tremendos debates de consciência, demonstrando as  dualidades e desvios que empurram os seres humanos a pensamentos e atos.

Mas, em minha opinião, seu grande romance é Sobre Heróis e Tumbas de 1961. São três narrativas que se completam: a do amor algo doentio de Martín por Alejandra — esta uma das maiores personagens que já conheci — ; a da morte no exílio do general Juan Lavalle, heroi da independência argentina; e o melhor de todos: O Informe sobre Cegos, que chegou a ser publicado separadamente há alguns anos. As duas primeiras, apesar de totalmente diversas, são clássicas histórias de decadência de uma certa aristocracia,  contadas sob a perspectiva da morte. Já O Informe está no limite do fantástico e é a respeito de uma seita maléfica dotada de poderes esotéricos e que une todos os milhões de cegos do mundo.

(Escrevo de memória. Li ambos nos anos 70…).

Tenho a melhor das lembranças de Ernesto Sábato, mais um grande escritor argentino.

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Kodama entre o génio de Borges e as perguntas geniais de Saramago

Obs.: Ontem, no Ciberescritas, li a estranha entrevista que José Saramago fez com (ou submeteu a) María Kodama, viúva de Jorge Luis Borges. Transcrevo-a abaixo.

Por Isabel Coutinho

José Saramago revelou-se um óptimo entrevistador. María Kodama, a última companheira de Jorge Luis Borges, riu-se às gargalhadas e lá foi respondendo às perguntas sérias, íntimas e prosaicas do Nobel português. “Como é que Borges dizia que te queria? Explica-nos, explica-nos!”.

Já José Saramago tinha lido pela primeira vez o poema Elegia (1963), de Jorge Luis Borges, e estava a dizer para a assistência que quase encheu o auditório da Biblioteca Nacional, sexta-feira à tarde em Lisboa, que se tratava de “um belo poema, quase uma autobiografia”, quando a sua mulher, Pilar del Río, irrompeu pelo palco vinda da plateia.

“É um poema belíssimo mas ninguém ouviu nada”, disse-lhe, enquanto ajustava os microfones em cima da mesa.

O prémio Nobel da Literatura ainda balbuciou que alguém tinha ido mexer no seu microfone, mas Pilar del Rio virou-se para os oradores e avisou: “Para todos e para sempre, o microfone tem que estar em frente à boca!” A plateia desatou às gargalhadas.

“Pois”, afirmou Saramago. “É a sua experiência de rádio”, justificou-se perante os seus companheiros de mesa, que eram María Kodama escritora, tradutora, companheira de Jorge Luis Borges por mais de vinte anos e Carlos da Veiga Ferreira, o editor da Teorema, onde estão publicadas em português as Obras Completas do escritor argentino que morreu em 1986.

“E então passemos a ler outra vez o poema porque não perdemos nada com isso”, rematou o autor de Ensaio sobre a Cegueira. “Oh, destino, o de Borges,/ ter navegado pelos diversos mares do mundo/ ou pelo único e solitário mar de nomes diversos (…)/ e não ter visto nada ou quase nada/ senão o rosto de uma rapariga de Buenos Aires (…)”, deu-se assim o mote para a palestra-colóquio E se falássemos de Borges?, uma conversa entre a viúva e o Nobel, organizada pela Fundação José Saramago, a que se seguirão outras dedicadas a escritores. No dia 10 de Julho, no Teatro Nacional de São Carlos, falar-se-á de Jorge de Sena.

“Não achas que os leitores ficam prisioneiros dos contos de Borges?” Saramago tem a intuição de que o acesso à obra do escritor argentino se faz pela leitura dos contos e que às vezes os leitores ficam só por aí. Esquecem que Borges foi um grande poeta.

Kodama concordou. O que deu fama internacional a Borges foi a tradução dos seus contos e da sua prosa. Mas, revelou, “ele sempre se sentiu poeta”. Mesmo a sua prosa é “uma prosa poética, tem um ritmo especial”. Ele preferia ser recordado como poeta e não como contista. Mas como era muito exigente consigo próprio e perfeccionista, sentia uma nostalgia, pensava que nunca ia conseguir chegar a escrever “o poema”. “Eu como leitora acho que muitas vezes o conseguiu, mas ele não o sentia da mesma maneira”, concluiu María.

Vida de todos os dias

Borges começou por ser poeta. Mas a determinada altura teve um acidente. Magoou-se na cabeça numa janela aberta que estava a ser pintada, quando ia para casa de uma amiga, e sofreu uma septicemia. Na época não havia antibióticos, ficou às portas da morte, com febre e pesadelos. Quando melhorou, “milagrosamente”, teve medo de ter perdido a capacidade intelectual, a capacidade para escrever poemas. “Então decide que vai escrever um conto porque se fracassasse não sentiria que estava louco ou que tinha perdido essa capacidade.” Escreve então o seu conto Pierre Menard, autor de ‘Quixote’ (onde está a frase “Não queria compor outro Quixote o que é fácil mas ‘o’ Quixote”).

A partir daí entra num longo período em que se dedica à prosa, aos contos, e escreve ensaios e crítica literária para jornais. “Quando perde a visão e percebe que lhe é difícil continuar a escrever, vai retomar a poesia. Porque era mais fácil decorar o texto por causa da rima, já que não podia passar ao papel imediatamente o que estava a pensar.” Começou pela poesia, por causa do acidente escreve prosa e mais tarde, por causa da cegueira, regressa à poesia. Na última fase, “já seguro de si”, mistura as duas coisas, poesia e prosa.

Como era Borges na vida de todos os dias?, quis saber Saramago.
“É que Borges era um génio e continua a ser apesar de já não estar entre nós como é que se comporta um génio na vida de todos os dias?” A esta “questão prosaica” o escritor quis que Kodama respondesse francamente. Aprendia-se muito, disse ela, era notória a profundidade e diversidade do seu conhecimento. Tinha um enorme sentido de humor e contava muitas histórias da sua avó inglesa, que ele adorava. “Era um ser encantador, divino”.

Por vezes eu tentava que os meus colegas de turma fossem assistir às aulas de línguas anglófonas que ele me dava. Eles diziam-me: ‘Não! Como queres que vamos contigo, ele é velho, os labirintos, os espelhos, por que é que não vens mas é sair connosco?’ Eu respondia-lhes: ‘Sim, ele é os labirintos, os espelhos, o que vocês quiserem, mas paralelamente a isso é uma pessoa divertidíssima com quem podemos passar momentos muito agradáveis e descobrir uma quantidade de coisas, intelectuais e não só, através do que nos conta.” Apesar da sua sabedoria, disse Kodama, as pessoas não se sentiam intelectualmente inferiores a Borges. Sabia guiar as conversas.

“Tinha muita consideração pelos outros. E tinha um sentido ético e de delicadeza no trato. Na sua obra também se reflecte isso: tudo está dito, mas tudo é dito de uma maneira especial.”

Aulas de línguas

Não há palavras para descrever o ar matreiro do escritor português quando anunciou a María Kodama que lhe ia colocar duas questões “muito íntimas”. Durante toda conversa, que durou mais de uma hora, Saramago fez sempre perguntas interessantes, foi dizendo também aquilo que pensava sobre a obra do autor argentino, não fugiu a perguntas difíceis como a sua ligação com a ditadura.

Estava visivelmente bem-disposto a longa doença do ano passado parece estar finalmente a ficar para trás, com 14 quilos a mais e a recuperar pouco a pouco a massa muscular. “Estavas realmente interessada em aprender inglês antigo ou foste aprender inglês antigo para conhecer Borges?”, foi a primeira. Seguiu-se a segunda: “Como é que Borges dizia que te queria?… Explica-nos, explica-nos!” Foi então quando Kodama tinha cinco anos que teve aulas com uma professora de inglês que utilizava um método de lhe ler os textos no original e depois traduzir em espanhol. Leu-lhe um poema em inglês de Borges, do qual Kodama não entendeu nada mas sentiu que havia algo ali que a fazia sentir próximo dele (a solidão).

Aos 12 anos, um amigo do pai, que era fanático de Borges, levou-a a ouvir uma conferência do escritor e ela impressionou-se com a sua timidez. Anos depois, já no colégio, viu Borges do outro lado da rua. Vai ter com ele: “Conheci-o quando era uma miúda.” Ele riu-se: “Claro, agora você é grande. Em que trabalha?” Ela respondeu-lhe: “Estou a terminar o secundário.” Quer estudar o inglês arcaico?, pergunta-lhe ele. “Shakespeare?”, arrisca ela. “Não, muito anterior, século X.” “Então se calhar é complicado”, diz-lhe ela mas ele convence-a, dizendo que vão estudar juntos. Passam a encontrar-se em cafés de Buenos Aires, ele aparecia com os dicionários debaixo do braço. “Divertíamo-nos muitíssimo”. E a vida foi-lhes dando outra história que terminou, realmente, “em amor”.

“E a segunda pergunta?”, insistia José Saramago. Kodama ria-se ao início e depois já estava às gargalhadas. “Que palavras utilizava para dizer que te queria…”, continuava o autor português. “Isso é importantíssimo. Posso não ser um bom escritor, mas a fazer perguntas sou um génio!”, brincou o Nobel, que assim pôs a sala inteira a rir à gargalhada.

María e Jorge usavam vários nomes, a maior parte ligados à literatura. “Um desses nomes era tirado de um conto que ele me tinha dedicado em segredo e que se chama Ulrica (in O Livro da Areia). Quis gravá-lo no túmulo em Genebra e em lugar de María Kodama e de Borges coloquei o epitáfio ‘De Ulrica a Javier Otárola’, porque eram nomes muito especiais para nós. Ulrica vinha também um pouco da Elegia de Marienbad, de Goethe, que ele me recitava em alemão. Ulrike von Levetzow era o nome da jovem amante de Goethe e quando ele fazia amor com ela contava as sílabas nas suas costas, acariciando-as com a mão. Bem, já está dito.” E María Kodama e José Saramago prosseguiram com outro assunto antes que a conversa ficasse mais complicada.

Livros melhores que filmes — A Reação! — e um conto de PQP Bach…

A Caminhante, certa vez escreveu um post falando sobre a sistemática superioridade dos livros sobre os filmes análogos. Penso que ela tenha razão em grande parte e deixei o assunto em suspenso, mas ontem, ao comentar o fato com meu filho Bernardo, ele teve uma reação inesperada. Primeiro uma risada. E depois o argumento:

— Pai, empresta para ela A Laranja Mecânica do Burgess, Jules e Jim do Roche, O Conformista (1) e A Estratégia da Aranha (2), feitos pelo Bertolucci, todos os livros em que o Kubrick se baseou e todos os que usou o Hitch! Nada a ver! Vá se …

Dear Walker, perdoa os 19 anos do menino.

(1) De Alberto Moravia
(2) De Jorge Luis Borges

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A Décima de Beethoven (*)

— E daí, gatinha, tenho uma coisa pra te mostrar.

— Xiii…, eu não curo reumatismo, viu?

— Nada disso, princesa, quero te mostrar aqueles motivos curtos e repetitivos.

— Repetitivos está OK, mas curtos…?

— Sim, e afirmativos.

— Em riste?

— Certamente! Vamos para aquele cantinho ali? Me parece mais adequado.

Os dois vão e sentam, a mulher prepara-se para os amassos quando o homem tira um fone de ouvidos do bolso e um celular. Arruma tudo e enfia no ouvido da gata.

— É a 10ª de Beethoven.

A mulher faz uma cara de decepção e responde.

— Um, eu não estou aqui para ouvir eruditos, quero testosterona, meu! E, dois, Beethoven jamais chegou à décima, assim como tu jamais chegarias à 2ª, quiçá à 1ª!

— Minha cara, nada disso. Acabam de remontar o primeiro movimento da décima.

— Quem?

— Um Wyn qualquer coisa.

— Vin? A propósito, podias ser um cavalheiro e pedir um vinho pra aquecer.

— Garçon!

— Então podemos retirar Beethoven da “Maldição da Décima”?

— O que é isso?

— Véio, tu não sabes que Bruckner, Mahler, Dvorargh, Beethoven e Spohr escreveram nove sinfonias e aí veio um raio e fulminou com todos? Isto é, com um de cada vez… Não sabia?

— Mas Mahler fez o Adagio da Décima.

— Sim, mas era um adagio, não tinha muita ação. Aquilo lá devia estar moribundo como o teu Ludwig van.

— Então a décima é perigosa? Pode matar?

— Sim, haja disposição para chegar lá…

— Eu tenho.

Ele bem que tentou, mas acabou por deixar a terceira inacabada. Ainda hoje se encontram. Ela, feliz, faz o papel de furacão maduro, ele, não menos, o de pau amigo.

(*) PQP Bach não deu título à sua narrativa. Desto modo, batizei-o eu.

Bienal do Mercosul 2009 – Artes Plásticas é (ou são) assunto perigoso…

Fiz o passeio pela Bienal 2009 e… bem, o que dizer? Poderia me defender explicando que sou daltônico, porém Van Gogh também era e digamos que ele entendia da coisa. Outra consideração é que o que vi nada tem a ver com cor. E que há muitos, mas muitos filmes circulares e sem graça passando em salas jeitosinhas. Já me irritei muito com alguns artistas, e desta vez tomei a postura profilática de ir preparado para não me preocupar e amar a bomba. Pois não posso falar demais; afinal, acompanho de longe, muito longe, a produção de artes plásticas, sou um sujeito que lê menos do que gostaria e que passa 6 horas por dia ouvindo música erudita — agora ouço as Sonatas para Violino Solo , Op. 27 de Eugene Ysaÿe, fato que faço questão de ressaltar porque é música erudita razoavelmente moderna e da mais alta qualidade, o que provaria que ao menos meus ouvidos são contemporâneos pra caralho.

Chegando à Bienal, fiquei um tanto temeroso ao ver as pessoas que saíam dos armazens do cais do porto. Estavam apressadas e um tanto arregaladas, o que me fez pensar no que significaria aquele pasmo. Ou viram maravilhas ou tinham sofrido um esmagamento estético.

Então, iniciei minha racionalização. Tenho 52 anos, mas vou olhar para tudo com olhos inexperientes. Tinha que me desarmar a fim de não me tornar afirmativamente idiota (ver segunda réplica). Quando entrei, já tinha 16. É um fato indiscutível, apesar de surpreendente: eu já tive 16 anos.

(Sim, em 1973, havia muita novidade para ser julgada, talvez mais do que hoje. Pensem que o Pink Floyd estava lançando Dark Side e que eu era roqueiro, Picasso morrera em abril – estou em novembro de daquele ano -, Pinochet matara Allende há dois meses, a guerra do Vietname recém acabara, o grupo que mais vendia discos – LPs! – era o Led Zeppelin, a ditadura estava no ar, líamos Quarup de Antônio Callado (ainda acho que é excelente livro), Dali fazia declarações de amor a Franco, JL Borges estava alive and kicking (mais alive do que kicking), havia um jornalzinho chamado O Pasquim, etc. Não pense que cito isto para dizer que minha juventude foi melhor que a de hoje. É que os mortos ou finalizados têm uma aura meio fabulosa. Se Maurizio Pollini já tivesse morrido talvez já fosse o maior dos pianistas, como não morreu ainda, temos que aguentar as discussões).

Outra surpresa: viram?, eu lembro muito bem como era.

E outra: por um mecanismo que não conseguiria explicar, mas do qual tenho convicção epitelial, digo que a maioria de nós é mais preconceituosa nesta idade do que depois. Naquela época, eu andava de lá para cá com meus adesivos, tentando colar rótulos em coisas e pessoas. Depois, a gente desiste pois cada rótulo está associado a um contexto e o quem é revolucionário aqui é bombeiro ali e vice-versa.

Feliz ou infelizmente, a arte, mesmo a literatura, está virando coisa de especialista. Precisa de manual de instruções, como Stanley Kubrick defendeu uma vez. Ele achava que ficar pensando cinco anos sobre um filme para depois as pessoas darem-se conta de apenas 10% do que estava sendo mostrado era desmotivador. E ele nem conheceu Chico Fireman.

Hummm… Vamos direto às conclusões: achei fraquíssima a Bienal. Não entendi as charadas? Certamente não!

Edward Said escreveu que não existe mais a possibilidade de um discurso comum porque, em primeiro lugar, nossa formação é extremamente especializada e, depois, porque todo o aparato financeiro está voltado para a fragmentação do conhecimento. È vero. Então, a cultura parece que começa a dialogar apenas com seu meio de uma forma tão esquizofrênica que nenhum Led Zeppelin atual cheio de novidades poderá superar as vendas da Shakira bonitinha, chatinha e sem maiores novidades do que um bom traseiro. Este hipotético Led formará apenas um consideráravel círculo de iniciados assim como o Radiohead ou David Lynch possuem. E este será seu máximo. O mundo todo parece desejar fazer de Roberto Bolaño um cânone (inclusive eu) , mas acho que será um cânone de pouquíssimos leitores compreensivos.

Agora, reduza os parâmetros até a pequena literatura brasileira ou às pequenas artes plásticas que chegam à pequena e provinciana Porto Alegre.

É horrível de dizer mas o público comum ou o “povo” — ainda mais o nosso — está cada vez mais longe de entender algo um pouco mais complexo ou especializado. Os romances mais lidos têm a mesma estrutura dos de Balzac. A música mais ouvida é mais simples que a dos Beatles. A música erudita moderna é ainda um desafio para a maioria dos apaixonados por música erudita – e veja bem que neste caso já estamos na fatia mínima da fatia mínima. Então, para alguém ser tocado significativamente por uma obra de arte, há que ter conhecimento de uma rede cada vez mais intrincada de referências às quais poucos têm acesso.

Em resumo, creio que daqui há poucos anos, cada vez menos pessoas saberão que os méritos do primeiro movimento da Sonata Nº 2 de Ysaÿe estão no fato do autor ter realizado uma brilhante “desconstrução” de uma Sonata de Bach para o mesmo instrumento solo. Se o ouvinte não tiver isto em mente, babaus, pois apenas alguém com um referencial rico poderá entender e fruir. Quem não tiver, ou ficará quieto ou ficará feito um bobo criticando a estupidez daquilo que lhe é e sempre será irremediavelmente alheio.

É algo de nosso tempo, acho.

Os ateus são pessoas más?

Por Renato Sabbatini

Recentemente a Igreja Católica iniciou uma campanha cerrada contra o que denominou de “valores ateus” e suas supostas conseqüências (basicamente, coisas como ser a favor do aborto e do uso da camisinha e da clonagem de embriões). Um bispo brasileiro, exagerado, chegou a afirmar publicamente que “os ateus são pessoas más”, possivelmente porque muitos religiosos acreditam que a religião é a única fonte da moral. Logo…. ateus não têm moral. Mas não têm mesmo? Os ateus são em média mais imorais e maus do que os que têm religião? A evidência científica aponta que parece ser justamente o contrário… A Bíblia afirma, em Salmos 14:1, que “Diz o insensato no seu coração: Não há Deus. Corrompem-se e praticam abominação; já não há quem faça o bem”. Então serão os ateus insensatos ou tolos? Corruptos e abomináveis? Incapazes de fazer o bem? Quanto à questão das “abominações”, a evidência é incontestável. Um estudo feito em 1997 pela Federal Prison Board, dos EUA mostrou que enquanto que 75% da população carcerária americana se declara religiosa e crente em Deus, apenas 0,2% se declaram ateus ou agnósticos! (na população em geral eles já representariam cerca de 10%). O divórcio (um pecado, segundo o catolicismo, mas não segundo os protestantes) ocorre em 40% dos católicos americanos, 27% de evangélicos e apenas em 21% dos ateus… Ou seja, a crença em um pecado é inversamente proporcional à sua adoção… Além disso, não é preciso pesquisar muito na história para constatar que, em nome de valores religiosos, foram praticadas grandes mortandades, infindáveis guerras, horrendas atrocidades (como a Inquisição) e nefandos atos terroristas. Ou matar em nome de Deus não é uma constante insana da humanidade? Quem é mau, então? Numerosos estudos sociológicos têm demonstrado cabalmente que ateus, em geral, cometem menos crimes, respeitam mais as leis, e criam seus filhos com mais critérios morais e familiares do que a maioria dos que acreditam em Deus. Conclusão: não é preciso acreditar em Deus para ser moral e respeitador dos costumes e das regras sociais. Eu mesmo, por exemplo, sou agnóstico, criei meus dois filhos sem batismo, Deus ou religião, e podemos nos incluir tranquilamente entre as pessoas mais morais e sérias e praticantes do bem que eu conheço. Tolos? Veja só a lista dos “tolos” e “insensatos” que foram ou são ateus ou agnósticos: Albert Einstein, Charles Darwin, Stephen Hawking, Francis Crick, James Watson, Richard Feynman, Paul Dirac, Linus Pauling, Alfred Kinsey, Karl Popper, Carl Sagan, Edward O.Wilson, Marvin Minsky, Thomas Edison, B.F. Skinner, Marie Curie, Bertrand Russell, Noam Chomsky, Isaac Asimov, Sigmund Freud, Michel Foucault, Richard Dawkins, Steven Pinker, Daniel Dennett, Stephen Jay Gould, Steve Jobs, Thomas Jefferson, Denis Diderot, Auguste Comte, Friedrich Nietzsche, Arthur Schopenhauer, Karl Marx, Oscar Niemayer, George Bernard Shaw, Jorge Amado, Jorge Luis Borges, Gore Vidal, Jean Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Albert Camus, Robert Frost, H.G. Wells, José Saramago, Salman Rushdie, Mark Twain, Arthur Clarke, Michael Crichton, Milan Kundera, Marcelo Gleiser, Drauzio Varella, Ernest Hemingway, Kurt Vonnegut Jr., Luis Buñuel, Ingmar Bergman, Charlie Chaplin, John Lennon, Woody Allen, Angelina Jolie, Jodie Foster, Marlon Brando, Christopher Reeve, Juliana Moore, Jack Nicholson, Larry King, Chico Buarque, Paulo Autran e muitos outros. A nata da nata. Quase 40% de todos os cientistas declaram não ter religião. O ateísmo é muito mais prevalente entre pessoas de maior escolaridade, intelectuais e autores, do que no resto da população. Exceção: políticos (isso deve ser o resultado da democracia, ou seja. o fenômeno de seleção pelo eleitorado religioso, ou então medo de declarar publicamente seus “valores ateus”, como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso fez uma vez, e perdeu a eleição para prefeito de São Paulo). Não fazem o bem? Os três maiores doadores de dinheiro para causas boas e nobres, de toda a história (conjuntamente doaram mais de 70 bilhões de dólares), George Soros e Warren Buffet (financistas) e o fundador da Microsoft, Bill Gates, são ateus declarados. Meu ídolo científico, o físico alemão Albert Einstein, eleito pela revista Time como a Maior Personalidade do Século XX (e erroneamente citado como sendo religioso) escreveu uma vez sobre isso: “Se as pessoas são boas apenas porque têm medo de punições, e esperam uma recompensa, então elas formam um grupo realmente lamentável“.

E disse tudo!

A loteria na Babilônia, conto de Jorge Luis Borges

Numa semana meio maluca de reformas em casa e necessidade de trabalhar fortemente fora do trabalho habitual para reforço financeiro, fui hoje a um café acompanhado do fantasma de Borges dentro de uma edição argentina de Ficciones. Ele, logo de cara, no conto La Lotería en Babilonia, envia um recado a quem lerá a narrativa.

…nadie había ensayado hasta entonces una teoría general de los juegos. El babilonio no es especulativo. Acata los dictámenes del azar, les entrega su vida, su esperanza, su terror pánico, pero no se le ocurre investigar sus leyes laberínticas, ni las esferas giratorias que lo revelam.

Em seguida, outra curiosidade: a “interpolación del azar” é semelhante à teoria do Barão de Itararé citada por Graciliano Ramos em Memórias do Cárcere? Passemos a palavra a Graciliano, que chamava o Barão pela junção de seu nome, Apporelly (Aparício Torelli):

Apporelly sustentava que tudo ia muito bem. Fundava-se a demonstração no exame de um fato de que surgiam duas alternativas; excluía-se uma, desdobrava-se a segunda em outras duas; uma se eliminava, a outra se bipartia, e assim por diante, numa cadeia comprida. Ali onde vivíamos, Apporelly afirmava, utilizando seu método, que não havia motivo para receio. Que nos podia acontecer? Seríamos postos em liberdade ou continuaríamos presos. Se nos soltassem, bem: era o que desejávamos. Se ficássemos na prisão, deixar-nos-iam sem processo ou com processo. Se não nos processassem, bem: à falta de provas, cedo ou tarde nos mandariam embora. Se nos processassem, seríamos julgados, absolvidos ou condenados. Se nos absolvessem, bem: nada melhor esperávamos. Se nos condenassem, dar-nos-iam pena leve ou pena grande. Se se contentassem com a pena leve: descansaríamos algum tempo sustentados pelo governo, depois iríamos para a rua. Se nos arrumassem pena dura, seríamos anistiados, ou não seríamos. Se fôssemos anistiados, excelente: era como se não houvesse condenação. Se não nos anistiassem, cumpriríamos a sentença ou morreríamos. Se cumpríssemos a sentença, magnífico: voltaríamos para casa. Se morrêssemos, iríamos para o céu ou para o inferno. Se fôssemos para o céu, ótimo: era a suprema aspiração de cada um. E se fôssemos para o inferno? A cadeia findava aí. Realmente ignorávamos o que nos sucederia se fôssemos para o inferno. Mas ainda assim não convinha alarmar-nos, pois esta desgraça poderia chegar a qualquer pessoa, na Casa de Detenção ou fora dela.

Mas, falemos um quase nada sobre minha leitura: é claro que a parábola proposta por Borges extrapola sua função de ser uma realidade menor que representa uma maior. A loteria É a própria realidade da Babilônia. Ou seja, é a própria vida. A loteria e seus acasos é análoga à vida e vice-versa, regulada por suas regras, condições e infinitas contingências.

A relação mais óbvia que me ocorreu nesta rápida leitura enquanto tomava café é aquela entre a Compañía e a Igreja com suas “ventas de suertes”, o funcionamento silêncioso de Deus, “seu carácter antiguamente plebeyo” e com o total desprezo a quem não participa de sua… loteria.

Porém, o que interessa mesmo a mim é o conto extremamente irônico e divertido, que mostrou-me que posso fazer uma leitura fluida de Borges em sua língua e que isto é um enorme privilégio para quem vem de uma língua materna que produziu literatura bastante inferior…