Três grandes amigos: Luís Frederico Antunes, Fernando Monteiro e Marcelo Backes

1. Estou obtendo minha cidadania portuguesa. É um processo que parece fácil quando lido no papel, mas que se complica numa burocracia inteiramente diferente da nossa. Todos os documentos têm prazo de validade, todos têm de ser reemitidos, inclusive a certidão do nascimento de meu avô, ocorrido no ano de 1900, e o óbito de meu pai. É como se fatos novos pudessem alterar seus conteúdos. A parte chata é esta, a da fria papelada. A parte interessante é a comprovação dos vínculos com Portugal. Valem quaisquer comprovações lusófonas, desde fotografias tiradas em Portugal, associações a entidades portuguesas, interesses sobre a cultura e até depoimentos abonatórios de portugueses. Mostrei as minhas, que penso serem suficientes. Para tanto, é necessário escrever uma carta de próprio punho ao Ministro da Justiça português. Agreguei à minhas justificativas algumas curiosidades, como a árvore genealógica que gerou este desfrutável rebento, o notável e infelizmente falecido blog Cidades Crónicas, do qual fui prefeito por uma época, e o esplêndido depoimento abonatório do professor e doutor em História Luís Frederico Antunes. Conheci-o através da Internet. Fizemos uma bela amizade por e-mail logo após a vitória do Inter no Campeonato Mundial Interclubes sobre o Barcelona. A rede é maravilhosa para se fazer amizades em que os laços advém não da proximidade física, mas das afinidades e das eleições pessoais e ideológicas. Pedi então ao amigo — que antes já me conseguira a certidão de nascimento do meu avô por duas vezes! — que dissesse que não sou Hannibal Lecter, que sou apenas um bom e real português com quatro gerações de ascendentes nas proximidades de Aveiro e de seus ovos moles. A carta abonatória é uma obra de arte.

A quem possa interessar

Atesto por minha honra que Milton Ribeiro, brasileiro de nascimento, é de origem genética e cultural profundamente português. Na realidade, fui o signatário responsável pela pesquisa efectuada no Arquivo Distrital de Aveiro sobre as raizes familiares de Milton. Lembro-me que o seu avô Manuel Martins Ribeiro nasceu em 21 de Fevereiro de 1900, na aldeia do Pinheiro, freguesia de S. João de Loure, do concelho de Albergaria a Velha, distrito de Aveiro.

Mais, ele era sapateiro de profissão e os seus pais (logo bisavós de Milton) eram igualmente gente da terra lusitana. Declaro que sou leitor assíduo do seu caderno digital ( http://opensadorselvagem.org/blog/miltonribeiro ). Os artigos e opiniões aí editados comprovam na perfeição que Milton domina com esmero a língua de Camões e que tem ideias – o que é agradável -, especialmente quando, o que é o caso, são interessantes. Este facto reputo de muito importante na medida em que, nos dias que correm, já vai sendo raro, mesmo para os nados em Portugal.

Finalmente, o facto que melhor indica a sua origem portuguesa é ter um coração vermelho, adepto do glorioso SPORT LISBOA E BENFICA. Aqui, por terras lusas, se diz que quem não é do Benfica não é nem bom chefe de família, nem bom português.

Por tudo isso, EU POSSO ATESTAR QUE MILTON RIBEIRO PREENCHE TODOS OS REQUISITOS PARA SER UM BOM CIDADÃO PORTUGUÊS.

Luís Frederico Dias Antunes
Natural em 1954, em Goa, (antigo Estado da Índia).
Bilhete de Identidade emitido pelo Arquivo de Lisboa xxxxx63
Sócio cativo do Glorioso 39286

Luís, muito obrigado. Novamente.

2. Leiam que bela crônica Fernando Monteiro publicou no último sábado, no JORNAL DO COMMERCIO. Ele estará hospedado em minha casa no início de novembro. Se bem lembro, vem aqui entre os dias 3 e 8 de novembro para a Feira do livro. No dia 7, palestrará na Feira sobre o tema QUEM MATOU O LEITOR?, segundo ele uma espécie de palestra policial. Fernando é outro amigo que nunca vi e que chegou através da rede. Este ateu jura que adora a Internet.

Lembrança de Antonioni

Li, recentemente, o autobiográfico Comincio a capire – de um dos autênticos gênios do cinema, o italiano (de Ferrara) Michelangelo Antonioni. O título do livro revela bem a surpreendente modéstia do artista que achava que “o passado e a vida estavam por se fazer mais entendidos (por ele) somente na velhice”.

Num ano já longínquo, visitei Ferrara – e não me lembro de ter feito associações da cidade senão com a literatura. Para mim, em 1969, Ferrara e suas fumaças se mapeavam, na moderna cultura italiana, muito mais pela família Finzi-Contini – do romance de Bassani – do que pela certidão de nascimento do autor de Blow-up.

Isso foi há quase 40 anos. Teria sido uma boa oportunidade para tentar ver Ferrara com os olhos do grande diretor… mas os meus – e outros olhos inquietos, no pós 68 – estavam então “enevoados”, à sua maneira, pela arrogância da juventude que nunca quer ver nada pelos olhos alheios. Terminada a leitura da autobiografia, tentei rever a imagem do diretor naquela Roma da primavera de 1970: ágil e elegante, aos 58 anos, num restaurante francês da Via Mangili, muito longe da sua cidade e morada agora definitiva.

O restaurante era francês porque G. o escolhera para a nossa piccola extravagância. Minha colega de turma no Centro Sperimentale era filha de um romano e de uma francesa de Montpellier. No final do almoço no La Piscine, a nossa atenção se distraía com a mesa logo ao lado, onde havíamos assistido o diretor Michelangelo Antonioni ser o tempo todo servido com grande solicitude (extensiva às duas senhoras que o acompanhavam e que riam mais do que a minha lisa paciência podia suportar).

O que querem? Era 1970, eu tinha 21 anos – e a minha geração tinha raiva de tudo. Hoje, a pasmaceira não permite que se compreenda jovens como nós fomos, no Rio, no Recife ou em Roma.

O cineasta parecia um homem calmo, sereno. Apenas esboçava um sorriso quando as mulheres riam, talvez mais atento ao jogo da luz enviesada iluminando trutas e outras iguarias nos pratos. “Todos comem pouco quando fumam” – dizia a minha amiga. “Por isso é que ele é tão magro?”

Na dúvida – e antes de pagarmos a conta bem examinada – G. se levantou e, com o largo menu na mão, se dirigiu a Antonioni, para… pedir um autógrafo?! Não acreditei nos meus olhos enevoados, ou não, pelo monte de liras gastas (e não com trutas delicadas). Fiquei “na minha”, mal acompanhando, pelo canto do olho, a acolhida por parte de Michelangelo, o meio sorriso mais uma vez esboçado e o rápido sacar de uma caneta muito grossa – uma espécie de “pincel atômico” – retirada do bolso a fim de assinar, com segurança, na carta do La Piscine. Quando G. voltou, eu perguntei porque lhe interessava o autógrafo daquele “solene amontoador de caixas vazias” (usando de uma definição meio invejosa que nem sequer era minha, mas de Orson Welles, que só admitia o gênio próprio). Ela sabia tanto da minha admiração pelo diretor de Cidadão Kane (e por Godard e Straub), quanto da minha antipatia, naqueles anos, pelo “cineasta da incomunicabilidade”. Talvez porque esse tema me parecesse um luxo no mínimo dispensável, debaixo das botas de 64.

Com o autógrafo de vinte centímetros (e “quilométrica vaidade”, denunciei) na mão, a minha amiga apenas sorriu – ainda mais serenamente do que o Signore que acenaria de volta, para ela, ao sairmos… jovens e imortais na primavera romana.

Faz muito tempo. Eu mudei. E o mundo também mudou, entre cores e cinzas, filmes memoráveis e discursos sinceros sobre a transformação – ainda possível – dos mundos que portamos todos, incomunicáveis.

Eu, pouca coisa mais moço que Fernando, também custei a ser dobrado por Antonioni.

3. Adriana Falcão não tem culpa de nada. Ela enfrentou Marcelo Backes no Jogo 6 da Copa de Literatura Brasileira. Numa boa, levou um vareio. E eu, ocupadíssimo em toda semana passada, também. Marcelo esteve — de quarta-feira à sábado — com a Nina em Porto Alegre e eu os perdi. Mau amigo, liguei para ele só às 15h de sábado, quando o casal já estava mais para avião de volta do que para nós enquanto bar. Lamentável, ainda mais que Marcelo mandou dois e-mails com todos seus telefones, direções e saudades. Todas perderam a validade, menos o número do celular e as saudades, que ficou em mim recrudescida depois de conversamos, alemão. Merda de vida.

Voltando à Copa, Marcelo já está nas semifinais, pois enfrenta o apenas simpático Na multidão, de Luiz Alfredo Garcia-Roza. Dedicamos todo o respeito a nosso adversário teoricamente mais fraco e acreditamos que ele VIRÁ BEM ARMADO. Apesar disso, sabemos da obrigação de ganhar os três pontos para deixar satisfeita a grande massa torcedora aqui presente.

Não conheci o Marcelo Backes através da Internet, mas de um memorável churrasco.

Disparate acadêmico

Ele era um sujeito correto. Nos jantares com amigos, em hipótese alguma pegava o dinheiro dos outros, pagando toda a conta com seu cartão de crédito em data mais vantajosa. Uma vez, para agilizar o pagamento num restaurante lotado, ele pegou um cheque de Bruno e fez o pagamento com cartão, porém, ao ser questionado dias depois sobre o motivo de não ter feito o depósito, respondeu:

— Só vou depositar teu cheque no data de vencimento do meu cartão, claro.

Quando o jantar era em sua casa e algum convidado trazia-lhe uma garrafa de vinho, ele ou a abria logo ou esperava pela próxima oportunidade em que o comensal voltasse. Fazia questão de dividir a garrafa com quem havia lhe dado. Enfim, um gentleman.

Era médico, clínico geral, casado com uma médica da mesma inespecialidade. Trabalhavam muito. Bruno conhecia-os através de sua mulher, também médica, só que urologista. O detalhe é que esta detestava trabalhar. Plantões e chamadas noturnas não eram fatos aceitáveis em sua vida. Então, procurou a tranqüila vida acadêmica desde o início da carreira. Aos pacientes, preferia alunos e pesquisa. Mais fácil.

Então houve um concurso para a Universidade. Bruno, leigo naqueles assuntos, ficou de fora enquanto os três estudavam e se divertiam. As tardes de estudo acabavam em mais jantares, pois a mulher do médico era uma espécie de Babette e, como sói acontecer, as Babettes são generosas. Bruno costumava chegar neste momento e, quando voltava para casa com sua mulher, ela elogiava fartamente o conhecimento, a capacidade e a experiência do casal. Estava aprendendo muito com eles.

Fizeram o concurso e, por uma anedota do destino, os três classificaram-se em posições intermediárias e consecutivas: primeiro a mulher do médico e depois a mulher de Bruno, seguida do médico. Talvez não fossem chamados. O concurso tinha validade de dois anos e eles dependiam de demasiados óbitos e aposentadorias.

Os dois anos estavam passando, alguns médicos-acadêmicos foram publicados no necrológio e outros penduraram os jalecos, mas a fila andava muito lentamente para as necessidades do trio. A angústia era grande, principalmente para a mulher de Bruno, que considerava o concurso fundamental para sua carreira. No final do prazo, houve uma súbita aceleração e a mulher do médico foi chamada perto do prazo fatal. Ela comemorou moderadamente ou, para ser mais exato, privadamente. Enquanto isso, a mulher de Bruno via com desespero os dias esvairem-se sem nada acontecer, ao menos sob sua perspectiva. Mais dez dias e o concurso se tornaria inválido. Ela começou a suplicar para todos os outros professores. Era uma injustiça, logo ela, tinha que entrar, o momento era aquele, queria dedicar-se inteiramente à vida acadêmica. Tinha que.

Convenceu o chefe do departamento que seria importante obter mais um professor para a urologia e ele foi ao Ministério de Educação em Brasília reivindicar a vaga. Contou tal fato para o amigo médico, que lhe pediu uma “força”, uma ajuda. Ela ponderou e decidiu que não era adequado pôr em risco uma vaga que ainda nem existia.

A vaga foi obtida no último dia. E ela telefonou para a mulher do médico:

— O Afonso conseguiu a vaga para mim!
— É mesmo?
— Sim, legal né? Meu Deus, que alívio!
— E o Carlos?
— Olha, eu pedi muito mas não deu.

E seguiram explicações mais circunstanciadas até que a mulher de Bruno comentou — sabe-se lá de onde tirou aquela idéia — isto:

— Sabe que Richard Strauss, o compositor, afirmava que conhecia muito mais teoria, orquestração e prática musical do que Sibelius, mas tinha consciência de que Sibelius era um compositor muito superior? Considerava que era uma questão de talento.

Aquele comentário gratuito fez a mulher do médico silenciar e a conversa morreu estranha.

No dia seguinte, a mulher de Bruno cruzou com o amigo no corredor do hospital. Ele não esperou nenhum cumprimento.

— Aproveitadora! Te ensinei tudo o que sabia sem restrições, passei anos trabalhando para que depois tu aceitasse tua vaga com a maior naturalidade, sem impor condições. Isso foi uma traição para quem te ajudou! Não tentaste fazer nada por mim, sua parasita repugnante arrivista!

A mulher de Bruno chorou dias e dias. Bruno a consolava e refletia sobre o comentário infeliz da mulher e sobre o auxílio solicitado. Ela lhe garantiu: fizera o pedido.

— Tu acredita em mim, né?

Poupou-a de sua opinião. Com o tempo, ela passou a dizer que o ex-amigo era um grosseiro mal-educado e desenvolveu a convicção interna de ter sido injustiçada por ele. Mas cruzava bastante com a mulher do médico no hospital. Fazia teorias. Dizia que eles tinham vergonha dela. Evitavam-na por conta da injúria cometida contra ela. Sentia-se coberta de razão.

Obviamente, os casais nunca superaram o episódio.

Disparate na antesala

Marcos a viu e disse:

– Meu Deus, que horror. Tua ex-mulher está vivendo uma nova juventude tribufu.
– É, não sei o que houve – respondeu Quim.
– Será que ela passou o fim de semana enfaixada?
– Sei lá, acho que ela grudou esparadrapos nas sobrancelhas e arrancou. Mas o que me impressiona…
– O que é?
– Aquela franja mais clara, que deixa o cabelo degradê.
– Horrível.
– Parece um bibelô esquecido numa penteadeira de bruxa.
– Hahahaha… Não, acho que é Koleston em excesso.

Quim observou o amigo com falsa admiração.

– Não esquece que já namorei uma cabelereira – defendeu-se Marcos.
– Tu entende dessa porra?
– Minha mãe dizia que Koleston dava ferida no couro cabeludo.
– Hahahaha…, parece que foi o caso.
– Já pensou a meladeira que ela fez na toalha e no pescoço?
– Não, ela vai no institute.
– Aquilo é Koleston mechas… Hahahaha… O cabelo dela está cor de manga.
– Não diga. É mesmo! Não quero olhar muito. Acho que ela usou Koleston manchas.
– E ela lutou com aquela sobrancelha. Está uma mais grossa do que a que não existe. Por isso, ela jogou aquela franja em cima, mas como a pele dela é oleosa, cheia de furinhos e brilha, não adianta porra nenhuma.
– Hahahaha… É a superfície lunar encerada.
– A sobrancelha que falta deve ter aqueles toquinhos que vão nascendo. Isso por baixo do lápis que passou desesperadamente.
– Hahahaha… Como é que tu conhece tudo isso?
– Ela parece um pica-pau.
– Pica e pau são sinônimos.
– E tu comeste aquilo.
– E tu uma cabelereira.
– Tri-gostosa.
– É, tu ganha. Nem posso invocar a inteligência de minha ex. E a advogada dela? A altona.
– É uma fera. Quando se separou, fez dividirem até os copos e os faqueiros. Olha o jeito que ela olha para o barbudo!
– Saudades da vida sexual?
– Sim, de uma vida sexual que nunca teve. Nada meiga, a coitada.
– Quando fala, parece a Mônica Leal.
– E a tua, chovia granizo quando nasceu.
– Hahahaha… Que duplinha dureza.
– Tenho certeza que tua mulher usa cremes manipulados fora do prazo de validade.
– Para combinar com o Koleston manchas? Hahahaha… Fale-me da roupa dela… da roupa.
– Ela não sabe a idade que tem, pensa ter vinte anos. Mas há um detalhe… Ela tem dois joelhos em cada perna.
– Como?
– Perna magra, joelhão, perna magra, panturrilha de fisioculturista, totalmente anormal mas que ela deve amar…
– E gosta mesmo!
– Viste? Meias pretas, saia curta demais. Mostra as pernas demais… Que são finas.
– E daí?
– Olhe o diâmetro da barriga pouco mais acima.
– Parece Mr. Pickwick de saias. Quatro joelhos.
– Olha, estão te chamando.

A curta primavera da tartaruga

Na semana passada, circulou em Porto Alegre uma engraçada metáfora. Talvez ela tenha surgido em hostes coloradas, mas contou com o apoio gremista. Dizia-se que o Grêmio era uma tartaruga em cima de um poste: ninguém sabia como tinha subido até lá, mas sabia-se que cairia… Ouvi a piada ser contada por muita gente, colorados e gremistas. Parecia haver um consenso sobre a queda da tartaruga. E ontem ela caiu feio.

Foi 4 x 1 ao natural, com direito a gol antes dos cinco minutos de jogo e placar construído no primeiro tempo. Tite entrou em campo com aquela escalação cautelosa de três volantes. Estranhamente, este tipo de escalação parece favorecer a liberdade dos meias de ligação adversários. Vejam o golaço de Tcheco! Ele atravessou o campo, fazendo o mais belo gol do jogo, tendo enfrentado em sua arrancada apenas um jogador: Guiñazu. Aliás, Tcheco parecia ser o único com algum élan e categoria no time do Olímpico. O resto era um amontoado de equívocos: Pereira e Perea entraram em campo lesionados, o primeiro foi substituído a dez minutos e o outro no intervalo; Marcel e Perea formavam um ataque de asma; a saída de bola pelo lado direito com os péssimos Paulo Sérgio e Léo não funcionou, claro; e Celso Roth, após a expulsão de Tcheco e perdendo o jogo de 4 x 1, optou por preservar seu emprego abdicando de atacar. Uma tragédia. Uma tragédia maravilhosa para nós.

Enquanto isso, víamos D`Alessandro, Guiñazu e Alex triturarem o meio de campo defensivo do Grêmio. Foram inúmeras as oportunidades em que esses três e mais Nilmar chegaram tabelando aos três zagueiros de Roth. A atuação de D`Alessandro foi tudo e mais do que desejaríamos. Seu chute no primeiro gol foi espetacular e… Bem, foi um chocolate lindo de se ver.

Com efeito, a tartaruga caiu e o vento que a empurrou nem precisou ser muito forte.

Há oito rodadas, estávamos 18 pontos atrás do Grêmio; hoje, a diferença é de oito. OK, o Grêmio encarou a realidade, mas é indiscutível que estamos jogando mais.

Confessando o preconceito (Tertulha Virtual – Tema: Solidariedade)

Este blog participa hoje pela segunda vez da Tertúlia Virtual de cada dia 15, criada pelo grande Eduardo Lunardelli do Varal de Idéias e que propõe este mês o tema Solidariedade.

Uma vez, o Mauro Castro, do Taxitramas, publicou uma crônica chamada Confessando o Preconceito em sua coluna no Diário Gaúcho. Como sempre, ela também foi publicada também em seu blog. Sua leitura fez com que um caso análogo, ocorrido comigo na pior das circunstâncias, me viesse à memória.

A seguir, conto o meu caso e, logo depois, copio a crônica original. O Mauro é meu amigo e uma pessoa conhecida e querida de Porto Alegre.

Confessando o preconceito II

Eu estava no velório de meu pai, em pleno 11 de dezembro de 1993, o dia mais triste que passei até hoje. Na noite do dia anterior, encontrara-me casualmente com meu pai no supermercado. Eu sempre fingia esbarrar nele ou ele em mim, pelas costas; era apenas um dos muitos rituais que mantínhamos. Depois do choque, ele riu e me mostrou um monte de CDs que tinha recém comprado. Estava alegre, bem.

Às 6h da manhã, o telefone toca. Minha mãe diz que ele está caído no banheiro, que era para eu vir correndo, que fizera respiração boca a boca e que a Unimed e minha irmã, que é médica, estavam chegando. Nada resolveu. Ele estava perfeitamente reto no chão, pois não na verdade não caíra, devia ter-se deitado esperando que a dor diminuísse. O primeiro e fulminante enfarto.

Durante o velório, pouco antes de ser levado no caixão, fui me despedir dele. Dei-lhe um beijo. Era um sábado quente, mas ele estava estranhamente frio; só naquele momento concluí que ele não lembrava mais de mim, que não tinha mais suas vivências de 66 anos e nem as de ninguém, que tudo tinha terminado para ele. Fui chorar junto à minha família quando ouvi um amigo dizer indignado, referindo-se a algo que acontecia atrás de mim:

– Mas o que é isso?

Virei-me e, entre lágrimas, vi um mendigo todo esfarrapado caminhando em direção a meu pai. Pensei “que merda, ainda isso agora!”.

Fui para junto do caixão pelo outro lado, encarando de forma hostil o homem sujo de uns 40 anos, calculo. Não disse nada, mas ouvi:

– Eu era amigo do doutor. Ele sempre brincava comigo e me dava alguma coisa na rua – disse ele, gentil e comovido, olhando-me nos olhos.

Não havia nada melhor a fazer do que articular algumas palavras agradáveis, convidando-o a ficar à vontade.

Confessando o preconceito, por Mauro Castro

Eu estava no ponto, com o banco do táxi reclinado, quando, entre um cochilo e outro, vi um mendigo vindo em minha direção. Ele vinha acompanhado de um cachorro, e trazia nos lábios aquele sorriso preparado que todo o pedinte usa ao fazer uma abordagem. Mais um que vai me pedir uma moeda para interar o dinheiro da cachaça – pensei.

Sentindo que seria achacado, ainda tentei fingir que estava dormindo, mas o mendigo, decidido, bateu no vidro do táxi, obrigando-me a abrir a janela.

Quando eu pensei em abrir a boca para dizer que não tinha nenhum trocado para dar, o homem falou:

– Acho que não sou o primeiro nem serei o último a lhe pedir isso…- e fez uma pausa, como quem procura na cabeça as palavras certas.

Eu ainda pensei em aproveitar aquela pequena pausa para poupar-lhe o discurso, mas quando comecei a balançar a cabeça negativamente ele continuou:

-…mas o senhor poderia me dar um autógrafo?

Barbaridade, por essa eu não esperava! De imediato improvisei um sorriso, na tentativa de disfarçar minha cara de abobado. Acho até que consegui. Bem feito pra mim, eu que sempre reclamo do preconceito que o taxista sofre, acabei tomando nos dedos.

No papo que se seguiu, descobri que meu insólito fã é leitor eventual do Diário Gaúcho, que ele cata no lixo reciclável. Disse que minha coluna é a sua preferida.

Para não ficar muito feio, dei-lhe um exemplar do meu livro, com uma caprichada dedicatória. E escrevi esta confissão, digo, crônica, que talvez ele leia no lixo da semana que vem.

As Olimpíadas de Pequim, seus narradores e circunstâncias

De quatro em quatro anos, temos a chateação olímpica. Hoje pela manhã, já tivemos Galvão Bueno substituindo o jornal matinal, que já não é grande coisa, mas é mais variado. Galvão, normalmente desinformado a respeito de tudo o que não seja Fórmula 1 (*), narrava o jogo de futebol feminino entre Brasil e Alemanha, que acabou em 0 x 0. Uma droga. Francamente, é um período frustrante para o consumidor de esportes. Aquele monte de modalidades, cada uma exigindo conhecimentos que nossa imprensa não domina e nem procura aprender é das coisas mais lastimáveis, apesar da comicidade involuntária que às vezes surge. O lutador cai, o locutor grita “ippon!” ou qualquer palavra que saúde o homem que permaneceu em pé, mas o juiz dá a vitória para quem está no chão… Uma desgraça. O judô e uma série de esportes são coisas para especialistas, não podem ser descritos por neófitos. Outro fato desagradabilíssimo é a oferta nauseante de esportes inteiramente diferentes entre si. A gente está vendo as eliminatórias dos 800 m rasos e a TV corta para apresentar a sensacional final do pólo aquático, onde só se vêem os jogadores do peito para cima… Uma beleza. Mas o ápice visual é o tiro ao alvo, esporte especialmente televiso, onde não se vê absolutamente nada dinamicamente, só se ouve um estampido e vê-se um furo num pedaço de papel. Ou não.

Como se não bastasse, esta Olimpíada traz junto de si a questão da falta de liberdade na China, porém, como os EUA e todo o mundo gostam do comércio com a China não se falará muito em Direitos Humanos. Já sobre o Tibete… Ai, que saco! O mundo parece subitamente obstinado em recriar um país teocrático. O Ocidente vê o Tibete como uma maravilha localizada no telhado do mundo — quase saindo para fora –, que seria governado por monges bonzinhos, não fosse o malvado governo da China. OK, sou sensível àquilo que tem relação à identidade cultural de um povo, mas só há problemas no idílico Tibete da China? E alguém acredita mesmo no Nirvana representado por uma sociedade dedicada à paz e à sabedoria mesmo que a história do Tibete só nos mostre matanças, Dalais Lamas apoiados pelo exército chinês e um feudalismo recente apoiado em milhares de servos e escravos? Sim, escravos! Sim, uma teocracia brutal. No Tibete dos anos 50, o escravo que roubasse uma ovelha receberia a punição de ter seus olhos vazados e uma das mãos mutiladas… Sim, os Dalais Lamas são bons e nos mostram uma filosofia de vida super, só que do ponto de vista medieval.

A vereadora e candidata à prefeitura de São Paulo Soninha Francine (PPS-SP), a Soninha da MTV, da ESPN e da Folha, é budista e já escreveu sobre o Tibete, depois de ver o filme de Annaud. É impossível discutir com quem só vê pureza, elevação e altos conhecimentos — de auto-ajuda? — nos Dalais Lamas. É óbvio que lá ocorreu um genocídio e que hoje a China tenta destruir a cultura do país à fórceps, o que não entendo é esta mania de Tibete. Por que não a Chechênia ou o Leste do Congo? E os palestinos que foram retirados de suas terras por um inimigo que exibe-se como vítima, que é mais popular no Ocidente e que chama de anti-semita quem fique indignado com as mortes palestinas? Bem…

Voltemos à chateação do evento multi-hiper-esportivo. OK, um homem vai lá e dá dez tiros na mosca. Aplausos e medalha de ouro para o homem de boa mira. Observemos o vôlei e comparemo-lo com o homem dos tiros. No vôlei, são disputados muitos jogos que envolvem um sexteto e mais seus reservas. Há fases classificatórias, pontos decisivos, um estresse espetacular e, no final, a equipe de verde a amarelo ganha o torneio. Aplausos e uma medalha no quadro geral. Uma medalha? A mesma do homem de boa mira que nem suou muito para acertar seus tirinhos de brinquedo? Sim. Eu, se fosse do Comitê Olímpico Brasileiro, daria um monte de dinheiro para o boxe. Sim, o boxe tem categorias aos montes, distribui um monte de medalhas e como a violência tem sido uma especialidade de algum destaque em nosso país, esta poderia ser direcionada para algo mais sistemático. Já pensaram quantas medalhas viriam? Outra providência seria criar e treinar algumas equipes de badminton. A gente poderia destinar o Acre, o Piauí e Tocantins como pólos do badminton nacional. Rio Branco, Teresina e Palmas viveriam o esporte e, de quatro em quatro anos, seriam manchete nacional. (Ora, se é para escrever bobagens preconceituosas, também sei!).

Então não falemos mais em Olimpíadas como um todo, tá? Falemos talvez de forma individual em alguns torneios interessantes, como vôlei, futebol, tênis e… esgrima? E esqueçam essa coisa de boicote. Só aceito boicote se derem uma paulada na China, outra em Israel, outra na Rússia, etc. OK?

Fazendo uma análise dos atletas da competição, achei interessante esta brasileira:


É a Jaqueline Carvalho, do volei. Ah, e a Ana Ivanovic estará presente!

(*) Está todo mundo tirando o maior sarro da minha cara porque eu pensava que o Galvão entendia muito de F1. Na verdade, eu é que não entendo patavina do dito esporte e fui enganado pelo homem do “Bem, amigos”. Peço desculpas pela ignorância crassa.

Bloomsday

Agora, na volta da UTI (ver post abaixo) lembrei que hoje é o Bloomsday.

Desesperado para unir-me à comemoração, faço meio que uma transcrição — com muitíssimas alterações — do texto da Wikipedia.

O Bloomsday é um feriado comemorado em 16 de junho na Irlanda em homenagem ao livro Ulisses, de James Joyce. É o único feriado em todo o mundo que um país dedica a um livro de ficção, excetuando-se a Bíblia.

O Bloomsday é festejado pelos amantes da literatura em qualquer lugar ou língua. Trata-se de uma iniciativa dos leitores de Ulisses e admiradores da literatura de Joyce. Anualmente, eles relembram os acontecimentos vividos pelos personagens de Ulisses por dezenove ruas da cidade de Dublin.

James Joyce

Ulisses relata a “odisséia” do personagem Leopold Bloom durante 16 horas do dia 16 de junho de 1904. Há controvérsias sobre quando o Bloomsday começou a ser comemorado. Alguns especialistas indicam 1925, três anos após o lançamento do livro, a década de 1940, depois da morte de James Joyce, enquanto a hipótese mais aceita indica é que foi em 1954, na data do quinquagésimo aniversário do dia retratado em Ulisses.

Joyce escolheu o dia 16 de junho para ser imortalizado em sua obra porque foi nesse dia que manteve relações sexuais com sua futura companheira Nora Barnacle, à época uma jovem virgem de vinte anos, apesar de a imprensa irlandesa publicar que nesse dia eles apenas “caminharam juntos” pela primeira vez. Na verdade, Nora teve medo de completar o coito e o masturbou “com os olhos de uma santa”, como Joyce relatou em uma carta em que relembrou o acontecido.

James Joyce Piano

É sempre bom lembrar aos tementes a Joyce que Ulisses não é apenas aquele livro de erudição quase inalcançável que afasta algumas pessoas, o romance também é divertidíssimo e perfeitamente compreensível. As minúcias e a complexa teia de referências são importantes, mas podem permanecer semi-entendidas sem esfacelamento de sua essência. Prova de que o mais puro ludus nem sempre está associado à compreensão cabal.

Hoje é o dia de comemorar o duro, engraçado, divertido, pornográfico, sexual e erudito livro de Joyce. Lembremos de Leopold Bloom, de sua mulher Molly, de Stephen Dedalus e de Buck Mulligan. (Lembro agora do final absolutamente arrepiante de Ulisses.) Era isso.

P.S.- O Odisséia Literária, de Leandro Oliveira, faz, como sempre, a comemoração mais completa e adequada.

Mahler e o Gordão da H8

Mahler e o Gordão da H8

Em 2003, a Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (OSPA) apresentou a Sinfonia Nº 2 de Mahler, “Ressurreição”. É uma obra para 200 músicos, entre instrumentistas e coral. O pequeno palco do Teatro da Ospa não comportava adequadamente toda esta gente mas… o que fazer? Além disto, a Ospa não dispunha de músicos suficientes para executar a obra — que exige 10 trompas, 8 contrabaixos, 8 trompetes, 6 trombones, 4 percussionistas, enorme coral, etc. — mas o que fazer senão ir buscar músicos nas orquestras de São Leopoldo, Caxias e Blumenau? O que não dava era ficar sem a Ressurreição! Todo este lindo e idealista esforço foi recompensado pela lotação completa do teatro — o que provava, pela undécima vez, que o público não quer ouvir somente musiquinhas ligeiras e indulgentes.

Mahler foi o maior regente de seu tempo e tudo o que ele não tinha era indulgência para com seus músicos e público. Compunha música belíssima e de complexidade acima da média. A orquestra ora é tratada convencionalmente (tocando em grupos de instrumentos), ora os músicos são pinçados individualmente ou em pequenos grupos para executar solos nada triviais. Este contraste entre orquestra normal e orquestra rarefeita é fundamental na música de Mahler e é um suplício para o músico despreparado, desatento ou nervoso. Numa palavra, Mahler é difícil, mas vale o esforço.

Chegamos ao Teatro e fomos para nossos lugares. Todos os amigos que encontrei estavam felizes com a perspectiva daquilo que aconteceria nos 90 minutos seguintes. Sentamos no mezanino: meu filho Bernardo no I10, eu no I12, Claudia no I14 e nossa amiga Daniela no I16. Quando a música começou, o Gordão que estava sentado à nossa frente, no H8, começou uma luta contra seu guarda-chuva. Não sabia onde colocá-lo, e ele e sua esposa Gordona, sentada no H6, começaram a conjeturar em voz alta qual era o melhor lugar para a geringonça, enquanto a mesma batia nas cadeiras, fazendo concorrência com a percussão mahleriana. O trabuco, após ser colocado entre duas cadeiras da fila em frente (!), repousou. Já a dupla, não. Acho admirável que um casal ainda tenha assunto depois de 30 anos de casados, mas não seria melhor procurar um restaurante para conversar? O Bernardo, que tinha 12 anos, começou a me cochichar:

— É a baleia falante…

E, depois de alguns minutos:

— Pai, tu sabias que as baleias podem cantar? Ainda bem que estas só conversam.

Algumas crianças têm um limiar de irritação bem alto, é o caso dele. O mesmo não se pode dizer da Claudia, que, à minha esquerda, lançava olhares furibundos para o Gordão. Já eu apenas suspirava audivelmente a cada reinício de conversa. Porém, a música era tão bela que nossa alegria foi retornando e o ódio ao Gordão foi se transformando em ironia. Numa das inúmeras pausas que Mahler impõe à orquestra, o Gordão perguntou intrigado à Gordona:

— Ué, parou?

A certamente impagável resposta da Gordona foi abafada pela orquestra. Uma pena!; mas, em determinado momento, aconteceram coisas que desestabilizaram o Gordão. Para que vocês entendam, é necessária uma explicação: os dois últimos movimentos da sinfonia propõem-se a fazer uma representação exterior (se bem que, como Mahler dizia, tudo era representação interior…) de nada menos que o Dia do Juízo Final e da Ressurreição dos mortos. Para tanto, o autor manda alguns instrumentistas (trompetes, trompas, percussão) para fora do palco. Enquanto saíam, o Gordão observava:

— Ué, não tão gostando? Já vão embora?

Mahler

Não, meu caro amigo. É que de lá, dos bastidores, eles iniciarão um conflito fantasmagórico com a orquestra que está no palco. Quando a orquestra do palco executar o suave tema da redenção, dos bastidores virá o som das trompas e da percussão executando o que Mahler disse representar “as vozes daqueles que clamam inutilmente no deserto”. Este trecho fez com que o Gordão levasse seu corpo para a frente, a fim de observar bem o fenômeno. Falou para sua mulher que não sabia quem estava tocando. OK. Só que logo depois começou a marcha dos ressuscitados no Juízo Final. Em meio a este tema, as trompas e os trompetes que estão lá atrás nos bastidores — representando agora a enorme multidão de almas penadas –, enchem o ar com seus apelos vindos de todos os lados do palco. Aquilo foi demais para o Gordão. Ele se virou indignado para a Gordona e afirmou:

— Não é possível! Tem gente ensaiando lá fora! No meio do concerto!

Não foi possível conter o Bernardo. Mesmo tapando a boca com a mão, todos os que estavam perto ouviram sua risada.

Apesar disto, foi uma noite inesquecível. A OSPA, naquela noite com Isaac Karabitchevsky, esteve muito bem. Tanto que guardei os ingressos com um recadinho atrás: “Bela noite. Não esquecer do Gordão da H8 e de sua Gordinha da H6”.

O Tcheco

Era uma manhã ensolarada no centro antigo de Verona, na Itália. Estávamos, eu e algumas amigas, na parada de ônibus. Íamos para a estação pegar o trem com destino a Padova. Tinha 20 anos, havia chegado do Brasil há pouco tempo e não conhecia bem a língua. Fazia cursos durante a semana e aproveitava para viajar em fins de semana como aquele.

Foi quando um homem elegante de uns 40 anos, de óculos escuros como nós todas naquela manhã luminosa, me abordou. Estranhamente, segurou meu braço — será que é o costume daqui? — e me pediu para lhe informar quando chegasse o ônibus para Porta Vescovo. Pensei logo tratar-se de uma desajeitada abordagem galante; não gostei, fiquei um pouco irritada. Afinal, será que ele mesmo não poderia ler? Sabia que os europeus adoravam brasileiras e eu – mesmo sendo de origem italiana – tenho a tal pele olivastra, aquele tom moreno claro que eles amam. Era o Dia de Santo Antônio, o santo casamenteiro, e minha avó, devota do santo, tinha-me feito prometer que iria em seu santuário no dia da festa. Eu, diga-se de passagem, tinha ido para a Itália me recuperar de uma grande desilusão amorosa e estava arredia a qualquer contato com o sexo oposto. Mas por que aquele homem bonito iria me pedir logo aquilo? Por que não entabulou outro tipo de conversação? Tratei de me afastar.

Aproximei-me de uma de minhas colegas e disse:

— Que coisa estranha…
Lui è cieco (pronuncia-se tcheco) – respondeu-me Ornella.

E daí? Grande coisa, pensei comigo, ele é tcheco, eu sou brasileira. Será que os tchecos — mesmo os que falam um italiano perfeito — são idiotas? Que preconceito contra os europeus do leste…! O que dirão de mim, uma brasileira? Será que o fato do tcheco ter sido alfabetizado em cirílico o atrapalharia com o alfabeto ocidental? Porém, para ter aquele italiano sem sotaque, não teria ele antes aprendido a ler? Quando o ônibus aguardado chegou à parada, Ornella indicou-lhe delicadamente.

Fiquei pensando naquilo e questionei minhas amigas se elas achavam que uma pessoa que fala perfeitamente o italiano, mesmo sendo um tcheco, não poderia lê-lo. Elas me olharam desconcertadas e depois explodiram em risadas.

Só depois soube que Cieco era cego e não tcheco.

Esta história foi escrita a pedido da Tchela e publicada em 2003 no Repórter Saci, um site dedicado à inclusão social e digital de deficientes físicos. A história e as circunstâncias são reais.

Puro fingimento

Acho que tive febre hoje, estou gripadíssimo. Todos os anos tomo aquela vacina contra a gripe; sempre me dizem que nos primeiros dias podemos arranjar uma, depois é difícil. Nunca tinha me acontecido. Vacinei-me sábado e hoje estou uma ameba. Neste momento, por exemplo, finjo escrever este post. Sob esta janela do Windows em que lhes escrevo, há uma tese de uma amiga – de PHD, rapaz, te mete! – que estou fingindo corrigir. Faço isto por puro prazer (ela escreve muito bem, não há correções a fazer, só frases que talvez pudessem ser mais bonitas e que são reformadas, ou não, durante divertidos telefonemas); em outra janela, há um extrato bancário meio apavorante; ainda em outra há um trabalho que devo finalizar a fim de tornar melhor a janela citada anteriormente e há também o Outlook Express com várias mensagens a responder. Tudo meio parado, pois há uma beterraba operando o micro.

Fora do micro, outras janelas me acenam. Tenho que resolver algumas coisinhas chatas que empurro de um dia para o outro – esta é uma janela que está há dias minimizada. Permanecerá assim. Tenho que pegar um filme que mandei duplicar para um amigo de Recife. Faço amanhã sem falta. O OPS me pede atitude e meus filhos dizem-me mudamente que deveria dar-lhes atenção de maior qualidade. Ou não, não sei bem. São adolescentes, sabe? Que paranóia, dou-lhes sempre enorme atenção…

Ademais, devo estar vendo coisas. Não me parece real este chapéu visto no blog da Leila. Vocês também o vêem? Parece-lhes normal? Dizem que ela foi assim na estréia de Sex and the City, o filme, mas não pode ser verdade. Preciso de algo que baixe minha febre, devo estar convulsionando.

Sarah Jessica Parker

Quando as pernas (todas) e os decotes (nem todos) desaparecem

Tom Jobim cantava as águas de março que fechariam nossos verões. Eu mentiria se as cantasse em Porto Alegre, pois março e abril foram quentes e parcos em chuvas. Foi uma seqüência de dias lindos, os tais dias lindos do mais puro azul que Drummond dizia acontecerem na segunda metade de abril.

São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração.

TOM JOBIM em Águas de Março – Grande autor, péssimo meteorologista.

Acontece em abril, nessa curva do mês que descamba para a segunda metade. Os boletins meteorológicos não se lembraram de anunciá-lo em linguagem especial. Nenhuma autoridade, munida de organismo publicitário, tirou partido do acontecimento. Discretos, silenciosos, chegaram os dias lindos. E aboliram, sem providências drásticas, o estatuto do calor.

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE em Os Dias Lindos – Grande autor, razoável meteorologista

Drummond tem razão, o estatuto do calor está abolido, mas no segundo dia de maio caiu o mundo em forma de chuva. Dirão vocês que não importa, que Drummond é um dos picos da evolução humana e que a culpa deve ser do aquecimento global. OK, sou simpático a qualquer argumentação que enalteça o itabirano, porém lamento dizer que minha contestação aos dias lindos vai além. Saúdo-os ao mesmo tempo que lamento as perdas.

Hoje fui ao centro da cidade. Acostumei-me a caminhar pelas ruas quentes vendo as pernas e decotes das gaúchas. Ficava feliz com a crescente e elegante ousadia daquelas que mostram sua boa forma, suas belas formas, seus bronzeados e seus seios remodelados ou originais. Também apreciava a classe das mulheres que exibiam o que tinham de melhor, escondendo sob panos coloridos o indesejável, o inevitável, o irremediável ou o inexorável. Sou um admirador das artes femininas. Só que hoje o panorama era outro. Os decotes estavam mais fechados, as pernas haviam quase sumido e o colorido das roupas tendiam à diluição. Viram? O dia lindo e seus dezoito graus matinais derrubaram a libido do caminhante.

Mas quem viverá seu qüinquagésimo inverno nesta cidade, sabe que este é um fenômeno sazonal e logo nós, os homens, estas criaturas tão visuais para com o outro sexo, iremos nos readaptar. Ficaremos excitados apenas com um belo rosto e pelo prenúncio de um tornozelo. Conheço alguns que enlouquecerão por um mero salto alto. Pior, há os que abraçarão suas mulheres e amigas apenas para sentirem o aroma do perfume que acompanhará o ar expulso de suas peles pelo abraço. Voltaremos a adivinhar as formas sob as roupas e teremos vontade de levar em nossos carros as mulheres encolhidas nas paradas de ônibus. (Tratar-se-á da mais desinteressada e solidária gentileza.)

Drummond esquece-se de dizer que os dias lindos são o prenúncio de uma época em que o espírito vencerá a observação, em que a cogitação precederá o fato, em que os cobertores serão os companheiros mais adequados a quaisquer primícias e que serão jogados longe apenas durante os clímax. Os dias lindos nos fazem lembrar que, daqui seis meses, haverá uma primavera onde as flores, os plátanos, os guapuruvus e as mulheres reapararecerão. Deslumbrantes.

Porém, o leitor atento que há dentro de mim bate em meu ombro a fim de chamar minha atenção. Diz ele que Drummond vivia no Rio de Janeiro, que lá as pernas e decotes nunca desaparecem, que este é um fenômeno gaúcho, subtropical e que não tenho razão em reclamar do poeta. Acabo esta crônica fazendo tamborilar os dedos da mão direita sobre a mesa. Um por um, repetidamente. É o movimento característico da contrariedade do vencido.

O OPS complica a vida dos blogueiros

Obs.: Assunto de Interesse Geral, seja você blogueiro ou não.

O Pensador Selvagem, recentemente adquirido pela Google, criou um novo método de nos avisar quando recebemos comentários em nossos blogs. Nada daqueles contadores e e-mails mal formatados. O novo produto alerta imediatamente o blogueiro da chegada de um comentário, esteja onde ele estiver. É o OPS, a New Comment Arrived! Trata-se de um microrreceptor que é inserido sob nossa pele – Under Your Skin, diz a propaganda, obviamente tendo ao fundo a música de Cole Porter. Quando chega um comentário, o receptor avisa o blogueiro através de uma leve descarga elétrica. Isto na Versão Básica, porque na Versão Plus são oferecidos mais recursos. Além de um exclusivo friso lateral no receptor, podemos configurar o equipamento para interpretar o conteúdo das mensagens. Os primeiros testes foram realizados no Brasil e revelaram-se um sucesso técnico. Junto com a Lulu, o Marconi, o Grijó e o Felipe (o Biajoni queria pôr o aparelho noutra região do corpo e foi rejeitado pelo colegiado de psiquiatras), participei da equipe de testes e hoje possuo um destes aparelhos fixado na axila. No começo, tudo funcionou à perfeição, principalmente porque nós e nossos leitores tínhamos ciclo biológico semelhante. Afinal, morávamos dentro do mesmo fuso horário e normalmente dormíamos e acordávamos aproximadamente juntos. Toda a equipe recebeu a Versão Plus do OPS, a New Comment Arrived! e, quando percebíamos um pequeno choque no sovaco, corríamos ao primeiro local info-incluído e abraçávamos o carinho do comentário simpático ou elogioso. Passamos a denominar este aviso de “choque amigo”. Porém, quando o choque era mais forte e longo, íamos furibundos responder à discordância ou ofensa. Tais descargas eram raras, pois os blogueiros costumam ser de natureza lhana. Os problemas começaram quando os blogueiros portugueses, afetivos e educados mas com fuso horário diferenciado, começaram a nos acordar em circunstâncias extremamente matinais. Isto nos impedia de completar nosso sono adequadamente; porém, como a maioria da equipe de testes era insone por natureza, só o de vida mais rotineira, eu, ficou incomodado. A crise só estourou quando um blogueiro de Goa começou a fazer repetidas visitações, sempre acompanhadas de comentários maldosos. Com seu disparatado horário indiano e suas observações de hostilidade e violência inauditas, sempre escritas num terrível português arrevesado, ele começou a torturar repetidamente toda a equipe de testes. A cada intervenção do homem de Goa, o aparelho fixado sob minha axila aplicava-me contundentes choques, proporcionais ao grau das ofensas presentes no comentário, demonstrando o perfeito funcionamento do OPS, a New Comment Arrived! Creio que vocês possam imaginar o grau de perturbação e os paroxismos de ódio assassino a que cheguei. Mas houve algo pior que fez tudo degringolar: foi o momento em que, avisados pelo homem de Goa, blogueiros dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa, também conhecidos como PALOPs, descobriram o teste e começaram a nos dar choques em novos horários. Nosso desespero chegou a tal ponto que, transtornados, perdemos inteiramente a elegância e passamos a atacar os africanos com frases racistas. A combinação entre piadas de português e piadas de negros tornaram a experiência uma letal tour de force do politicamente incorreto. Se acrescentarmos a isto nosso cansaço, vocês podem imaginar o desvario geral. Apesar disto, o OPS confirmou o lançamento do produto e espera que um grande percentual de blogueiros o adote. Uma rede de hospitais psiquiátricos está fazendo a comercialização, instalação e manutenção dos receptores. Os mesmos oferecem, dentro do pacote promocional de lançamento, apoio médico baseado em Florais e Corais de Bach. Maiores detalhes aqui.

[Off Topic]: Meu ex-chefe e algoz, Tiago Casagrande me veio com essa brilhante citação de Thiago Gonçalves:

Os blogs são possibilidades incríveis de subversão da ordem posta. São ferramentas impressionantes na difusão de informações – e, preferencialmente, de conhecimento. Têm a chance de motivar mudanças estruturais em todo o aparato de produção dessas informações. E de fato têm feito isso; não são poucos os exemplos nesse sentido.

Se o que é anárquico, não-hierárquico, fluido, descentralizado, acessível, em suma, livre, ganhar correntes, deixa de ser o que é, e se transforma no que já existe – e não nos ajuda. O que põe as crises existenciais numa perspectiva tão profunda quanto um pires. Aqui, na blogosfera, tudo é possível.

Tem razão o moço.