As Intermitências da Morte, de José Saramago

As Intermitências da Morte, de José Saramago

Quando escrevemos uma resenha, dificilmente usamos a primeira pessoa do singular, mas creio que isto será impossível nesta. Eu estava de férias e resolvi ler um livro que me fosse agradável. Um daqueles cuja lembrança fosse querida e consistente. Lembrava de que rira muito ao ler a primeira parte deste As Intermitências da Morte e que achara belíssima a segunda. Só que algo parece ter mudado em mim ou algo em nosso país mudou tanto que os absurdos passaram a fazer mais sentido ou a nossa angústia ficou mais facilmente alcançável. Simplesmente, a farsa ganhou algo da realidade.

Saramago gosta de metáforas fortes. Por exemplo, em Ensaio sobre a Cegueira, todos ficam cegos à exceção de uma mulher. Já em A Jangada de Pedra, a Península Ibérica sai flanando pelo oceano até fixar-se em outro local — leiam!, leiam! Aqui, ocorre que num pequeno país de 10 milhões de habitantes (Portugal?), a morte simplesmente resolve suspender suas atividades e mesmo os moribundos quedam-se indefinidamente no estado em que se encontravam. O fato gera conflitos econômicos, filosóficos, religiosos e políticos e a corrupção ganha novos gêneros, com uma certa máphia que leva moribundos para além das fronteiras a fim de eles morram de uma vez. Ou seja, vê-se com clareza que a morte é necessária. Ou que pelo menos faz parte da vida.

No início, o país se ufana. Afinal, ali não se morre. Porém, as madeireiras e os empresários do setor funerário ficam “desprovidos de matéria-prima”, o negócio das companhias de seguros entra em crise, hospitais e geriatrias passam a conviver com a superlotação. O primeiro-ministro se faz de esperto, mas na verdade não sabe o que fazer, a não ser que deve ser condescendente com a máphia. Os religiosos se desesperam, pois “sem morte não há ressurreição, e sem ressurreição não há igreja”. As ligações entre todos os setores — do primeiro-ministro às questões domésticas — vão sendo mostradas. Porém, em sua intermitência, a morte pode a qualquer momento retomar seus trabalhos. E até utiliza a imprensa para seus comunicados. As Intermitências é uma fábula, uma fábula sobre o papel da morte e como ela altera a vida dos que (ainda) vivem.

No livro, morte é um personagem. Ela não aparece em público, pois tem o aspecto de um esqueleto, é claro. Sim, ela é como as representações da morte às quais nos acostumamos ver nas pinturas.

Arnold Böcklin, Autorretrato com a morte tocando violino (1872)

Ela, a morte, retorna, mas há uma determinada pessoa que não morre, o que — exatamente na página 135, o romance tem 206 —  dá início à segunda parte do romance, que é muito mais lírica e onde há ecos musicais, principalmente quando a morte lê a partitura da Suíte Nº 6 para Violoncelo Solo de Johann Sebastian Bach. Frente àquilo até a morte cai de joelhos e estremece.

…aí uma parte de si deteve-se a olhar o caderno que estava aberto sobre uma cadeira, era a suite número seis opus mil e doze em ré maior de johann sebastian bach composta em cöthen e não precisou de ter aprendido música para saber que ela havia sido escrita, como a nona sinfonia de beethoven, na tonalidade da alegria, da unidade entre os homens, da amizade e do amor. Então aconteceu algo nunca visto, algo não imaginável, a morte deixou-se cair de joelhos, era toda ela, agora, um corpo refeito, e por isso é que tinha joelhos, e pernas, e pés, e braços, e mãos, e uma cara que entre as mãos escondia, e uns ombros que tremiam não se sabe porquê, chorar não será, não se pode pedir tanto a quem sempre deixa um rasto de lágrimas por onde passa, mas nenhuma delas que seja sua. Assim como estava, nem visível nem invisível, em esqueleto nem mulher, levantou-se do chão como um sopro e entrou no quarto…

O livro foi publicado quando Saramago tinha 83 anos. Devia estar refletindo muito sobre a morte, que o veio buscar aos 87 anos.

José Saramago (1922-2010)

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Uma lista preciosa: a dos livros para rir

Uma lista preciosa: a dos livros para rir

Nestes anos de 2020 e 2021, apareceram muitas pessoas na Livraria Bamboletras pedindo livros para rir. Sim, a coisa foi complicada e vários leitores foram bem explícitos ao me pedirem livros para segurar quem está sucumbindo.

Aqui na livraria, muitas vezes a gente é também divã. Por exemplo, no dia em que Bolsonaro foi eleito, tivemos clientes que choraram em nosso balcão. Como consolar alguém que está triste porque elegemos um idiota, sabendo que o eleito é uma besta pior do que o tio do churrasco após 3 cervejas?

Mas volto ao tema inicial. Preparei uma lista de livros cômicos. Mas não basta ser cômico, tem que ser MUITO BOM. Nada tenho contra as palhaçadas, mas acho que rir de nervoso também é rir.

Fiz uma lista de improviso:

— Oblómov, de Ivan Gontcharóv
— Enclausurado, de Ian McEwan
— As Intermitências da Morte, de José Saramago
— O Mestre e Margarida, de Mikhail Bulgákov
— Complexo de Portnoy, de Philip Roth
— Os livros de Claudia Tajes
— Uma Confraria de Tolos, de John Kennedy Toole
— A Guerra das Salamandras, de Karel Čapek
— Matadouro Nº 5, de Kurt Vonnegut
— Lucky Jim, de Kingsley Amis
— A Gargalhada de Sócrates, de Nelson Moraes
— Ingresia, de Franciel Cruz
— Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift

Perguntei, no meu perfil do Facebook, que livros deveria acrescentar à lista e a resposta foi uma chuva de excelentes sugestões. Confiram abaixo:

— Incidente em Antares, Érico Veríssimo;
— O Nariz, Gogol;
— Casos do Romualdo, Simões Lopes Neto;
— Escola de Mulheres, Molière;
— O Burguês Fidalgo, Molière;
— A Megera Domada, Shakespeare;
— A Comédia sos Erros, Shakespeare;
— As Alegres Comadres de Windsor, Shakespeare;
— Lisístrata, Aristófanes;
— As Rãs, Aristófanes;
— As Nuvens, Aristófanes;
— Dez Quase Amores, Cláudia Tajes;
— A Casa dos Budas Ditosos, João Ubaldo Ribeiro;
— Um, nenhum, cem mil, de Pirandello
— Contos do Tchekov. “Um sobrenome cavalar” alegra o dia do mais amargo dos turrões.
— A ironia do Machado não seria um tipo de humor? Se sim, Memórias Póstumas!
— Histórias da Vida Privada, do Verissimo
— LFV é minha leitura para tempos difíceis
— As cosmicômicas – Italo Calvino
— Auto da compadecida ☺️
— Anotações de um jovem médico.
— A morte de um estranho
— Instruções para os criados
— Bartleby
— Contos da Cantuária. Chaucer. Penguin Companhia.
— O Complexo de Portnoy, do Roth; Meus Prêmios, do Bernhard; Minha Mocidade, do Churchill; Memórias do Subsolo
— O Homem Nu do Fernando Sabino
— Tia Julia e o Escrevinhador, do Vargas Llosa
— O autor mais engraçado que existe é o P. G. Wodehouse. Qualquer livro seu é prazer garantido e muita risada. Só não sei como andam seus livros em catálogo no Brasil.
— A mulher que escreveu a Bíblia, Moacyr Scliar
— A peregrina de araque
— Faltou o Paul Beatty, especialmente em “O Vendido” e todos os livros do Pynchon
— A Consciência de Zeno e Tristram Shandy.
— O Compromisso e O Ofício, ambos de Serguei Dovlátov, são muitíssimo engraçados. E o recém lançado no Brasil, Tchevengur, do Andrei Platônov, tem a mesma hilaridade ácida e absurda do Dom Quixote.
— A esposa de Gogol do italiano Landolfi.
— “As nuvens” , Aristófanes.
— “Esperando Godot ” do Becket e “Muito Barulho por Nada” do Shakespeare.
— “Uma Proposta Modesta e Outros Ensaios” do Jonathan Swift.
— E o Henfil ? Nenhum livro com os Fradins, o bode Orellana e a Grauna?
— Qualquer coisa do Verissimo, mas acho que A velhinha de Taubaté seria meio agridoce demais…
— O remorso de Baltazar Serapião – Walter Hugo Mãe
— Comédias da vida privada. A autobiografia do Billy Wilder. Qualquer treco do Reinaldo Moraes. — A trilogia de Bridget Jones.
— As rãs – Mo Yan
— Eu amava os contos da coleção “Para gostar de ler” – eram excelentes, muita leveza.
— O Analista de Bagé
— Suas histórias da Bamboletras renderiam um ótimo livro, meu caro.
— As melhores tiradas de PQP Bach” tb…
— O Senhor da Foice, de Terry Pratchett
— Tomar um café com papo com Milton Ribeiro é o melhor!
— Todos do Olavo de Carvalho.
— Veríssimo (LF) e Antonio Prata.
— Recomendo também o pai, Mário Prata.
— Woody Allen
— “Cuca Fundida” e “Sem Plumas” são ótimos, bem lembrado!!!
— Barão de Itararé
— Dom Quixote.
— Biografia do Deltan Dallagnol. Parei nas primeiras 20 páginas, porque não conseguia parar de rir.
— É interessante como Dostoievksi é engraçadíssimo. O jogador, por exemplo, tem partes maravilhosas para o riso. Assim como Os demônios e O idiota. Mas as páginas a que me referi de Memórias entraria em qualquer antologia das mais hilárias da literatura
— Já leu “O Eterno Marido”? Muito engraçado.
— Olha o livro que me fez gargalhar esse ano foi A vida pela frente do Roman Gary, mesmo não estando na minha forma olímpica
— “O Homem ao Quadrado”, de Leon Eliachar. Piadas ótimas e outras não tanto, mas o conceito dos capítulos do livro é genial (capítulos pra ler no banheiro q tem papel hig… Ver mais
— O apocalipse dos trabalhadores, do Valter Hugo Mãe, tem cenas engraçadíssimas, apesar de toda a tragédia.
— Também qualquer Woody Allen
— Quase Memória do Cony
— Ainda não está em livro, mas está no Facebook, “As Corônicas”, do Fernando Corona
— Ouvi dizer que A Gargalhada de Sócrates arranca algumas risadas. 🙂
— Os livros de crônicas do Aldir Blanc.
— Millôr Fernandes
— A dica que me ocorre primeiro já está na lista, As intermitências do morte. Talvez Incidente em Antares caiba aí. Nu de botas, do Antonio Prata, mesmo sem ser ficção, é uma ótima pedida pra quem cresceu nos anos 80. Eu me divirto com Emma, da Jane Austen
— Millor Fernandes e o Luiz Fernando Veríssimo!
— Reacionarismo católico inglês: qualquer um do Evelyn Waugh e O Homem que era Terça Feira, do CK Chesteron.
— Os contos do Mark Twain, são autêntica literatura de emergência para tempos sombrios.
— Asno de Ouro; D.Quixote; Gargantua e Pantagruel; Gil Blas; O Sofá
— As aventuras de Huckleberry Finn
— Lembro de ter rido bastante com o Digam a satã que o recado foi entendido. Do Daniel Pellizzari. — — Encontro muito humor tb nos livros da Veronica Stigger. ❤❤ A Veronica Stigger tem uma preciosidades de humor cruel
— Milton, se você não leu ainda o Estacao Atocha, do Ben Lerner, leia. É hilário e excelente.
— Asco, de Castellanos Moya, e O Inspetor Geral, de Gogol.
— O Tirza é um romance que te choca ao mesmo tempo que te faz rir bastante. Recomendo.
— Jô Soares, romances e autobiografias; Beckett, Stanislaw e Ricardo Araújo Pereira
— Livros dos chargistas… Santiago Neltair Abreu,
— A Gargalhada de Sócrates, do Nelson Moraes;
— Qualquer um do Alasdair Gray;
— Tristram Shandy.
— Sempre uns 80 por cento dos autores que você cita eu só nunca ouvi falar, como acho que na verdade nem existem. 😃
— Lembra de “Porcos com Asas”? Eu rio até hoje só de lembrar uma parte. E “Patty Diphusa” também é de matar de rir.
— Ri muito com Resposta certa, do David Nichols. Não sei se está à altura da bamboletras, mas foi o terceiro livro que mais me fez rir nos últimos tempos. O segundo foi A gargalhada de Sócrates. O primeiro foi o programa do evento do Brasil paralelo.
— Eu ia sugerir “Cágada”, do Gladstone O. Mársico, mas deve estar esgotado… infelizmente.
— Ia indicar A Gargalhada de Sócrates, mas seu radar não o deixou escapar…
— Os do L.F. Verissimo em primeiro lugar.
— O conto “Comportamento nos velórios”, do Cortázar. Está no livro Histórias de cronópios e de famas e na antologia Autoestrada do sul, da L&PM.
— Bah, os da Cláudia Tajes são hilários, dá para rir muito!
— Acrescente ‘Bilac vê estrelas’, de Ruy Castro. Classicamente falando, O Asno de Ouro de Apuleio e Satiricon.
— Candido Urbano Urubu.
— O livro de crônicas do Nelson Rodrigues, A Cabra Vadia, é para rir demais.
— A Auto da Compadecida de Ariano Suassuna
— Novela de Eduardo Mendoza Garriga
— Caviar é uma ova do Gregório Duvivier
— Luis Fernando Verissimo
— Mais um, maravilhosamente engraçado: Uma casa para o sr Biswas.
— “Quem matou Roland Barthes?”
— Os velhos marinheiros, de Jorge Amado
— Cuca Fundida, do Woody Allen
— Qualquer um do Gabo
— A Importância de Ser Prudente, Oscar Wilde.
— Nao digo rir, mas sorri muito lendo o barão das arvores, do ítalo calvino.
— “Macaco preso pra interrogatório” e “O riso dos torturados”…
— “A uruguaia” e “As desventuras de Arthur Less” – engraçados e boa literatura
— Fábulas fabulosas, do Millor. Cabaret Demenzial, da Veronica Stigger. Esse último é humor cruel, mas ri muito com algumas das histórias, como a do casal que vai se mudando pra lugares cada vez mais minusculos por falta de grana.
— Lembrei dum conto dos cervantes, acho que se chamava os faladores. Era dos de gargalhar. E as comédias de Shakespeare ou Moliére. 🤣
— “A morte e a morte de Quincas Berro D´água”
— Podes colocar um sub-título: Livraria Bamboletras, uma Farmácia Literária. Que tal?
— “manual prático de bons modos em livrarias”. pequenino e engraçadíssimo.
— Cândido de Voltaire; O Inspetor Geral de Gógol; O Santo e a Porca, Auto da Compadecida, de Suassuna.
Diego Michel GÓGOL!!!!!
— eu citaria o Pornopopeia de Reinaldo Moraes.
— “Os amores difíceis”, livro de contos do Ítalo Calvino apresenta alguns contos muito hilários
— Autobiografia da Rita Lee. Os subterrâneos do Vaticano de André Gide.
— FEBEAPÁ -Festival de besteiras que assolam o país. Sérgio Porto -Stanislaw Ponte Preta.
— O Livro dos Seres Imaginários, de Jorge Luis Borges.
— Comédias da Vida Privada, do Veríssimo.
— Efraim (ou Ephraim) Kishon, vários titulos…lembro agora de Como Aborrecer um Guarda e outras…, Trad. Luis Fernando Verissimo. Muito bom.
— Ephrain Kishon húngaro israelense’ tb dramaturgo. Millôr Fernandes traduziu uma peça dele, “Pô, Romeu!”, muito engraçada.
— O Mundo é Pequeno, do David Lodge. É o mais engraçado dos romances dele, mas Invertendo os Papéis (mesmos personagens, alguns anos antes), e Terapia também são divertidos.
— E tem os João Ubaldos, além de tudo, engraçados.
— Bah, os do Verissimo sempre são hilários. Incluiria na lista o 10:04 do Ben Lerner e o Ninguém precisa acreditar em mim, do Juan Pablo Villalobos.
— Os livros do mochileiro das galaxias
— “Anedotário da Rua da Praia”. Um clássico! Indico também “O Imortal”, do Maurício Lyrio.
— Procurem Tom Cardoso ele manda muito bem cronista jornalista se é pra rir, ele manda pelo correio ! De chorar!
— Eu ri muito lendo “o grande mentecapto”, do fernando sabino
— Dementia 21 de shintaro kago, adoro o nu de botas do Antônio Prata.
— Tristram Shandy!
— KD o LVF?? São tão bons! E o Gregório Duvivier também! (Put some farofa) e também o “Nu de botas” do Antônio Prata. Livros muito engraçados e bons
— Alain de Botton. Esqueci o título, mas tem um ensaio sobre o amor que é hilário
— A Aldeia de Stiepantikov e seus habitantes, um adoravel livro pequeno e cômico do velho Fiodor Dostoiévski
— Se quiserem livro pra rir, cujos personagens são cachorros, recomendo Sítio Caipora, de uma certa Núbia Bento Rodrigues, né, bispo Franciel
— Cem anos de Solidão, de Gabriel García Márquez. A parte do tapete voador é impagável!
— Pantaleao e as Visitadoras
— O furo, Evelyn Vaughn. Antigo. Será que tem?
— Eu ia indicar o Dom Quixote, mas já foi citado. É o meu livro favorito e tem trechos MUITO engraçados. Em uma de minhas internações hospitalares mais recentes, levei o Dom Quixote para (re)ler, mas tive que interromper a leitura porque ria muito…
— Luís Fernando Veríssimo na veia!
— O Auto da Compadecida!! Me diverti muito lendo
— A biografia da Rita Lee tinha cenas hilárias q eu não conseguia parar de rir
— “Porque almocei meu pai” de roy lewis, um clássico…..kkkk
— Matadouro 5 é de rir? Eita eu li errado então 🤦🏻‍♀️ Vou ter que reler 😅
— Melhor ler tudo sobre os irmãos Marx agora, nunca se sabe né?
— Woody Allen. Eu tinha que parar de traduzir pra rir.
— Mario Prata, hilário
— Claudia Tajes é de passar mal de rir
— Todos do Douglas Adams, mas principalmente O Guia do Mochileiro das Galáxias!
— Luís Fernando Verissimo TODOS
— Eu colocaria também Cama de gato do Vonnegut
— Confraria de tolos eu devo te agradecer, eu chorei de rir com esse livro
— Ri bem com o último do Kundera, A festa da insignificância
— Malícia negra, de Evelyn Waugh. Impagável…
— Livros do L F Verissimo, tens?
— “A gargalhada de Sócrates” – Nelson Moraes
— Todos de P.G. Wodehouse, principalmente, “Obrigado, Jeeves”.… Ver mais
— Rua dos Artistas e Arredores do Aldir Blanc
— Dois do KV Jr.: “Destinos Piores que a Morte” e “Um Homem sem Pátria”. Adequados, realistas, modernos.
— Ter meu humilde Ingresia nesta lista é motivo pra choro, digo, pra riso. Bom, não sei mais…Só sei que minhas 18 pontes de safenas quase estouraram agora.
— Pra rir … Luís Fernando
— O Proscrito, Ruy Tapioca
— Cântico pra Leibowitz
— Exército de um homem só

Illustration: A comedy mask reads a book.

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Caim, de José Saramago

Caim, de José Saramago

Caim é o que odeia deus.
José Saramago

Quem não sabe quem foi Caim, o que matou Abel e que foi uma espécie de anti-herói bíblico? É dele que trata este romance de Saramago.

Bem, podemos facilmente dividir a obra de Prêmio Nobel José Saramago (1922-2010) entre os livros sérios e os divertimentos. Caim está decididamente entre os divertimentos. Narrativa leve, constantemente cômica e fluida, é uma road novel a pé e em jumento pelo Velho Testamento. Talvez melhor fosse chamar o romance de picaresco, “diz-se picaresco dos romances e das peças de teatro cujo herói é um aventureiro ou um vadio que vai de um lugar a outro, sem destino determinado”. O surpreendente capítulo final — que não será contado aqui — dá uma inesperada grandeza à sucessão de boas piadas contidas no romance.

Como fez em O Evangelho segundo Jesus Cristo, aqui Saramago retoma a Bíblia como base e o faz com graça e inteligência extremas. O livro começa com a história com Adão e Eva no paraíso. Após os eventos que levam à expulsão deles, Caim nasce, cresce, mata o irmão Abel e logra convencer deus de ser Ele o culpado pelo fato de ver e não interferir. Admitindo em parte sua culpa, deus poupa Caim mas dá-lhe uma punição: ele será um errante. E aqui inicia-se o que chamei de road novel: as andanças de Caim pelas histórias do Velho Testamento: Lilith, Jó, Abraão, Noé, etc. O efeito muitas vezes é cômico, mas há um compromisso complexo e indignado além da paródia. Profundas questões morais alternam-se com fatos rotineiros.

Caim chama a atenção da bela e casada (e rica) Lilith e se torna o amante dela. Mas, é dispensado após fazer-lhe um filho e decide seguir pelo mundo. A falta de contentamento parece ser um castigo divino. Errante, sobre um burrinho, Caim começa a viajar por diferentes tempos e lugares.

Em seu caminhar, Caim passa pelas histórias mais conhecidas (só the best of) do Velho Testamento. Saltando no tempo, pois há estradas que apresentam “presentes diferentes”, Saramago dedica um olhar mais do que debochado a cada uma delas. E todas elas possuem um elemento comum além da presença de Caim: um deus mau ou pior do que isso, um deus que parece desejar apenas punir ou vingar-se de sua criação — Caim, Abraão, Jó… — ou que se compraz com limpezas étnicas (expressão minha) — Sodoma e Gomorra, o episódio da arca de Noé…

Com humor corrosivo e paradoxal leveza, Caim não é leitura indicada para carolas ou quetais. Ou é, pois os católicos costumam ignorar o Velho Testamento. Um livro que redime Caim e acusa deus de ser o autor intelectual dos crimes mais hediondos deveria talvez irritar mais os judeus do que os católicos? Não sei e, para dizer a verdade, nem me interessa. O que me importa é a alta diversão proporcionada por Saramago neste romance despretensioso e de final arrebatador.

Entre seus episódios, Saramago vai filtrando heresias como a ideia de que, se antes deus aparecia aos homens, agora ele deixou de fazê-lo pela vergonha gerada por algumas de suas tristes atitudes ou, numa frase do português com destino ao Citador: “A história dos homens é a história de seus desacordos com deus, nem ele nos entende nem nós o entendemos.”

Caim é, enfim, o personagem que Saramago encontrou para levar ao extremo sua ideia de que onde há movimento também há inconformismo e, portanto, uma história que valha a pena contar. E além de revisar o Antigo Testamento, este romance analisa aquela outra fonte de nossa tradição cultural que é a Odisseia. Como Ulisses, Caim também muitas vezes esconde seu nome verdadeiro e se propõe a viver seu destino errático, não sem esconder um ás na manga.

José Saramago (1922-2010)

 

 

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105 anos de morte de Simões Lopes Neto, autor de Contos Gauchescos

105 anos de morte de Simões Lopes Neto, autor de Contos Gauchescos

É estranho e saudável o fato de nem todos concordarem em ligar Simões à Semana Farroupilha. Boa parte dos admiradores do escritor acham que a ligação favorece muito mais o MTG (Movimento Tradicionalista Gaúcho) do que o escritor. Porém, o fato de haver inclusive uma Medalha Simões Lopes Neto faz com que muitos leitores preconceituosos do RS o associem ao Movimento e deixem de entrar em contato um autor muito sofisticado, que produziu grande literatura.

Sua maior obra: Contos Gauchescos

Não é à toa que Contos Gauchescos fez parte da lista de leituras obrigatórias para o vestibular da UFRGS por tantos anos. Ele ficou na justa companhia de José Saramago (História do Cerco de Lisboa), Guimarães Rosa (Manuelzão e Miguilim) e de outros. E de outros menores, deveria dizer. A lista da UFRGS não é garantia de qualidade — por exemplo, lá não estão Erico nem Dyonélio –, mas serve como comprovação de que o pequeno volume de 19 contos narrados por Blau Nunes está bem vivo.

Contos Gauchescos (1912) é o segundo e de longe o mais importante livro de João Simões Lopes Neto (1865-1916), que também escreveu Cancioneiro Guasca (1910), Lendas do Sul (1913) e Casos do Romualdo (1914). O autor viveu 51 anos e publicou apenas quatro livros. Talvez sejam muitos, se considerarmos a colorida vida do autor.

Simões Lopes Neto nasceu em Pelotas, na estância da Graça, filho de uma tradicional família da região, proprietária de muitas terras. Aos treze anos, foi para o Rio de Janeiro a fim de estudar no famoso Colégio Abílio. Retornando ao Rio Grande do Sul, fixou-se para sempre em Pelotas, então uma cidade rica para os padrões gaúchos. Cerca de cinquenta charqueadas formavam a base de sua economia. Porém, engana-se quem pensa que Simões andava de bombacha. Seus hábitos eram urbanos e as histórias contadas nos Contos Gauchescos eram baseadas em reminiscências, histórias de infância e, bem, a verdade ficcional as indica como de autoria de Blau Nunes, não? A epígrafe da obra deixa isto muito claro: À memória de pai. Saudade. Mas voltemos ao autor.

Sua vida em Pelotas não foi nada monótona. Abriu primeiro uma fábrica de vidro e uma destilaria. Não deram certo. Depois criou a Diabo, uma fábrica de cigarros cujo nome gerou protestos da igreja local. Seu empreendedorismo levou-o ainda a montar uma empresa para torrar e moer café e a desenvolver uma fórmula à base de tabaco para combater sarna e carrapatos. Fundou também uma mineradora. Nada deu muito certo para o sonhador e inventivo João, que foi também professor e tabelião e que, ao fim e ao cabo, apenas sobreviveria como jornalista em Pelotas, conseguindo com dificuldades publicar seus livros e folhetins, assim como montar suas peças teatrais e operetas. Este faz-tudo faleceu em total pobreza.

Casa onde residiu Simões Lopes Neto em Pelotas. Hoje abriga o Instituto João Simões Lopes Neto (Rua Dom Pedro II, 810)

Blau Nunes

A primeira edição de Contos Gauchescos foi publicada em 1912. Se o ano é este, a data exata da publicação parece ter sido perdida. Na primeira página do volume é feita a apresentação do vaqueano Blau Nunes, que o autor afirma ter sido seu guia numa longa viagem pelo interior do Rio Grande do Sul.

PATRÍCIO, apresento-te Blau, o vaqueano. Eu tenho cruzado o nosso Estado em caprichoso ziguezague. Já senti a ardentia das areias desoladas do litoral; já me recreei nas encantadoras ilhas da lagoa Mirim; fatiguei-me na extensão da coxilha de Santana, molhei as mãos no soberbo Uruguai, tive o estremecimento do medo nas ásperas penedias do Caverá; já colhi malmequeres nas planícies do Saicã, oscilei entre as águas grandes do Ibicuí; palmilhei os quatro ângulos da derrocada fortaleza de Santa Tecla, pousei em São Gabriel, a forja rebrilhante que tantas espadas valorosas temperou, e, arrastado no turbilhão das máquinas possantes, corri pelas paragens magníficas de Tupanciretã, o nome doce, que no lábio ingênuo dos caboclos quer dizer os campos onde repousou a mãe de Deus…

(…)

Genuíno tipo – crioulo – rio-grandense (hoje tão modificado), era Blau o guasca sadio, a um tempo leal e ingênuo, impulsivo na alegria e na temeridade, precavido, perspicaz, sóbrio e infatigável; e dotado de uma memória de rara nitidez brilhando através de imaginosa e encantadora loquacidade servida e floreada pelo vivo e pitoresco dialeto gauchesco.

(…)

Querido digno velho!
Saudoso Blau!

Patrício, escuta-o.

Capa da edição pocket da L&PM

Após esta apresentação — de pouco mais de duas páginas na edição pocket da L&PM — , está pronto o cenário para os 19 contos (ou “causos”) que o narrador Blau Nunes contará a seu patrício. Blau é o protagonista de algumas histórias, em outras é um assistente interessado que banha os fatos de intensa subjetividade. E aqui chegamos ao que o livro apresenta de mais original: o trabalho de linguagem de Simões Lopes Neto. Os contos são “falados”, são “causos” contados por Blau e a linguagem acaba por ser uma representação da fala popular misturada a uma inflexão erudita — certamente a de Simões — , transformando-se numa terceira forma de expressão. Numa belíssima terceira forma de expressão. Sabemos que o leitor do Sul21 já está pensando em Guimarães Rosa e tem toda a razão. Rosa confessou que seu texto tinha muito da influência de Simões. O gaúcho abriu as portas para as grandes criações do autor de Grande Sertão: Veredas e esta afirmativa não é a do ufanismo vazio que procura gaúchos em navios adernados, mas uma manifestação de consistente orgulho.

E, assim como nos livros de Rosa, a linguagem de Simões Lopes Neto talvez soe estranha à princípio, apesar de que o estranhamento é muito menor do que aquele com que se depara o leitor do mineiro. Se lá Rosa cria palavras utilizando seu enciclopédico conhecimento etimológico, se lá utiliza-se até de línguas eslavas; aqui Simões transforma o sotaque da região onde nasceu. Há os adágios populares, há os muitos gauchismos do campo e da cidade e há as expressões típicas da fronteira, recheadas de espanholismos. A memória de Blau Nunes é a memória geral do pampa narrando os acontecimentos principais de sua história que, em mosaico, formam uma visão subjetiva da região e de sua gente. Era 1912, não havia regionalismo, estávamos a 10 anos da Semana de Arte Moderna e 4 anos após o falecimento e Machado de Assis. Estamos, pois, falando da literatura de um pioneiro.

Ilustração de uma edição de Contos Gauchescos

Mas Simões Lopes Neto não trabalha apenas a linguagem, é um escritor que sabe criar constante subtexto. Ou seja, há as palavras, mas há um grande contador de histórias trabalhando-as, jogando informações subjacentes que reforçam ou contradizem o que está sendo contado. Isto pode ser sentido no pequeno conto O negro Bonifácio e no tristíssimo No Manantial — segundo e terceiro contos da coleção. A propósito, no CD Ramilonga, Vitor Ramil fez uma homenagem a No Manantial. A frase que é dita no início da canção é a primeira do conto e a que a encerra — Vancê está vendo bem, agora? — está próxima ao final do conto. É uma justa homenagem. Talvez No Manantial seja o melhor conto escrito por autor gaúcho até o surgimento de Sergio Faraco. Apenas em 1937, com a publicação de Sem rumo e Porteira fechada (1944), de Cyro Martins, e de O Tempo e o Vento (Erico Verissimo, 1949), a literatura do RS produziria outras grandes figuras ficcionais vindas do interior gaúcho. Dizia Tolstói: Se queres ser universal começa por pintar a tua aldeia. E Blau Nunes, na condição de narrador e protagonista dos Contos Gauchescos, é um gaúcho de qualquer latitude.

Marcelo Spalding, em excelente artigo análogo a este, finaliza citando a definição de Italo Calvino para o que seria um clássico. De seu artigo, roubamos duas frases de Calvino que, a nosso ver, cabem tão adequadamente a Contos Gauchescos que não há razão para não citá-las. Segundo Calvino, um clássico é uma obra que provoca incessantemente uma nuvem de discursos críticos sobre si, mas continuamente os repele para longe. Mais: clássicos seriam livros que, quando mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos se revelam novos, inesperados, inéditos.

É o caso.

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Fernando Pessoa: os 85 anos da morte de vários poetas

Fernando Pessoa: os 85 anos da morte de vários poetas
“Não sou nada (…) À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”

Fernando Pessoa são muitos poetas. Se o Pessoa original nasceu em Lisboa no dia 13 de junho de 1888 e faleceu na mesma cidade, aos 47 anos, em 30 de novembro de 1935, seus heterônimos têm diferentes datas de nascimento e de morte, à exceção de Ricardo Reis, que não tem data de morte. A invenção de tais heterônimos atravessa toda a obra de Pessoa. Heterônimos são autores fictícios que possuem personalidade própria, ao contrário dos pseudônimos. Sendo assim, o autor assume outras personalidades. Cada uma delas seria uma pessoa real, com manifestações artísticas próprias e diversas do autor original, que é chamado de “ortônimo”.

No caso de Pessoa, com o amadurecimento de cada uma das outras personalidades, o autor original tornou-se apenas mais um heterônimo. Os três heterônimos mais conhecidos de Pessoa (e também os de maior obra poética) são Álvaro de Campos, Ricardo Reis e Alberto Caeiro. Um quarto heterônimo importante é o de Bernardo Soares, autor do Livro do Desassossego. Bernardo é considerado uma espécie de semi-heterônimo por ter muitas semelhanças com Pessoa e não possuir uma personalidade distinta, contrariamente aos três primeiros, que possuem até mesmo data de nascimento e morte — à exceção do citado Ricardo Reis.

“Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo”

Álvaro de Campos era um engenheiro de educação em língua inglesa e origem portuguesa. Aliás, como o próprio Pessoa. Tinha a sensação de ser estrangeiro onde estivesse. Foi um decadentista influenciado pelo simbolismo que aderiu ao futurismo. Álvaro é o poeta da modernidade, da euforia e do desencanto, é o poeta da irreverência a tudo e a todos. Alguns de seus poemas:

Tacabaria

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

(…)

Poema em linha reta

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado
[sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

(…)

Lisbon Revisited

Não: não quero nada.
Já disse que não quero nada.
Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.
Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me
[enfileirem conquistas]
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) –
Das ciências, das artes, da civilização moderna!
Que mal fiz eu aos deuses todos?
Se têm a verdade, guardem-na

(…)

“Tinha fugido do céu / Era nosso demais para fingir”

Outro era Alberto Caiero. Nascido em Lisboa, Caeiro teria vivido quase toda a vida como camponês, sem maiores estudos formais. Teve apenas a instrução primária, mas é considerado o mestre entre os heterônimos. Depois da morte do pai e da mãe, permaneceu em casa com uma tia-avó, vivendo de modestos rendimentos e morreu de tuberculose. Também é conhecido como o poeta-filósofo, mas rejeitava este título e pregava uma “não-filosofia”. Acreditava que os seres simplesmente são, e nada mais: irritava-se com a metafísica e qualquer tipo de simbologia para a vida.

Poema XX de ‘O guardador de rebanhos’

O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.

O Tejo tem grandes navios
E navega nele ainda,
Para aqueles que veem em tudo o que lá não está,
A memória das naus.
O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entra no mar em Portugal.
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
E donde ele vem.
E por isso porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.

(…)

Poema do Menino Jesus

Num meio dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia
Vi Jesus Cristo descer à terra,
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.

Tinha fugido do céu,
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras,
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem 

“Sê todo em cada coisa. Põe quanto és / No mínimo que fazes”

Pessoa também era Ricardo Reis, um médico que se definia como latinista e monárquico. De certa maneira, simboliza a herança clássica na literatura ocidental, expressa na simetria, na harmonia e num certo bucolismo, com elementos epicuristas e estoicos. O fim inexorável de todos os seres vivos é uma constante na sua obra, clássica, que é finamente depurada e disciplinada.

Para ser grande, sê inteiro: nada

Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.

Anjos ou Deuses 

Anjos ou deuses, sempre nós tivemos,
A visão perturbada de que acima
De nos e compelindo-nos
Agem outras presenças.
Como acima dos gados que há nos campos
O nosso esforço, que eles não compreendem,
Os coage e obriga
E eles não nos percebem,
Nossa vontade e o nosso pensamento
São as mãos pelas quais outros nos guiam
Para onde eles querem E nós não desejamos.

“O coração, se pudesse pensar, pararia”

Bernardo Soares é, dentro da ficção de seu próprio Livro do Desassossego, um simples ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa. Conheceu Fernando Pessoa num pequeno restaurante frequentado por ambos. Foi aí que Bernardo deu a ler a Fernando seu livro, que, mesmo escrito em forma de fragmentos, é considerado uma das obras fundadoras da ficção portuguesa no século XX. Bernardo Soares é muitas vezes considerado um semi-heterônimo porque, como o próprio Pessoa explica: “Não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e afetividade.”

Do Livro do Desassossego:

“O coração, se pudesse pensar, pararia.”

“Considero a vida uma estalagem onde tenho que me demorar até que chegue a diligência do abismo. Não sei onde me levará, porque não sei nada. Poderia considerar esta estalagem uma prisão, porque estou compelido a aguardar nela; poderia considerá-la um lugar de sociáveis, porque aqui me encontro com outros. Não sou, porém, nem impaciente nem comum. Deixo ao que são os que se fecham no quarto, deitados moles na cama onde esperam sem sono; deixo ao que fazem os que conversam nas salas, de onde as músicas e as vozes chegam cómodas até mim. Sento-me à porta e embebo meus olhos e ouvidos nas cores e nos sons da paisagem, e canto lento, para mim só, vagos cantos que componho enquanto espero.

“O poeta é um fingidor / Finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente”

Também era Fernando Pessoa:

Autopsicografia

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

(…)

Mar Português

“Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu”

Todas as cartas de amor…

Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.

Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.

(…)

.oOo.

Fernando Pessoa publicou quatro obras em vida, três em língua inglesa. Mensagem foi o único publicado em língua portuguesa. Ele ocupou diversas profissões. Foi editor, astrólogo, publicitário, jornalista, empresário e crítico literário. Ficou órfão de pai aos 5 anos de idade, o que obrigou a mãe a vender parte de seus bens e mudar-se para uma residência mais modesta. Ela se casou pela segunda vez em 1895, por procuração, com o comandante João Miguel Rosa, cônsul de Portugal em Durban (África do Sul), que havia conhecido um ano antes. Foi na África que o poeta passou a maior parte da juventude e recebeu educação inglesa, primeiro num colégio de freiras e depois no Durban High School.

“O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, / Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia / Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia”

Em 1901, escreveu seus primeiros poemas em inglês. No ano seguinte, voltou com a família para Lisboa. Porém, em 1903, Fernando retornou sozinho para a África do Sul, mais exatamente para a Durban High School, onde fez um curso de contabilidade e comércio, após ter sido um aluno brilhante no liceu nas disciplinas de Humanidades. Se a sua educação havia sido essencialmente humanista, o que o levou ao comércio? Provavelmente quis munir-se de conhecimentos práticos para ganhar a vida. Em 1905, de volta à Lisboa, matriculou-se na Faculdade de Letras, onde cursou Filosofia. Dois anos depois, abandonou o curso e, em 1912, estreou como crítico literário.

No campo profissional, do comércio, Fernando Pessoa nunca tentou ir muito longe. Foi um conformado empregado de escritórios, um guarda-livros como o seu heterônimo Bernardo Soares. Durante um período de sua vida, produziu textos sem grande brilho para a “Revista de Comércio e Contabilidade”. Na verdade, Pessoa ganhava a vida mais como tradutor de inglês de cartas comerciais. Desempenhava esta atividade para várias casas comerciais, aproveitando-se da dependência de Portugal em relação a Inglaterra.

Em 1925, passou a trabalhar também na área de publicidade e propaganda. Mas a experiência não foi bem sucedida. Em 1927, o poeta criou um slogan para a Coca-Cola, que estava sendo lançada em Portugal. O slogan dizia: “Primeiro estranha-se. Depois entranha-se”. Foi rejeitado.

“Valeu a pena? Tudo vale a pena / Se a alma não é pequena”

Considerado hoje um poeta genial, colocado na lista de Harold Bloom como um dos 26 melhores e mais influentes escritores de todos os tempos, não mereceu a atenção de seus contemporâneos. Teve dificuldades para publicar seus versos, o que o levou a encher um baú de escritos, tesouro inestimável da literatura mundial.

Este baú, — de mais de 27 mil folhas — foi comprado pelo Estado português em 1979 e depositado na Biblioteca Nacional. Eles vêm sendo estudados e divulgados por uma equipe coordenada por Teresa Rita Lopes, com o apoio da editora Assírio & Alvim. São ensaios, mais de mil poemas dos três grandes heterônimos, um semi-heterônimo desdobrado em dois (Vicente Guedes e Bernardo Soares), mais de setenta pequenos heterônimos sem obra consistente, cartas, contos, teatro, textos políticos, notas, etc. É a obra do fingidor, do polêmico, do cria­dor de vanguardas, do ocultista, do poeta dra­mático, do poeta das quadras populares e do questio­nador em busca de ser, que foi tanto a sua criação que se perdeu de si mesmo.

“As cartas de amor, se há amor, / Têm de ser / Ridículas”

A importância de obra de Pessoa é inequívoca e está comprovada pelas inúmeras reedições, citações, trabalhos acadêmicos, biografias e homenagens. A maior deles talvez tenha sido prestada por José Saramago, autor de O ano da morte de Ricardo Reis, baseado livremente na “vida” deste heterônimo. O poeta mexicano Octavio Paz disse que nada na vida de Pessoa é surpreendente, nada, exceto seus poemas. Na comemoração do centenário do nascimento de Pessoa, em 1988, o seu corpo foi trasladado para o Mosteiro dos Jerônimos, dando-lhe o reconhecimento que não teve em vida. Em Pessoa, coexistem duas vertentes: a tradicional e a modernista. Algumas das suas composições dão continuidade ao lirismo português, com marcas de saudosismo. Outras iniciam o processo de ruptura do modernismo, o que se concretiza nos heterônimos, mesmo que a música da poesia de Fernando Pessoa esteja tanto no tradicionalista como no modernista.

Logo após a morte do poeta, seu irmão João fez uma conferência e afirmou que ninguém na família adivinhava que Fernando Pessoa, “uma pessoa muito inteligente e muito divertida”, “resultaria em génio…”. A verdade é que o mundo também levou muito tempo para descobrir.

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Bruegel, os cegos e meu sonho

Hoje eu tive um sonho. Estava pintando o quadro abaixo. Eu era Pieter Bruegel, o Velho e pintava em meu atelier A Parábola dos Cegos, certo? Há mais: estava emocionadíssimo porque um dos cegos — qual seria? — era meu pai e era do maneira abaixo que ele se deslocava com seus pares. Um negócio desesperador. Mesmo! Eu pintava e chorava.

Assim como para a Caminhante, Ernesto Sábato e José Saramago,a cegueira e suas metáforas, mas principalmente a cegueira sem metáfora, é algo que assusta e causa perplexidade, pena, medo, profundo interesse, tudo.

Quando acordei, a imagem da obra-prima de Bruegel foi substituída pela da galinha abaixo, vista ontem no Google Images. Bem, sei lá.

P.S. — Meu pai, morto em 1993, nunca teve deficiência visual.

Parábola dos Cegos

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Porque hoje é sábado, a Playboy portuguesa

Quando adquiri cidadania portuguesa, jamais imaginei que meu novo país …

… fosse… Bem, homenageando o grande José Saramago, a Playboy portuguesa…

… produziu um ensaio de gosto duvidoso ou adolescente, …

… atacando de forma aberta o combalido ícone católico.

Divertidíssimo, só que não.

Dizem que a Playboy portuguesa deve fechar por ordem da matriz americana.

Por favor, Hugh, faça isso. A coisa é feia pacas.

Olha só:

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A Fundação José Saramago escreveu, sobre Umberto Eco

A Fundação José Saramago escreveu, sobre Umberto Eco

Eco SaramagoUmberto Eco, um dos grandes nomes da literatura mundial, morreu esta sexta-feira aos 84 anos. À familia e aos amigos próximos, o nosso abraço.

Relembramos a sua vasta obra e, em particular, o texto que serviu de prefácio para a edição italiana de “O Caderno”, de José Saramago, publicado em 2009. É que a edição de Os Cadernos de José Saramago em Itália foram vetados pelo acionista da editora habitual do Nobel, Silvio Berlusconi. No entanto, o volume foi publicado naquele país e contou com o prefácio de Umberto Eco, que copiamos abaixo.

A Umberto, o nosso último obrigado.

Um blogueiro chamado Saramago, por Umberto Eco

Curiosa personagem, este Saramago. Tem oitenta e sete anos e (diz ele) alguns achaques, ganhou o Nobel, distinção que lhe permitiria nunca mais produzir nada porque seja como for já tem no Panteão o seu lugar garantido (o avaríssimo Harold Bloom definiu-o “o romancista mais dotado de talento ainda em vida… um dos últimos titãs de um género literário em vias de extinção”), eis que aparece a manter um blog onde se mete um pouco com toda a gente, atraindo sobre a sua pessoa polémicas e excomunhões vindas de muitos lados – mais frequentemente não por dizer coisas que não deve dizer mas porque não perde tempo a medir as palavras – e talvez o faça mesmo de propósito.

O quê, ele? Ele que cuida da pontuação ao ponto de a fazer desaparecer, que na sua crítica moral e social nunca leva o problema a peito, mas poeticamente o contorna nos modos do fantástico e do alegórico, de modo que o seu leitor (embora suspeitando que de te fabula narratur) terá de pôr muito de si para compreender até onde vai parar o apólogo – como no seu Ensaio sobre a Cegueira -, faz viajar o leitor numa névoa leitosa em que nem sequer os nomes próprios, de que é bastante parco, dão um sinal claramente reconhecível, ele que no Ensaio sobre a Lucidez faz uma opção política decidida com base em enigmáticos votos em branco? E este escritor fantasioso e metafórico vem dizer-nos despreocupadamente que Bush é de “uma ignorância abissal, e uma expressão verbal confusa perenemente atraída pela irresistível tentação do puro despropósito”, cowboy que confundiu o mundo com uma manada de vacas, que não sabemos sequer se pensa (no sentido nobre da palavra), robot mal programado que constantemente mistura mensagens que tem registadas lá dentro, mentiroso compulsivo, corifeu de todos os outros mentirosos que o aplaudiram e serviram nos últimos anos? E este delicado tecelão de parábolas usa palavras que não deixam margem para dúvidas quando define o dono da editora que o publica? E este ateu manifesto, para quem Deus é “o silêncio do universo e o homem o grito que dá sentido a este silêncio”, repõe Deus em cena para se interrogar sobre o que pensa Ratzinger? E, militante comunista (ainda tenazmente), põe-se a gritar que “a esquerda não tem uma puta ideia do mundo em que vive”, e ainda por cima se queixa de não ter tido resposta (sei lá, uma expulsão, uma excomunhão ao menos)? E arrisca-se à acusação de anti-semitismo por ter criticado a política do Governo de Israel simplesmente esquecendo-se, na sua irada participação nas desventuras palestinas, de se lembrar – como uma equilibrada análise pretenderia – que há quem negue o direito à existência de Israel? Mas ninguém leva em conta que quando fala de Israel Saramago pensa em Jahvé, “Deus feroz e rancoroso”, e neste sentido não é mais anti-semita do que é antiariano e certamente anticristão, dado que para todas as religiões procura ajustar contas com Deus – que evidentemente, chame-se como se chamar nas várias línguas, não cessa de o importunar. E ser importunado por Deus é certamente motivo de ira furibunda contra todos os que dele fazem armadura.

Se tivesse sempre em conta os prós e os contras, Saramago também saberia que há inventivas e inventivas. Cito (de cor) Borges, que citava (talvez de cor) o doutor Johnson, que citava o facto daquele tal que insultava assim o seu adversário: “Senhor, a vossa mulher, com a desculpa de ter um bordel, vende tecidos de contrabando.” E afinal Saramago não faz cerimónias, ou seja, não o manda dizer por outro e, na sua actividade de comentador diário da realidade que o rodeia, tira a desforra sobre toda a imprecisão sinistra das suas fábulas.

Tem-se falado muito do ateísmo militante de Saramago. Com efeito, a sua polémica não é contra Deus: uma vez admitindo que “a sua eternidade é só a de um eterno não-ser”, Saramago poderia estar sossegado. A sua aversão é contra as religiões (e é por isso que o atacam de vários lados, negar Deus é concedido a todos, enquanto polemizar com as religiões põe em causa as estruturas sociais).

Uma vez, precisamente estimulado por uma das intervenções anti-religiosas de Saramago, reflecti sobre a célebre definição de Marx, para quem a religião é o ópio dos povos. Mas é verdade que as religiões têm sempre todas esta virtude soporífera? Saramago várias vezes tem atacado as religiões como fontes de conflito: “As religiões, todas elas, sem excepção, nunca servirão para aproximar e reconciliar os homens; pelo contrário, foram e continuam a ser causa de sofrimentos indescritíveis, de chacinas, de monstruosas violências físicas e espirituais que constituem um dos mais tenebrosos capítulos da mísera história humana” (La Repubblica, 20 de Setembro de 2001).

Saramago concluía algures que “se fôssemos todos ateus viveríamos numa sociedade mais pacífica”. Não tenho a certeza de que tivesse razão, e parece que indirectamente lhe teria respondido o papa Ratzinger na sua encíclica Spe salvi, em que dizia que é o ateísmo dos séculos XIX e XX, se bem que se tenha apresentado como protesto contra as injustiças do mundo e da história universal, que fez que “de tal premissa tenham resultado as maiores crueldades e violações da justiça”.

Talvez Ratzinger pensasse naqueles sandeus de Lenine e Estaline, mas esquecia-se que nas bandeiras nazis estava escrito “Gott mit uns” (que significa “Deus está connosco”), que falanges de capelães militares benzeram os arruaceiros fascistas, que inspirado em princípios religiosíssimos e apoiado por Guerrilheiros do Cristo-Rei era o massacrador Francisco Franco (independentemente dos crimes dos adversários, foi sempre ele que começou), que religiosíssimos eram os Vandeanos contra os Republicanos, que até tinham inventado uma Deusa Razão, que católicos e protestantes se massacraram alegremente durante anos e anos, que tanto os Cruzados como os seus inimigos eram impelidos por motivações religiosas, que para defender a religião romana se puseram os leões a comer os cristãos, que por razões religiosas se acenderam inúmeras fogueiras, que religiosíssimos são os fundamentalistas muçulmanos, os autores do atentado das Twin Towers, Osama e os talibãs que bombardearam os Budas, que por razões religiosas se opõem a Índia e o Paquistão, e por fim que foi a invocar God Bless America que Bush invadiu o Iraque.

Por isso me punha a reflectir que talvez (se por vezes a religião é ou foi o ópio dos povos) com maior frequência tem sido a sua cocaína. Creio que esta é também a opinião de Saramago e ofereço-lhe a definição – e a sua responsabilidade. Saramago blogger é um zangado. Mas haverá realmente um hiato entre esta prática de indignação diária sobre o transeunte e a actividade de escrita de “opúsculos morais” válidos tanto para os tempos passados como para os futuros? Escrevo este prefácio porque sinto ter alguma experiência em comum com o amigo Saramago, que é a de escrever livros (por um lado) e por outro a de nos ocuparmos de crítica de costumes num semanário. Sendo o segundo tipo de escrita mais claro e divulgador que o outro, muita gente me tem perguntado se eu não despejaria nas pequenas peças periódicas reflexões mais amplas feitas nos livros maiores. Não, respondo eu, ensina-me a experiência (mas creio que o ensina a todos os que se encontrarem em situação análoga) que é o impulso de irritação, a dica satírica, a chicotada crítica escrita à pressa, que fornecerá a seguir o material para uma reflexão ensaística ou narrativa mais desenvolvida. É a escrita diária que inspira as obras de maior empenho, e não o contrário.

E pronto, eu diria que nestes breves escritos Saramago continua a fazer a experiência do mundo tal como desgraçadamente ele é, para depois o rever a uma distância mais serena, sob a forma de moralidade poética (e às vezes pior do que é – embora pareça impossível ir mais longe).

Mas depois, estará realmente sempre assim tão zangado este mestre da filípica e da catilinária? Parece-me que além da gente que ele odeia também existe a gente que ele ama, e eis as peças afectuosas dedicadas a Pessoa (não se é português em vão) ou a Jorge Amado, a Carlos Fuentes, a Federico Mayor, a Chico Buarque de Hollanda, que nos mostram que este escritor é pouco invejoso dos colegas e sabe tecer-lhes delicadas e ternas miniaturas.

Para não falar (e eis o retorno aos grandes temas da sua narrativa) de quando da análise do quotidiano salta para os grandes problemas metafísicos, para a realidade e a aparência, para a natureza da esperança, para como são as coisas quando não estamos a olhar para elas..

Então volta à cena o Saramago filósofo-narrador, já não zangado mas meditativo e incerto. Contudo não nos desagrada mesmo quando se enfurece. É simpático.

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Literatura e sensibilidade feminina

Literatura e sensibilidade feminina

Publicado em 26 de janeiro de 2014 no Sul21

Houve tempo em que elas eram poucas, houve tempo em que Erico Verissimo dizia com certa ironia à Lygia Fagundes Telles que era bela demais para ser escritora. Este panorama, porém, alterou-se completamente. Um tanto irresponsavelmente, pinçando nomes aqui e ali, temos uma nominata nada desprezível de escritoras mulheres no Brasil. Clarice Lispector, Cecilia Meireles, Maria Alice Barroso, Rachel de Queiroz, Lygia Fagundes Teles, Nélida Piñon, Sonia Coutinho, Ana Cristina César, Hilda Hilst, Adélia Prado, Zelia Gattai, Ana Miranda, Marina Colasanti, Lygia Bojunga Nunes, Maria Adelaide Amaral, Flora Sussekind, Leyla Perrone-Moisés, Cora Coralina, Walnice Nogueira Galvão, Lucia Abreu, Regina Zilbermann, Marilena Chauí, Zulmira Ribeiro Tavares, Patricia Melo, Jane Tutikian, Fernanda Young, Claudia Tajes, Carol Bensimon, Mariana Ianelli.

O fato é que há muito tempo o termo “Literatura de Mulherzinha” tornou-se anacrônico. Apesar da dificuldade para caracterizar os elementos que fazem a literatura feminina ser diversa, os leitores reconhecem sua poética, parecendo pressentir seus elementos próprios: de modo geral, acertaremos dizendo que ela é habitualmente mais sensorial, poética e livre. Não se pode falar em gênero, pois os estilos e as temáticas variam muito. “Não se pode dizer que a literatura feminina seja sempre feita por mulheres, assim como boas narrativas gays podem ser escritas por heterossexuais e boas narrativas carcerárias podem ser escritas por gente que nunca esteve presa. Ao menos não há nada, nenhuma barreira física ou moral, que impeça isso.”, escreveu Nelson de Oliveira. “Da mesma maneira que a literatura policial não é a literatura escrita apenas pelos policiais, a literatura feminina não precisa necessariamente ser a literatura escrita apenas pelas mulheres. É certo que há policiais escrevendo literatura policial, mas também há professores, psicanalistas, filósofos… O mesmo acontece com a literatura feminina da maneira como eu a vejo: há homens e mulheres trabalhando dentro dos limites desse gênero”, completa.

Mas, se hoje Lídia Jorge é acompanhada de muitas outras, tivemos precursoras seminais. E a maior delas foi Virginia Woolf, que escreveu um curioso — e muito feminino — livro fundador.

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Virginia Woolf: a teórica e incentivadora de uma literatura feminina
Virginia Woolf: a teórica e incentivadora de uma literatura feminina

Um teto todo seu (A Room of One`s Own, 1929) é um dos mais surpreendentes livros da célebre ficcionista inglesa Virginia Woolf. A primeira surpresa é o fato de não ser ficção; a segunda é a absoluta ousadia no trato do assunto abordado: o feminismo.

O livro nasceu a partir de duas palestras chamadas “As mulheres e a ficção”, proferidas por Virginia para uma plateia essencialmente feminina da Sociedade das Artes, na Londres de outubro de 1928. O texto de Virginia tem a qualidade estupenda de seus livros da época. Mrs. Dalloway (1925), Passeio ao Farol (1927) e Orlando (1928) foram seus predecessores; As Ondas (1931) deu continuidade à série de grande livros. Encrustado na sequência mais importante de romances de Virginia, o ensaio Um teto todo seu não decepciona de modo algum. O livro tem cerca de 140 páginas. Não pensem que ela o leu por inteiro nas duas palestras – algo como 70 páginas por dia; na verdade o texto foi bastante ampliado para publicação logo após as palestras.

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As dedicatórias de José Saramago para Pilar del Río

As dedicatórias de José Saramago para Pilar del Río

Em O homem duplicado

A Pilar, até ao último instante

Em Ensaio sobre a lucidez

A Pilar, os dias todos

Em As intermitências da morte

A Pilar, minha casa

Em As pequenas memórias

A Pilar, que ainda não havia nascido, e tanto tardou a chegar

Em A viagem do elefante

A Pilar, que não deixou que eu morresse

Em Caim

A Pilar, como se dissesse água

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Kubrick e Spielberg: uma amizade improvável

Kubrick e Spielberg: uma amizade improvável

Sabiam que antes de gravar qualquer canção, Roberto Carlos consultava Tom Jobim a respeito? Só após o OK de Tom é que Roberto aprovava a divulgação de qualquer obra. O Rei ficou inconsolável com a morte de seu mentor em 1994. Ficou perdido no mundo. O mesmo aconteceu com Paulo Coelho e José Saramago. O mago só mandava seus escritos para o prelo se o português lhe dizia: tá bom, alquimista, vá em frente. Fernando Sabino fazia o mesmo com Clarice Lispector; se a autora de Água Viva e Laços de Família não lhe escrevesse “Alles klar. Clarice.”, estaríamos livres de Zélia, Uma Paixão.

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Claro que o parágrafo acima é inteiramente mentiroso. Mas o título deste texto é verdadeiro. Spielberg e Kubrick eram amicíssimos e se consultavam a respeito de seus filmes. Várias sugestões trafegavam e eram aceitas nos dois sentidos. O erudito mestre Stanley Kubrick prezava muito o mestre do entrenimento Steven Spielberg e vice-versa. Amo o cinema de Kubrick e nada tenho contra Spielberg, mas penso que dificilmente haverá dois amigos e colaboradores (mesmo que informais) mais diferentes entre si.

Steven Spielberg

A importância de Stanley Kubrick para o cinema mundial pode ser medida pela qualidade e variedade dos poucos filmes que produziu. Muito pensam que ele era inglês, mas ele foi um novaiorquino que produziu parte de sua obra na Inglaterra. Kubrick criou ficção científica, suspense, reconstituição histórica, filmes de guerra, filmes intimistas e comédia sempre com brilhantismo — com brilhantismo ofuscante, creio eu. Ele — que se definiu para Anthony Burgess como um maestro dei colore que lia bons livros, que gostava de boa música e que tentava trazer isto para seus filmes — produziu apenas 13 filmes em 46 anos de carreira. E eu garanto que você viu ou pelo menos sabe da existência de mais da metade deles. Quer comprovar?

1. Fear and desire (1953) – Que Kubrick rejeitava por ser péssimo.
2. A morte passou por perto (1955) – Idem
3. O grande golpe (1956) * – Suspense
4. Glória feita de sangue (1957) * – Guerra
5. Spartacus (1960) * – Épico romano
6. Lolita (1962) – Intimismo politicamente incorreto
7. Doutor Fantástico (1964) – Comédia
8. 2001- Uma Odisséia no Espaço (1968) * – Ficção Científica
9. Laranja Mecânica (1971) * – Futurismo anarquista
10. Barry Lyndon (1975) – Romance vitoriano de Thackeray, passado no século XVII
11. O Iluminado (1980) * – Terror
12. Nascido para Matar (1987) * – Guerra
13. De Olhos Bem Fechados (1999) * – Intimista, baseado na grande novela Breve Romance de Sonho, de Arthur Schnitzler

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Esta não é uma série de filmes clássicos, é apenas a obra de Kubrick. O que mais o distingue é a inteligência e o fato de sempre se propor a esgotar os temas aos quais se dedica, chegando, às vezes, a produzir três filmes contrastantes dentro de um só. É como se produzisse variações sobre um mesmo tema, ao estilo dos compositores eruditos. Fez isto no tríptico Laranja Mecânica — (1) Ultra-violência, (2) Tratamento Ludovico e (3) Retorno à sociedade –, em De Olhos Bem Fechados — (1) Amor, (2) Ciúme e medo e (3) Aventura mórbida — e em outros, como 2001.

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A surpreendente amizade com Spielberg só ganhou notoriedade quando da morte de Kubrick. A quem foi passada a tarefa de finalizar De Olhos Bem Fechados? Ora, a Spielberg, que era quem tinha conhecimento de todo o projeto. É sintomático que Spielberg, após este trabalho, voltasse a outro projeto de Kubrick: Inteligência Artificial. Porém, curiosamente, ao filmar a história que Kubrick filmaria a seguir, acabou realizando um tríptico típico do mestre: (1) Conhecendo e rejeitando o robô, (2) O robô solto no mundo e (3) Final açucarado para você chorar de emoção ou raiva. Esta característica musical de reapresentar o mesmo tema de diversas formas foi também assumida por Spieberg em seu filme seguinte, Minority Report. Porém, insisto…

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Caricatura retirada do The Simon Magazine, mais exatamente do artigo “Steven Spielberg’s Artificial Inheritance“, de Edward Patch.

Kubrick não se repetia, Spielberg fez 3 Indiana Jones e não sei quantos Parques dos Dinossauros. Kubrick era um erudito generalista ao estilo dos grandes homens do renascimento, Spielberg é o tarado da ação, mesmo que se declare um apaixonado pela literatura. Kubrick quase não dava entrevistas, Spielberg não para de falar. Kubrick sempre foi hostil às estéticas aceitas por hollywood e não ficou milionário, Spielberg aderiu e é produtor riquíssimo em hollywood. Kubrick realizava filmes secos, profundos, corrosivos e analíticos, Spielberg os faz normalmente divertidos, superficiais, açucarados e infantis. Kubrick fazia um filme a cada 4 anos, Spielberg faz um por ano. Um concentra, o outro dilui. Mas nada disto os impedia de discutirem seus respectivos projetos em detalhe e a resultante destas discussões poderia ser tão diferente quanto o são Parque dos Dinossauros, Indiana Jones, Nascido para Matar ou O Iluminado.

Seria respeito profissional? Admiração mútua? Amor ao que o outro tinha de inatingível? Não sei, apenas acho curioso.

(*) Filmes de Kubrick que, em minha opinião, qualquer um de nós deveria ver a fim de crescer mais alguns centímetros.

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Jorge Amado: os 100 anos do mais popular ficcionista brasileiro

Publicado em 11 de agosto de 2012 no Sul21

“Trabalho sempre, quando escrevo e quando não escrevo. Creio que o trabalho do escritor se processa mais fundo e denso enquanto ele está aparentemente ocioso. Quando amadurece o que escreverá depois. Acordo todos os dias entre 5 e 6 da manhã. E trabalho”. | Foto: Fundação Jorge Amado

Faz tempo que Jorge Amado (1912-2001) foi praticamente abandonado pela academia, que parece considerá-lo um escritor inferior, popularesco, regional ou meramente folclórico. Nos últimos anos, porém, houve algum movimento no sentido de recuperar a obra do escritor baiano. A Flip homenageou-o em 2006 e, em 2012 —  ano dedicado à Drummond — , ocorreram eventos oficiais e paralelos onde se discutiu a obra do baiano. Por outro lado, nesta sexta-feira, dia 10 de agosto, quando Jorge Amado completou 100 anos de nascimento, a academia foi acompanhada pelos principais jornais brasileiros, que publicaram poucos e tímidos artigos, ao menos no papel.

O deputado constituinte Jorga Amado | Foto: Fundação Jorge Amado

Jorge Amado foi o mais popular dos escritores brasileiros, sendo também o mais conhecido e lido no exterior em sua época. Hoje, este posto é ocupado por Paulo Coelho, mas ainda seria de Jorge Amado se nos limitássemos à literatura de ficção. Em sua época, Amado dividiu o posto de “escritor mais lido do Brasil” com Erico Verissimo (1905-1975). Eram outros tempos, tempos em que o escritor era ouvido sobre os mais diversos assuntos e ocupava uma posição de consciência ética do país. Houve um processo silencioso em todos estes anos: a importância do escritor dentro da sociedade foi levada para uma posição secundária, ele foi deslocado pouco a pouco para a periferia. Amado e Erico participaram ou opinaram sobre todos os assuntos fundamentais da vida nacional. Ambos testemunharam e participaram dos principais fatos de suas épocas. Se Erico falou e escreveu muito contra a ditadura militar (1964-1985), Amado foi deputado constituinte em 1945 pelo PCB e, em função de suas atividades extraliterárias, viveu exilado na Argentina e no Uruguai (1941 a 1942), em Paris (1948 a 1950) e em Praga (1951 a 1952). É difícil imaginar algum ficcionista ou autor de auto-ajuda brasileiro indo para o exílio, na hipótese demencial da implantação de uma ditadura militar hoje no país.

Com a atriz Sônia Braga, que personificou Gabriela e Dona Flor | Foto: Fundação Jorge Amado

Após o período como deputado, Jorge Amado viveu exclusivamente dos direitos autorais de seus livros. Aliás, mesmo durante o período como deputado, ele doava 80% de seu salário para o Partidão.

Sua obra transcendeu os limites do regionalismo modernista a que foi ligada num primeiro momento. Como escritor, pode-se dizer que houve dois Amados: a separação entre ambos seria Gabriela Cravo e Canela (1958). O primeiro Amado dedicava-se mais aos romances de costumes e à  crítica social e o segundo dava mais atenção ao humor popular, ao sincretismo religioso e à sensualidade. Tal fronteira não é rígida, mas não deixa de ser verdadeira. Em comum entre as fases está um narrador envolvente e extremamente hábil ao construir personagens e tramas. E também o fato de as duas fases apresentarem grandes romances.

A fase pré-1958, por exemplo, tem romances como o excelente Capitães da Areia (1937). Dentro de uma divertida trama baseada na vida de menores abandonados de Salvador, o romance expõe as diferenças de classe, a concentração de renda e os efeitos da marginalidade nos jovens. E pasmem, o romance, hoje lido sem maiores sustos, teve mil exemplares queimados em praça pública pelo governo da Bahia sob a acusação de ser uma obra “comunista” e “nociva à sociedade”. O livro também teve cópias apreendidas em outros estados. Outro imenso romance da primeira fase foi Terras do sem-fim (1943) que conta uma história sobre fazendeiros-coronéis, jagunços e sobre lutas pela posse de terras para desmatar e plantar cacau.

O PCB reúne-se: Amado com Pablo Neruda e Luís Carlos Prestes | Foto: Fundação Jorge Amado

Nestes livros, há a revelação de uma sociedade injusta, baseada na lei do mais rico ou armado, nas mentiras sociais e na hipocrisia geral. Pensando que foram escritos num período nada democrático, às portas do Estado Novo, Jorge Amado demonstra coragem ao criar personagens tão verossímeis, violentos e dispostos ao diálogo quanto quaisquer ditadores.

Em 1951, Amado escreveu O Mundo da Paz. É um livro de viagens que depois foi  renegado pelo autor. É compreensível; afinal, há trechos como aquele onde ele afirma que Stálin é “mestre, guia e pai, o maior cientista do mundo de hoje, o maior estadista, o maior general, aquilo que de melhor a humanidade produziu”. Em entrevista para Geneton Moraes Neto, nos anos 90, durante o colapso do comunismo nos países do leste europeu, Amado confessou: “Eu me desorientei – e muito – quando descobri que Stálin não era o pai dos povos, ao contrário do que sempre pensei. Aquele foi um processo doloroso, difícil, cruel e demorado. A maioria das causas dos acontecimentos atuais talvez já fossem claras para mim. Mas os acontecimentos são de uma rapidez imensa”.

Com o filósofo Jean-Paul Sartre e um cacau | Foto: Fundação Jorge Amado

Os livros da primeira fase, assim como os da segunda, são romances de estruturas semelhantes e para serem lidos com disposição pantagruélica: engole-se com o maior dos interesses a história contada e esquece-se dos expedientes de linguagem. Funcionam muito bem desta forma. Em Jorge Amado, a forma contribui para contar a história da forma mais eficiente possível e, de resto, esconde-se.

A fase pós-1958 marca seus maiores sucessos: o citado Gabriela, cravo e canela, Dona Flor e seus dois maridos (1966), Teresa Batista cansada de guerra (1972), Tieta do Agreste (1977) e Tocaia Grande (1984). A popularidade do escritor pode ser medida pelo simples fato de todos os livros citados neste parágrafo terem se tornado novelas de TV, seja na Rede Globo ou na extinta TV Manchete. Há também os filmes. Basta dizer que Dona Flor e seus dois maridos foi por 34 anos o recordista de público no cinema brasileiro: foram 10 milhões de espectadores, até ser ultrapassado por Tropa de Elite 2 em 2010.

Um livro especialmente interessante são suas memórias em Navegação de cabotagem (1992). No texto são desfiados diversos casos e fatos, narrados com delicioso humor e fora de ordem cronológica. Fica a comprovação de que Jorge Amado testemunhou grandes acontecimentos do século XX e que, em sua trajetória pessoal, desempenhou um papel central na cultura brasileira. Por outro lado, é o mais despretensioso dos livros de memórias, abrangendo desorganizadamente o longo período entre meados da década de 20, do qual Jorge Amado recorda o ciclo do cacau e o movimento da Academia dos Rebeldes (grupo literário do qual fez parte na juventude), e o começo dos anos 90.

Na leitura dos livros de Jorge Amado, sempre é bom manter a disciplina da leitura. As primeiras páginas são dedicadas a uma balzaquiana apresentação de personagens e da trama. Após este obstáculo, a leitura envolve e emociona. Quando perguntado sobre como gostaria de ser lembrado, Jorge Amado respondia:  “Como um baiano romântico e sensual. Eu me pareço com meus personagens — às vezes, também com as mulheres”. Amado costumava fazer pouco de sua importância. Em 1991, disse: “Quando eu morrer, vou passar uns vinte anos esquecido”.

O velhos comunistas Amado e Saramago | Foto: Fundação Jorge Amado

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“Vou passar uns vinte anos esquecido” | Foto: Fundação Jorge Amado

Bibliografia completa:

— O País do Carnaval, romance (1930)
— Cacau, romance (1933)
— Suor, romance (1934)
— Jubiabá, romance (1935)
— Mar morto, romance (1936)
— Capitães da areia, romance (1937)
— A estrada do mar, poesia (1938)
— ABC de Castro Alves, biografia (1941)
— O cavaleiro da esperança, biografia (1942)
— Terras do Sem-Fim, romance (1943)
— São Jorge dos Ilhéus, romance (1944)
— Bahia de Todos os Santos, guia (1945)
— Seara vermelha, romance (1946)
— O amor do soldado, teatro (1947)
— O mundo da paz, viagens (1951)
— Os subterrâneos da liberdade, romance (1954)
— Gabriela, cravo e canela, romance (1958)
— A morte e a morte de Quincas Berro d’Água, romance (1961)
— Os velhos marinheiros ou o capitão de longo curso, romance (1961)
— Os pastores da noite, romance (1964)
— O Compadre de Ogum, romance (1964)
— Dona Flor e Seus Dois Maridos, romance (1966)
— Tenda dos milagres, romance (1969)
— Teresa Batista cansada de guerra, romance (1972)
— O gato Malhado e a andorinha Sinhá, historieta infanto-juvenil (1976)
— Tieta do Agreste, romance (1977)
— Farda, fardão, camisola de dormir, romance (1979)
— Do recente milagre dos pássaros, contos (1979)
— O menino grapiúna, memórias (1982)
— A bola e o goleiro, literatura infantil (1984)
— Tocaia grande, romance (1984)
— O sumiço da santa, romance (1988)
— Navegação de cabotagem, memórias (1992)
— A descoberta da América pelos turcos, romance (1994)
— O milagre dos pássaros , fábula (1997)
— Hora da Guerra, crônicas (2008)

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Opus Dei: os livros proibidos pela instituição

Estes são dois fragmentos — os mais literários — de uma série publicada pelo Diário de Notícias de Portugal. O autor é o jornalista Rui Pedro Antunes.

‘Index’ proíbe 79 livros de autores portugueses

Autores e especialistas portugueses mostram-se indignados por o Opus Dei ter uma lista de livros que proíbe os seus membros de ler. José Saramago é um dos escritores mais castigados ao nível mundial, sendo um dos recordistas no número de livros proibidos. Também ‘censurada’, Lídia Jorge diz que o Opus Dei deveria ter “vergonha” de ter este tipo de listagem, igualmente arrasada pela Sociedade Portuguesa de Autores. A lista é, porém, ‘legal’.

José Saramago e Eça de Queirós são os escritores portugueses mais castigados pela “lista negra” de livros do Opus Dei. A organização da Igreja Católica tem uma listagem de livros proibidos, com diferentes níveis de gravidade (ver topo da página), na qual põe restrições a 33 573 livros. Nos três níveis mais elevados de proibição encontram-se 79 obras de escritores portugueses. Autores portugueses contactados pelo DN mostram-se indignados com o que classificam de “Index” e “livros da fogueira”.

O Opus Dei sempre teve um Guia Bibliográfico, onde incluía os livros proibidos, com uma classificação de 1 a 6 (o nível mais elevado). Há quatro anos, aquilo que era uma lista de Excel que circulava pelos membros da obra, ganhou forma na Internet (http://almudi.org) e passou a estar aberto à contribuição dos membros. Como explica o Opus Dei Portugal, passou a existir um site “tipo crowdsourcing, aberto à contribuição de interessados, moderado por dois editores: Carlos Cremades e Jorge Verdià [membros da obra]”. Mudaram-se as designações, dividiram-se os livros em duas partes (literatura e não ficção), mas mantiveram-se os níveis de proibição. E há uma novidade: uma lista de filmes “desaconselhados”.

“Deus é um filho da puta”, escreveu Saramago num dos livros proibidos (Caim). Porém, não é preciso haver um nível tão direto de confronto à Igreja para que o livro seja proibido. Só nos três mais elevados níveis de interdição, Saramago tem 12 livros. Caim, o Evangelho Segundo Jesus Cristo, o Manual de Pintura e Caligrafia e o Memorial do Convento são definidos como os mais perigosos (6; LC-3).

A presidente da Fundação Saramago e viúva do escritor, Pilar del Río, classifica em entrevista ao DN (ver página 33) este índice de “grosseiro e repugnante”, deixando várias críticas à obra: “É uma organização a que chamamos seita porque somos educados. Por acaso, eles não são.” Pilar revela ainda que Saramago nunca escreveu sobre o Opus Dei porque considerava a organização “uma formiga” e mostra-se ainda chocada pelo facto de “neste nível de pensamento cartesiano e da razão haja quem se submeta à irracionalidade das seitas”.

A escritora Lídia Jorge – que também tem dois livros no mais elevado nível de proibição (Costa dos Murmúrios e O Dia dos Prodígios) – confessou-se “chocada” quando confrontada pelo DN com a existência da lista. Lídia Jorge disse mesmo que os membros do Opus Dei deviam ter “vergonha” e classifica quem fez a listagem de “gente retrógrada e abstrusa”. “São pessoas que desprezo porque se armam em mentores, em guardas morais, quando, no fundo, revelam uma ignorância absoluta sobre o papel da literatura.” Quanto às duas obras proibidas, Lídia Jorge explica que têm “uma linguagem e uma atitude mais libertária perante a vida” e que, talvez por isso, tenham sido censuradas. O que a repugna.

Freud e Marx, os mais censurados na não ficção

Tudo o que são clássicos e grandes obras da literatura mundial passaram pelo crivo dos delegados de estudos do Opus Dei. Por isso é difícil encontrar um grande escritor que não tenha sido ‘censurado’ pela obra. Dos últimos 15 prémios Nobel da Literatura só um não tem livros proibidos. Os restantes 14 têm 72 obras ‘proibidas’. Na não ficção, que inclui obras de grande importância científica, Marx, Freud ou Nietzsche estão entre os que não escaparam ao ‘lápis azul’ da organização.

As aventuras de Leopold Bloom a fazer a sua odisseia por Dublin (em Ulisses, de James Joyce), a chegada de Cândido a Lisboa após o terramoto de 1755 (em Cândido, de Voltaire) ou as dúvidas existenciais de Zuckerman (obras de Philip Roth) são histórias que os membros do Opus Dei não podem desfrutar. Grandes nomes da literatura e das ciências sociais mundiais fazem parte da lista de 33 573 livros proibidos pela obra.

Olhando, por exemplo, para os últimos 15 prémios Nobel da Literatura, apenas um (Le Clézio) escapou à lista negra de livros do Opus Dei. Só nos três mais elevados níveis de proibição (ver infografia na página 31) existem 72 obras. O peruano Mario Vargas Llosa (Nobel em 2010) conta com 17 obras nestes níveis de proibição. É imediatamente seguido pelo português José Saramago, com 12 títulos (ver páginas 30 e 31). Mas a lista não para por aqui: Doris Lessing (nove livros), John Coetzee (oito), Günter Grass (sete) e Elfriede Jelinek (quatro) são outros dos mais castigados. Orhan Pamuk apenas foi brindado com um livro proibido e os dois últimos nóbeis (Mo Yan e Tomas Tranströmer) têm livros classificados com níveis de interdição mais baixos.

E a lista de grandes autores proibidos está longe de se esgotar nos últimos laureados pelo maior prémio da literatura. O romance Ulisses, de James Joyce – um marco do modernismo literário -, tem o mais elevado nível de proibição (6; L-C3). O mesmo acontece com livros de autores como Albert Camus, Gabriel García Márquez, Samuel Beckett, Jean-Paul Sartre (também eles Nobéis), Voltaire, Aldous Huxley, Henry Miller, Truman Capote, Philip Roth ou Vladimir Nabokov.

Também “censurados”, mas com níveis de proibição mais baixos, surgem os nomes de Ernest Hemingway, Orwell, Jorge Luis Borges, Dostoievski, Kafka ou F. Scott Fitzgerald.

O líder do Opus Dei Portugal, José Rafael Espírito Santo, explica que esta lista é “no fundo estar a procurar um conselho para defender a fé”, lembrando que “o Papa João Paulo II antes de ler um livro consultava e perguntava se era um livro adequado”. O vigário regional do Opus Dei utiliza ainda uma metáfora para justificar a lista: “Há medicamentos que só se vendem com receita médica. Por quê? Porque uma pessoa que não saiba, em vez de fazer bem à saúde, pode fazer mal. A fé não se apoia na razão. E, portanto, pode haver modos de empregar a razão que sejam nocivos para o próprio ser humano porque a verdade é só uma.”

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Gabriel García Márquez em seu labirinto

Publicado em 7 de julho de 2011 no Sul21

Voz distinta, autor de uma obra inimitável |  Foto: Richard Emblin/Nobel Prize.org

Gabriel García Márquez não escreverá mais. É o que disse ontem (6) seu irmão Jaime. Toda doença é lastimável, porém Gabo está preso a mais vulgar e injusta das enfermidades para um escritor, a demência senil. Ele está perdendo a memória e a arte literária que, sabemos, consiste muito em conseguir mapear, sentir e viver vários personagens. Há a necessidade do talento e da memória. Juntas. Como fazê-lo na senilidade? Claro que a senilidade é tão triste em García Márquez quanto em anônimos, porém como estamos acostumados a espreitar o mundo através do imaginário do escritor, a situação parece mais triste. Onde estará Aureliano Buendía, o que estará fazendo? E Florentino Ariza? Segue esperando? Pelo quê?

O irmão, Jaime García Marquez, informou ao El País sobre o estágio avançado de demência que provoca a perda de memória do colombiano. Ele conta que Gabo liga diariamente do México para sua casa, em Cartagena, a fim de recordar fatos corriqueiros que estão desaparecendo de sua mente em razão da doença. Fisicamente, no entanto, ele está bem. Jaime, 13 anos mais jovem do que Gabriel, de 84 anos, diz que a decrepitude chegou precocemente como decorrência da quimioterapia que lhe salvou de um câncer linfático em 1999. Com sua memória, explica Jaime, vai-se a genialidade.

O escritor teria dois romances parcialmente escritos: Tigra e Em agosto nos vemos. O primeiro conta a história de uma fêmea de tigre adotada por um caçador, um magnata de Nova York que matara sua mulher. De Em agosto nos vemos o escritor já teria feito várias versões. Mas, segundo Jaime, é possível que ele tenha destruído os manuscritos, já que costumava jogar numa trituradora de papel tudo que não lhe agradava.

Gabriel García Márquez recebendo um de seus muitos prêmios, em foto tirada pouco antes da quimioterapia de 1999

Em sua última novela, Memórias de Minhas Putas Tristes (2004), já havia claros sinais da decadência. Lançado no Brasil quase ao mesmo tempo que As Intermitências da Morte (2005), de José Saramago, era impressionante a comparação entre a vitalidade do português e o cansaço do colombiano, cuja brilhante e colorida literatura aparecia amenizada em tons que não eram seus. Deste modo, talvez seja melhor não conhecer estes dois últimos livros.

A relação de livros de Gabriel García Márquez é um atestado de uma grandeza que nenhum outro escritor vivo pode ostentar: Cem Anos de Solidão, A incrível e triste história de Cândida Erêndira e sua avó desalmada, Os Funerais da Mamãe GrandeO Outono do Patriarca, O General em seu Labirinto, O Veneno da Madrugada, Crônica de uma morte anunciada, O Amor nos Tempos do Cólera, Viver para Contar,  etc.

Seus trabalhos iniciais eram decididamente de inspiração kafkiana. Porém, em 1967, ele subitamente adquiriu voz distinta e saltou para a fama com Cem Anos de Solidão. De um ano para outro, García Márquez tornou-se um dos grandes nomes da literatura sul-americana, narrando a decadência e a indireção do continente com uma mistura de amargura e romantismo.  Tal característica foi lembrada na justificativa para o Prêmio Nobel de Literatura de 1982: “por seus romances e contos, nos quais o fantástico e o real são combinados em um mundo ricamente composto de imaginação, refletindo a vida de um continente e seus conflitos”. Macondo, a cidade sede da grande construção de García Márquez, deveria ser preservada em nossa memória como um reduto de loucos e sonhadores. Deveríamos decretar que nenhuma cidade latino-americana assim se denominasse, para que pudéssemos ali nos refugiar de nossa realidade às vezes assombrosa.  (Vide Paraguai).

Gabriel confirmava que fora levado à literatura por Kafka, mais exatamente por A metamorfose — lida em uma tradução de Jorge Luis Borges. Ele disse que aquilo mudou sua vida: o tom lembrava o das histórias contadas por sua avó. “Eu não sabia de alguém que tivesse coragem de escrever daquela forma ou que se sentisse autorizado a tanto. Se soubesse, teria começado a escrever há muito mais tempo”. Também era um grande admirador de William Faulkner — sua fictícia Macondo é devedora da impronunciável Yoknaputawpha County do norte-americano.

García Márquez, ou simplesmente Gabo, completou os primeiros estudos em Barranquilla e Zipaquirá. Por insistência dos pais, começou o curso de direito na Universidade Nacional de Bogotá, mas logo enveredou para o jornalismo, assumindo uma coluna diária no recém-fundado jornal “El Universal”. Nunca se graduou em nada. Mudou-se para o “El Espectador”, onde se tornou um reconhecido cronista e repórter. Em 1955, viajou para a Europa como correspondente do jornal, após a publicação de uma extensa reportagem, “Relato de um Náufrago”, que desagradou ao governo do general Roja Pinillas.

Gabo, sorridente, como  sempre. | Foto: Jose Lara/Flickr

No final dos anos 50, de volta às Américas, trabalhou em Caracas, em Cuba, onde passou seis meses, e em Nova York, dirigindo a agência de notícias cubana Prensa Latina. Em 1960, García Márquez mudou-se para a Cidade do México e começou a escrever roteiros de cinema. No ano seguinte, publicou Ninguém Escreve ao Coronel e, em 1962, O Veneno da Madrugada, que ganhou o Prêmio Esso de Romance, na Colômbia.

Em 1966, segundo depoimento do escritor mexicano Carlos Fuentes, quando voltava do balneário de Acapulco para a Cidade do México, García Márquez teve o momento de inspiração para escrever o romance que ruminava há mais de uma década. Largou o emprego, deixando o sustento da casa e dos dois filhos a cargo da mulher, Mercedes Barcha. Isolou-se pelos 18 meses seguintes, trabalhando diariamente por mais de oito horas. E assim criou sua obra mais conhecida, Cem Anos de Solidão — unânime obra-prima da literatura mundial.

Ali, García Márquez — que já era um narrador poderoso em livros anteriores — estabeleceu algumas características que o acompanharam em livros posteriores. O uso estético de exageros inadmissíveis na realidade; os elementos fantásticos percebidos como normais pelos personagens e pelo autor; o tempo sentido como cíclico, não linear, para que o presente se repita ou se pareça ao passado. E a poesia, grandes poesia e compreensão humana. Era um autor muito particular. Trazia tantas novidades que foi o epicentro do boom da literatura latino-americana no mundo inteiro. Foi imitadíssimo, sem sucesso.

O escritor retornou ao jornalismo em 1999, quando passou a dirigir a revista “Cambio”. Em 2002, publicou “Viver Para Contá-la”, primeiro volume de sua autobiografia que ficará incompleta. Alguns de seus textos foram adaptados para o cinema, como Eréndira, de 1983, estrelado por Cláudia Ohana e dirigido por Ruy Guerra, e O Amor nos Tempos do Cólera, de 2007, dirigido pelo inglês Mike Newell, e com a participação de Fernanda Montenegro.

Plínio Apuleyo Mendoza, jornalista e escritor de Cheiro da goiaba, que reúne memórias de García Márquez, disse à revista digital Kienyke que o autor já não reconhece mais as pessoas pela voz.

Um autor profundamente latino-americano, como reconheceu a Academia Sueca | Foto: Scott Dalton/For The Chronicle/HC

Mendoza contou que telefonou para o amigo no último dia 6 de março, em seu aniversário de 85 anos, mas que ele não pode falar. “No dia que completou 85 anos, liguei para García Márquez mas não falei com ele. Conversei com Mercedes [Barcha, sua esposa] e ela preferiu não passar o telefone porque ele não reconhece mais vozes”, afirmou o jornalista.

Ainda segundo Mendoza, da última vez que conversaram, já há alguns anos, o escritor esquecia coisas e perguntava repetidamente “quando eu chegara e onde estava hospedado”, em compensação, “quando fomos almoçar, lembrava de coisas muito antigas de 30 ou 40 anos atrás, remotas”. O jornalista também recordou que tanto a mãe do escritor como um de seus irmãos, que já morreram, sofreram do Mal de Alzheimer.

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O centenário de Contos Gauchescos, de Simões Lopes Neto

Publicado em 25/02/2012 no Sul21

Não é à toa que Contos Gauchescos faz parte da lista de leituras obrigatórias para o vestibular da UFRGS nos últimos anos. Ele ali está na justa companhia de José Saramago (História do Cerco de Lisboa), Guimarães Rosa (Manuelzão e Miguilim) e de outros. E de outros menores, deveria dizer. Claro, a lista da UFRGS não é garantia de qualidade — por exemplo, lá não estão Erico nem Dyonélio –, mas serve como comprovação de que o pequeno volume de 19 contos narrados por Blau Nunes está bem vivo.

Contos Gauchescos (1912) é o segundo livro de João Simões Lopes Neto (1865-1916), que também escreveu Cancioneiro Guasca (1910), Lendas do Sul (1913) e Casos do Romualdo (1914). O autor viveu 51 anos e publicou apenas quatro livros. Talvez sejam muitos, se considerarmos a colorida vida do autor.

Casa onde residiu Simões Lopes Neto em Pelotas. Hoje abriga o Instituto João Simões Lopes Neto (Rua Dom Pedro II, 810)

Simões Lopes Neto nasceu em Pelotas, na estância da Graça, filho de uma tradicional família da região, proprietária de muitas terras. Aos treze anos, foi para o Rio de Janeiro a fim de estudar no famoso Colégio Abílio. Retornando ao Rio Grande do Sul, fixou-se para sempre em Pelotas, então uma cidade rica para os padrões gaúchos. Cerca de cinquenta charqueadas formavam a base de sua economia. Porém, engana-se quem pensa que Simões andava de bombacha. Seus hábitos eram urbanos e as histórias contadas nos Contos Gauchescos eram baseadas em reminiscências, histórias de infância e, bem, a verdade ficcional as indica como de autoria de Blau Nunes, não? A epígrafe da obra deixa isto muito claro: À memória de pai. Saudade. Mas voltemos ao autor.

Sua vida em Pelotas não foi nada monótona. Abriu primeiro uma fábrica de vidro e uma destilaria. Não deram certo. Depois criou a Diabo, uma fábrica de cigarros cujo nome gerou protestos da igreja local. Seu empreendedorismo levou-o ainda a montar uma empresa para torrar e moer café e a desenvolver uma fórmula à base de tabaco para combater sarna e carrapatos. Fundou também uma mineradora. Nada deu muito certo para o sonhador e inventivo João, que foi também professor e tabelião, mas ao fim e ao cabo apenas sobreviveria como jornalista em Pelotas, conseguindo com dificuldades publicar seus livros e folhetins, assim como montar suas peças teatrais e operetas. Este faz-tudo faleceu em total pobreza.

A primeira edição de Contos Gauchescos foi publicada em 1912. Se o ano é este, a data exata da publicação parece ter sido perdida. Na primeira página do volume é feita a apresentação do vaqueano Blau Nunes, que o autor afirma ter sido seu guia numa longa viagem pelo interior do Rio Grande do Sul.

PATRÍCIO, apresento-te Blau, o vaqueano. Eu tenho cruzado o nosso Estado em caprichoso ziguezague. Já senti a ardentia das areias desoladas do litoral; já me recreei nas encantadoras ilhas da lagoa Mirim; fatiguei-me na extensão da coxilha de Santana, molhei as mãos no soberbo Uruguai, tive o estremecimento do medo nas ásperas penedias do Caverá; já colhi malmequeres nas planícies do Saicã, oscilei entre as águas grandes do Ibicuí; palmilhei os quatro ângulos da derrocada fortaleza de Santa Tecla, pousei em São Gabriel, a forja rebrilhante que tantas espadas valorosas temperou, e, arrastado no turbilhão das máquinas possantes, corri pelas paragens magníficas de Tupanciretã, o nome doce, que no lábio ingênuo dos caboclos quer dizer os campos onde repousou a mãe de Deus…

(…)

Genuíno tipo – crioulo – rio-grandense (hoje tão modificado), era Blau o guasca sadio, a um tempo leal e ingênuo, impulsivo na alegria e na temeridade, precavido, perspicaz, sóbrio e infatigável; e dotado de uma memória de rara nitidez brilhando através de imaginosa e encantadora loquacidade servida e floreada pelo vivo e pitoresco dialeto gauchesco.

(…)

Querido digno velho!
Saudoso Blau!

Patrício, escuta-o.

Capa da edição pocket da L&PM

Após esta apresentação — de pouco mais de duas páginas na edição pocket da L&PM — , está pronto o cenário para os 19 contos (ou “causos”) que o narrador Blau Nunes contará a seu patrício. Blau é o protagonista de algumas histórias, em outras é um assistente interessado que banha os fatos de intensa subjetividade. E aqui chegamos ao que o livro apresenta de mais original: o trabalho de linguagem de Simões Lopes Neto. Os contos são “falados”, são “causos” contados por Blau e a linguagem acaba por ser uma representação da fala popular misturada a uma inflexão erudita — certamente a de Simões — , transformando-se numa terceira forma de expressão. Numa belíssima terceira forma de expressão. Sabemos que o leitor do Sul21 já está pensando em Guimarães Rosa e tem toda a razão. Rosa confessou que seu texto tinha muito da influência de Simões. O gaúcho abriu as portas para as grandes criações do autor de Grande Sertão: Veredas e esta afirmativa não é a do ufanismo vazio que procura gaúchos em navios adernados, mas uma manifestação de consistente orgulho.

E, assim como nos livros de Rosa, a linguagem de Simões Lopes Neto talvez soe estranha à princípio, apesar de que o estranhamento é muito menor do que aquele com que se depara o leitor do mineiro. Se lá Rosa cria palavras utilizando seu enciclopédico conhecimento etimológico, se lá utiliza-se até de línguas eslavas; aqui Simões transforma o sotaque da região onde nasceu. Há os adágios populares, há os muitos gauchismos do campo e da cidade e há as expressões típicas da fronteira, recheadas de espanholismos. A memória de Blau Nunes é a memória geral do pampa narrando os acontecimentos principais de sua história que, em mosaico, formam uma visão subjetiva da região e de sua gente. Era 1912, não havia regionalismo, estávamos a 10 anos da Semana de Arte Moderna e 4 anos após o falecimento e Machado de Assis. Estamos, pois, falando da literatura de um pioneiro.

Ilustração de uma edição de Contos Gauchescos

Mas Simões Lopes Neto não trabalha apenas a linguagem, é um escritor que sabe criar constante subtexto. Ou seja, há as palavras, mas há um grande contador de histórias trabalhando-as, jogando informações subjacentes que reforçam ou contradizem o que está sendo contado. Isto pode ser sentido no pequeno conto O negro Bonifácio e no tristíssimo No Manantial — segundo e terceiro contos da coleção. A propósito, no CD Ramilonga, Vitor Ramil fez uma homenagem a No Manantial. A frase que é dita no início da canção é a primeira do conto e a que a encerra — Vancê está vendo bem, agora? — está próxima ao final do conto. É uma justa homenagem. Talvez No Manantial seja o melhor conto escrito por autor gaúcho até o surgimento de Sergio Faraco. Apenas em 1937, com a publicação de Sem rumo e Porteira fechada (1944), de Cyro Martins, e de O Continente (Erico Verissimo, 1949), a literatura do RS produziria outras grandes figuras ficcionais gaúchas. Dizia Tolstói: Se queres ser universal começa por pintar a tua aldeia. E Blau Nunes, na condição de narrador e protagonista dos Contos Gauchescos, é um gaúcho de qualquer latitude.

Marcelo Spalding, em excelente artigo análogo a este, finaliza citando a definição de Italo Calvino para o que seria um clássico. De seu artigo, roubamos duas frases de Calvino que, a nosso ver, cabem tão adequadamente a Contos Gauchescos que não há razão para não citá-las. Segundo Calvino, um clássico é uma obra que provoca incessantemente uma nuvem de discursos críticos sobre si, mas continuamente as repele para longe. Mais: clássicos seriam livros que, quando mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos  se revelam novos, inesperados, inéditos. E, avançando no perigoso terreno do tradicionalismo gaúcho, arriscamos dizer que a ligação com o, em sua maioria, tosco movimento, acaba por prejudicar o autor de Contos Gauchescos. O fato de haver inclusive uma Medalha Simões Lopes Neto faz com que muitos leitores do RS o associem ao MTG e deixem de entrar em contato um autor muito sofisticado. Pois o homem que desejava livrar-nos da sarna e dos carrapatos produziu grande literatura.

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"Charla" com Pilar del Río sobre o filme José e Pilar

O El País proporcionou um chat de seus leitores com Pilar del Río. Eu achei interessante. Poderia corrigir os erros de digitação dos leitores e de Pilar, mas apenas acertei os mais evidentes. Admiro seu feminismo duro e articulado, se me entendem.

~o~

Leitor do El País: Hola Pilar, te escribo desde Euskadi. Un par de preguntas: ¿cuando dejaras de ser para los medios la viuda de José Saramago y pasarás a ser la Presidenta de la Fundación José Saramago (tengo el recuerdo del pie de foto del 50 aniversario de Santillana)?. Es conocido tu cariño y preocupación por la situación en Euskadi. ¿Cómo la ves en este momento? Pacto PSE-PP, tregua de ETA, movimientos de la izquierda abertzale… Gracias.

Pilar del Río: Fermín, no me dejan hacer un ensayo en esta sección… Espero que los medios de comunicación dejen de llamarme ‘La viuda de Saramago’ ya porque soy la mujer de Saramago o la novia de Saramago y desde luego soy la presidenta de la Fundación Saramago, cosa que no sé si por machismo o por frivolidad, algunos prefieren ignorar. En cuanto a lo de la paz en Euskadi y los pactos, hijo, a ver si os ponéis de acuerdo, lo solucionáis de una vez por todas que estamos hartitos todos de vuestros problemas y de vuestros sufrimientos. Solidarios, pero también hartitos. Vamos a hacer el futuro y a dejar de pensar en el pasado. El de Franco y el que no hemos sabido solucionar los que hemos venido después de Franco.

Leitor do El País: ¿Cómo recordará Saramago a Castril?

Pilar del Río: ¿No será mejor cómo recordará Castril a Saramago? ¿Se darán cuenta en el pueblo de mi madre que tuvieron el privilegio de compartir momentos de belleza y de intimidad, como nuestra boda en España, con uno de los hombres que más ha dignificado el siglo XX?

Leitor do El País: ¿Con qué cosas (actividades) se divertía más don José? ¿Qué cosas le causaban risa?

Pilar del Río: Todos los días se reía con el programa de El Gran Wyoming (‘El intermedio’). Le divertía el buen cine (Fellini o Bergman o Almodóvar, por ejemplo), las buenas series de televisión, vimos ‘El ala oeste de la Casa Blanca’ de principio a fin, le gustaban lo libros de ciencia ficción, la buena literatura también, nuestros perros, los solitarios, la música:sus últimos días, cuando ya no podía casi seguir una película veía y oía ópera en la sala de proyección que tenemos en nuestra casa. La belleza de Mozart y de Beethoven le dieron refugio en esos malos momentos.

Leitor do El País: ¿De qué manera cree que los años vividos en Lanzarote han influído en la obra y en la forma de ver la vida de su marido? Gracias

Pilar del Río: Sí. El dijo que hasta ‘El evangelio según Jesucristo’, había tratado de describir la estatua, que tal vez influído por la aridez de Lanzarote ahora lo que le interesaba era la piedra de la que estaba hecha la estatua.

Leitor do El País: He leido una hermosa entrevista suya al Subcomandante Marcos. ¿Sigue escribiendo?

Pilar del Río: No. No tengo medio donde publicar.

Leitor do El País: ¿Qué opinas de la reciente victoria de Cavaco Silva en Portugal?

Pilar del Río: Prefiero opinar del 53% de abstención. ¿Qué tipo de sociedad estamos haciendo para que el 53% de las personas se queden en su casa y no se tomen la molestia en emitir un voto que a su vez es una opinión?

Leitor do El País: En Cuadernos de Lanzarote, Saramago escribe sobre las intromisiones de EEUU en Portugal. ¿Que podríamos haber leido en el Cuaderno de Saramago acerca de Wikileaks? Un abrazo, y mi admiración por Saramago.

Pilar del Río: Nunca me atrevería a interpretar a Saramago. Lo siento, no puedo contestar a esta pregunta.

Leitor do El País: ¿Quiénes eran los escritores de cabecera de Saramago, los que más le marcaron?

Pilar del Río: Kafka, en el siglo XX, Borges y Pessoa. Cervantes, Gogol y el padre Vieiras, un jesuíta portugués, parecido a nuestro Bartolomé de las Casas, del que Saramago decía que nunca el portugués sonó tan bello y tan armonioso de como él lo escribió.

Leitor do El País: Por qué está exhibición de su vida personal que no interesa, o no debería interesar? Yo que José Saramago ha dejado una obra maravillosa que no necesita de esta publicidad como si se tratara de Angelina y Brad Pitt….

Pilar del Río: Me parece bien que a usted no le interese la vida de José Saramago, yo daría lo que no tengo por ver una película así de Cortazar, Proust, Borges… He visto ‘La última estación’ de Tolstoi emocionada y eso que Tolstoi estaba interpretado por un actor. Hay personas a las que sí nos interesan los autores que escriben los libros. Saramago abrió su casa en un gesto de generosidad, no su intimidad, sí su cotidianidad. Es una película para los amigos de Saramago. Simplemente.

Leitor do El País: He leido y visto en la pagina de la Fundacion Saramago q todos los 18 de cada mes se hace un homenaje hasta el noveno mes. ¿Que significado tiene eso? Gracias

Pilar del Río: Saramago decía que una persona no está muerta del todo hasta pasado nueve meses, como los nueve meses primeros no está vida del todo, por eso los días 18 de estos 9 meses nos reunimos amigos en distintos continentes y de distintas maneras pero siempre para brindar por la vida de Saramago. Hay música, hay lecturas de textos, se cuentan experiencias, y siempre, siempre, terminamos brindando por la vida de Saramago. El reunirnos con Saramago los 18 está sacado de una complicidad entre Pessoa y Ricardo Reis que Saramago cuenta en ‘El año de la muerte de Ricardo Reis’.

Leitor do El País: Hola Pilar! Pude ver el estreno del documental en el Maestranza. Sólo puedo decirte que me emocionasteis. No decaigas, que no te vengan los momentos de desánimo, que la palabra de José no puede caer en el silencio. Gracias a tí y a José.

Pilar del Río: ¡Qué bien que entendieras la película! Porque es una película de amor, el amor que se proyecta desde la pantalla y que abarca a los espectadores y el amor de los espectadores hacia Saramago. En todas las sesiones en las que he estado he sentido la emoción a parte de las muchas risas y alguno que otro sollozo contenido.

Leitor do El País: En mi opinión la obra de José Saramago, de la que soy un ávido lector y admirador, tiene una fuerte influencia del Quijote, especialmente podría decir en El Evangelio según Jesucristo, La intermitencias de la muerte o Caín. En ellas alcanza una maestría y una libertad en la escritura admirables, pero también un juego en la estructura, así del papel del que me recuerdan a la gran novela de Cervantes. Cuál es su criterio al respecto? gracias. Saludos Pilar, como si se dijera agua.

Pilar del Río: Lázaro Carreter, que fue presidente de la RAE, escribió un día que Saramago era el escritor más ‘cervantiano’ que existía en estos momentos. Es más, dijo que ‘La balsa de piedra’ era como un ‘El Quijote’ de ahora, esos personajes recorriendo La Mancha que es España, luchando con molinos de viento, llendo hacia América como Don Quijote iba hacia Dulcinea. Yo solo soy una periodista de provincias, nunca diría que Lázaro Carreter estaba equivocado.

Leitor do El País: Pilar , era Saramago feminista ????, Te seguía en tus ideas feministas que las percibo en la pelicula ???He visto la película y además de descubrir a Saramago que a través de sus libros lo intuía , te he descubierto a ti , una gran mujer .Que buena respuesta en Portugal , cuando te preguntan por la legalización del matrimonio entre parejas del mismo sexo , y el peligro de la familia ,y que grande tu respuesta en contra de la homofobia ……Saludos Y felicidades por la película .

Pilar del Río: Respondo a un periodista portugués que la legalización de los matrimonios homosexuales era la correción de un deficil democrático. Lo creo firmemente. En cuanto a si Saramago era feminista, respóndame usted. Mire como son los personajes femeninos en su obra. Y ya me dirá. En cuanto a la discusión sobre Hillary Clinton no deja de ser una anécdota. De la que, por cierto, no me apeo.

Leitor do El País: Siempre Saramago. Hola Pilar. Al final de su vida José apoyo pronunciadamente al juez Baltasar Garzón. ¿Cómo veía él lo que le está ocurriendo al juez?

Pilar del Río: El último artículo que José Saramago escribió en su vida fue sobre Baltazar Garzón y decía que ese juez era de los que demostraban que la justicia no ha muerto. El penúltimo artículo que José Saramago dictó porque ya no podía escribir fue viendo en el Telediario salir a Baltasar Garzón de la Audiencia Nacional expulsado por sus pares. Entonces dijo: “Las lágrimas de Baltasar Garzón son mis lágrimas.” Era un amigo, en Argentina consolaron juntos a las madres que les habían matado a sus hijos, en España recibieron juntos a los nietos que buscaban a sus abuelos para enterrarlos juntos a sus abuelas. Le respetaba y le quería. Garzón me acompañó la primera vez que entré en casa ya sin Saramago y ese gesto de amistad no lo olvidaré nunca. Quiero añadir también que lo último que Saramago dictó fue el 2 de junio, el murió el 18. Fueron solo dos palabras: “Gracias Mankell.” Cuando lo vio en la flotilla de la paz a la que Saramago estaba invitado pero que la enfermedad le impidió ir. Que un compañero de letras estuviera ahí le reconfortó en sus últimos días.

Leitor do El País: ¿Qué más le da fuerza para vivir hoy sin Saramago?

Pilar del Río: ¿Quién le ha dicho que vivo sin Saramago?

Leitor do El País: Esta pregunta va desde el cariño. Nunca he leido a José Saramago. Por favor, dígame una razón para ser su lector. Gracias.

Pilar del Río: Porque cuando acabe de leer a Saramago se sentirá más listo, más alto, más guapo, más rubio, más bueno. Porque se sentirá respetado como lector, porque tendrá que poner mucho de su parte para entender y se dará cuenta que usted es más sabio de lo que creía.

Leitor do El País: ¿Por qué ha pedido usted la nacionalidad portuguesa? Saramago es para nosotros algo más que un escritor ibérico, es “uno de los nuestros” sentimos mucho que se haya ido y ahora también nos apena que usted se vaya ¿Qué´va a ser del legado de Saramago en nuestro país? ¿No tendrá continuidad su obra? ¿No hay ninguna propuesta institucional para mantener su legado aquí?

Pilar del Río: No hay ninguna propuesta institucional para mantener el legado de Saramago en España, pero está mi firme voluntad de abrir la casa de José Saramago en Lanzarote el 18 de marzo para quien quiera entrar y respirar el aire de Saramago. Con toda la humildad que caracterizó Saramago y que nos caracteriza a su entorno pero con toda la ambición de quienes sabemos que solamente uniendo voluntades podremos conseguir objetivos grandes. He pedido la nacionalidad portuguesa, y ya me la han dado, porque era una forma de continuar a Saramago y porque quiero pertenecer al país que dio a un hombre tan cercano y tan maravilloso. Claro que todos somos ibéricos pero la tentación de ser portuguesa no me la he querido evitar.

Leitor do El País: Como periodista, ¿qué piensas de la profesión hoy en día?

Pilar del Río: Que la hemos prostituído entre todos. Las empresas convirtiéndose en negocio multimedia, los periodistas bajando la cabeza y siendo cínicos o sumisos. El periodismo ya difícilmente dará un García Márzquez o nos dará una satisfacción cívica tan grande como cuando a las seis de la tarde del 23F El País sacó una edición especial ‘El País con la democracia’. Hoy, todos los medios juegan con nosotros como si los ciudadanos fueran mercancían. No nos respetan y por ello venden menos.

Leitor do El País: Con todo lo que han viajado juntos, ¿qué han aprendido de nosotros, los humanos?

Pilar del Río: Hay una frase que Saramago repetía continuamente: “El otro es como yo y tiene derecho a decir yo.” Eso es lo más importante que he aprendido. Que todos somos iguales pertenezcamos al continente que sea, a la etnia que sea, a la clase social que sea, independientemente del nivel intelectual que tengamos. En cuanto personas, ningún tipo de Wall Street, ningún Presidente de Gobierno, ningún sabio, es más que el minusválido que está pidiendo limosna en la puerta de la FNAC.

Leitor do El País: ¿Eres atea, al igual que José Saramago?

Pilar del Río: Lamentablemente, no podría ser otra cosa que atea. Porque si pensara que existe un Dios tendría que llevarlo a los tribunales por permitir que pasen las cosas que pasan. Prefiero pensar que no existe a que sea tan malo.

Leitor do El País: Si el cielo no existe, tal y como comenta Saramago en el documental, ¿dónde está Saramago ahora?

Pilar del Río: En los libros, que el decía que cuidáramos cada libro que abrieramos porque contenía dentro a una persona, está en la música que oyó, en los cuadros que miró, en los libros que acarició y, con perdón, también está en mi cuerpo.

Leitor do El País: ¿Cómo logró el realizador llegar a ese nivel de complicidad con vosotros? ¡A veces parece que no existe la cámara!

Pilar del Río: Es que la cámara no existía. Hicimos un pacto: ellos no interferirían en nuestra vida y nosotros tampoco en la suya. Acabamos amigos pero cada uno en su casa.

Leitor do El País: Una de las escenas que más me impactó del documental es cuando José está rodeado de bailarines saltarines y de fotógrafos. Te busca con la mirada y grita tu nombre medio asustado. ¿Cuál es tu escena favorita de la película?

Pilar del Río: José me busca en esa escena porque estaba débil y sentía que las piernas le fallaban. Pero nadie se dio cuenta. Y yo esto ahora lo quiero compartir para que se vea el valor de ese hombre. A mí la escena que más me gusta es cuando estamos leyendo simultáneamente, él en portugués y yo en castellano, el fina del ‘El evangelio según Jesucristo’ y la Montaña Blanca de Lanzarote está al fondo…

Leitor do El País: En el documental, el verdadero descubrimiento eres tú Pilar. Me hiciste pensar en los personajes femeninos de Pedro Almodóvar. ¿Te molesta la comparación?

Pilar del Río: En absoluto, los personajes femeninos de Pedro Almodóvar son grandísimos personajes con más profundidad de la que pueden aparantar en una primera lectura. Son los que sostienen el mundo.

Leitor do El País: Tuvo alguna vez celos del otro gran amor de Saramago : la escritura?

Pilar del Río: Nunca he tenido celos de nada ni de nadie. Saramago y yo nos encontramos en la edad madura y sabíamos compartir admiraciones, afectos, pasiones… eramos cómplices. No había lugar para los celos.

Leitor do El País: ¿Le puedes decir algo a una mujer casada con un hombre veintisiete años mayor que ella, al que no solo ama, sino admira, comparte, etc. pero inexorablemente condenada a la diferencia biolóca/temporal? Gracias, contestes o no.

Pilar del Río: Que nadie tenemos el futuro escrito. Lo importante es vivir en cada momento la oportunidad que tenemos y que muchas veces las diferencias de edad están solamente en el carnet de identidad y no en la vida. Porque hay jóvenes mucho más viejos que algunas personas mayores.

Leitor do El País: En su crítica de hoy Javier Ocaña dice sobre el documental: “Perdón por verla, perdón por disfrutarla, maestro.” ¿Qué pensaría José de la película?

Pilar del Río: Que dijo: Que le gustó, que era una película sobre la vida, más interesante en el resultado final de lo que le iba pareciendo durante el rodaje. Que era una declaración de amor a la vida, a la persona con la que vivía. Lástima que el crítico de El País no se haya dado cuenta de esto y haya pensado que Saramago se dejaba llevar por una persona calculadora. Pilar del Rio era la que frenaba y Saramago es el que termina la película diciendo: “Quiero ir a Tokio, quiero ir a la India.”

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É proibido gostar de Saramago

Não, ninguém é obrigado a gostar de José Saramago. Nem do escritor, nem do político, nem do homem. Porém, ele ganhou o Nobel e isso tira muita gente de seu prumo. Nosso complexo de vira-latas nos faz pensar que, quando alguém de nossa sociedade se destaca, é porque ou roubou ou foi beneficiado por quem roubou. Muitas vezes alguém que deveria ser alvo de nossa admiração é simplesmente “rebaixado” como gay…  Enfim, o bom mesmo é ser igual a todo mundo, embora a maioria aja de forma diversa, pois paradoxalmente milhares querem se destacar num BBB ou coisa pior.  O nome disso: inveja. Lembro de quantos no passado chamavam Tom Jobim de embuste… Seria apenas um epígono do jazz. Dia desses, um post laudatório sobre Oscar Niemeyer foi capaz de jogar meio mundo contra ele e suas obras. Na boa, fiquei rindo, imaginando quando aquilo ocorreria em outro país que conheça. Nunca, é coisa nossa. Já ouvi também gente dizendo que Chico Buarque é um compositor e letrista apenas regular e que só ele usaria a ridícula palavra “cabrocha”. Dificuldades com os gênios deste país? Ora, certamente.

Com o tempo e o contato com vários amigos portugueses, descobri que isto é uma herança daquele país. Há países que homenageiam seus maiores autores. Nas livrarias de Montevidéu, só dá Benedetti. Nas de Buenos Aires, o autor argentino manda (e merece). Mesmo antes do Nobel, Saramago era combatido por ganhar muitos prêmios, por falar (ser entrevistado) demais, por ser convidado (e aceitar) demais. Ah, a inveja, os ciúmes que nos corroem!

Hoje, o bom intelectual deve duvidar da profundidade e da importância de O Evangelho segundo Jesus Cristo, deve achar mais ou menoso extraordinário O Ano da Morte de Ricardo Reis, tem que ignorar Caim e afirmar que As Intermitências da Morte é um livro de gênero transversal. Gosto muito de todos eles e acrescento ainda o “detestável” Ensaio sobre a Cegueira e o “mal realizado” A Jangada de Pedra, pois seria um livro onde a coisa mais extraordinária e insuperável ocorre nos primeiros minutos de jogo, deixando o autor sem ter o que fazer no restante das páginas… Mas também há os que não gosto mesmo: acho Todos os Nomes, o célebre Levantado do Chão e a tal Viagem do elefante bem fracos. Fazer o quê?

Ou será que o ódio de alguns ao autor têm raízes geopolíticas? O cara era ateu e comunista. Como Niemeyer e Chico. Pode até ser, mas aposto mais no Complexo de Vira-Latas.

Ontem, uma pessoa que não conheço e que não é minha “amiga” no Facebook, publicou em seu perfil esta imagem.

Trata-se de uma alusão ao admirável documentário José e Pilar. O primarismo da montagem não adere a nada que foi mostrado no delicado filme, mas a “autora” cometeu um outro ato bastante desagradável. Resolveu agredir as pessoas que já declararam gostar de Saramago. Ora, todos nós sabemos que a segurança do Facebook inexiste, que a gente entra onde quer e quando quer. Os motivos disso é a vontade dos produtores do aplicativo. Eles que querem ser sedutores e mostrar as grandes qualidades (reais) do Facebook e… Dane-se a segurança. Pois a imagem acima foi marcada em todos os seus cantos como se tivessem fotos de pessoas — quem conhece o programa sabe do que estou falando. Desta forma, a cada comentário feito à imbecil imagem, todos os marcados recebiam um e-mail com o conteúdo. O título do e-mail é assim: Juliana L. comentou uma foto sua. Então eu clico sobre um endereço e encontro a imagem acima. Dã.

É uma forma bem cretina de agressão, pois a autora deve ter me encontrado na internet elogiando seu desafeto póstumo e sabia que eu ia começar a receber e-mails. Por sorte, conheço alguma coisa do Face e me retirei da imagem. Ah, elogiei também o filme! Foi meu erro…

Olha, desconfio muito de quem escolhe Saramago como um importante alvo. Há tantos, mas tantos alvos que merecem chiste que começo a achar que quem o agride com tanta inisistência é católico, direitista e morre de inveja até de quem participa do BBB. Porque nada, na obra ou no homem Saramago justifica tal vulgaridade. Leiam ou releiam o autor, vejam o filme e comparem com a imagem acima. Nada a ver.

Como disse no início é permitido não gostar de Saramago, Paulo Coelho, Shakespeare ou Thomas Mann. Mas, para fazê-lo, é mais honesto usar argumentos.

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José e Pilar e os outros

Foi um belo fim-de-semana. Começou lá na sexta-feira com o jantar com a dupla Nikelen Witter e Luís Augusto Farinatti e terminou com o esplêndido documentário José e Pilar. Os dois casais foram entremeados por um filme notável: Código Desconhecido, de Michael Haneke, que, se não é o maior diretor de cinema vivo, merece figurar em qualquer lista que utilize a contundência como critério. Este Código e A Fita Branca são filmes de qualidade indiscutível, penso.

Mas voltemos à sexta-feira. Eu estava exausto de um dia de ar condicionado estragado no Sul21, porém a conversa inteligente, o vinho e a gentileza novamente viraram o jogo a favor de todos. Foi tudo muito agradável e civilizado. Minha filha Bárbara fez o resumo da noite dizendo que achava muito bom ouvir pessoas cultas conversarem. OK, só que acho que a sedução que exercemos sobre ela (já me incluí no “exercemos”, né?) é a de que falamos sobre política e temos posições que já são as dela. De certa forma, nós — apesar de não sermos nada grandiosos — mais ou menos justificamos aquilo uma forma de pensar o mundo. Fico me sentindo culpado por não ter feito referência nenhuma à visita do Ramiro Conceição lá no início do ano, mas aquela era uma fase triste de minha história recente…

José e Pilar não é um filme que fale muito da obra de Saramago, fala mais da repercussão dela, da rotina de um Nobel famoso e de seu relacionamento com a mulher amada, Pilar del Río. Olha, é um documentário estupendo como cinema. Resultado de quatro anos de filmagens — entre 2006 e 2009 — tem como pano de fundo a criação da romance A Viagem do Elefante e a doença do escritor. Saramago, absolutamente inteligente e erudito em suas palestras e livros, mostra uma face mais relaxada e íntima no excelente filme de Miguel Gonçalves Mendes. O filme me foi 100% satisfatório, mas tenho a impressão de que o diretor considerou que o público tivesse conhecimento prévio da vida do autor. Fica inexplicada a forma peculiar que tomaram com Saramago as eternas restrições portuguesas e brasileiras àqueles que se distinguem, fica inexplicado o justificado ódio com que Pilar del Río trata um jornalista português — merecia muito mais — , assim como a natureza de certo silêncio que o “Portugal oficial” tratou de cercar Saramago.

A mim isto não fez falta nenhuma, mas talvez um observador inexperiente ou marciano não entenda bem o gênero da estupidez envolvida. O fato é que “minhas mulheres” resumem muito bem tudo. Na saída do cinema, a Claudia, encantada com o filme, disse: “Como é bom a gente ouvir alguém brilhante que pensa parecido com a gente!”.

Finalizando: por falar em estupidez, o cinema nacional agora trata de investir na religião. Os trailers pré-José e Pilar foram todos dedicados a espécimes do novo cinema religioso nacional. Comparados aos argentinos, estamos cada vez mais fodidos — saímos da chanchada para a religião. Nada mais próximo. O contraste dos trailers com os 125 minutos seguintes de Saramago foi absolutamente desconcertante. Para sofrer este choque estético, vá ao Arteplex 2 de Porto Alegre antes que mudem.

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Todos esperam por Pilar del Río

Sem inspiração para um Porque hoje é sábado, volto ao assunto Saramago.

Na semana passada, as vendas dos livros de Saramago dispararam 1000% na Europa. É natural , portanto, certa algaravia e ansiedade de editores e livreiros para saber se poderão contar com inéditos do Nobel da Literatura. Com muito respeito, agente literária do autor, a alemã Nicole Witt, respondeu que tudo está nas mãos da viúva Pilar del Río e da Fundação José Saramago e completou dizendo que esperará: “Afinal, o que Saramago quis publicar, ele publicou”.

Porém, as atenções estão voltadas para as dezenas de páginas do romance inacabado Alabardas! Alabardas! Espingardas! Espingardas!, titulo tirado de Gil Vicente, e também para a volumosa correspondência do autor, já mostrada — manuscritos, cartas, textos inéditos, fotografias — na exposição José Saramago, denominada A Consistência dos Sonhos, onde pode ser conferida farta troca de cartas, cheias de discussões literárias, com o romancista José Rodrigues Miguéis. Ah, e há um romance inédito, Claraboia, rejeitado por uma editora no final dos anos 40, e que o autor nunca quis, depois, publicar.

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