A vida que ninguém vê, de Eliane Brum

Lembro de ter lido algumas das reportagens literárias da série A vida que ninguém vê na Zero Hora. Gostava daquilo. Eram casos de pessoas anônimas, cujas vidas eram descritas numa linguagem derramada, intensa, que funcionava, iluminava o jornal. Acho que as histórias eram publicadas semanalmente. Comprei o livro da reunião delas numa feirinha do Mercado Público e li 50 páginas de enfiada no mesmo dia. E, juntas, tudo funcionou bem pior. O esquema geral ficou aparente demais, a linguagem tornou-se pesada, a adjetivação passou a incomodar. Como gosto de mim e, consequentemente, de sentir prazer em ler, fechei o livro e voltei a ele 15 dias depois, lendo uma história a cada dois dias. Melhorou muito.

Sei bem o motivo da primeira rejeição, mas isto faria com que eu desse uma imensa volta que passaria pela minha experiência e preferências como leitor — que absurdamente já ultrapassa os 40 anos de consumo diário de livros… — a teóricos como Pound, Bakhtin e James Wood. Seria longo e chato fazer o périplo, mas vou dar uma tangenciada, vou evitar a abordagem literário-ontológica e partir para o sociológico. Em outras palavras, vou enganar vocês ignorando toda uma faceta do livro, restituindo o caráter boêmio e irresponsável deste blog…

Outro problema da coleção de histórias é a escolha de seus personagens. Com poucas exceções — só o carregador de malas e o colecionador? — , temos uma galeria de desvalidos, de pessoas realmente paupérrimas ou deficientes, como se um solteirão sozinho num apartamento de classe média ou a estudante do interior que se esforça como Sísifo em vestibulares não fossem anônimos. O fato de serem de classe média não os deixa visíveis e talvez eles estejam desesperados ou indiferentes ou compulsivos ou infelizes ou eufóricos em outros âmbitos. Sabemos que uma lente de aumento sobre qualquer ser humano torna-o distinto, único. Ou seja, o sujeito não precisa estar numa situação-limite para ser interessante e estar na vida que ninguém vê.

A escolha quase exclusiva pelos enjeitados coloca-nos numa situação de culpa em relação a eles, certo; mas também coloca-os numa vitrine na qual a classe média pode observá-los como num zoológico. Parece haver uma separação, uma fronteira nos olhos da autora. Não gostei da opção e acho que a galeria deveria ser mais equilibrada em função da proposta. Afinal, o título do livro não é A pobreza que ninguém vê.

Para finalizar: costumo ler as colunas de Brum. Se as da Vida que ninguém vê já eram boas, as atuais são muito melhores. Gostaria de ler seu livro de ficção Uma Duas. Isso me faz recordar que estou de aniversário domingo!

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P.S.– O que dá ler duas vezes Ulysses em três meses… Hoje, eu escrevi naturalmente: Mesmo os pianistas mais geniais têm seus momentos de absoluta bocabertice. Já a interpretação, a concepção, reafirmam Hewitt como a maior pianobachiana viva. Putz, tô me sentindo como aqueles gaúchos que passam uma semana no Rio e voltam chiando. A propósito, esqueci de comentar aqui uma das passagens mais cômicas que já li: os fatos imediatamente posteriores ao encontro entre Bloom e Gerty MacDowell, sobre cheiros e coisas que grudam. Hilariante!

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Na página 550 de Ulysses

Mais uma anotação da terceira tradução e leitura de Ulysses, a MELHOR, sem dúvida.

E então mudamos de capítulo e, como ocorre sempre em Ulysses, muda o escritor. Entra um que parece viver em pleno esplendor kitsch:

O entardecer estival começara a envolver o mundo em seu misterioso abraço. Longe no Oeste o sol se punha e o último reluzir do dia fugaz brilhava ainda encantador sobre mar e areia, o altivo promontório do nosso querido Howth, vigilante como sempre sobre as águas da baía, as pedras cobertas de algas da praia de Sandymount e, com não menos importância, sobre a tranquila igreja de onde brotava por vezes no silêncio do ar em tornoa voz das preces  a ela que em sua pura radiância é um farol para o coração do homem, fustigado pelas tormentas, Maria, estrela do mar.

As três amiguinhas estavam sentadas nas pedras, aproveitando o espetáculo do crepúsculo e…

Joyce é um baita gozador. Logo depois vem a famosa cena de masturbação de Bloom sob o olhar e a provocação de Gerty MacDowell, uma das três amiguinhas. Não, não cabe num tuíte, Paulo Coelho. E este livro é demais e é muito, mas muito divertido.

... o altivo promontório do nosso querido Howth, vigilante como sempre sobre as águas da baía...
Olhando a foto anterior, o Howth parece ser uma ilha. Não é.

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A mulher que era o general da casa, de Paulo Moreira Leite

Capa do livro da Arquipélago

A mulher que era o general da casa (Arquipélago, 223 páginas), do jornalista Paulo Moreira Leite, é um relevante painel criado a partir de várias histórias de pessoas que participaram — com a coragem e as armas que dispunham — da resistência civil à ditadura militar brasileira (1964-1985). São oito extraordinárias reportagens sobre resistentes brasileiros e uma sobre o embaixador Lincoln Gordon, que fazia o exato contrário. Quase todas as reportagens foram ampliadas de originais publicados em jornais e revistas. A linguagem de Leite é a jornalística, porém seus textos são envolventes e os retratos resultantes são mais do que verossímeis, eles emocionam, traçando minuciosos e doloridos desenhos que tornam o livro nada esquecível.

O livro inicia com uma apresentação absolutamente entusiasmante de aproximadamente 15 páginas. Nela, o autor, nascido em 1952, explica sua relação pessoal com a ditadura, e como ela alterou sua vida desde a adolescência. Na minha opinião, o livro cai quando entram a reportagem-título a respeito de Therezinha Zerbini e seu marido general, seguida pela de Jaime Wright. É difícil explicar o que me afastou delas. Talvez tenha sido a inesperada entrada da linguagem jornalística após uma apresentação tão pessoal, talvez tenha achado os personagens por demais carolas para meu gosto e tenha ficado desconfiado do que teria que ler depois, mas as três que vieram depois — focalizando o severo Florestan Fernandes, o bibliófilo José Mindlin e “comunista de direita” Armênio Guedes — recuperaram a impressão inicial. São soberbas, assim como a grandiosa reconstrução da personalidade do rabino Henry Sobel, sem recuar frente aos rumorosos e lamentáveis episódios de roubo. A reportagem sobre o pioneiro Washington Novaes é excelente. O mosaico formado por todos os textos recebe um balde de podridão quando chega a vez de Lincoln Gordon, o homem que seguiu negando o que fez, mesmo em face a documentos.

Todos os personagens foram entrevistados mais de uma vez pelo autor nos últimos 40 anos. As biografias, as perspectivas e algumas opiniões mudam e o autor pontua tais fatos. Não pensem que Moreira Leite teve o mau gosto de escrever em algum lugar do livro um libelo pelo esclarecimento e punição dos crimes cometidos pelos agentes de Estado contra cidadãos que teoricamente deveria proteger. Não precisa, porque A mulher que era o general da casa é inequivocamente a favor do esclarecimento. Está implícito a partir das histórias e conflitos narrados. A colocação da reportagem sobre Gordon na última parte do livro e a leitura de suas mentiras, repetidas pela sua sorridente e prestigiada figura mesmo frente a documentos liberados pelo governo dos EUA, é algo de deixar qualquer leitor perplexo. Foi assim que acabei o livro. Perplexo. E alguns, como Florestan, Wright e próprio Gordon, já morreram. O que estão esperando?

Recomendo muito a leitura.

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'Antes do Passado': a dor e a injustiça do silêncio

À primeira vista, a lápide acima pode parecer a de alguém que comprou seu próprio jazigo para não incomodar os familiares com trâmites burocráticos e faz questão de avisar aos passantes sobre a propriedade do túmulo. Acontece muito em comunidades italianas no interior. É caso para orgulho e uma demonstração do altruísmo do futuro morto. Mas o início da frase – “Esta sepultura aguarda o corpo de” – causa no leitor uma sensação de estranheza ou de humor mórbido. O poema de Lila Ripoll complica ainda mais a compreensão, pois põe em dúvida a ocorrência de mortes – no plural e no passado. Porém, todas as nossas impressões se alteram e adquirem seriedade quando sabemos que Cilon Cunha Brum foi uma vítima da ditadura militar brasileira, que é um de nossos desaparecidos e que quem fez a laje tem realmente esperança de que esta, um dia, possa enfim receber seu morto. É o mínimo que um cidadão esperaria de qualquer sociedade.

A edição da Arquipélago

A foto é de um cemitério de São Sepé (RS) e é mais um detalhe documental do excelente livro Antes do Passado, de Liniane Haag Brum (Arquipélago, 271 páginas), uma raridade na literatura memorialística com foco na ditadura militar brasileira. Em primeiro lugar, por ser excepcionalmente bem escrito e também pelo tom correto adotado pela autora: os fatos e as situações falam tanto por si, todos os detalhes são tão perturbadores que qualquer intervenção de discursos ou de posições políticas viria a prejudicar aquilo que já fica claro pela via da humanidade. E Liniane não avalia nada, apenas relata de forma literária.

Cilon Cunha Brum é tio e padrinho da autora. A única vez que estiveram juntos foi no batizado de Liniane. Cilon, já clandestino em 9 de junho de 1971, foi chamado pelo padre. Saiu detrás de uma coluna, participou rapidamente da cerimônia e voltou a seu posto. Ele era um alto e magro militante do PC do B. Seu apelido era Comprido e todos diziam ser um sujeito solidário, simpático e brincalhão. Gostava também de crianças. No Araguaia é lembrado por seus poços artesianos, pela doutrinação e por sua relação com as crianças, é claro. Perto do final da Guerrilha, entregou-se. A questão do desaparecimento tornou-se um tabu familiar. Ninguém falava a respeito, apesar do pai da autora ter sempre procurado o irmão. Desde 2002, Liniane Brum, que é jornalista da TV Cultura de São Paulo, organizava e saía com uma equipe de reportagem a procura do que houvesse para descobrir. Porém, em 2009, a revista Veja publicou a terrível novidade: Cilon tinha sido morto a mando do então major Sebastião Curió no Araguaia e seu corpo ficara insepulto. Só então Cilon voltou a ser comentado em família. As circunstâncias da morte – Cilon era um prisioneiro fraco, vítima da malária que circulava livremente pela Fazenda Consolação tomada pelo Exército (para onde poderia fugir no estado em que se encontrava?) – revelam assassina necessidade de vingança e, fundamentalmente, desprezo. Segundo testemunhos, ele e dois companheiros foram executados e deixados no local, sob galhos de árvores. As mesmas testemunhas revelam que só foram enterrados depois que o dono da fazenda reclamou do cheiro.

Cilon Brum com seus pais, Lino e Eloah (Lóia)

A delicada da prosa de Liniane não recua dos detalhes e há artifícios que potencializam o que há de estarrecedor em Antes do Passado. Liniane usa um formato que aos poucos se revela muito eficiente. Ela joga as informações que colhe – fragmentos e mais fragmentos – na forma de crônicas e depois organiza-as na forma de cartas endereçadas à Vó Lóia, mãe de Cilon, falecida em 1989. Tal recurso funciona sob mais de uma perspectiva: ela não apenas “reorganiza o leitor” como dá uma demonstração do que pode ser dito sem chocar muito. É como se Liniane estivesse limpando o sangue da história a fim de reapresentá-la para suas tias. O efeito é devastador, principalmente quando a autora passa a se desculpar dizendo algo como “Olha, Vó, a senhora não vai gostar do que acabo de saber, mas vou ter que contar”. É o ponto onde a autora não consegue mais lavar o sangue.

Outro grande momento é quando a escritora irrita-se durante o retorno para São Paulo de uma de suas viagens ao Araguaia. Ela se encontra com um moço galante que, ao saber de onde ela viera, apresenta-se com sobrinho de um militar que era o braço direito de Figueiredo no SNI. Seu tio acabara de morrer e ele fora ao enterro para “cumprir tabela”. A situação simétrica, mas inteiramente injusta, deixa Liniane furiosa.

O relato de Liniane também demonstra o quanto a “Guerra” afetou a região do Araguaia e como as pessoas foram usadas e torturadas para auxiliar os militares. Até hoje muitos os temem. Quando são descobertas ossadas, eles, os militares, reaparecem. A população tem medo das entrevistas; afinal, há boatos de que os parentes dos guerrilheiros mortos preparam-se para voltar à região a fim de perpetrar uma vingança pelo colaboracionismo de alguns…

O livro de Brum é um poderoso documento pessoal da história recente do Brasil e torna-se mais potente pelo que possui de mérito literário. O Sul21 conversou rapidamente com Liniane Haag Brum.

A autora Liniane Haag Brum | Foto: Marcelo Min

Sul21- Há uma tentativa do MPF de abrir um processo contra o Major Sebastião Curió, como tu vês isso?

Brum – É claro que eu acho que é pertinente este gênero de ação. Afinal, há depoimentos e evidências que levam a crer que houve torturas e execuções. Não é um assunto que diga respeito apenas aos familiares. Nós podemos ser o elo de comunicação com os acontecimentos, mas o assunto é da nação. Como digo no livro, há duas fontes que teriam estado presentes na morte do Cilon, ambas vão mais ou menos pelo mesmo caminho. Não creio que seja função minha averiguar o que houve no Araguaia. O que fiz foi uma contribuição, na expressão e no formato que posso dar, para aproximar as pessoas da história numa abordagem literária.

Sul21- Na semana passada, houve manifestações contrárias às comemorações do Clube Militar pelo Golpe de 1964. De certa forma, o assunto da ditadura voltou à tona com força inesperada.

Brum – É verdade. Se a gente tentar ver o que está acontecendo com certo distanciamento – o que é difícil porque estamos imersos no agora – , veremos um momento muito peculiar. Peço desculpas pelo lugar-comum, mas parece que os jovens querem ir à frente passando a limpo uma série de coisas tal como fizeram os países vizinhos. O Clube Militar tem todo o direito de fazer suas comemorações e, a sociedade, tem o direito de reverberar o fato. Há, também, eventos no Memorial da Resistência aqui em São Paulo. Assim como fazem os militares, são chamados palestrantes que fazem exposições. O problema não são os eventos em si, o problema é que, se um vai ficar apenas apedrejando o outro, não se vai avançar. Eu acho que seria ótimo se fosse revogada a Lei de Anistia ou o cumprimento da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA no caso Araguaia. O Supremo Tribunal Federal julgará na próxima quinta-feira, dia 12 de abril, a ação da OAB sobre o cumprimento desta sentença. Vale pressão. Acho bom também ser lembrado que a tortura é crime imprescritível.

Sul21 – O livro relata casos de pessoas do Araguaia que ainda têm medo de falar  sobre o início dos anos 70. Como é isso?

Brum – Meu livro não é puramente jornalístico, nem puramente histórico, é a história versus a minha subjetividade, o que não significa dizer que a informação fique desqualificada. O medo das pessoas é um fato indiscutível. É claro que alterei a linguagem para pôr no livro, mas há um medo real. A população participou involuntariamente daquilo que chamam de “guerra”, foram convocados à força. Então, quando chega uma mulher fazendo perguntas, eles se retraem. A população também foi torturada pelos militares atrás de informações que os levassem aos grupos guerrilheiros. Há medo até hoje.

Sul21 – Existe, em São Sepé, o pensamento de que Cilon era um perigoso assaltante de bancos e que recebeu o que lhe era devido?

Brum – Na época, não havia um entendimento global do que acontecia e não somente em São Sepé. O tom era mais ou menos assim: “Se o filho do Lino foi morto, imagina o que não terá feito!?”. Isto está no livro para mostrar a época que se vivia. Apesar de que há ainda gente que pensa assim.

Sul21 – Durante o livro, tu estás quase sempre acompanhada de uma equipe de filmagem, há planos para um filme?

Brum – Antes de ser um livro, Antes do Passado, foi um filme… Em 2002, eu planejei um documentário. Na verdade, não tinha muita compreensão do que estava fazendo. Afinal, eu sempre trabalhei com cinema e áudio-visual — hoje em dia, sou editora de TV. Eu pensava em realizar um documentário sobre a Guerrilha, tendo por foco o tio Cilon. Era uma má compreensão das coisas… Comecei a colher e gravar entrevistas. Enquanto isso, estudava literatura, planejei outros livros e, quando foi confirmada a morte do tio Cilon em 2009, resolvi que era um livro. Mas é claro que eu tenho um material imenso gravado e tenho que avaliar o que fazer com ele, apesar de que o livro me satisfaz. O que eu desejava dizer está ali.

Sul21 – E como tu encontraste o tom para o livro, como tu resolveste estruturá-lo numa série de crônicas?

Brum – Eu cheguei nesta forma não brigando com os fatos. Eu tinha só pedaços, não tinha nada inteiro. Primeiro eu resolvi que seria literatura, não apenas um documento ou uma narrativa. Decidi também pela primeira pessoa do singular porque eu seria o elo que tentaria costurar as pontas. E seria a história de uma busca. A forma da crônica me pareceu a melhor para dar mais vida, para fazer com as matérias aderissem melhor ao todo. Retirei muitos trechos de minhas memórias de infância, que não interessavam diretamente e que pretendo usar futuramente numa ficção.

Sul21 – A temperatura emocional do livro sobe muito nas cartas para a Vó Lóia…

Brum – Isso surgiu depois, não estava no projeto inicial. Veio no processo de escrita. Permitiu que eu pudesse falar mais intimamente da família. Achei que aquilo aproximava o tio e a situação famíliar das pessoas. Minha escrita funcionava com muita naturalidade quando eu me dirigia a ela. E era um modo de colocar mais informações para o leitor.

A mãe Eloah (Lóia), Cilon e Elza Barberena

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Leveza e a ousadia mozartianas em Ulisses

São Pedro Claver em ação. Maiores detalhes no link ao lado.

Ontem, fiquei comovido com a beleza e a irreverência de uma pequenina cena do Ulisses (ou Ulysses), na terceira tradução de Galindo. Estava no ônibus voltando para casa. É muito simples e está entre as páginas 385 e 388 do livro da Cia. das Letras e Penguin. O padre Conmee caminha pelas ruas de Dublin pensando nas almas dos negros, pardos e amarelos. São milhões de almas humanas criadas por Deus a Sua semelhança e a quem a fé não tinha sido trazida. Um desperdício, ele conclui. Seus pensamentos obviamente vão até a obra de São Pedro Claver e seguimos pelas ruas acompanhando seus pensamentos.

A passagem de Dom John Conmee tem reflexos nos passantes. O monólogo interior passa de um a outro com extrema leveza. Uma senhora apática, não tão jovem, o vê. Ela pensa: quem poderia saber a verdade? Quem avaliaria se ela tinha ou não cometido adultério por inteiro? Seu confessor? Ela confessaria pela metade se não tivesse pecado por inteiro. Mas só Deus sabia, além dela e do irmão de seu marido.

Depois ele olha uns meninos brincando quando um rapaz surge através de uma fenda que se abre de uma sebe. Bela imagem. Atrás dele vem uma moça com margaridas do campo na mão. Ele põe o boné, ela limpa da saia “com lenta atenção” um graveto que grudou-se ali. O padre abençoa a ambos com gravidade.

No final, uma citação em latim: Principes persecuti sunt me gratis: et a verbis tuis formidavit cor meum. Algo como: e os príncipes me perseguiram sem causa, e no temor de tuas palavras o meu coração. John Conmee foi reitor do Clongowes Wood College, quando Joyce era um estudante lá. Ele também aparece no Retrato do Artista Quando Jovem: Stephen Dedalus o procura após ter sido injustamente punido pelo padre Dolan. Joyce trata o Conmee-personagem com carinho.

É lindo como o sexo liga os personagens em Ulysses. E era isso. Vou trabalhar.

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Drogadito em Uli… Ops, Ulysses

O último Bloomsday e a necessidade de falar sobre o livro me fez ler a segunda tradução de Ulisses no Brasil, a de Bernardina da Silveira Pinheiro (888 páginas). E, logo depois do evento, comecei a ler a terceira, a de Caetano Galindo, que chama o livro de Ulysses. Quando li Ulisses pela primeira vez, no final dos anos 70, lembro de ter pensado que era um livro com excesso de personagens homens e da curiosa música da prosa de Joyce por Houaiss. Detestava falar sobre o livro, pois achava que minha leitura era muito inferior do que a requisitada por Joyce. Eu tinha perdido o jogo, simples assim. Perdi o pudor ao ler Bernardina e minha impressão foi a de que havia sexo em tudo, permeando, ligando e afastando personagens. Agora, faço ainda outra leitura: capto muito humor na tradução de Galindo. Isto é causado por mim ou pelos tradutores?

E qual é a melhor tradução? Não sei responder. O que sei é que me apaixonei três vezes por Ulysses e que nunca estarei à altura dele, mas que isto não é de todo mau. Trata-se de um romance, de uma obra de arte, não de um quebra-cabeças. Estou bem feliz na página 285. Ao mesmo tempo levo um livro de Eliane Brum e outro sobre o Vaticano na bolsa, só que o desafio de Ulysses torna boba a concorrência e, quando abro o zíper, sempre vou no livrão. Amanhã, no ônibus, vou de novo nele.

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Andrei Rublióv (Rublev), de Andrei Tarkovski

Eu não procurei este livro para comprar, eu cruzei com ele. Estava caminhando por uma livraria e dei de cara com o volume da Martins Fontes. Estranho, não era um DVD do filme, mas um livro de mais de 300 páginas escrito pelo próprio diretor e roteirista Andrei Tarkovski. Comprei imediatamente e não é que o tenha lido, eu o engoli imediatamente com os olhos.

Trata-se de um roteiro literário, que na verdade é um romance escrito por Tarkovski para servir de base para as filmagens. O  roteiro final foi escrito em parceria com Andrei Konchalovsky e parece  consistir apenas no acabamento dos diálogos e no corte de descrições e cenas, pois o livro (ou roteiro literário) possui 14 capítulos, 5 capítulos a mais do que o filme.

OK, mas porque tanta expectativa? Ora, pelo imenso filme de Tarkovski, um dos melhores de toda a história do cinema, pelo profundo humanismo que se desprende da história e pela grande carga emocional de um filme que parece não terminar nunca, tal a impressão deixada nas mentes de quem o vê. Com a publicação deste roteiro — falemos sério, deste romance — ficam inequívocas as intenções do cineasta soviético. Tarkovski pretendia mesmo discutir o papel do artista e da fé na sociedade. Se o palco é a Rússia (Rus) da invasão tártara do século XV, a alegoria serve a qualquer outro tempo e sociedade.  No livro, Rublióv está muito mais completo e complexo do que no filme, o que, se não significa uma obra de arte melhor — e certamente não significa — , significa explicações para vários trechos apenas intuídos.

Na leitura, capta-se melhor a personalidade do trio de pintores de ícones, perdidos ou indo de igreja em igreja na paupérrima e faminta Rússia medieval. Andrei é um jovem quieto e misterioso. Daniil é resignado, propondo sacrifícios a si mesmo. Kiril é esperto, lógico mas ciumento. O trio representa a Trindade do ícone mais famoso de Rublióv. As cenas — todas passadas por volta do ano de 1400 — nem sempre são contadas do mesmo ponto de vista, podem variar, assim como a ordem de apresentação delas é diferente no filme.

Andrei Rublióv é um surpreendente painel sociológico sobre a Rússia medieval. Os estranhos rituais, a fé, a necessidade da igreja para não passar fome, a busca da própria identidade, a busca da verdade. Há violência extrema na cena em que a igreja é invadida e saqueada, com o sacerdote sendo marcado por uma cruz incandescente. Ali, Rublióv perde a fé para reencontrá-la no filho de um fabricante de um sineiro, um menino que, sem saber muito bem o que faz e ameaçado de morte se não for capaz de forjar um sino, vai adiante movido por não se sabe o bem o quê– pela mera intuição, pela fé ou pela observação e desespero. Ali, Rublióv vai reencontrar deus e o espírito para voltar a criar beleza religiosa para um mundo absolutamente bárbaro.

O filme, de 1966, foi somente liberado em 1969, assim mesmo com cortes impostos pela censura soviética, que não aprovava a alegoria de Tarkovski contra a intervenção das instituições no trabalho do artista. Isto é algo quase não lê no “roteiro literário” do diretor.

Andrei Rublev: Trindade. Galeria Tretyakov

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Ladrão de livros é absolvido! A evolução do Judiciário é fato indiscutível!

O excelente e atento advogado Bruno Zortea — falo muito sério ao elogiá-lo — escreve para este blogueiro a fim de de informá-lo sobre uma decisão inteligente e altamente cultural tomada por nosso brioso Poder Judiciário no dia de ontem. Porém, antes de proceder à transcrição da nota, gostaria de deixar claro que o ladrão de livros ora absolvido FERE DE MORTE a ética do ladrão politicamente correto de livros, cujo conteúdo apresentamos aqui com riqueza de detalhes. O ladrão em questão roubou livros com a intenção de revendê-los, fato que pode ser comovente se a situação econômica do ladrão for deveras lamentável, mas que não aceitamos em razão da intrusão do capitalismo em seu movimento seguinte. Ele que vá roubar carros ou joalherias, então! O roubo de livros deve ser uma atividade pura que apenas lesa as grandes livrarias. O ladrão de livros perpetra seus ilícitos por paixão e prazer literários, nunca para entrar num vulgar sistema de oferta e procura.

Abaixo a notícia publicada no site do STJ.

Antes ainda, um detalhe: esse negócio de aplicar o tal princípio da “insignificância” na absolvição é outra coisa que tem de ser alterada. Insignificante é a mãe de quem invocou este princípio para o caso!

Homem que furtou livros é absolvido pela aplicação do princípio da insignificância

A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) concedeu habeas corpus a um homem que furtou e revendeu três livros avaliados em R$ 119, em São Paulo. Para o ministro relator do caso, Og Fernandes, a ação teve ofensividade mínima e cabe a aplicação do princípio da insignificância. O réu, que estava sob liberdade condicional por outras condenações de furto, confessou que pegou três obras de uma livraria localizada numa estação da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM). Os livros foram revendidos na praça da Sé por R$ 8 cada. Entre os títulos dos livros constava uma edição da série Harry Potter. Em primeira instância, o homem foi absolvido, mas o Ministério Público se mostrou inconformado e apelou. O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) reformou a decisão para que a ação penal pudesse continuar.

Insatisfeita, a defesa recorreu ao STJ. Pedia, por meio de habeas corpus, que a denúncia oferecida pelo MP fosse rejeitada ou o homem absolvido. Alegava atipicidade no caso e constrangimento ilegal, por não ter sido aplicado o princípio da insignificância.

Sem ofensividade

“Não há como deixar de reconhecer a mínima ofensividade do comportamento do paciente”, afirmou o ministro Og Fernandes, reconhecendo a atipicidade da conduta. Para ele, pela aplicação do princípio da insignificância justifica-se a concessão do habeas corpus.

Para enfatizar a decisão, o relator mencionou precedente de 2004 do Supremo Tribunal Federal (STF). Na decisão, foi reconhecida a aplicação do princípio da insignificância quando quem comete a ação não oferece ofensividade ou perigo social. Ou, ainda, quando o comportamento indica “o reduzidíssimo grau de reprovabilidade” e apresenta “inexpressividade da lesão jurídica provocada” (HC 84.412/STF).

De forma unânime, a Sexta Turma do STJ concedeu habeas corpus ao homem, restabelecendo assim a decisão de primeiro grau que o absolveu.

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A lista dos 100 livros melhores livros de literatura de José Mindlin

Alain-Fournier (1886-1914)

A lista dos 100 livros de José Midlin contém as idiossincrasias de qualquer lista, mas gostaria de considerar que a presença de O Grande Meaulnes (1913) tenha sido produto de longa reflexão… (Se isso fosse uma série norte-americana, talvez ouvíssemos risadas). Afinal, achei estranha a presença da boa Adélia Prado na segunda colocação e espero que o terceiro lugar não seja também uma excentricidade. Digo isso porque o único livrinho de Alain-Fournier — que li lá pelos anos 70 — , pareceu-me na época uma delicadíssima e perfeita obra-prima.

Lembro de pouca coisa do conteúdo. O que lembro mesmo é de minha felicidade ao lê-lo. A Wikipedia diz:

Le Grand Meaulnes é o único romance do escritor francês Alain-Fournier, que morreu pouco depois, em 1914, na Primeira Guerra Mundial. No livro, François Seurel, aos 15 anos, narra a história de seu relacionamento com o amigo Augustin Meaulnes, de 17 anos, que procura por seu amor perdido. Impulsivo, imprudente e heróico, Meaulnes encarna o romantismo ideal, a busca para o inalcançável e o misterioso mundo entre infância e idade adulta. No Brasil, tanto o livro quanto o filme por ele inspirado receberam o nome de O Bosque das Ilusões Perdidas, em Portugal o livro intitula-se O Grande Meaulnes. François, o narrador do livro, é o filho do Sr. Seurel, um diretor de escola em uma aldeia de Sologne, uma região de lagos e florestas arenosas. Depois de chegar à escola, seu amigo Augustin Meaulnes, que vem de uma família pobre, logo desaparece. Quando ele retorna, relata ter ido à uma festa a fantasia incrível e mágica, onde conheceu a garota de seus sonhos, Yvonne de Galais, e passa a procurá-la romântica e insistentemente.

Será que é tão bom mesmo? O livro tem existência quase secreta no Brasil. Li uma edição portuguesa do livro. A brasileira veio depois. O livro é extraordinariamente romântico, mas é tão bem escrito que nos convence. Era só isso. Fiquei feliz de revê-lo…

A lista de Mindlin:

1 – As mil e uma noites –
2 – Bagagem – Adélia Prado
3 – O Grande Meaulnes – Alain-Fournier
4 – A peste – Albert Camus
5 – Os três mosqueteiros – Alexandre Dumas
6 – A ilha dos pinguins – Anatole France
7 – Formação da Literatura Brasileira – Antonio Cândido
8 – Sermões – Antonio Vieira
9 – Comédia Humana – Balzac
10 – A Torre do Orgulho – Barbara Tuchman
11 – As Flores do Mal – Baudelaire
12 – Teatro – Beaumarchais
13 – Adolfo – Benjamin Constant
14 – Teatro – Bernard Shaw
15 – Decameron – Boccacio
16 – Poesia – Carlos Drummond de Andrade
17 – Memórias – Casanova
18 – Poesias – Castro Alves
19 – Poesias – Cecília Meirelles
20 – Grandes Esperanças – Charles Dickens
21 – Romances e contos – Chekov
22 – O Amanuense Belmiro – Cyro dos Anjos
23 – Robinson Crusoe – Daniel Defoe
24 – Jacques, o fatalista – Diderot
25 – Crime e Castigo – Dostoievski
26 – Os Maias – Eça de Queiróz
27 – Poesia – Elizabeth Barrett Browning
28 – Poesia – Emily Dickinson
29 – O Morro dos Ventos Uivantes – Emily Brönte
30 – O Tempo e o Vento – Érico Veríssimo
31 – Teatro – Ésquilo
32 – Teatro – Eurípedes
33 – Poesia – Fernando Pessoa
34 – Tom Jones – Fielding
35 – O Processo – Franz Kafka
36 – Cem anos de Solidão – Gabriel García Marquez
37 – Casa Grande e Senzala – Gilberto Freyre
38 – Romances – Gogol
39 – Poesia Completa – Gonçalves Dias
40 – Vidas Secas – Graciliano Ramos
41 – Poemas – Gregório de Mattos
42 – Grande Sertão Veredas – Guimarães Rosa
43 – Educação Sentimental – Gustave Flaubert
44 – Contos – Guy de Maupassant
45 – Minha Vida de Menina – Helena Morley
46 – O Lobo da Estepe – Herman Hesse
47 – Odisseia/Ilíada – Homero
48 – Comédia Humana – Honoré de Balzac
49 – Orgulho e Preconceito – Jane Austen
50 – Confissões – Jean Jacques Rousseau
51 – Poesia Completa – João Cabral de Mello Neto
52 – A Morte e a Morte de Quincas Berro D´agua – Jorge Amado
53 – A Biblioteca de Babel – Jorge Luis Borges
54 – O Guarani – Jose de Alencar
55 – Menino de Engenho- Jose Lins do Rego
56- Memorial do Convento – José Saramago
57 – Lord Jim – Joseph Conrad
58 – Rayuela – Julio Cortazar
59 – Contos e Novelas – La Fontaine
60 – Triste Fim de Policarpo Quaresma – Lima Barreto
61 – Os Lusíadas – Luís de Camões
62 – Memórias Póstumas de Brás Cubas – Machado de Assis
63 – Memórias de Um Sargento de Milícias – Manoel Antonio de Almeida
64 – Gramática Expositiva do Chão – Manoel de Barros
65 – Poesia Completa – Manuel Bandeira
66 – Em Busca do Tempo Perdido – Marcel Proust
67 – Macunaíma – Mario de Andrade
68 – Teatro – Marivaux
69 – Dom Quixote – Miguel de Cervantes
70 – Teatro – Moliere
71 – Ensaios – Montaigne
72 – Cartas Persas – Montesquieu
73 – A Carta Escarlate – Nathaniel Hawthorne
74 – Poesias – Olavo Bilac
75 – Retrato de Dorian Gray – Oscar Wilde
76 – Serafim Ponte Grande – Oswald de Andrade
77 – Poemas – Paul Eluard
78 – Poemas – Paul Verlaine
79 – Retrato do Brasil – Paulo Prado
80 – As Memórias – Pedro Nava
81 – Diálogos – Platão
82 – O Quinze – Rachel de Queiroz
83 – O Ateneu – Raul Pompéia
84 – Poesia – Rimbaud
85 – Raízes do Brasil – Sergio Buarque de Hollanda
86 – Teatro – Sófocles
87 – O vermelho e o negro – Stendhal
88 – Tristram Shandy – Sterne
89 – Gulliver – Swift
90 – A Montanha Mágica – Thomas Mann
91 – Guerra e Paz – Tolstoi
92 – Romances – Turguenev
93 – Conversa na Catedral – Vargas Llosa
94 – Poemas – Vicente de Carvalho
95 – Os Miseráveis – Victor Hugo
96 – Poesia – Vinicius de Moraes
97 – Eneida – Virgílio
98 – Orlando – Virginia Woolf
99 – Romances – Voltaire
100 – Teatro – William Shakespeare

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Anotações para a noite: Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf X A Volta do Parafuso, de Henry James

Hoje à noite, às 19h, haverá dois dos mais esperados embates do ano. No StudioClio, se enfrentarão os dois livros acima. Antes teremos Suicídios exemplares (Suicidios ejemplares, 1991), de Enrique Vila-Matas X Vésperas (2002), de Adriana Lunardi. Estarei no jogo entre Woolf e James junto com Nikelen Witter e as cervejas Corujas, sempre presentes ao evento. Abaixo, minhas anotações de fim-de-semana sobre os livros. Devido a problemas com a Fox Sports, a Net não transmitirá o evento ao vivo. Só indo lá assistir.

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Logo que soube da escolha deste jogo por parte do StudioClio, a ideia de uma partida que reunisse Mrs. Dalloway e A volta do parafuso pareceu-me algo muito aleatório, mas tal impressão não subsistiu a alguns minutos de reflexão. O livro de James foi escrito em 1898 e o de Woolf apenas 27 anos depois, em 1925. Porém, sabemos que o mundo foi virado de cabeça para baixo naquele período, quando o romance do século XIX foi, em parte, substituído pelo romance moderno.

Não foram anos quaisquer. Alguém pode me dizer que o critério evolutivo não serve para a história do romance. Afinal, Grande Sertão: Veredas foi escrito há 56 anos, mas quando comparado com os romances atuais, dá a impressão (ou a certeza) de ser mais moderno do que aquilo que os romancistas de hoje escrevem. Talvez fosse interessante refletir se os escritores de hoje escrevem para o passado ou, pior, para um leitor que não existe mais. Bem, acho que isto é em parte verdade, mas não tergiversemos.

O fato é que Guimarães Rosa foi um fenômeno isolado enquanto Virginia Woolf fez parte de um oceano que estava destinado a mudar a arte do romance. Para comprovar que era um tsunami completo, com direito a levar de roldão o que houvesse pela frente, nem invocarei a literatura. Invoco, por exemplo, a música. O Allegro Barbaro de Bartók é de 1911, A Sagração da Primavera é de 1913, as Sinfonias de Mahler de 4 a 10 estão também entre a obra de James e de Woolf, Brahms morrera em 1897 e seu cadáver nem estava muito frio quando Debussy já rascunhava seus Noturnos orquestrais. Mas não era só na música, na pintura havia uma revolução análoga e até mais charmosa e célebre. Na literatura, Tolstói morria em 1910 para dar lugar a James Joyce, T.S. Eliot, Rilke, Proust, Kafka, Pirandello, Svevo… Todos autores que produziram toda ou grande parte de sua obra entre 1898 e 1925. Ou seja, não quero dar uma de Juscelino Kubitschek que empolgou o país com seu bordão “cinquenta anos em cinco”, porém o fato é que o mundo adquiria outra feição e velocidade naqueles anos.

Pois bem, acabo de separar os dois livros como se houvesse 200 anos entre eles, agora é o momento de aproximá-los. Por mais que hoje nos pareça estranho, Henry James era um escritor de vanguarda em sua época. Seu desenvolvimento calmo e sua classe encontram boa analogia no Bruxo de Cosme Velho. Tal como Machado, a literatura de James apresentava-se bastante estranha em 1898. Era como se o escritor, cansado do meramente romanesco, passasse a abrir mão da trama complicada e da construção de conflitos para que o leitor pudesse fruir a linguagem. James, em seus romances e novelas da época, revela um virtuosismo arrebatador sobre um quase nada, assim como Machado fez em Memorial de Aires. A trama de A Volta do Parafuso é tão rarefeita que uma sinopse do livro pode destruir a boa intenção de qualquer leitor e é isso que vou fazer agora. Calma, não vou estragar o prazer de ninguém ao ler o livro, tudo o que descreverei está bem no início da novela.

Uma mulher jovem, solteira e precisando de emprego, vai a Londres em atendimento a um anúncio. Necessitava-se de uma preceptora para cuidar de dois órfãos. O tutor é um tio bonito e bon vivant e o casal de crianças sob sua tutela é um grande incômodo. O que ele oferece? Um bom salário para morar afastado numa residência burguesa no campo, Bly, com muitos serviçais. O que ele pede? Que a contratada permaneça lá, cuidando e ensinando as crianças como uma condição: ela não deve aborrecê-lo com quaisquer problemas. Ele paga para não se incomodar. Mandará o dinheiro e ela deve resolver tudo, sem encher o saco com picuinhas e não-picuinhas. O tio é encantador, percebe que ela é suscetível a esse encanto e eles fecham o acordo. Ela vai para a propriedade, faz amizade com uma servidora simples e confiável, Mrs. Grove; logo descobrirá que as crianças são uns amores, excepcionalmente inteligentes e belas, e então não se tem mais certeza de nada. A única estranheza é o fato de o encantador Miles, o irmão mais velho, ter sido expulso da escola. A narradora não questiona o fato junto ao menino para não melindrá-lo; afinal é tão fofo! A partir de então, tudo fica BEM ESTRANHO: a ex-preceptora aparece em forma de fantasma… Ou é a narradora que enlouqueceu? O serviçal Peter Quint é outro fantasma do qual temos dúvidas se está ali mesmo ou apenas na imaginação da narradora. Well…

(Intermezzo: Pesquisei e contei 24 adaptações de The turn of the screw. Seis filmes – um com Marlon Brando, outro com Deborah Kerr, outro com Harvey Keitel e outro com Shelley Duvall – , mais uma ópera de Benjamin Britten, balés, adaptações radiofônicas, teatrais, o diabo. Nestas, muita criatividade, talvez abuso. Muito sexo, principalmente. As cenas de sexo do filme de Brando são um show à parte. Ele recém saíra de O Último Tango em Paris e o diretor Michel Winner resolveu utilizá-lo sem Maria Schneider nem manteiga, mas usando a liberdade de interpretação que James permite).

Respondendo a meus parênteses: Winner errou? Não, certamente não. Mas a preceptora aproxima-se “fisicamente” do fantasma de Quint no livro? Olha, James não descreveu nada parecido, mas ela pensava muito nele. Os pensamentos eram libidinosos? Não, eram de horror, mas falemos sério e de nossa posição pós-Freud: o fantasma de Quint cria uma atração irresistível na preceptora. Ela afirma que se trata de um monstro, mas ela o acha bonito e Mrs. Grove – que o conheceu vivo – garante: Quint era muito bonito e permissivo. O narrador James – o livro é narrado em primeira pessoa pela preceptora – não diz nada, mas nos leva a desconfiar de muita bobagem. Quint não é, decididamente, um cavalheiro; antes é sempre comparado a um animal. Quem sabe um fauno permissivo, instintivo e execrável à moral da moça? Talvez apenas a sua moral, claro.

Tudo no romance é perfeito. E insuficiente. As aparições dos fantasmas são raras e espaçadas, as informações sobre o possível conchavo deles com as crianças podem ser fruto da imaginação tola da narradora. Sabe-se pouco e fica claro que um dos fatos principais do livro é a linguagem de James, sempre pronta a nos enganar e a levar nosso pensamento para qualquer direção, nenhuma delas inocente. A Volta do Parafuso é escrito com o óbvio propósito de iludir o leitor a cada página. A interpretação é livre, tão livre que, no Brasil, uma editora espírita do interior de São Paulo publicou Os Inocentes de Henry James, como uma novela espírita da possessão de duas almas infantis por dois espíritos malvados, obsessores. Acho que de modo nenhum podemos explicar o livro por aí. De meu ponto de vista, eu, que jamais acreditei em fantasmas nem em espiritismo, confesso que James me assustou. Sim, confesso ter ficado arrepiado, inteiramente envolvido pela linguagem de James. Aliás, se houver alguma explicação para o livro, ela não será nada, nada óbvia. O mínimo que sobrará a um leitor de inteligência mediana, como eu, será a certeza de que se trata de um livro absolutamente assustador e instigante.

Mrs. Dalloway é muito diferente. O que me salta imediatamente aos olhos é o trabalho de linguagem de Virginia Woolf, sua enorme leveza e feminilidade ao escrever. Mrs. Dalloway é o primeiro livro de VW que subverte a linguagem tradicional. O livro inicia com a seguinte frase: “A Sra. Dalloway disse que ela própria compraria as flores”. Depois o que se vê inicialmente é uma explosão de alegria de uma mulher casada que dará uma festa à noite em sua casa. Sim, o ambiente inicial é de festa, mas logo abrem-se frestas. O surgimento de Peter Walsh, o seu primeiro amor, que retorna da Índia, muda alguma coisa, trazendo consigo os desejos da juventude que acabaram num casamento morno. Há também Septimus Warren Smith, enlouquecido pelo trauma da Primeira Guerra Mundial e cujos medos parecem se refletir em Clarissa (Dalloway). Enquanto Septimus é uma chaga aberta, Clarissa cobre sua dor com festas, amigos e tarefinhas. O futuro parece assustador, a velhice – Clarissa tem 52 anos – também. Melhor que os convidados saiam de sua casa dizendo a frase que Francisco Marshall escreveu em seu Facebook logo após a última festa que demos em minha casa e na qual Nikelen  Witter também estava presente: “Tudo perfeito! Assim a vida fica bem mais leve e melhor!”. É outro contexto, mas serve a frase, que agradeço.

Assim como o Ulisses de Joyce, a ação de Mrs. Dalloway transcorre num único dia. Entre a manhã e a madrugada seguinte, com as horas (aliás, o primeiro título do romance era As Horas) bem marcadas pelas badaladas do Big Ben. Lendo-se de um ponto de vista estritamente idiota, é a narrativa de um dia na vida da esposa de um membro da Câmara dos Comuns, sobrecarregada de coisas para fazer e preocupada com o que não fez por falta de coragem. Indo um pouco mais longe, é um livro sobre o efeito de nossas opções, o que não é pouca coisa.

A trama (trama?) de Virginia Woolf é ainda mais rarefeita do que a de James. Como veremos a seguir, VW é muitíssimo mais informativa, porém são fatos desconexos, jogados pela autora em aparente livre-associação formando um mosaico completo, repleto dos detalhes que são nossas vidas. Vejamos: enquanto Clarissa Dalloway dirige-se à florista Miss Pym, o leitor vai conhecendo a sua vida: o marido chatinho Richard, a filha Elizabeth; a religiosa Miss Kilman, espécie de preceptora que influencia a filha Elisabeth e de quem Clarissa não gostava e recebia retribuição. Pensa em seu amigo Peter Walsh, a quem preterira em casamento. Retornando à casa, Clarissa encontra o marido Richard, que lhe diz que foi convidado para ir almoçar na casa de Lady Bruton. Clarissa fica com ciúmes, mas há mais em que pensar, pois não disse que ela receberá a visita de seu primeiro amor, o citado Peter Walsh? O passado emerge, as cenas entre os dois e as lembranças de ambos são belíssimas e tristes. Durante o jantar, Richard diz a Walsh  que se sente inseguro, que oferece com alguma frequência flores a Clarissa para poder dizer “eu te amo”, mas que a frase não sai, apenas as flores são entregues. Durante a festa, Peter conhece Sally Seton, uma velha amiga que depois de casada passou a ser conhecida como Lady Rosseter e deu luz a cinco filhos. Ela foi íntima de Clarissa, trocaram carícias, mas aconteceu com ela o mesmo que ocorreu com Walsh. Clarissa trocou-a por uma posição social. Simultaneamente, travamos conhecimento com Septimus Warren Smith, um herói da Primeira Guerra Mundial que tem alucinações, e com o sofrimento da sua esposa Lucrezia (Rezia).

Woolf utiliza uma técnica de fluxo de consciência conectando os pensamentos de seus personagens. O romance é uma narrativa contínua, sem grandes divisões ou seções. O Big Ben conta o tempo. Os pensamentos de personagens como Mrs. Dalloway e Septimus Warren Smith são conectados por eventos externos do mundo, como o som de um automóvel, ou a visão de um avião no céu.
O que há em comum entre as duas “heroinas”? Não gosto de ambas. Dalloway escolhe a  segurança e o convencionalismo. A narradora de James é muito chata e doida varrida…Clarissa ama o sucesso, odeia o desconforto, e tem necessidade de ser amada. Ela é atraída para homens e mulheres. Teme que sua filha seja cooptada por Miss Kilman. Clarissa teve uma doença recente, e descansa por uma hora depois do almoço. Pensa na morte. Bem, agora temos anotações mesmo!
Agora, a contagem dos gols. Tudo pode mudar até a noite.
1. Linguagem, foco narrativo

Empate. Fico mais feliz com Woolf, mas acho que há que respeitar o sabor clássico de James. Cada um faz um gol.

2. Construção de conflitos e estrutura do romance

James constrói uma miríade de conflitos dentro de um guarda-chuva maior. Todos eles são cuidadosa ou nervosamente analisados e revisados em seus muitos detalhes. Na verdade, A volta do parafuso é uma longa construção de um conflito que não é solucionado até o final muito bem definido até o final e até mesmo depois dele. Gol de James.

3. Construção de personagens

Tenho que pensar.

4. Relevância sociológica.

O romance de Woolf é, não obstante sua aparente leveza, lotado de observações à terceira década de século XX: as sobras da Primeira Guerra Mundial que traumatiza, culpa e enlouquece Septimus Warren Smith. Rezia, sua mulher expatriada e semi rejeitada por ser uma estrangeira, sentindo-se duplamente impotente frente ao marido que sucumbe e ao qual ama. O caso de Clarissa e Peter Walsh e de Clarissa e Sally que não vão adiante pelo puro preconceito de classe de Clarissa. Gol de Woolf, fácil.

5. Relevância ontológica.

Aqui também Woolf faz gol. O fluxo de consciência é um ganho enorme e ele garante enorme vantagem sobre o discurso livre indireto de James. Além do mais, os personagens de James estão obcecados pelos fantasmas e os problemas dos garotos. Mesmo que James vire e revire as ideias da narradora, ela não é páreo para a montanha de elementos que é exposta por Woolf.

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O dia em que Porto Alegre será destruída

Foto tirada ontem por Ramiro Furquim / Sul21

2014. 18 de junho. Dia do quarto jogo a ser realizado no Beira-Rio, cujas obras foram entregues à Fifa e ao mundo faz um mês. Era um dia estranhamente quente para aquele finalzinho de outono. A partida reúne — reúne… — Argentina e Inglaterra. A cidade está tomada pelos hermanos, mas também, em menor número, pelos polidos e simpáticos invasores das Malvinas. Após duas greves, a Brigada Militar está de prontidão e as rádios “de sucesso” anunciam que o Rio Grande do Sul será palco do confronto do século e que um gaúcho-úcho-úcho, Leandro Vuaden, será o quarto árbitro. Todas as preocupações se voltam para a situação nas ruas, ignorando o que ocorre nos céus. Só a Defesa Civil do governador olham para lá. É que lá formam-se nuvens e mais nuvens e, no final da manhã do grande jogo, começa um toró de varrer Malvinas, Margarets e Cristinas do mapa.

Logo falta luz na Zona Sul, claro. Todos os ingleses que tomavam banho nas águas do Guaíba são direcionados para o BarraShoppingSul, onde há energia elétrica e argentinos que, à princípio, apenas os observam silenciosamente. Nas ruas, instala-se o caos com 35 pontos de alagamentos. Para piorar, ocorre um acidente entre dois ônibus dentro da Túnel da Conceição, formando um engarrafamento verdadeiramente inesquecível, pois os argentinos saem dos seus carros para beberem cerveja e quebrarem qualquer coisa coisa que encontram, no que são imediatamente imitados por ingleses e gaúchos. Uma árvore cai sobre um inglês e a Embaixada do país cobra explicações do governo brasileiro.

Tudo se torna muito mais divertido quando os torcedores notam que será impossível chegar ao estádio no horário, digamos, aprazado. Na Zona Sul, a muito custo, a Brigada consegue criar dois corredores que levam separadamente ingleses e argentinos a pé, sob forte chuva, para o estádio, aproveitando a proximidade. Os que estão no resto da cidade… Bem, estes não vão chegar a lugar algum. Então, brigam. Como um jogo de futebol que se torna mais violento conforme a chuva, a coisa fica cada vez mais descontrolada. Três ingleses são afogados hasta la muerte por grupos argentinos na Av. Osvaldo Aranha, enquanto comandos ingleses perseguem hemanitos com paus e pedras. Gremistas trajados com seus típicos pijamas são confundidos pelos ingleses — as camisetas são quase iguais, lembram? — e entram no bolo para apanhar. Os colorados aproveitam para tirar uma casquinha.

(Putz, 7h, dia cheio, tenho que cobrir a abertura da Semana de Porto Alegre. Desculpem, vou para o trabalho agora. Nem revisei, só achei a ideia divertida, tá? Talvez dê continuidade mais tarde a este verdadeiro drama gaúcho).

Filme de 2009 no Arroio Dilúvio:

Esse diz que é de ontem, mas é o mesmo surfista de 2009. Acho que é outra filmagem do mesmo fato, pois encontrei esta filme ainda ontem, durante o toró:

http://youtu.be/mU-MskcwjDY

E ontem…

Tartarugas queriam sair do Arroio Dilúvio ontem. Lá fora estava igual. | Foto: Léo Cardoso

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Em silêncio, Brasil vê o mundo comemorar o bicentenário de Charles Dickens

Charles Dickens (1812-1870): poucas edições no Brasil

Popular e piegas, social e relevante, a obra de Charles Dickens (1812-1870) cumpre longa agonia no Brasil. É difícil estabelecer o que aconteceu primeiro: se as más traduções ou os poucos leitores. Porém, se pensarmos que as más traduções também perseguiram outros autores que têm sido sistematicamente retraduzidos — com a admissão de que a maioria das traduções de décadas passadas eram mesmo de baixa qualidade — e reeditados, talvez cheguemos à conclusão de que há algo em Dickens que não bate conosco. Contrariamente a nosso silêncio, o mundo comemorou na última terça-feira (7) o bicentenário de nascimento do autor. Até o Google alterou seu logotipo por 24 horas (imagem abaixo) a fim de homenagear o grande escritor.

Consideremos três grandes livros de Dickens: Os Pickwick Papers (1836), David Copperfield (1849-1850) e Grandes Esperanças (1860–1861). A última edição brasileira dos Pickwick Papers foi de 2004 pela Editora Globo e a tradução era ainda a da velha Livraria do Globo dos anos 50. David Copperfield não foi publicado neste século, apenas em versão recontada e o mesmo vale para o esplêndido Grandes Esperanças. Mas nossa intenção não é a de revelar aos sebos que Dickens, que ora completa 200 anos de nascimento, é uma raridade. Nossa intenção é a de demonstrar que Dickens foi um escritor importantíssimo e por quê.

Ilustração de uma edição inglesa de Oliver Twist (Clique para ampliar)

A historiadora Nikelen Witter considera Dickens um colega de trabalho: “Minha percepção de Dickens envolve muito o que o romance dele representou em sua época e quem ele foi como escritor. Minha leitura juvenil do autor, confesso, foi totalmente reestruturada pelo meu estudo da história do século XIX. Talvez meu gosto por ele seja menos em razão de seu texto do que pelas ferramentas que ele disponibiliza para entender o século XIX. Dickens está entre os autores que recomendo a meus alunos de História Contemporânea e minha intenção não é a de causar diabetes em ninguém. A descrição de Dickens das gangues infantis é bastante precisa, bem como da reprodução das estruturas de poder dos adultos nas crianças abandonadas. A lacrimosa saga de Copperfield abre espaço para uma série de questionamentos históricos sobre legitimidade, pátrio poder e escolaridade, além, é claro, da irresponsabilidade do agir das classes mais altas. Há em Dickens uma defesa da igualdade”.

Pip e um mendigo: ilustração para Grandes Esperanças, seu romance mais maduro e sofisticado (Clique para ampliar)

Não sem razão, Witter refere-se ao diabetes e à defesa da igualdade. Dickens era mesmo açucarado. Oliver Twist e David Copperfield são verdadeiras torrentes de lágrimas. A morte de personagens como a pequena Nell em The Old Curiosity Shop (O Armazém de Antiguidades) é algo de deixar sóbria qualquer novela mexicana. Witter discorda do termo “piegas” e justifica: “Os livros do Dickens e das irmãs Brönte que tematizavam as agruras dos órfãos e abandonados na Inglaterra chegaram a provocar o que foi chamado de Movimento pela Infância (que começa por volta dos anos 1840), o qual lutou contra o trabalho infantil e exigiu melhorias nos orfanatos. A burguesia e a classe média leitora sensibilizaram-se com textos que demonstravam o sofrimento envolto num realismo poético — à falta de palavra melhor e para não usar o termo piegas, que, creio, teve seu conceito inventado por esta época. O fato é que o texto de Dickens são de denúncia das mazelas provocadas pelo capitalismo, em especial quando atingia os mais fracos: os pobres e as crianças abandonadas. Não é à toa que o próprio Marx foi seu admirador”.

Dickens: açúcar e defesa da igualdade

Era uma abordagem nada indignada, mas muito ressentida e dolorida da pobreza e da infância. Afinal, aquilo tinha sido a infância de Dickens. Educado pela mãe, que lhe ensinou inglês e latim, ele dizia que não fora muito mimado e que passara muito tempo lendo as novelas picarescas e romances de Henry Fielding, Daniel Defoe, Jonathan Swift e de seus contemporâneos, assim como de Cervantes e “As Mil e uma Noites”. Durante um curto período, pôde frequentar uma escola particular. Contudo, a situação piorou quando tinha dez anos. Seu pai foi preso por dívidas após esgotar os parcos recursos da família no afã de manter uma posição social digna. Nesta época, a família mudou-se para o bairro popular de Camden Town em Londres, onde ocupavam quartos baratos. A biblioteca familiar que tinha feito as delícias do jovem Dickens foi vendida, os talheres empenhados e, com doze anos, Dickens já tinha a idade considerada necessária para trabalhar colando rótulos em frascos de graxa. Ou seja, quando Dickens falava e chorava os pobres da Revolução Industrial, não estava apenas representando ou fazendo tese.

Gravura da última leitura pública de Charles Dickens (Clique para ampliar)

A defesa da igualdade era implícita. Quando Bernard Shaw comparou Marx e Dickens e quando lemos sobre o profundo apreço de Hobsbawm pelo autor, damos-nos conta do Dickens político. Só que a tribuna de Dickens era outra. Para entender sua importância, é fundamental saber que o texto de Dickens era multiuso. Ele não se tornou o mais popular autor do século XIX casualmente: tinha extremo conhecimento de seu público e dava especial atenção às formas de divulgação de seus trabalhos. A primeira forma adotada por Dickens era testar seus textos lendo-os em voz alta. Isto era fundamental por dois motivos: primeiro pelas constantes leituras públicas que o autor fazia e que lhe deram celebridade, e também porque sabia que seria lido em reuniões familiares, hábito comum na época. (Depois, reforça a historiadora Nikelen Witter, “estes leitores debateriam o que foi lido e, especialmente, ouvido. E — desejo expresso de Dickens — olhariam sob outra forma os mendigos que se acumulavam nas estradas e arrabaldes das grandes cidades inglesas”). Em segundo lugar, as publicações vinham em folhetins, então o final de cada capítulo necessitava de uma alta temperatura emocional e de suficiente expectativa para justificar a compra do próximo. Seria totalmente inválida a caricatura de que os livros de Dickens seriam um Criança Esperança misturado com novela das oito?

Sam Weller e Mr.Pickwick num prato vitoriano

Só que com qualidade muitíssimo superior. Dickens era engraçadíssimo e seu Pickwick Papers é tão intensamente cômico que demonstra não apenas a genialidade de Dickens como também o fato de ter aprendido as lições de Fielding e Swift. Mesmo seus livros mais dramáticos contêm fartas doses de humor e, dentre os personagens secundários de seus romances, há tipos inesquecíveis. Personagens como Uriah Heep, Miss Havisham, a esposa do Sr. Micawber, Sam Weller e dezenas de outros povoam sua páginas em cenas absolutamente hilariantes. Quase sempre atuam com a mesma seriedade que um membro do Monty Python atuaria. Aliás, há algo de Dickens nos filmes do Monty Python, principalmente em O Sentido da Vida. A curiosa adjetivação das cenas cômicas é matéria de estudo e os tais personagens “secundários” são tão importantes que, quando Pickwick Papers foi lançado, a recepção do público não foi calorosa no início — Dickens era um estreante de 24 anos — , mas quando apareceu a personagem de Sam Weller, o criado de Pickwick que acompanha as aventuras de seu amo, as vendas do folhetim subiram de 400 exemplares para 40 000! Sam Weller é simplesmente impagável!

O Google mudou seu logotipo no dia dos 200 anos de Dickens em homenagem ao autor (Clique para ampliar)

Então, por que Dickens é tão famoso no mundo inteiro, mas não no Brasil, onde mal tem seus livros editados e traduzidos? Será pelos enredos inverossímeis, cheios de coincidências e reviravoltas? Bem, mas não é isso o que se vê em nossas novelas? Será que Dickens não esconderia demais sua crítica social? Será complicado concluir que o ingrediente base de Oliver Twist e Nicholas Nickleby é a denúncia da condição infantil e da situação de muitos estabelecimentos de ensino? Seria igualmente complexo notar que A Casa Soturna é um romance contra a corrupção e a ineficiência do sistema jurídico inglês, tal como A pequena Dorrit? Será este último lido apenas como a típica história do pobre que enriquece e não como uma violenta sátira ao judiciário da época? Ficam as perguntas. O fato é que Dickens, aos 200 anos de nascimento, é celebrado em grande parte do mundo enquanto agoniza no Brasil.

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O Google homenageou Dickens ontem

E ficou muito legal.

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Aforismos, de Karl Kraus

Não sou nada original: sou mais uma pessoa que não acredita no politicamente correto. Principalmente no âmbito artístico, é algo que não funciona. Fico pensando no que seria uma versão politicamente correta do Monty Python… É possível? Sim, mas perderia toda a graça. O politicamente correto acaba com o humor e muitas vezes destrói a arte. Por exemplo, dois recentes filmes dramáticos, ambos candidatos ao Oscar, viram uma criancice em suas cenas finais em razão do politicamente correto: Tudo pelo Poder, onde a “consciência” do malvadinho recebe uma chamada na última cena, e Os Descendentes, onde os adúlteros são punidos. Esses filmes poderiam até ser muito bons se mantivessem algum ponto de contato com a realidade. Na realidade, sabemos, quase sempre os bons se ralam, dando lugar aos arrivistas. Fico imaginando a versão PC de Lolita, mas deixa pra lá.

Karl Kraus (1874-1936) não pisa na linha que separa o correto e o incorreto, Kraus vive dentro do incorreto de tal maneira que até este comentarista fica meio sem jeito. Os primeiros aforismos deste volume — que tem excelente tradução de Renato Zwick e luxuosa edição da Arquipélago — são um quase só de ataques à mulher. No início, a gente estranha, depois acha engraçada a misoginia de Kraus. Não se trata de hipérboles, ou seja, de  intensificar algo até o inconcebível. É uma misoginia tão pensada, inteligente, antiquada e terrível que apenas pode ser suportada da mesma forma com que se admira Nelson Rodrigues e tantos outros autores que viviam em sociedades que aceitavam a misoginia e o machismo. Para a contemporaneidade, a genialidade de Kraus vem logo a seguir, quando ataca todo e qualquer ser humano e intelectual e jornalista e político. O mau humor de Kraus manifesta-se principalmente contra seu país de adoção, a Áustria. Aliás, a Áustria também é objeto do ódio de outro gênio indiscutível do século XX, o grande Thomas Bernhard. Com efeito, deve ser um país habitado por um povo repugnante, mas produz bons artistas. Kraus, obviamente, era um colecionador de inimigos.

Os aforismos do livro da Arquipélago foram selecionados em três coletâneas que Kraus publicou em vida: Ditos e Contraditos (1909), Pro Domo et Mundo (1912) e De Noite (1919). As coletâneas tiveram origem na virulência que o autor demonstrava nas páginas do Die Fackel (“A Tocha”) — revista que fundou e da qual foi praticamente o único redator durante quarenta anos. Paradoxalmente, Kraus, um dos maiores escritores satíricos em língua alemã do século XX, trabalhava na imprensa, apesar de odiá-la minuciosamente. Odiava como ninguém a estupidez e a ignorância dos jornalistas de seu tempo. Seus temas são a política, a filosofia, a imprensa e o papel do artista na sociedade.

São pequenos textos e frases furibundas e geniais. Seu autor insiste que todos os aforismos devem ser lidos mais de um vez. É horrível ter que dar razão a alguém tão arrogante, mas o fato é que na segunda leitura cada um dos aforismos ganha significado duplo ou triplo. Fazer o quê? Há muito que aprender com as frases curtas de exatidão milimétrica e múltiplo sentido de Kraus.

A seguir, alguns petiscos:

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A relação dos jornais com a vida é mais ou menos a mesma das cartomantes com a metafísica.

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A expressão “laços de família” tem um ressaibo de verdade.

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A vida de família é uma invasão da vida privada.

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Muitos têm o desejo de me matar. Muitos, o desejo de ter dois dedos de prosa comigo. Daqueles a lei me protege.

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As penas servem para intimidar aqueles que não querem cometer crimes.

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Não há criatura mais infeliz sob o sol do que um fetichista que anseia por um sapato feminino e precisa se contentar com uma mulher inteira.

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Eles tratam a mulher como se fosse um refresco. No entanto, não admitem o fato de as mulheres sentirem sede.

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Formação é aquilo que a maioria recebe, muitos passam adiante e poucos possuem.

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Propostas para que essa cidade volte a conquistar minha simpatia: mudança de dialeto e proibição de reprodução.

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Não ter pensamentos e ser capaz de expressá-los — eis um jornalista.

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Preciso estar outra vez entre os seres humanos. Pois neste verão, em meio às abelhas e aos dentes-de-leão, minha misantropia degenerou gravemente.

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Muitos talentos conservam sua precocidade até idade avançada.

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Não tenho mais colaboradores. Eu tinha inveja deles. Eles afastam os leitores que eu mesmo quero perder.

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O que distingue Berlim e Viena ao primeiro olhar é a observação de que lá se consegue um efeito ilusório com o material mais desprovido de valor, enquanto que aqui, na produção do kitsch, se emprega apenaas material autêntico.

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Quando o pecado se atreve a avançar, ele é proibido pela polícia. Quando se esconde, recebe um alvará.

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A ética cristã conseguiu transformar heteras em freiras. Infelizmente, ela também conseguiu transformar filósofos em libertinos. E graças a Deus, a primeira metamorfose não é assim tão confiável.

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A sexualidade mal recalcada causou perturbações em muitas casas; a bem recalcada, no entanto, perturbou a ordem do universo.

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Ao sadio basta a mulher. Ao erotista basta a meia para chegar à mulher. Ao doente basta a meia.

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“Não se permitir mais ilusões”: é então que elas começam.

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Devemos ler todos os escritores duas vezes, os bons e os ruins. Uns serão reconhecidos, e ou outros, desmascarados.

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4 diazinhos

De quinta-feira a domingo, o blog estará na praia, inútil, comendo frutos do mar e banhando-se ao final da tarde. Sim, é o melhor horário. Talvez, entre uma caipirinha e um camarão, escreva uma resenha sobre o belíssimo Ribamar, de José Castello, ou sobre os geniais Aforismos de Karl Kraus. Mas acho que deixarei para depois. O que é certo é pretendo começar a leitura da tradução de Rubens Figueiredo para Anna Kariênina. Durante a viagem, ouvirei Bruckner ou Bach no carro. Na boa, mereço. Na volta, só quero escrever matérias complicadas como essa.

Fui.

Ah, porra, esqueci. A fundamental matéria foi encontrada por Igor Natusch (sim, dois links).

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Anotações sobre Anton Tchékhov

Anton Tchekhov e Liev Tolstói

Publicado originalmente no Sul21 — É um texto antigo que foi bastante revisado para publicação no site

É curiosa a celebridade póstuma alcançada por Anton Tchékhov. Seja na Rússia ou em qualquer lugar do mundo, o escritor está cada vez mais próximo do nível de semideuses de Dostoiévski e Tolstói, só para ficar entre seus conterrâneos. É justo. Não há uma “grande obra” do autor, mas o numeroso mosaico formado por seus contos, peças teatrais e novelas merece lugar entre as maiores da literatura ocidental.

O fascínio de nossa contemporaneidade com o escritor russo não é casual: o realismo, a clareza, o humor, a leveza, a abordagem compreensiva dos personagens, a pouca ênfase a coisas que outros escreveriam cheios de exclamações — ele parece dizer: não te ajudarei, descubra sozinho o que há de importante aqui — , a imaginação para criar cenas e situações significantes, sua visão sem ilusões do amor e a total falta de preconceitos não apenas o permitia transitar por toda a sociedade russa do século XIX como permite que o mesmo aconteça entre os leitores de hoje. Talvez ele não fale a todos da mesma forma, mas há um fato comum citado por vários ensaístas: ele é uma leitura inteligente cuja presença e essência é amiga e irônica. Ou seja, ele vicia.

Tchékhov viveu apenas 44 anos e era médico. Até os 26 anos, publicou 300 histórias em jornais russos, quase todas cômicas. Vivendo em Moscou, era obscuro. Porém, sem que soubesse, estava tornando-se famoso em São Petersburgo, onde tinha numerosos leitores. Isto perdurou até o dia em que recebeu uma carta do severíssimo crítico Grigorovitch:

Os atributos variados de seu indiscutível talento, a verdade de suas análises psicológicas, a maestria de suas descrições (…) deram-me a convicção de que está destinado a criar obras admiráveis e verdadeiramente artísticas. E o senhor se tornará culpado de um grande pecado moral, se não corresponder a estas esperanças. O que lhe falta é estima por este talento, tão raramente conhecido por um ser humano. Pare de escrever depressa demais…

Tchékhov mudou e, sem perder a graça e a leveza mozartiana de seu texto, tornou-se realista. O novo estilo custou-lhe violentas críticas, que acusavam seu “mau gosto” e a utilização de “detalhes sujos e grosseiros”. Ele respondeu: “Pensar que a literatura tem como finalidade descobrir as pérolas e mostrá-las livres de qualquer impureza, equivale a rejeitá-la.”

Rubens Figueiredo, tradutor e prefaciador de O Assassinato e outras histórias faz importantes observações sobre Tchékhov:

No ambiente intelectual russo, o debate só parecia fazer sentido quando tomava formas extremadas. A fama crescente de Tchékhov e a expectativa em torno de seus textos obrigaram-no a defender-se dos mal-entendidos, cada vez mais numerosos.

Os leitores russos se haviam acostumado a tomar os escritores como campeões de credos políticos e religiosos mas, no caso de Tchékhov, esbarravam em textos obstinadamente inconclusivos. Mais grave ainda, suas entrelinhas pareciam indicar que tanto as grandes sínteses intelectuais quanto os padrões de pensamento herdados pelos costumes serviam antes para encobrir a realidade.

O desconcertante é que Tchékhov consegue munir sua prosa de uma sutileza capaz de sugerir outras camadas de experiência, como se a realidade nunca se esgotasse.

E, mais desconcertante para a época:

Para Tchékhov, a religião era moralmente indiferente. Ou seja, a crença, seus conceitos, seus símbolos e rituais eram ineficazes para deter a crueldade e o egoísmo, mas tampouco constituíam suas causas.

E o próprio Tchekhov escreveu, demonstrando uma posição absolutamente moderna, a do escritor que se nega a proferir “verdades”:

Não cabe ao escritor a solução de problemas como Deus ou o pessimismo; seu trabalho consiste em registrar quem, em que circunstâncias, disse ou pensou sobre Deus e o pessimismo.

Indicações de leitura

Há muitos livros de Tchékhov para serem indicados. Como ele era contista, novelista e dramaturgo, há muitas coletâneas e, nelas, muitos contos e novelas repetidas. Vamos começar pelas peças teatrais: As Três Irmãs, A Gaivota, Tio Vânia e O Jardim das Cerejeiras são tão extraordinárias que prescindem dos atores e podem ser lidas como uma novela de diálogos. O extraordinário A Enfermaria Nº 6 está em vários livros, assim como os contos Inimigos, A Dama do Cachorrinho e um conto clássico que os tradutores deveriam reunir-se a fim de estabelecer um nome, pois ele pode se chamar Queridinha aqui, O Coração de Olenka ali, Dô-doce (?) acolá, assim como Amorzinho ou qualquer outra coisa.

A novela A Estepe, curta e genial, narra a viagem de uma criança como uma metáfora da viagem que atravessamos sem saber porque e para quê. A impressão estranha que a novela causa é semelhante a causada pelo filme Olhos Negros de Nikita Mikhálkov, em que Mastroianni recorda “as névoas da Rússia num passeio de carruagem, na infância, há muito tempo”.

O melhor livro talvez seja uma tradução dos contos feita por Bóris Schnaidermann:

A Dama do Cachorrinho e outros contos. Editado primeiro pela Civilização Brasileira, depois pela Max Limonad e finalmentye para Editora 34.

Outros livros:

Contos e Novelas. Edições Ráduga (Moscou). 1987. Um primor de tradução para o português realizada por Andrei Melnikov.
O Assassinato e outras histórias. Cosac & Naify. 2002. Trad. de Rubens Figueiredo.
O Beijo e outras histórias. Círculo do Livro. 1978. Trad. de Bóris Schnaidermann.
A Enfermaria Nº 6 e outros contos. Editorial Verbo. 1972. Trad. de Maria Luísa Anahory.
Os mais brilhantes contos de Tchekhov. Edições de Ouro. 1978. Trad. de Tatiana Belinky.
Lenco Tchékhov. Ensaio e Contos. Ediouro. 2004. Trad.de Tatiana Belinky.

Filmes: há dois esplêndidos filmes de Nikita Mikhálkov baseados “em qualquer coisa de Tchékhov” (palavras do próprio diretor e roteirista): Peça Inacabada para Piano Mecânico (1977) e o famoso Olhos Negros (1987) com Marcello Mastroianni detonando no papel principal atrás da Dama do Cachorrinho.

A opinião de Tolstói

Os personagens de Tchékhov são cheios de boas intenções sobrecarregadas de estupidez, inatividade e finalidade. Tchekhov é moderno em sua concisão, pouca adjetivação e principalmente na recusa em explicar o mundo. Confrontado com as idéias de Tolstói — o qual em seus textos parece ter resolvido todos os impasses da humanidade — , Tchékhov era um apresentador de realidades complexas e insolúveis que habitam uma dentro da outra. Também defendia, uma novidade na época, os efeitos benéficos da ciência e do progresso. Porém, apesar de totalmente diferente, Tolstói apreciava muito sua obra.

Em vida, Anton Tchékhov era razoavelmente conhecido, mas não era uma celebridade. Após sua morte, Tolstói disse: “Creio que Tchékhov criou novas — absolutamente novas — formas de literatura que não encontrei em parte alguma. Deixando de lado falsas modéstias, afirmo que Tchékhov está muito acima de mim”.

Naquele tempo, os contemporâneos não deram atenção a esta opinião. Pensavam que o conde já idoso estava a superestimar o amigo, atribuindo-lhe características acima das que merecia. Passados cem anos, vemos agora que Tolstói não estava tão equivocado. Atualmente, na Rússia, Anton Tchékhov encontra-se ao lado dos grandes clássicos: Púchkin, Gogol, Dostoiévski e Tolstói. E, como dramaturgo, está entre os mais célebres e montados autores mundiais.

As mortes de Tchékhov

Anton Pavlovitch Tchekhov sentou-se na cama e de maneira significativa disse, em voz alta e em alemão: ´Ich sterbe´ – estou morrendo. Depois, segurou o copo, voltou-se para mim, sorriu seu maravilhoso sorriso e disse: ´Faz muito tempo que não bebo champanhe´. Bebeu todo o copo, estendeu-se em silêncio e, instantes depois, calou-se para sempre. E a pavorosa calma da noite foi apenas alterada por um estampido terrível: a rolha da garrafa não terminada voou longe.

Olga Knipper, esposa de Anton Tchékhov.

A morte de Tchékhov no balneário de Badenweiler é uma das mais recontadas da historia da literatura. Parece haver enorme sedução na cena do escritor moribundo, sua mulher, seu médico, o estudante que chegou para ajudar e a garrafa de champanhe. Quem pediu a bebida? O médico ou Tchékhov? A sedução é tanta que o grande Raymond Carver escreveu um conto, Três rosas amarelas, no qual narra a cena, só que cheia de detalhes inventados. Talvez isso tenha nascido da narrativa de Olga Knipper, atriz e mulher do escritor. Em seu relato, a cena é contada com tanto, mas tanto romantismo que não parece verdadeira. O cômico sobre sua morte é que a prórpia Olga narrou a morte do marido várias vezes. De forma sempre diversa…

Faz pouco mais de 100 anos que o fato narrado ocorreu. Tchékhov faleceu em 15 de julho de 1904 em Badenweiler, Alemanha. Tinha nascido em 29 de janeiro de 1860.

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Comentário de: PAULO TIMM | 29 de janeiro de 2012 | 16:29 |Editar

Suplico , por favor, a publicaçao do citado conto:
Raymond Carver -Três rosas amarelas
E, se for impossível, peço que me enviem por email. Fico morrendo de ansiedade para lê-lo. Aguardo paulotimm@hotmail.com

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Comentário de: Celso | 29 de janeiro de 2012 | 17:50 |Editar

Além do Tchekhov, o escritor que está acima de todos, é fundamental conhecer o que pensava o homem Tchekhov. Sugiro 2 livrinhos imprescindíveis, ambos de 2007 e editados pela editora Martins (São Paulo): “UM BOM PAR DE SAPATOS E UM CADERNO DE ANOTAÇÕES – Como fazer uma reportagem” e “SEM TRAMA E SEM FINAL – 90 conselhos de escrita”, ambos baseados em correspondências de Anton Tchekhov.

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Comentário de: Jeferson | 30 de janeiro de 2012 | 0:22 |Editar

Estupenda apresentação. Parabéns. Vou só deixar uma discordância, a título de colaboração. Não concordo com a ideia de ler o teatro do Tchekhov como se fosse novela. Acho que o leitor ganha em salientar as diferentes tarefas dos dois gêneros e em compreender como o autor fez uso dessas diferenças.

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Comentário de: Jéferson Assumção | 30 de janeiro de 2012 | 9:33 |Editar

Parabéns, pelo texto. Sugiro colocar na lista Consejos a un Escritor, com as cartas entre ele e Olga. Há quatro anos, seis amigos me presentearam com os seis volumes dos contos completos de Tchecov. Maravilhoso!

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Como funciona a ficção, de James Wood

Só existe uma receita: ter o maior cuidado na hora de cozinhar.
HENRY JAMES

Esta citação abre Como Funciona a Ficção (232 páginas, Cosac Naify, tradução de Denise Bottmann), de James Wood, e é uma frase muito humilde e realista da parte do autor, pois no final quem decidirá o que será usado na  ficção serão as decisões do autor e de seu editor aliadas à apreensão do leitor, que dirá afinal se funcionou. São coisas realmente muito complicadas de se colocar num manual, pois há toda uma realidade complexa e inapreensível: o ouvido, a música, a qualidade das analogias, o uso dos detalhes, a criação de personagens, os diálogos, o bom uso do discurso livre indireto, o foco, a capacidade de fugir do convencional, etc. Ou quem sabe poderíamos chamar todos este itens simplesmente de bom gosto?

Wood sai avisando logo de cara:

Neste livro, tento responder algumas das perguntas fundamentais sobre a arte de ficção. (…) espero que seja um livro que faz perguntas teóricas e dá respostas práticas – ou, em outras palavras, que faz as perguntas do crítico e dá as respostas do escritor.

Nem tanto, Mr. Wood. As respostas vêm por exemplos, é mostrado o que funciona e tais demonstrações certamente são irrepetíveis — pois qualquer ingrediente alterado tem o condão de mudar inteiramente o sabor e se não fosse alterado teríamos casos de plágio… Desta forma, acho que é demais dizer que dá respostas práticas. (Fico pensando nas oficinas literárias. Como se aprende a fazer ficção? Com algumas instruções sai alguma coisa, mas é possível “formar o ouvido” lendo poesia, como sugere Wood? Ou seria mais eficiente ouvir Bach ou observar os trabalhos gráficos de Goya? Como se forma a sensibilidade, cara-pálida? Ah, não me perguntem. Acho que os “professores” das oficinas apenas podem dar uma melhorada, verificar que o aluno está pronto ou mandá-lo guardar seu dinheiro).

Apesar de ser organizado por assunto, o livro funciona por acumulação, tendo citações reutilizadas. Conhecer a maioria dos livros citados é bom, mas não é fundamental para a compreensão do todo. A primeira parte, “Narrando” trata basicamente do artifício do “discurso ou estilo indireto livre”, onde características dos personagens grudam num texto escrito em 3ª pessoa e quem passa a falar não é mais o autor. Os exemplos vem de Joyce, principalmente dos contos de Dublinenses, onde o irlandês usa e abusa do recurso. É um bom capítulo. Depois, grande parte dos argumentos derivam principalmente de Flaubert, mas também de James, Woolf, Dickens, Dostoiévski, Tolstói, Bellow, Saramago, Philip Roth e Muriel Spark. Há observações excelentes sobre o flâneur, os personagens, os detalhes, a linguagem e o melhor, o último, sobre verdade, convenção e realismo.

Leio estes livros sobre ficção por puro prazer. É como se sentasse com um amigo muito culto e gentil para trocarmos ideias num café. Não tenho a expectativa de aprender. No máximo, a discussão auxilia a organizar os pensamentos, o que já é muito e faz certamente parte de um aprendizado. Organizar o que se sabe É aprender, certamente, e é bom falar sobre literatura e lembrar passagens de livros.  Mas que ninguém leia este gênero de livro ou frequente oficinas na expectativa de que os horizontes se abram. São momentos enriquecedores e agradáveis. Se serão fecundos é outra história.

Leia mais e melhor: Aprendendo como funciona a ficção

P.S. — Há toda uma discussão sobre se Wood é conservador ou não. Não me pareceu sê-lo. O que é correto dizer é que ele parte via de regra do ícone e que cultiva grande amor pelo realismo. As pessoas fazem confusão entre realismo e naturalismo… E, bem, para ser compreendido há que dar exemplos de conhecimento comum, correto? Além do mais, vários autores recentes e muito diferentes entre si são citados. Esqueçam.

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O Grande Livro Doente de Machado de Assis

Memorial de Aires não é considerado um dos principais romances de Machado de Assis. A maioria fica com Dom Casmurro ou Brás Cubas e com o irretocável mosaico de contos. Até compreendo, mas prefiro o delicado Memorial. Provavelmente estou errado, pode tratar-se de simples idiossincrasia, porém, como velho leitor do Bruxo de Cosme Velho, vou tentar explicar minha opinião.

A publicação deste romance-diário ocorreu em 1908, ano da morte do escritor. O tema é quase nenhum. O Conselheiro Aires, que já havia narrado o romance anterior de Machado, Esaú e Jacó, escreve este diário-romance na posição de um mero observador da “ação” – e portanto não na posição de narrador onisciente -, observando as aventuras amorosas dos mais jovens e anotando de forma sedutora também outros acontecimentos a seu redor: amizades, pequenos casos, pequenos dramas, piadas.

O romance perpassa dois anos da velhice do personagem-autor; serenamente, ele leva o leitor com suas observações aleatórias de aposentado. Conta sobre o amor de Fidélia e Tristão, sobre a vida passada como diplomata, sobre leituras ou acontecimentos políticos, tudo sem muita ordem. O livro é quase destituído de enredo, descrevendo o final da existência de alguém muito experiente e perspicaz. O tom do Memorial fica entre a melancolia de quem está velho demais para conquistas amorosas e o bom humor indulgente da experiência. Parece uma crônica leve sem maiores objetivos mas é uma visão bastante amarga da solidão da velhice. Este paradoxo torna o livro irresistível para mim. O que esperar de um velho inteligente, aposentado, sem filhos e nada para fazer? Risonho e falsamente fútil, Aires vai habilmente descrevendo a vida dos amigos Dona Carmo e Aguiar, um casal sem filhos que toma a jovem Fidélia como se fosse sua filha e a vê mudar-se para Portugal com seu amor Tristão. Aires nos mostra a devoção com que o casal espera e recebe cada carta vinda de Portugal; a forma amiga e piedosa – ao mesmo tempo que irônica e crítica – com que Aires aborda o casal é encharcada da mais pura humanidade.

É evidente que Machado está, ao expor-nos Dona Carmo e Aguiar, expondo nostalgicamente a intimidade de sua própria vida com Carolina, a esposa de toda uma vida, recém falecida à época em que o romance foi escrito. Em grande parte, os méritos do livro estão na perfeita e contida descrição de seres tão pouco romanescos quanto o próprio Conselheiro Aires, Dona Carmo, Aguiar, Fidélia e Tristão, que aqui são cuidadosamente emoldurados por um mestre no auge de sua arte.

Talvez eu não tenha convencido você da qualidade do livro ou talvez minha avaliação seja um equívoco; então, para me auxiliar, invoco inesperadamente o depoimento do cineasta François Truffaut.

Truffaut criou a categoria dos Grandes Filmes Doentes. A definição deste tipo de filme está no parágrafo a seguir e reparem como ela serve para o Memorial. Peço-lhes que troquem as palavras relativas ao cinema por outras relativas à literatura. Por exemplo, troquem filme por livro, diretor por escritor, cinefilia por bibliofilia ou bibliofagia, etc. Com a palavra, François Truffaut, o diretor que amava os livros e um de meus heróis neste mundo:

Abro um parêntese para definir rapidamente o que chamo de um “grande filme doente”. Não é senão uma obra-prima abortada, um empreendimento ambicioso que sofreu erros de percurso. (…) Esta noção só pode aplicar-se, evidentemente, a diretores muito bons, àqueles que, em outras circunstâncias, demonstraram que podem atingir a perfeição. Um certo grau de cinefilia encoraja, por vezes, a preferir, na obra de um diretor, seu grande filme doente à sua obra-prima incontestada! (…) Se se aceita a idéia de que uma execução perfeita chega, na maior parte das vezes, a dissimular as intenções, admitir-se-á que os grandes filmes doentes deixam transparecer mais cruamente sua razão de ser. (…) Diria, enfim, que o “grande filme doente” sofre geralmente de um extravasamento de sinceridade, o que paradoxalmente o torna mais claro para os aficionados e mais obscuro para o público, levado a engolir misturas cuja dosagem privilegia o ardil de preferência à confissão direta.

Trecho da crítica de Truffaut sobre o filme Marnie – Confissões de uma Ladra, de Alfred Hitchcock. Retirado de Hitchcock / Truffaut – Entrevistas (Ed. Brasiliense – 1986).

O Memorial é isto mesmo. É um Grande Livro Doente. O ex-diplomata Aires é, certamente, o próprio Machado sexagenário. Tranqüilo, irônico e pessimista, goza sua aposentadoria escrevendo pequenos acontecimentos em seu diário. Nada de romanesco alterará sua existência e ele se compraz na companhia de seus velhos amigos e na observação dos jovens. O ambiente do livro é o mesmo de suas crônicas e até a relativa vergonha de sentir-se atraído por uma jovem viúva é descrita, ao lado do bom senso que o faz aconselhá-la a um casamento com um jovem. Trata-se de um calmo “extravasamento de sinceridade”. Porém… Claro que um livro assim move-se a passos de tartaruga e seu verdadeiro personagem deve ser o texto – no caso uma notável demonstração de virtuosismo literário talvez só repetível por alguém do porte de Henry James. Pode ser que a imobilidade e os gentis saraus de uma velhice esclarecida tenham afastado o público do livro, mas não afastou os loucos por Machado.

Para terminar, uma citação que bem demonstra o espírito de Memorial de Aires:

Em verdade, dá certo gosto deitar ao papel coisas que querem sair da cabeça, por via da memória ou da reflexão.

Machado de Assis, MEMORIAL DE AIRES

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O romancista ingênuo e o sentimental, de Orhan Pamuk

Meu amigo Ricardo Branco conta uma história mais ou menos assim: um dia um leigo pediu para que Albert Einstein lhe explicasse a Teoria da Relatividade. Einstein detalhou-a e o cara não entendeu nada, pedindo nova explicação. Tudo repetiu-se com o cientista facilitando um pouco as coisas, mas o sujeito não entendia. Na terceira ou quarta explicação, o leigo finalmente entendeu, mas então Einstein respondeu: “Bem, mas acho que simplifiquei tanto que o que disse não descreve mais a Teoria da Relatividade”.

Fiquei com esta historinha na cabeça enquanto lia este livro de Pamuk. Quem lê romances há quase quarenta anos sabe que é uma arte complicada, quem consegue enxergar as falhas e discutir os erros e o leque de opções que eles apresentam, acaba por valorizar a arte contida no gênero literário mais popular e que literalmente engole as outras formas literárias por onde passa. Neste O romancista ingênuo e o sentimental (Cia. das Letras, 146 páginas), Pamuk simplifica tanto, é tão brilhante e claro em suas analogias que, durante a leitura, ficava feliz, mas pensando se ele não estava agindo como o Einstein da historinha do Branco.

Olha, eu acho que não. Achei o livro brilhante mesmo. Hesitei muito (dois dias…) para escrever esta curta resenha por pura insegurança. Estava esperando uma segunda opinião. E ontem li algumas listas de melhores livros de 2011. Como sempre faço, fui ler os nomes dos votantes e dei de cara com o de José Castello. Pô, esse eu respeito. Melhor livro estrangeiro de 2011? O ensaio O romancista ingênuo e o sentimental, de Orhan Pamuk, seguido de outros livros de Flusser, Barthes, Macedonio Fernández e Tolstói.

Ok, então! O livro consiste de seis palestras sobre o romance proferidas por Pamuk na Universidade de Harvard. O ritmo é o da conversa, o mesmo utilizado no clássico Aspectos do Romance, de E. M. Forster. A Carol Bensimon, que não leu ainda este livro do Pamuk, me perguntou se eu já tinha lido o Como Funciona a Ficção (How Fiction Works) do genial James Wood. Não, não li. Mancada, tenho que comprar.

Pamuk fala sobre a série de questões que angustiam quem escreve um romance. Planejar ou não? Como esconder o verdadeiro centro (assunto ou discurso) do romance? É mesmo deselegante mostrá-lo claramente? Como um romance cresce e se transforma? (Exemplo: o verdadeiro camaleão Moby Dick — inicia como a vida do mar, vai para a obsessão e termina como metáfora do mundo inteiro). Como utilizar a memória ou a experiência do leitor? E a trama? E o tempo? E as descrições? Claro que não ensina nada e que ninguém vai tornar-se escritor após a leitura, mas reflete sobre os problemas de forma organizada e inteligente. Se quisesse provocar, diria que funciona melhor do que qualquer oficina literária, às quais também não ensinam ninguém sobre como tornar-se escritor e que raramente tem um Pamuk como instrutor…

Indico fortemente a leitura. Mas o livro torna-se ainda melhor se o leitor conhecer Tolstói (principalmente Anna Kariênina, mas também Guerra e Paz), Dostoiévski, Melville, Borges e Calvino. Muito são citados, mas estes são os principais. O estranho título do livro refere-se ao ensaio de Schiller que fala sobre os escritores ingenuamente inconscientes e os sentimentalmente reflexivos.

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Paris: Shakespeare and Company ou Morre George Whitman

Foto: Milton Ribeiro

Publicado com os devidos cortes — feitos por mim mesmo — no Sul21 na última segunda-feira. Copio aqui só para acrescentar algumas fotos mesmo.

Num fim de semana onde os obituários estiveram cheios de celebridades — Christopher Hitchens, Cesária Évora, Sérgio Britto, o Santos, Joãosinho Trinta, Václav Havel, Kim Jong-il — a morte de George Whitman passou quase em branco. Whitman, dono da mítica livraria Shakespeare & Company, localizada na margem esquerda do Sena, em Paris, morreu aos 98 anos em seu apartamento. Ele sofrera um derrame em outubro, mas recusou-se a ficar no hospital, exigindo ser levado para casa, que fica no andar de cima da livraria.

Fazer uma referência a uma livraria de Paris que só vende romances e ensaios literários em inglês pode parecer produto do mais puro elitismo, mas não pensamos ser o caso.

A livraria foi aberta em 1951 e — além de ser um extraordinário sebo e livraria — serve de abrigo a escritores em início de carreira para que tenham teto e/ou trabalho até que terminem seus livros. Lá também ocorrem chás literários e encontros com autores, quaisquer autores.

Whitman nasceu nos Estados Unidos em 1913, Viveu parte da infância na China. Mudou-se para Paris em 1948. Segundo ele, na época, uma bicicleta e um gato eram suas únicas posses. Em 1951, abriu a livraria Le Mistral, rebatizando-a como Shakespeare & Company em 1964, em homenagem a Sylvia Beach, proprietária da Shakespeare & Company original, responsável, por exemplo, pela primeira edição de Ulisses, de James Joyce. Quando falecera, em 1962, Sylvia Beach deixara para Whitman os direitos de uso do nome e livros.

James_Joyce com Sylvia Beach na Shakespeare & Co original (Paris, 1920)
Uma das estantes da livraria que fazem referência a Sylvia Beach | Foto: Milton Ribeiro

Imediatamente famosa no meio literário, a loja virou ponto de encontro de escritores como Arthur Miller, James Baldwin, Samuel Beckett, Anaïs Nin, Lawrence Durrel, William Burroughs, Gregory Corso, Jack Kerouac, Allen Ginsberg e rota turística para os apaixonados pela literatura. No andar de cima da livraria vivia não apenas Whitman e família, mas diversos candidatos a escritores. Reza a lenda que, desde 1964, lá dormiram mais de 40 mil pessoas diferentes entre os livros. O pagamento pela hospedagem era escrever, ler e varrer a livraria. Alguns também atendiam no balcão e na cozinha. Outra lenda diz que Whitman aconselhava a saída de autores que estavam lá há mais de ano…

Whitman viva de acordo com o lema retirado de um poema de W. B. Yeats e que está pintado numa das paredes internas –“Não seja inóspito para estranhos pois eles são anjos disfarçados.”” (tradução de Débora Birck). Durante o final de semana, velas, flores e romances foram depositados na porta da Shakespeare, fechada pelo luto. Bilhetes de homenagens foram colados com agradecimentos e elogios.

Hoje, há prateleiras em torno da citação | Foto: Blog Hipsters & Company

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A Shakespeare and Company é o sonho do bibliófilo. Os livros — normalmente revelantes ou raros — podem ser vistos em toda parte: nas paredes, no meio da loja, nas escadas, em todo canto, sobrando pouco espaço para a circulação. Para completar, no espaço atulhado ainda há alguns locais com cadeiras e bancos para leitura. Também há um piano, sobre o qual pode ser lido um cartaz sugerindo que se toque apenas música erudita ou jazz. Os outros cartazes pedem para que os leitores nunca, jamais sejam perturbados, fato que faz com que o som da livraria seja um complicado contraponto de passos e sussurros. Na escada para o andar de cima, só uma pessoa passa de cada vez. Na verdade, a mais famosa livraria do mundo é apenas um pequeno caos onde se vende livros bem escolhidos, onde há cadeiras confortáveis e onde há a promessa de solidariedade. Nada de mega-ultra-hiper. O teto não é pintado há anos e é difícil imaginar como poderia sê-lo sem a retirada dos volumes. A atmosfera é tão acolhedora que o visitante tem a fantasia de que o conhecimento que está nos livros, sob alguma forma misteriosa, entra-lhe pelos poros quando está na livraria.

A livraria, que já era administrada pela filha de George, Sylvia Beach Whitman, seguirá ativa.

O que há bem na frente da Shakespeare? Ora, a Catedral de Notre Dame, mas, para alguns, há dúvidas sobre quem é mais catedral. Abaixo, mais fotos da livraria de Whitman:

A entrada principal
A porta auxiliar da livraria
O grande homenageado | Foto: Milton Ribeiro
Uma das vitrines que dá para a Catedral de Notre Dame
O caos interno | Foto: Blog Hipsters & Company
Sylvia Beach Whitman e seu pai, George
Do lado direito, vê-se uma nesguinha de porta. É onde morava George Whitman no segundo andar da Shakespeare and Co.
Eu estou fotografando a epígrafe de Daniel Martin, do grande John Fowles
A epígrafe de Gramsci | Foto: Milton Ribeiro
O Dario diz que os livros têm o poder de me deixar quieto. Sei lá, eu SOU quieto!
A localização da Shakespeare em relação à capelinha medieval de Notre Dame
Comparar Notre Dame com a Shakespeare… Piada, né?
Sylvia, a filha. 30 anos. Bonita, não?

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