O Clube do Filme, de David Gilmour

Em primeiro lugar, favor não confundir este David Gilmour canadense, escritor e crítico de cinema, com aquele outro, inglês, que foi guitarrista do Pink Floyd.

O Clube do Filme (Intrínseca, 239 páginas) trata de um caso real e famoso: David Gilmour estava com pouco dinheiro, com as contas pagas pela mulher e morando com o filho de 15 anos, o qual colecionava péssimas notas e tédio na escola. Quem é pai — e nem precisamos estar meio deprimidos, como é o caso aqui — , sabe o efeito que um filho de saco cheio tem sobre nós. A gente simplesmente quer fazer tudo para acabar com aquilo. Gilmour achou que seu filho Jesse não precisaria conviver com o fracasso escolar e, diante da óbvia infelicidade e desespero do filho, propôs-se a ensiná-lo através de filmes, assistindo semanalmente a três deles, escolhidos e comentados pelo pai. Durante o “curso”, o garoto receberia mesada e um teto todo dele, mas deveria manter-se longe das drogas. A intenção de Gilmour era das melhores: desejava garantir uma adolescência suportável a seu filho, longe dos fracassos e da consequente baixa auto-estima.

Poderia ser um grande livro, um curioso “romance ou caso de formação”, mas Gilmour atrapalha bastante. Ele já começa por nos dar de graça o maior dos spoilers: “olha, o final será açucarado, tudo terminará bem”. Se ele já diz de saída que tudo acabará bem, a gente logo imagina que o “como” seja muito artificioso e original, mas não. A história de Jesse com suas namoradas é bastante rasa e ocupa grande parte do livro. Também o fato de Gilmour usar a primeira pessoa do singular e privilegiar os diálogos é problemático. Muitas das conversas entre os dois têm tom de interrogatório por escrito — tudo com a finalidade de que o leitor se informe. É artificial. Ah, como faz  falta um bom narrador onisciente! É óbvio que o livro seria melhor se fosse um romance autobiográfico narrado na terceira pessoa. Há muito “eu” na narrativa.

Não obstante os problemas, a análise dos filmes por parte do pai e sua repercussão no filho são emocionantes. Há observações cinematográficas preciosas. Mas por que passei subitamente a elogiar o livro? Ora, porque a história é boa e interessante. Então, para terminar esta pequena e despretensiosa resenha, diria que vale a pena ler O Clube do Filme, mas não espere genialidade. É como se um autor médio tivesse recebido a dádiva de um grande tema, infelizmente muito superior a si. Ou como se fosse uma grande canção estivesse sendo interpretada por alguém que mal consegue alcançar as notas. É isso.

Uma Noite do Palácio da Razão, de James R. Gaines

Comprei Uma Noite no Palácio da Razão, de James R. Gaines (Record, 334 páginas) por dois motivos: (1) minha desconfiança sobre a história — a meu ver estranha — contada e recontada a respeito da visita de Bach a Frederico, o Grande, e (2) minha curiosidade sobre o enigma Johann Sebastian Bach. Leio quase tudo o que se publica sobre o homem.

O livro de Gaines não apenas satisfaz o que buscava como é muito mais. É um grande livro de história e um documento humano da melhor qualidade. Uma Noite conta a vida de Frederico e de Bach antes e depois de seu único encontro de uma noite. Durante a reunião, Bach foi desafiado a improvisar sobre um tema escrito por Frederico — mas que provavelmente era de autoria de um dos muitos compositores da corte. O tema era dificílimo, uma evidente sacanagem, porém Bach improvisou uma fuga a três vozes sobre o mesmo. Diante da admiração incontida dos ouvintes, Frederico, um notório sádico, propôs uma fuga a seis vozes. Agastado, Bach respondeu-lhe que era impossível fazê-lo assim de improviso. Ficou furioso com a derrota, porém, duas semanas depois, enviou a Frederico uma partitura com a fuga a três vozes, outra a seis, acompanhadas de diversos cânones e de uma sonata-trio, totalizando treze movimentos cuja ordem correta, se há, é até hoje um desafio oara os musicólogos. Ou seja, enviou-lhe a chamada Oferenda Musical (Das Musikalische Opfer), uma das mais importantes composições de todos os tempos. Frederico não deu a menor importância, o jogo já tinha sido jogado. E não mandou nenhuma nota de agradecimento ao “Velho Bach”.

Se fosse apenas isso, Gaines poderia ter escrito uma narrativa curta. Mas, como escrevi, o autor faz um longo, documentado e por vezes cômico relato da vida de seus dois personagens.

A vida de Frederico é interessantíssima e dramática. Seu pai, no século XVIII, pensava igual ao deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ) e procurou impedir o homossexualismo do filho aplicando-lhe intermináveis séries de surras. Elas eram tantas e tão frequentes que vários amigos de Frederico lhe propuseram a eliminação de seu pai — ação à qual Frederico não cedeu — , assim como seu pai pensou várias vezes em matar o filho. A maldade era o tom do relacionamento. Frederico aprendeu a tocar flauta e tinha apreciável habilidade ao instrumento? Tirem-lhe a flauta. Frederico gosta de vestir-se de um modo um tanto gay para tocar? Queime-se a roupa. Frederico arranjou um namoradinho? Primeiro prenda-se Frederico e depois enforca-se o namorado bem na frente da janela de sua cela. Era assim.

Ignora-se como não se mataram, ainda mais que Frederico frequentemente aparecia machucado nas recepções palacianas. Nunca revidou um ataque paterno, nunca. Quando o pai morreu, Frederico não apenas sentiu-se aliviado como passou a colecionar casos no exército. De quebra, mostrou-se um talentoso administrador e um belicoso guerreiro, tendo conquistado outros principados para a Prússia a fim de merecer “o Grande”, com o qual costumamos ornamentar seu nome. Frederico, o Grande, era um iluminista amigo de Voltaire que defendia a tolerância religiosa e até certa democracia, que se preocupava com a fome e com a economia do país durante as muitas guerras. Era tão original e bom para o povo — a seu modo — que sempre foi dito que uma Revolução Francesa seria impossível na Prússia. Mas trocava de ministros a toda hora, fazia fofocas e enganava todo mundo, fazendo amigos e inimigos brigarem entre si, inclusive Voltaire. Era o Rei da cizânia. Além disso, bastante culto, só falava francês e, para terminar nosso breve retrato, digo o mais importante para o livro: não gostava da música do passado, como a representada por …

Bach era totalmente diferente. Pai de 20 filhos, era um chefe de família exemplar. Foi empregado a vida inteira e pelo mesmo tempo passou em lutas burocráticas com seus chefes por melhores condições e salários. Mesmo informadíssimo e curioso a respeito de toda a cena musical europeia, preferia ignorar os modismos — ou antes retirava-lhe o que achava que tinham de melhor — e aplicava-lhe a sua própria e pessoalíssima arte, advinda dos mestres que conhecera na juventude. Bach fazia uma música antiga para sua época, fato que atrasou por quase cem anos seu reconhecimento como maior compositor de todos os tempos e base para todos os que viriam depois de Beethoven.

Um era moderno, o outro era passadista. Um era jovem, o outro era velho (Bach). Um tinha conquistado a Saxônia e a Turíngia, o outro era turíngio e vivia na Saxônia. E, para piorar, Bach era pai de Carl Philipp, músico da corte de Frederico. Isto é, o brigão Johann Sebastian, se fosse ofendido, teria de ficar quieto para manter o emprego do filho. Foi o que fez quando notou que Frederico o encarava como um gênero de espetáculo circense.

Opfer significa oferta e oferenda, mas também sacrifício e vítima, cumpre lembrar.

O maravilhoso do livro de Gaines é que ele nos dá todo o contexto desta luta entre Bach e Frederico. E depois vai mais adiante, esclarecendo sobre o destino de ambos logo após a famosa noite. O compositor cego e o Rei alquebrado e deprimido. Para quem gosta de música ou história, uma obra imperdível. Recomendo fortemente.

P.S.- É óbvio que se trata da obra de um jornalista e crítico de arte. Nem imagino o que a Nikelen Witter e o Luís Augusto Farinatti, professores de história, achariam do livro do qual gostei tanto.

A entrevista, de Millôr Fernandes

Millôr Fernandes está naquela estreita e admirada faixa de humoristas cultos que podem falar de cultura com grande conhecimento e vivência. Só por isso uma longa entrevista sua já seria motivo de curiosidade, mas há mais, pois Millôr põe generosas pitadas de provocação onde pisa e neste livrinho é bem provocado. Porém, vamos por partes. A entrevista (L&PM, 2011, 100 páginas) é uma — surpresa! — entrevista com Millôr Fernandes concedida em 1981 aos editores da extinta e saudosa da revista cultural em formato de livro Oitenta, também da L&PM. Os entrevistadores foram Ivan Pinheiro Machado, José Onofre, Paulo Lima, José Antonio Pinheiro Machado e Jorge Polydoro. A revista com o texto foi publicada em julho de 1981. Esta edição separada foi lançada há poucos dias e é outra surpresa.

Sem dúvida, os 30 anos que nos separam fazem diferença, quanto mais não seja pelo fato de que em 81 estávamos na fase final da ditadura militar, só que Millôr não se fixa apenas nos fatos da época, partindo para digressões sobre seus temas prediletos: imprensa, infância, ética, psicanálise, Shakespeare, teatro, sucesso, trabalho, feminismo, ditadura, mulheres e amigos. E, de forma típica, Millôr faz provocações em quase todos os quesitos citados. Suas opiniões sobre psicanálise e feminismo estão vencidas ou já estavam na época, mas acho lindo quando alguém altamente inteligente esgrime argumentos desconcertantes. Suas posições a respeito de religião e independência política, porém, não têm nada de perecíveis. Outra das seduções do livro é o contato com o frasista. Millôr, autor de famosas e citadas frases, deixa várias declarações lapidares em suas respostas. Trata-se de um inventor natural de aforismos, aquilo brota sem esforço de suas palavras, fazendo com que a gente leia as 100 páginas do livrinho numa sentada e que acabe sublinhando um monte de coisas “que seriam boas de lembrar”. Foi o que fiz.

48 Variações sobre Bach, de Franz Rueb

O número 48 é um pouco surpreendente. Esperava os 30 das Variações Goldberg, mas Franz Rueb escolheu os 48 Prelúdios e Fugas (Livros I e II somados) de Bach, certamente em razão de ter assunto demais. E é isso o que surpreende — assunto demais, 375 páginas sobre alguém do qual se sabe tão pouco. Explico melhor: este livro é formado por 48 capítulos (flashes) — que têm de 5 a 10 páginas cada um — sobre a obra e principalmente sobre a vida de Bach.

A abordagem do escritor Rueb é basicamente histórica. 48 Variações sobre Bach parte da família de Bach em direção ao ambiente dos principados e das igrejas daquilo que hoje é a Alemanha. Aprofunda-se no estudo do que era a educação da época e procura compreender um artista absolutamente brilhante e original nascido naquele contexto e que ficou órfão aos 10 anos de idade, indo de casa em casa, de instituição em instituição, até aprender seu ofício e alcançar vários cargos em principados. A tarefa não é nada simples, mas se fizer a comparação deste livro com outras biografias que li, a de Rueb parece das mais honestas. A conclusão de que Bach provavelmente não entenderia a divisão que hoje se faz entre sua música sacra e secular é uma tese bastante sólida. A certeza de que Bach era um tipo de homem que não tinha a compreensão do próprio gênio e de que era adogmático na área musical são certezas. A descrição de suas muitas lutas contra as autoridades são bem conhecidas, mas aqui são descritas com riquezas de detalhes que as tornam interessantes. O único defeito que encontro neste livro cheio de qualidades e de tão engenhosa feitura são certos exageros na vontade de dar sempre razão a Bach, o qual, cumpre lembrar, era um ser humano. (OK, quando ouço algumas de suas obras, parece-me sobre-humano, porém o ouvinte normalmente é um e o biógrafo outro menos arrebatado, de preferência).

Nunca li descrições tão completas e convincentes do entorno do compositor, nunca o final de sua vida em Leipzig foi mostrada com tanta crueza e tristeza. Então, o livro, que termina com a afirmação de que os ossos que estão no túmulo de Bach são de outra pessoa, vale a pena. E como.

O desfile de Páscoa, de Richard Yates (sem spoiler)

O Desfile de Páscoa (Alfaguara, 221 páginas), do estadonidense Richard Yates (1926-1992), é a segunda grande surpresa deste autor tardiamente publicado no Brasil. No ano passado, trazido pelo filme com Kate Winslet e Leonardo di Caprio, já tinha sido lançado o extraordinário Foi apenas um sonho (Revolutionary Road).

O romance começa pela seguinte frase: “Nenhuma das irmãs Grimes teria uma vida feliz e, olhando em retrospecto, sempre pareceu que o problema começou com o divórcio de seus pais”. E é notável a forma como Yates segue este pequeno apontamento durante todo o romance. Ele pontua cada ato importante da vida das irmãs Sarah e Emily em seu caminho rumo à infelicidade — uma casa jovem e logo tem três filhos, a outra busca a realização no trabalho. O desfile de Páscoa trata da condição da mulher na época pré-feminismo dos anos 1950, quando as opções pareciam ser as tomadas pelas irmã: ou o jugo sob um marido ou a solidão interrompida por pequenos casos com homens casados ou desinteressados.

Tanto a forma como as Sarah e Emily se relacionam quanto suas vidas em separado demonstra uma crudelíssima impotência frente a uma sociedade hostil à mulher. O grande destaque do romance é a forma como Yates trata a violência contra a mulher nos anos 50.

Um livro estarrecedor. Um grande livro.

Os Funerais da Mamãe Grande, de Gabriel García Márquez

Ganhei este livro do casal mais legal do mundo: Nikelen Witter e Luiz Augusto Farinatti. A capa não é a que está ao lado, é uma bem novinha, daquelas bem desinteressantes com as quais costumam ser agraciados os Prêmios Nobel. Os oito contos do volume  — A sesta de terça-feira, Um dia desses, Nesta cidade não existem ladrões, A prodigiosa tarde de Baltazar, A viúva de Montiel, Um dia depois do sábado, Rosas artificiais e Os funerais de Mamãe Grande — passam-se em ou próximas a Macondo, a habitual e visitadíssima cidade ficcional do autor.

Apesar de ser um admirador do colombiano, ainda não tinha lido a Mamãe e o fiz pelo Método Milton Ribeiro de leitura, isto é, em ônibus, salas de espera, banheiros e refeições. Sei lá, estou passando por um período severamente musical e minha cabeça anda muito sinfônica, não obstante estar ouvindo agora as Triosonatas para órgão solo de J. S. Bach. E o órgão não é quase sinfônico? Bem, não há muito espaço para muita coisa. Mas voltemos ao que interessa.

Há belos contos aqui. Minha preferência total vai para o que título ao livrinho. A história da soberana de Macondo é contada com enorme talento e ironia. Tudo, mas tudo serve para empurrar a vertiginosa narrativa que mais não faz do que demonstrar a estrutura de um poder feudal nada afastado de algumas regiões latino-americanas.

Os seus bens, que datavam da época da conquista, eram incalculáveis. Abarcavam cinco municípios, 352 famílias e também a riqueza do subsolo, as águas territoriais, as cores da bandeira, a soberania nacional, os partidos tradicionais, os direitos do homem, as liberdades dos cidadãos, o primeiro magistrado, a segunda instância, o terceiro debate, as cartas de recomendação… Demorou três horas a enumeração dos bens terrenos da Mamãe Grande.

Eu me apaixonei, assim como também pelo estupendo e minimalista conto de abertura A sesta de terça-feira. Nesta cidade não existem ladrões, A prodigiosa tarde de Baltazar, A viúva de Montiel ficam um degrau abaixo talvez apenas pelo gosto pessoal deste leitor um tanto desorganizado.

Pássaros que caem mortos, viúvas ressentidas contra quem não entende os méritos do marido morto, ladrões que não têm o que fazer com o produto roubado, o dentista que arranca dentes de poderosos, a belíssima gaiola de Baltazar, Cem Anos de Solidão, La Mala Hora,  tudo isso serviu para gravar Macondo na memória de milhões de leitores e para que alguns habitantes de Aracataca, cidade natal do autor, tentassem mudar o nome da cidade. Gente sem graça, gente sem graça. Macondo é uma catetral imaginária. OK, também é uma cidade em Angola, mas isso é casual. A Macondo latino-americana é ficcional e  assim deve permanecer em sua glória.

A Espécie Fabuladora, de Nancy Huston

Autran Dourado é um raro caso de escritor em que sua qualidade como cantor é muito superior à música interpretada. A qualidade de sua escritura bate fácil os temas escolhidos. Tal característica talvez seja fatal para a sobrevivência de seus romances. Conheço casos como o de Naipaul, em que o escritor é tão, mas tão inteligente e arguto, que lhe falta texto para organizar a superfetação de temas e interpretações. Posso ser burro demais para ele, claro; tanto que — à exceção de Uma Casa para Sr. Biswas — costumo ficar meio zonzo. O caso de Nancy Huston parece ser outro. Intuo uma grande escritora e uma grande capacidade que é dobrada pela necessidade de ser simples.

É efetivamente complicado comentar este ensaio sobre a Necessidade da Ficção. De forma sintomática, faço uma analogia ao clássico A Necessidade da Arte, de Ernst Fischer, pois o ensaio de Huston trata de forma menos poética e menos geral dos mesmos temas. Porém, se é menos geral, avança muito mais na forma de pensar e de fantasiar do ser humano.

O livro foi escrito a fim de dar uma resposta à pergunta que uma presidiária fez à autora:

— Para que inventar histórias quando a realidade já é tão extraordinária?

Em resposta à pergunta, a canadense Nancy Huston comprova como o fato de acreditar em coisas irreais nos faz suportar a melhor vida real. Ela comprova que a inserção no mundo ficcional começa quando nascemos, com o sentimento de pertencimento a um grupo, com deus, com os primeiros relacionamentos e a gloriosa busca para encontrar um sentido naquilo que estamos vivendo — instinto básico à condição humana, a única espécie que sabe que nasceu e morrerá. Então, já que a realidade humana é tão repleta de ficções pobres e incompletas, é preciso inventar ficções mais ricas, com situações que façam sentido.

Por que disse que era complicado comentar o ensaio sobre um tema tão fundamental e interdisciplinar? Ora, porque, repito, acho que Nancy Huston é maior do que o resultado. Acredito que a autora tenha facilitado seu texto para que este ficasse mais acessível. Não pretendo colocá-la no pelourinho por isto, mas fiquei com a forte impressão de que, por trás daqueles parágrafos encurtados à fórceps, havia o desejo de ser mais e mais simples num assunto que não é nada trivial e que trata de assuntos que partem do atavismo para chegar à arte mais sofitiscada.

Porém, o grande mérito do livro é o da divulgação de verdades complexas de uma forma perfeitamente organizada e simples. E seu problema é exatamente o mesmo; isto é, o de levar ao paroxismo esta característica. Mas vale a leitura, garanto.

Nancy Huston escreve em francês, vive na França e é autora de Marcas de Nascença, vencedor do Prêmio Femina e finalista do Prêmio Goncourt e do recém lançado Dolce Agonia, além de uma dezena de livros. Me deu vontade de conhecê-la melhor.

A Vida Sexual de Robinson Crusoé, de Michel Gall

OK, podem tirar com minha cara. Poucas vezes me enganei tanto com um balaio de Feira do Livro como com este A Vida Sexual de Robinson Crusoé, do francês Michel Gall (Editora Brasiliense, 165 páginas, Coleção Brasiliensex). Uma boa piada, uma engraçadíssima introdução do autor e — pronto! — Milton Ribeiro caiu como um patinho. Ainda bem que custou apenas R$ 5,00.

O livro tinha tudo para ser bom — a introdução é esplêndida — , contando as fantasias do solitário Robinson, assim como os modos como ele, um homem jovem e saudável, fazia justiça pelas próprias mãos ou pela criatividade na inóspita ilha. Mas a coisa degringola de uma forma tão absurda, com tantas cabras e ovelhas passeando satisfeitas que, olha, não dá. O belo Sexta-feira só aparece ao final do livro e nem precisava, tão movimentada já era a vida sexual do involutário eremita.

Gall faz literatura erótica de qualidade média, apenas isso. Quando comprei eu não sabia, mas ele é autor também de A Vida Sexual de Ulisses, de A Vida Sexual de Adão e Eva e de um certo Os Segredos das Mil e Uma Noites.

Penso que possa sugerir: fuja de todos eles.

O Leitor Sem Método

Publicado em 5 de maio de 2004

Os livros que compro ou ganho vão sendo devorados aos poucos, obedecendo a uma inexplicável lógica. Durante este ano, tive a sorte de ler em seqüência quatro excelentes livros brasileiros recém-lançados. São eles O Grau Graumann (2002), de Fernando Monteiro; Armada América (2003), idem; Budapeste (2003), de Chico Buarque e As Pernas de Úrsula e Outras Possibilidades (2001), de Claudia Tajes. São romances que não guardam nada em comum entre si, mesmo considerando que temos duas obras de um mesmo autor. Os autores também não, pois se Fernando Monteiro é vítima da injustiça de ser pouco conhecido, Chico Buarque vende milhares de livros e Claudia Tajes é uma jovem gaúcha que vem tendo seus méritos reconhecidos.

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O Grau Graumann, que talvez seja o melhor dos quatro livros, inicia-se com a notícia de que o escritor fictício brasileiro Lúcio Graumann ganhara o Prêmio Nobel de Literatura. Finalmente! Tudo faria crer que teríamos uma curiosa farsa pela frente, mas vamos sendo minuciosamente contrariados pelo pernambucano Monteiro. Graumann não é obra de um escritor que joga para a torcida, é obra de alguém muito sofisticado e inteligente, que possui grande talento e informação literária. Suas quebras e mudanças de foco fazem lembrar William Faulkner, conservando, porém, sua originalidade. Graumann nega-se a dar entrevistas e permanece recluso em uma praia do nordeste; contudo, manda um recado à Folha de São Paulo sugerindo que aceitaria falar com um amigo, o jornalista Mauro Portela. Mauro é um ressentido e aceita o trabalho de free lance mais pelo dinheiro que por interesse no amigo. Procura então inutilmente arrancar algo bombástico ou significativo de um homem dobrado pela doença. O contraste entre uma provável comemoração pelo recebimento do prêmio e a depressão de Graumann é aterrador. Reconheço minhas dificuldades com o que chamo de excesso de verossimilhança de algumas obras. Graumann não é tão terrível quanto Vernônia, de William Kennedy, que é complicado de ler, mesmo sem as imagens de Babenco, mas a soma de Graumann + sua amante + sua fuga + seu “perseguidor” Mauro + o cenário formam um todo desolador. Graumann terá uma “continuação” chamada As Confissões de Lúcio, romance propositalmente quase homônimo ao de Sá-Carneiro, que conterá material iconográfico, tais como fotos, manuscritos, etc. e há ainda a idéia de um terceiro romance, escrito pelo próprio Lúcio Graumann e com capa creditada a ele… Imaginem!

Certamente O Grau Graumann é melhor, todavia meu obtuso ser divertiu-se mais com Armada América. São 14 relatos “americanos”, nos quais Monteiro constrói um significativo mosaico daquele país. Não há aceitação passiva do american way of life, nem inflamados discursos antiamericanos. É um livro dedicado aos americanos comuns, incluídos ou outsiders, e o quadro formado nos mostra um amplo retrato de um país sem muito glamour. Monteiro dá inúmeras demonstrações de um despreocupado virtuosismo, move-se pelo livro utilizando a primeira pessoa do singular. Às vezes, não sabemos claramente quem está contando a história, se um personagem ou outro, ou o próprio autor; no relato Benny Siegel há um inesperado e impagável comentário dirigido ao leitor: trata-se de um elogio quase incrédulo a um parágrafo escrito por… Fernando Monteiro: “Bonito, não?”, diz o narrador, para depois retomar o tom habitual. Por puro vício, esperava que Armada contivesse uma história sobre jazz, mas ela não existe. Errei, mas queria ter acertado. Em e-mail trocado com o autor, submeti a ele algumas observações. Resumidamente, eis sua resposta:

Embora agora lamente que, de fato, falte um relato exclusivamente sobre “jazz” – apesar de que, no segundo, conforme eu ainda não havia notado, haja referências ao jazz etc. -, acho que deveria haver ali uma coisa diretamente relacionada, sim, você tem toda razão…

Do “Graumann”, essa opinião de que é um livro que vai ficando opressivo, eu já a ouvi de outros, e suponho que seja mesmo a direção para a qual o romance se encaminha, conscientemente (como metáfora, inclusive, do fracasso da literatura, entre outras coisas).

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Claudia Tajes é engraçadíssima. Seu livro As Pernas de Úrsula e Outras Possibilidades é pontuado por uma comicidade irresistível. Tajes é boa observadora e usa de ironia e mordacidade para contar a história de um divórcio. Lembram daqueles testes psicológicos das empresas para avaliar nossa capacidade para ocupar um cargo? Uma das perguntas mais freqüentes era: qual sua maior qualidade e seu maior defeito? Sobre Claudia Tajes eu responderia o mesmo para os dois questionamentos: o fato de ser engraçada. E, àqueles psicólogos, diria que nossas maiores qualidades podem tornar-se defeitos quando levadas à exacerbação. Não sei o motivo de tanta vontade de fazer rir (a Síndrome L.F. Verissimo?), mas ela faz questão de duas ou três piadas por parágrafo. Sempre. Então, ao mesmo tempo em que nos entusiasmamos com a criatividade e bom humor do texto, notamos que até em trechos dramáticos há galhofa. Há assuntos que não são tão engraçados e ficam distorcidos quando ridicularizados. Woody Allen escreveu que o fato de ser jocoso sempre pode atrapalhar a narrativa. Allen, para desespero de alguns, retirou de Manhattan algumas cenas que, em sua opinião, prejudicavam a atenção do espectador por sua extrema comicidade. Já Tajes erra quando quer manter um perpétuo “Allegro Molto” mesmo em cenas onde há abandono de amantes e crianças.

Não obstante a crítica, confesso ter dado boas risadas, pois antes ou depois de ser mácula, a veia cômica é virtude.

Os Duelistas, de Joseph Conrad (e, secundariamente, de Ridley Scott)

Os Duelistas é uma novela escrita em 1908, mas parece ter sido criada para o cinema. É uma narrativa visual, toda ela imagem, ação e… , bem, honra. Ou será que a culpa desta notável novela me sugerir o cinema é de Ridley Scott? Pois, em 1977, Scott filmou a história com inigualáveis requintes visuais e grandes atuações de Keith Carradine e Harvey Keitel. Cada cena parece um quadro e as imagens vistas nos anos 70 me perseguiram durante toda a leitura.

O plot é o mais simples do mundo. Na França de Napoleão, no início do século XIX, os militares Féraud (Keitel) e D`Hubert (Carradine) envolvem-se numa disputa por uma ninharia que logo se transforma em animosidade. Eles duelam imediatamente — o que era proibido a oficiais franceses em tempos de guerra — , mas o primeiro duelo não acaba em morte e a honra não fica lavada. Então, duelam novamente e novamente, sempre de forma insatisfatória, até que… , bem, não devo contar o final. Conrad é um mestre. Assim como mal explica o motivo inicial da querela, ele, com sucesso, faz de tudo para que os leitores esqueçam o pouco que  disse sobre o início do ciclo de violência. Apesar da curiosidade de outros personagens, não retorna nunca ao tema e nem os duelistas o fazem. O motivo é simples: não interessa. O que importa é manter a honra. As cenas que Conrad cria para os duelos inconclusos são inteiramente críveis. A novelinha, também conhecida pelo título The Point of Honor, é uma joia.

D`Hubert é um estrategista que parece cada vez mais enfadado com os duelos sucessivos, apesar de se atirar a eles com todo o empenho — sempre a honra, a loucura. Seu adversário, Féraud, é um brutamontes cujo único interesse na vida parece ser o de reencontrar D`Hubert. A iniciativa é sempre dele. Eles pertencem a regimentos diferentes do mesmo exército e por vezes se cruzam nas batalhas. São cinco ou seis embates num período de quinze anos, tendo como pano de fundo as batalhas napoleônicas e sua derrocada final.

O absurdo, a irreflexão, a obsessão desmedida, o sentimento de “vazio” que a vida oferece sem uma boa confusão poucas vezes foram demonstrados com tamanha força. Indico ambos: o pocket da L&PM (só R$ 12,00 !!!) e o filme homônino, disponível em DVD.

A chuva antes de cair, de Jonathan Coe

O mundo gira e gira e vai lentamente mudando, porém uma das coisas que não se altera é a importância da literatura inglesa. Se hoje temos Martin Amis e Ian McEwan na lista de maiores autores contemporâneos, é melhor acrescentar mais um nome: Jonathan Coe.  O autor — nascido em Birmingham no não tão longínquo ano de 1961, na gloriosa data de 19 de agosto — escreveu nove romances, além das biografias de James Stewart e de Humphrey Bogart. Coe também exerce o mais do que glorioso ofício de crítico de música erudita.

É surpreendente que o taciturno autor de A chuva antes de cair tenha desenvolvido seu doutorado sobre o impagável Tom Jones de Henry Fielding, que já tenha recebido prêmios como autor satírico, que tenha sido membro de uma banda e que a música seja um aspecto central em suas obras, pois nada disso ocorre neste romance.

A chuva antes de cair, quinto e excelente romance de Coe publicado no Brasil, tem alguma música e nenhum riso, mas é perfeito e realista como poucos. Estou chegando ao final da minha vida e por razões que, espero, ficarão claras para você, sinto ter uma obrigação contigo… O que eu quero que você tenha, Imogen, acima de tudo, é uma noção da tua própria história…, são as palavras de Rosamond ao iniciar a gravação de uma série de quatro fitas cassete destinadas à neta de uma prima: Imogen. A protagonista descreve, uma a uma, 20 fotos, que são a base para esclarecer os principais fatos da biografia da neta.

Quando do início da trama, Rosamond acaba de falecer e, como uma das herdeiras, a sobrinha Gill fica encarregada de encontrar Imogen a fim de repassar-lhe sua parte da herança; porém, ao visitar a casa de Rosamond para buscar qualquer coisa, ela encontra algo mais — quatro caixas de fitas cassetes numeradas junto a um montinho de fotos com um bilhete: “Gill, são para Imogen. Se não conseguir encontrá-la, ouça-as você mesma”.

O que se ouve nas fitas é descrição de cada uma das fotos acompanhadas das circunstâncias em que foram tiradas. Elas servem como atalhos para que o autor não necessite construir elos entre cada cena. O artifício é bom não apenas por este motivo, mas pelo fato de que a descrição de cada uma das fotos — com seus rostos, felicidade, esgares ou indiferença — pavimenta um caminho em linha direta com a vida interior de cada personagem. Este livro de som (audição da fitas) e imagem (fotos)  é escrito tranquilamente em tom melancólico e inexorável; é uma narrativa fluente que vai pouco a pouco preenchendo as lacunas da curiosidade do leitor, mas deixando o melhor para o final.

O tema principal do livro é a disputa, o ciúme, o ódio e a indiferença existentes nas relações entre as mães e filhas do romance. Parece haver uma tragédia transmissível de uma para outra. Na verdade, Coe brinca com a experiência do leitor, pois conseguimos prever o que irá ocorrer e o motivo, só não adivinhamos como. Prova de que há relações que carregam em si germes de conflitos prontos a estourar quando da ocorrência de problemas ou descontrole. Talvez este jogo com o leitor seja o maior mérito deste notável romance.

Coe chamou seu livro de “um bocado experimental”, expressão com a qual não concordo. O livro é consistente, excelente mesmo, mas não é nada experimental. Aliás, o experimentalismo parece ter sido varrido da boa ficção nos últimos anos. Não sei se diria que os escritores atuais escrevem para um público do passado ou ao menos passadista, posso apenas dizer que o trio de ingleses citados constroem romances clássicos a ponto de, aceitas as regras do “bem escrever”, não trabalharem novos recursos de linguagem. Mas como são bons!

Minha arbitragem no CGL (Campeonato Gaúcho de Literatura)

Retirado daqui.

JUIZ
Milton Ribeiro
– Prefere apresentar-se apenas como um voraz literato, melômano e cinéfilo. Por insistência de sete leitores, mantém um blogue e outras coisas por aí. É sócio do Sport Clube Internacional e sósia de Mahmoud Ahmadinejad, além de ser daltônico, cambota e de ter os pés chatos. Tem curriculum vitae completo em seu blogue, o que torna desnecessário dar mais informações.

OS TIMES

TIME 1: Cris, a fera, de David Coimbra

UNIFORME: A camiseta de Cris, a fera é retrô, o distintivo é uma mulher parecida com Rita Hayworth descendo uma escadaria. Na mão, um cigarro. Destaque para a coxa, que fica de fora, aproveitando uma fenda do robe de chambre – para utilizar um termo antiquado como a capa do volume. Não chega a chamar atenção pela beleza ou originalidade, mas é adequado.

ESQUEMA DE JOGO: Sete histórias entre o conto e a novela. Há unidade temática sim, e como! O assunto é sexo do princípio ao fim. O estilo do autor é bem-humorado, mais para a pornografia leve, sem conseguir alçar-se ao erotismo.

GOL DE PLACA: Bandeira 2, a história de abertura, é a melhor do livro. Um conflito bem montado, com boa solução.

BOLA FORA: Cris, a fera, o conto, é previsível e de psicologia pouco profunda.

TIME 2: O girassol na ventania, de Marco De Curtis

UNIFORME: Decididamente, o uniforme não chama atenção. É mais um time listrado como tantos. É o velho e bom pôr-do-sol, neste caso sem sol, porém com o colorido das nuvens. Pode-se dizer que são histórias de Porto Alegre e que o céu de nossos entardeceres é o mais belo de todos, mas… Não, o uniforme é mesmo muito comum.

ESQUEMA DE JOGO: Por incrível que pareça, trata-se igualmente de sete histórias, sendo cinco contos e duas novelas. As histórias tratam de conflitos humanos e amores urbanos, classificação vaga que demonstra que não há estrita unidade temática.

GOL DE PLACA: Amor por um triz é uma bela e muito bem narrada história. Porém, o autor estraga o final através de uma solução simples que imita Brokeback Mountain. Explico: quando o casal – em nosso caso, heterossexual – parte para uma decisão, o roteirista mata um dos dois e finaliza a obra. Tsc, tsc, tsc.

BOLA FORA: Não há exatamente uma bola fora, mas acredito que o final de Beijos de Borboleta seja de difícil deglutição. Marco De Curtis usa de certa indulgência ao finalizar seus textos.

O JOGO

INICIADO O ESPETÁCULO, o time comandado por David Coimbra tomou logo a iniciativa e foi para cima dos intimidados atletas de Marco De Curtis. Logo, demonstrou algumas qualidades, tais como o bom humor e uma tremenda vontade de seduzir. A vontade era tanta que o treinador se esquecia das primícias. Os leitores – seres sensíveis, delicados e BALDOSOS – têm de ser tratados com jeito. Nem todos estão prontos para entrar em ação após cinco segundos e David pretendia deixá-los excitados sem emitir sinais prévios de suas reais intenções. Logo de cara, colocou em campo um vistoso plantel de mulheres. A plateia ficou interessada e vibrou com este GOL, mas, fato curioso, todas eram iguais. Notou-se que, ao longo das páginas, sua TOTALIDADE tinha 1,70 m, pernas intermináveis e fortes, abdomens malhados, seios rijos, postura sedutora e salto alto. Só variavam no cabelo. Apesar da boa e longilínea forma, as Feras não pareciam levar a sério o esporte bretão. Também se notou que por todos os lados havia referências ao emprego do autor ou a seus colegas, numa incrível sucessão de homenagens que passavam por diversos departamentos da RBS. Tomados de forte NÁUSEA CELETISTA, os leitores se retraíram e passaram a vaiar as Feras, que choraram em campo. Meu coração oprime-se ao narrar tais fatos, mas, como repórter, tenho de me comportar como se fosse o espelho do mundo, refletindo os fatos de forma a que você, querido leitor, confie e acredite. E podeis acreditar, asseguro-vos.

O técnico Marco De Curtis sentiu o gol tomado logo nos primeiros minutos da PELEJA. Foi um golpe que o deixou assustado e sem saber como finalizar o primeiro conto. Porém, o DEMIURGO ao lado do campo reorganizou sua equipe, fazendo-a adquirir o indisfarçável charme de Celso Roth, entocando-se na defesa. Como não tinha saída rápida para o ataque, perdendo-se em digressões e VERBOSIDADES dispensáveis, deixou as Feras fazendo graça pelo campo. Apesar da faceirice e da vontade de pressão do adversário, a postura de De Curtis impedia as penetrações de lado a lado. Porém, Celso Roth é Celso Roth e às vezes faz das suas, tornando-se Sexy Hot. Foi o que ocorreu com o time de De Curtis. Em três INSIDIOSAS estocadas, os Girassóis lograram marcar três gols no segundo tempo. Foram momentos de real grandiosidade e variação de jogadas proporcionadas pela equipe HELIOTROPISTA. Uma surpresa para as Feras! Afinal, o que há em comum entre cães mortos, contos surrupiados e descompassos afetivos? Foram três estranhos gols – o segundo bastante vingativo, demonstrando abissal ressentimento contra o salto alto das Feras – , feitos em sequência naquele futebol de passes curtos, mas que resolveram a partida com facilidade.

Parabéns aos Girassóis!

Entrevistados após a partida, os técnicos demonstraram visões diversas. David Coimbra, em entrevista à nossa reportagem, declarou que o placar foi injusto, pois o árbitro o prejudicou, demonstrando preconceito contra sua condição de conhecido jornalista e fauno do IAPI. Prometeu ir ao tapetão até se esgotarem todas as instâncias da Justiça Desportiva. Já Marco De Curtis irritou-se com os repórteres que insistiam em falar em futebol de resultados.

— Nossa vitória foi justa. Demos um chocolate, um banho tático, tanto que fizemos três belos gols. O que importa são os três pontos, o resto são filigranas, coisas que vocês inventam para vender jornal — garantiu.

PLACAR
Feras 1  x 3 Girassóis

Dostoiévski, de novo

Um pedido do Pedro, através de comentário:

Caro Milton, Conhecedor de Dostoiévski como és, dê essa dica para nós, pequenos mortais, que ainda não o leram por inteiro: há algum tradutor melhor que o outro, alguma edição mais nobre, ou tudo dá no mesmo? Gracias!

Pedro, farei de tudo para manter, nas próximas linhas, este falso conhecimento que me atribuis. Na verdade, li todas as obras de Dostô quando era jovem. Nasci em 1957 e devo tê-las lido nos anos 70. Na época, não havia edições saindo e até era complicado encontrar os livros do autor russo. Tanto que, após ler Os Irmãos Karamazov numa edição da Abril Cultural (Imortais da Literatura, Vol. 1) bati muita perna pelos sebos a fim de encontrar os outros livros. Um dia, recebi um telefonena de um sebo, mais exatamente da Livraria Aurora, avisando que tinham recebido a coleção completa das obras de Dostoiévski da José Olympio. Hoje sei que não era NADA COMPLETA, porém era vendida como se fosse e eu acreditei. Supliquei à minha mãe por uma grana, fui lá e arrematei a coisa. Como busquei de ônibus, fiz duas doloridas viagens para buscá-los. Era bonitos, vermelhos, de capa dura, um show.

E eram o que havia de melhor. Imagine: os tradutores eram Rachel de Queiróz, Ledo Ivo, Brito Broca, etc. Todos os livros vnham com esplêndidos prefácios de gente como Otto Maria Carpeaux e Wilson Martins. Posso te dizer que comi e amei aqueles livros, comi-os como se fossem o melhor Dostô possível, mas não eram. O que tinha de bom eram os prefácios…

Lá pelos anos 80, começaram a aparacer novas traduções, totalmente diferentes. A explicação era incrível. As traduções antigas, aquelas da José Olympio, eram feitas a partir de outras traduções, francesas, feitas no início do século XX. Soube que os tradutores franceses da época não eram nada respeitosos e que açucaravam expressões e até criavam algumas frases facilitadoras. Ou seja, eles adaptavam Dostô para o gosto do leitor francês, aparavam as arestas, retiravam espinhos, deixavam-no … beletrista! Caraglio! Comecei a ler exclusivamente as traduções de Boris Schnaiderman para Tchékhov e Dostô (logo vi que eram muito superiores às segunda mão) e, nos anos 90, a abençoada Editora 34 resolveu montar um time de tradutores para retraduzir todo o Dostoiévski. Antes, aqui e ali, já aparecera o verdadeiro Dostô: nos anos 80, Moacir Werneck traduziu O Jogador e O Eterno Marido direto do russo. O resultado foi um autor muito mais direto e sem firulas. Muito melhor, limpo e impactante, certamente. Fiquei desconfiado… Mas acho que a revelação do verdadeiro Dostô veio com Paulo Bezerra na Editora 34. Digo com a maior tranquilidade que quem leu O Idiota e Crime e Castigo nas traduções antigas, leu outros livros. Dizem meus olhos e minha mente que estes romanções só foram verdadeiramente traduzidos há pouco. As novas versões são Dostô, por mais que Brito Broca tenha feito milagres com sua versão francesa.

Então, meu caro Pedro, a solução é comprar a Coleção da 34 ou outras traduções diretas. Acho que posso pôr minha mão no fogo por Moacir Werneck e Paulo Bezerra. Se não faço outras indicações de tradutores é por não ser o especialista que pensas que sou. Mais: creio que a Coleção Dostoiévski da Editora 34 foi realizada com tanto interesse,  respeito e amor por Dostô que eu a colocaria em primeiro lugar.

Completando este texto meio desorganizado, te afirmo que O Idiota só se tornou a obra-prima quase insuperável que é hoje para mim após a leitura da tradução de Bezerra. A tradução da José Olympio tem todos os méritos associados ao pioneirismo e às parcas possibilidades dos anos 50, mas vão me desculpar, os dois Idiotas não têm nada a ver um com outro. Toda a transcedência e o valor altamente filosófico da obra perdeu-se na passagem para o francês ou para o português. Tanto assim, que li O Idiota da 34 como se fosse totalmente inédito.

Dostoiévski não é nada romântico, nada. É um escritor bem mais duro do que fazem crer as antigas traduções. Porém — e agora falo a todos — , se não houver grana e você encontrar uma das antigas traduções que têm reaparecido ainda hoje a preços módicos, compre do mesmo jeito. Um mau Dostô é superior a quase tudo que haverá em torno.

O Burgomestre de Furnes, de Georges Simenon

Georges Simenon vendeu aproximadamente 500 milhões de volumes de suas novelas e romances. Trata-se de um excepcional caso de sucesso popular e de crítica. Durante toda a sua vida, os leitores e editores pediram-lhe um grande romance através do qual o autor pudesse ser apresentado. A resposta era sempre a mesma:

– Minha grande obra é o mosaico formado por meus pequenos romances.

Grosso modo, podemos dividir sua obra em duas partes: os romances policiais com ou sem o célebre detetive Maigret e os duros romances psicológicos que lhe valeram o apelido “Balzac de Liége”, recebido de ninguém menos que André Gide. A popularidade destes livros não deixa de impressionar, pois são escritos em tom menor, são nada solares, sendo antes cheios de personagens deprimentes e deprimidos. Com suas ações quase sempre em cidades pequenas, Simenon envolve-nos numa triste realidade provinciana, onde o mal comanda.

O método de produção de Simenon é curioso. Ele escrevia seis ou sete romances ou novelas por ano, mas elas não lhe saiam continuamente e sim como espasmos. A história era inventada em 30 ou 40 dias em sua imaginação. Era o período de não escrever, de caça à história, quando ele passeava, ia a bares e convivia com as pessoas. Então, ele avisava aos familiares que trabalhar e todos sabiam o que aconteceria – ele sumiria em seu escritório por algo entre 10 e 20 dias. Nestes períodos, ninguém deveria falar com ele e a ordem era apenas alimentá-lo. Se um fato externo o interrompesse, abandonava o trabalho.

De certa forma, tal concentração está presente em seus trabalhos. As narrativas, a forma de envolver o leitor são via de regra impecáveis. A modernidade não está num trabalho de linguagem ou em tramas complexas ou contrapontísticas, está no fato de que o autor se exime dos princípios morais, apresentando tramas simples onde as atitudes são descritas de forma distante, muitas vezes cruel. Não há Deus nem julgamento, há sucessão de fatos que são jogados ao leitor no momento exato e que fazem excelente literatura.

Acabo de ler O Burgomestre de Furnes, um extraordinário estudo sobre o embrutecimento, o ódio e a avareza. Joris Terlink é o burgomestre que comanda a população, a economia e os conselheiros do povoado. Todos o temem e ele é consultado para tudo. Sua vida pessoal está associada a diversas tragédias, recentes e antigas: uma filha doente mental que é mantida presa em seu quarto sob o argumento de que não haveria um lugar melhor para ela, o câncer da mulher, os vários filhos fora do casamento – o quais são ignorados por Terlink – e a própria gestão de Furnes, cuja falta de solidariedade produz um suicídio no início da história. Há algo menos sedutor? Terlink é um monstro absoluto, circundado de idiotas que têm dificuldade de viver sem ele, mas a segurança com que Simenon leva sua narrativa não é menos monstruosa e sem compaixão.

Além do Burgomestre, os maiores romances desta face de Simenon provavelmente são Sangue na Neve , O homem que via o trem passar, O gato e Em caso de desgraça. Todos foram reeditados pela L&PM em sua coleção de pockets.

Time dos Sonhos, de Luís Fernando Verissimo

O problema de Time dos Sonhos (Objetiva, 2010) não é o autor, mas sim a forma como o livro foi montado. Trata-se de crônicas futebolísticas — quase todas referindo-se a Copas do Mundo — publicadas em jornais entre o anos de 1997 e 2009. Ou seja, há unidade temática, porém esta é desfeita pelo fato dos textos não obedecerem à ordem cronológica. Para quem acompanha futebol, é desagradável ter de adivinhar o contexto de cada crônica ou olhar o final do livro em busca da data de publicação original. A todo momento, saltamos da Copa de 2006 para a de 1998, para depois cair em lembranças de 1990 e voar para a vitória de 2002. As quatro subdivisões do livro — Para que serve o futebol, O time dos sonhos, Ser Brasil e Jogo de cintura — , não me disseram muito. Não obstante este chateação, o texto de Verissimo permanece enxuto, engraçado e compreensivo para com a loucura dos tarados pelo esporte.

Há crônicas extraordinárias, principalmente aquelas sobre com referências a João Saldanha, às domingadas, à comida mexicana, à vida dos jornalistas durante uma Copa do Mundo e aos principais jogadores que encantaram o autor. Este, excelente observador e escritor, é exato, jocoso e nunca inferior aos fatos descritos, mesmo que os conheçamos em detalhes. Uma pena a desorganização do volume. O que poderia ser um livro de referência é confusão.

Indico o livro aos loucos por futebol e aconselho que sua leitura seja feita na base de uma crônica por dia. A leitura de todas em sequência prega sustos e nos faz cometer repetidos equívocos.

É difícil encontrar um homem bom, de Flannery O`Connor

O escritor Fernando Monteiro presenteou-me com este livro para que eu lesse o conto de abertura. Ele sabia que eu leria o resto, é claro. Flannery O`Connor (1925-1964) foi uma extraordinária escritora. A leitura dos contos de É difícil encontrar um homem bom é, no mínimo, uma experiência diferente. Escritos com economia, são histórias povoadas por vítimas odiosas, mesquinhas ou ridículas, acompanhadas – o termo é exatamente “acompanhadas” – de algozes involuntários ou indiferentes. Em comum, poderia dizer que todos são estúpidos, têm vozes desafinadas, são crentes e estão irremediavelmente perdidos. Parecendo detestar os próprios personagens, a autora deixa-os ir em direção do grotesco e do gratuito e é duríssima para com o sul dos Estados Unidos, terra de Bush e de proto-Bushes. Não obstante, a contradição entre estupidez e tensão torna algumas histórias extremamente engraçadas. Afinal, um dos modos de se descaracterizar desgraças é recorrer à hipérbole, ou seja, levá-las a inconcebíveis exacerbações. É isto que Flannery faz com maestria e é compreensível que a autora desse gargalhadas enquanto lia seus contos para os amigos. Fortemente recomendado por este blogueiro, o livro está à venda numa edição da Arx.

O Arco-Íris da Gravidade, de Thomas Pynchon

Por Charlles Campos

Flaubert morreu sem realizar seu desejo de escrever um livro que não dissesse absolutamente nada. Olhando de nossa situação no tempo_ do meio do ano 2010_, um escritor que produzia seus romances e contos como quem deita delicadas gotas de estricnina em milimétricos quadrados de vidro, não fica difícil perceber que o célebre francês sonhava com uma composição estética à frente de seu tempo, desvinculada de enredo e de personagens, algo próprio para o século que se desanuviaria e que estaria cheio de descobertas cujo modelo para armar seria a falta de coerência que determinaria tudo: a teoria do caos. Homens como nós, pós-modernos_ ou seja qual novo conceito resume esse não-sei-que cosmopolita_, estamos acostumados à falta de sentido, à independência à linha reta, à conturbação e às reticências que só dão a aparência de que a resposta está de molho pronta para ser lançada sobre nós assim que completa sua maturação. Palavras da cartola da ciência foram postas ao olho vivo da platéia, e o pasmo da descoberta de que todos os presentes fazem parte da ilusão de luz e sombras cujo truque final fará que tudo desapareça, como a bela moça de biquíni escondida no caixote, entraram para o linguajar cotidiano. Entropia, Indeterminação, Relatividade, Dimensões Paralelas, Teoria das Cordas. Se Flaubert viajasse na máquina do tempo de Wells e parasse sem estágios aqui nesse olho do furacão onde moramos em sossego, sentiria a vertigem aterrorizante do herói de casaca amarrado no carrinho da montanha russa em franca aceleração em direção ao abismo à frente, onde os trilhos estão partidos: o som inapreensível da queda com o qual nossos ouvidos acostumados transvertem em músic a de comercial das Casas Bahia que já não nos incomoda.

Coube ao americano Thomas Pynchon, um século depois, chegar o mais próximo do sonho de Flaubert, esbanjando vivacidade e fôlego em um romance de 800 páginas que dá ao leitor o sério problema de não saber definir do trata. “O Arco-Íris da Gravidade”, lançado nos Estados Unidos em 1973, em plena ressaca dos anos 60 e no estilhaço das guerras geográficas que transformou a possibilidade de uma nova guerra mundial em um premonitório fantasma convergido em um hipotético botão nuclear, parece não dizer nada, ser uma caixa caleidoscópica que simula um delírio de LSD, ou, mais apropriadamente, a concha marinha onde está registrado o último nó caótico de sons de uma humanidade que desapareceu para sempre. Uma mensagem final dirigida a ninguém, de seres sem rastro que foram incapazes de emitir qua lquer significado conjunto para configurarem o mínimo propósito à sua existência. Na verdade, “O Arco-Íris da Gravidade” é um grande epitáfio a esse projeto mal fadado que é o homem, fazendo-o numa língua impossível cujo tom é dado pelas suas primeiras frases apoteóticas: “Um grito atravessa o céu. Já aconteceu antes, mas nada que se compara com esta vez.” E como todo epitáfio_ ou todo réquiem_ traz uma profunda ternura por trás de sua acusação da brutalidade da finitude; no paradoxo de desnudar o caos, quando tudo é sugado por sua força implacável, emite uma frágil bolha que flutua tranquila na borda do buraco negro para, no momento que cessa sua efemeridade, libertar uma última reação de importância_ como se houvesse algo de sagrado e duradouro na saudade.

Sobre isso que trata o romance, entenderam?

Não?

Bem, há um personagem principal, um misto de espião americano, experimento vivo ambulante e prodígio sexual, cujo nome é William Tyrone Slotrop. Ele ocupa uma parte avantajada dessas 800 páginas, em que erra peripateticamente por uma Europa pós-segunda guerra devastada, sendo alvo das mais absurdas aventuras, algumas das mais memoráveis delas a luta corporal com um polvo, a fuga cinematográfica de uma plataforma subterrânea de lançamento de foguetes nazista (em cima de uma ogiva e com uma série de alemães enfurecidos atrás), um mergulho para dentro de uma fétida privada de um banheiro masculino, enquanto um negão de exageradas proporções corporais tenta lhe mostrar da pior maneira possível por que erram os que julgam que sua superdotação é puramente cerebral. Es ses e outros infortúnios são narrados numa velocidade estonteante, que desarma o leitor de seu assombro crescente assim que tem a revelação de que o verdadeiro personagem do romance_ como diz o autor das orelhas do livro, e do qual me impossibilita dizer algo diferente_ é a linguagem de Pynchon: seu inglês caudaloso, debochado, anárquico, irreverente, paranóico. Um anarquismo lingüístico que não perdoa nada, que muitas vezes arranca o leitor de sua impressão de atingir compreensão para atirá-lo em uma abrupta análise de um pormenor destoante. Um romance que ultrapassa a média em envolvimento e absorção, principalmente por ser composto por materiais nem um pouco convencionais.

Se a micro-história ou a História das Mentalidades retirou o foco dos estudos dos reis e dos heróis nacionais para se concentrar no homem comum, a prosa de Pynchon continuou uma revolução semelhante na seara do romance, utilizando o lixo, os caçoetes e toda a tralha multicolorida da sub-cultura norte-americana, compondo uma obra soberba que, como haveria de ser, gerou repúdio e muita polêmica. A comissão do prêmio Pulitzer lhe conferira o prêmio de melhor romance do ano de seu lançamento, mas na última hora a direção da comenda o rejeitou sob a acusação de ser um romance pornográfico. Talvez pela irreverência das descrições sexuais de um Slotrop que, sempre que transava com uma mulher, determinava por uma ligação misteriosa com o foguete (e o material com q ue ele era feito, o estranho Imipolex) que o local onde estava fosse destruído, logo depois, por uma explosão. E Pynchon se molda, intencionalmente ou não, ao escritor-mito, por sua completa negação a aparecer na mídia, a dar entrevista ou ser fotografado. Chegaram a sugerir que ele e Salinger fossem a mesma pessoa, ambos afeitos a uma reclusão monástica. Seu tradutor brasileiro_ o excepcional Paulo Henriques Britto_ que nos deu uma das melhores conversões já feita desse romance, retém sob severo juramento cartas do próprio Pynchon, escritas em espanhol, com longos esclarecimentos sobre as partes mais complexas da obra. Cartas que com certeza seriam disputadíssimas entre os milhares de fãs ardorosos que formaram um culto organizado em torno de Pynchon.

E “O Arco-Íris da Gravidade” é inusitadamente engraçado, e não pensem que se trata do risinho renhido do sarcasmo saramaguiano, ou os risos sincronizados do único romance com claque da história da literatura, o Ardil-22_ o livro se mantém numa constante e irresistível eletricidade histriônica, um humor abrangente e sem reservas que é um dos seus poderes inigualáveis: o riso se torna um sério posicionamento filosófico, um costume contaminante que muda nosso confrontamento com o mundo, uma herança erudita transformada de Rabelais, Groucho Marx, Monty Python, Os Três Patetas e Buster Keaton.

E, quando chegamos ao final dessa extensa saga, Pynchon nos soluciona o enigma derradeiro: só assim, usando os despojos de nossa cultura, a falta de vergonha de nosso orgulho desarroado, os nossos preconceitos e nossos ódios infinitos, a nossa miséria e capacidade de nos enganarmos e nos iludirmos eternamente, nossa tecla defeituosa que nunca proporcionou aprendizado com o passado, nosso frenesi e arrogância científica que finge esclarecer, poderemos ter a presciência terrível de que toda piada traz o lamento enrustido de só conseguirmos rir até as lágrimas do outro que cai e arrebenta a cara no muro, e nunca compreendermos que afinal rimos de nós mesmos atirados no chão, todos atolados no caos e vítimas das gritantes trivialidades criadas, na única comunhão possí vel de esperar alegremente o aniq uilamento, como nas palavras que finalizam o livro:

“E é bem neste ponto, este quadro escuro e mudo, que a ponta do Foguete, caindo a um quilômetro e meio por segundo, absoluta e eternamente sem som, alcança seu último imensurável intervalo acima do telhado deste velho cinema, o último delta-t.

Há tempo, se este conforto lhe parece necessário, de tocar a pessoa a seu lado, ou de pôr a mão entre suas próprias pernas frias…ou, se é preciso cantar, eis uma canção que Eles jamais ensinaram a ninguém, um hino de William Slothrop, há séculos esquecido e jamais reeditado, para ser cantado com a melodia simples e agradável de uma ária da época. Acompanhe a bolinha:

É a Mão que faz o tempo andar,

Ainda que em tua Ampulheta se esvaia a areia,

‘Té que a luz que abateu as Torres altas

Chegue à Alma Preterida derradeira…

‘Té que os Viandantes durmam à beira

De toda via desta Zona estropiada

Com um rosto em cada encosta de monte,

E uma Alma em cada pedra da estrada…

Agora todo mundo__”

Este seria Thomas Pynchon há muitos anos

Este, retirado de um site francês, vem até com credencial…

Detalhes de um pôr-do-sol, de Vladimir Nabokov

Dia desses — e nem comentei aqui –, li o elogiado livro de contos de Vladimir Nabokov (1899-1977) Detalhes de um Pôr-do-sol. Foi um trabalho penoso e lento para este dedicado leitor, pois poucas vezes algo me foi tão chato, comum e sem surpresas. Levei dez dias para chegar à página final, aquela que tem o número 173 no rodapé. Os contos de Detalhes são de década de 20 e 30. Sempre admirei a literatura de Nabokov e acho notável que ele tenha escrito a obra-prima A Verdadeira Vida de Sebastian Knight nos mesmos anos 30. Mas quem me fez chegar a este livro? Ora, as maravilhosas páginas culturais brasileiras, os maravilhosos articulistas de nossos principais jornais e revistas.

Concordo com quem diz que, hoje, a crítica literária no Brasil quase inexiste e quando um livro recebe críticas favoráveis na revista Bravo, no Caderno 2 do Estadão, na Folha de SP, na Veja e na Isto É, é porque tem uma boa editora na retaguarda… Hoje, procurei na Internet todos estes artigos e eles são favorabilíssimos. O que houve então? Não sei.

São contos de um convencionalismo muito antiquado. Normalmente iniciam-se por longas descrições de ruas ou de apartamentos de emigrados russos em Berlim. Elas precedem à ação e ali não há lugar para sugestões do que está por vir nem para os personagens. É apenas enfadonho e, quando chegamos à história, já perdemos o entusiasmo. Num dos contos, Nabokov chega a ironizar aquelas pessoas que não lêem atentamente as descrições e introduções. Está bem, vá lá, vamos concordar com o autor, digamos que elas sejam necessárias como eram para Balzac. Só que as descrições de Balzac eram coloridas e tinham o objetivo de situar-nos socialmente e de preparar-nos para o grau de galhofa ou seriedade que viria logo a seguir. As de Nabokov são geográficas…. e o que vem depois nunca é muito original, ficando sempre numa linha de melancolia nostálgica.

Na Veja, Marilia Pacheco Fiorillo escreveu que “nessa coletânea não há o menor truque, artifício, uso de “vozes”, ou o que quer que atormente escritores modernos e pós-modernos. Pela simples razão de que Nabokov não precisa de nada disso. Seu estilo dá ao leitor a estranha sensação de não estar diante de um livro, mas da própria vida. Só que mais bem contada.” Acho que, para Marília, Nabokov não precisa de nada para ser sempre bom. Seu texto parece ter sido escrito sob encomenda. No Estadão, o vacilante Daniel Piza escreve que “mesmo em construções sintáticas simples já vemos todos os elementos que marcam sua literatura: o humor entre cômico e melancólico, a preocupação com as ilusões amorosas, a melodia verbal com toques de ironia, a noção do patético mesclado ao dramático. É do grande escritor ser assim tão sutilmente pessoal”. Haja criatividade! Ambos também elogiam a simplicidade transcendente dos contos. A simplicidade, sim… Tenho certeza de que se ambos não conhecessem o Nabokov pós-Lolita, nunca teriam escrito tais coisas. Não sou um débil mental nem um mau leitor, também não sou insensível às possíveis transcendências, símbolos e significados subliminares; portanto digo que, em minha opinião, os contos de Detalhes são obras singelas de um escritor em formação. Seu mérito principal é o de não serem pretensiosos. Se vocês quiserem o bom Nabokov, procurem Lolita, Fala, Memória, Fogo Pálido, Transparências, etc., sem esquecer do melhor de todos Sebastian Knight.

Ou quem sabe os europeus não dão mesmo importância ao gênero “Conto” e ali deitam apenas sobras? Boa pergunta…

P.S.: O nome de um dos livros é Fala, Memória. Não são dois livros.

101 Dias em Bagdá, de Åsne Seierstad

Esta longa reportagem é um equívoco da autora do bom O Livreiro de Cabul. Se a idéia da reportagem é interessante — retratar a Bagdá pré-ataque americano — esta mostra-se inviável ao esbarrar no silêncio dos iraquianos e na duríssima censura vigente. A autora, sempre acompanhada de tradutores que não apenas tentavam determinar onde ela iria como também traduziam somente o que era permitido, permaneceu encalacrada numa Bagdá onde não circulava muita informação. Poucos ousavam falar e, para completar, nem a jornalista tinha grande idéia do que estava acontecendo fora do país, pois seus contatos eram vigiados de perto. Como se tudo isto não bastasse, a renovação do visto dos jornalistas era semanal e dependia de bom comportamento. Ou seja, era muito difícil, para uma estrangeira que não se comunicava em árabe, obter informações relevantes naquela Bagdá.

O livro torna-se mais interessante quando os americanos chegam… isso após quase trezentas páginas! Aguardadíssimos pelos xiítas, que sofreram horrores durante a ditadura de Saddam e que gostariam de saudar o invasor, os americanos chegaram atirando em tudo o que se mexia. Seu lema parecia ser “atire se quiser”. Não havia punição por matar civis e eles se divertiam atirando em janelas abertas, em vacas, galinhas e, desconfiados, em civis que vinham saudá-los — afinal, podiam ser homens-bomba. Também desenvolveram o curioso hábito de dar tiros de canhão em fotografias de Saddam e destruíram todos os prédios públicos, a maioria sem motivo aparente ou resistência; porém, curiosamente, tiveram cuidado com o do Ministério que tratava do petróleo. Ingênuo, boa parcela do povo iraquiano achou estranho que os americanos os tratassem aos safanões e tiros e que não tivessem vindo com intenções de conquistar seus corações…

O livro torna-se interessante quando um tanque resolve fazer mira no hotel dos jornalistas, antes sempre respeitado. Jornalistas e técnicos morrem. Tende a ficar interessantíssimo quando mostra a reversão de expectativa daqueles que antes odiavam Saddam e que passavam pouco a pouco a odiar os americanos, unindo-se aos partidários do ex-ditador. Em poucos dias, todos estavam decepcionados e humilhados. Só que, neste trecho, após quase cem dias no Iraque, a jornalista Åsne mostra-se de saco cheio de tantos dias de isolamento, do constante perigo e decide — seguindo o conselho de familiares e colegas — que é melhor sair do inferno. Com efeito, ninguém parece ter paciência com os iraquianos.

Salvam-se, na reportagem, as descrições das livrarias de Bagdá e os poucos diálogos intelectuais opositores ao regime de Saddam. Mas é muito pouco.

P.S.: Alberto Kopittke, em oportuno comentário escrito neste blog na última segunda-feira, observa o vezo que alguns intelectuais de esquerda têm de criticar best-sellers ou livros de entretenimento. É uma pauta à qual este escriba admirador de Georges Simenon e outros pretende retornar. “A lógica equivocada de que tudo o que faz sucesso é ruim” demonstra preconceito dos mais idiotas.

‘2666’, romance póstumo de Bolaño, traz temas de livros anteriores

Rafael Gutierréz (*), Jornal do Brasil

RIO – Comecei a ler Roberto Bolaño em uma tarde de março de 2001 em Bogotá, quando minha amiga D. me pôs nas mãos um livro grosso de cor cinza. A imagem da capa era a de três homens jovens, usando chapéus e uma roupa elegante, que caminham por uma praia vermelha, enquanto no fundo se vê o mar de um azul intenso e uma montanha. Quando me entregou o livro, D. disse: “Lê isto. É a melhor coisa que leio há muito tempo”. Confiava no critério de minha amiga, que antes já havia recomendado outras leituras reveladoras.

Sua recomendação não me decepcionou e nos dias seguintes, ou melhor, nas noites e madrugadas seguintes (pois era o único tempo disponível para ler que na ocasião me deixava um trabalho burocrático tedioso e extenuante em um escuro ministério colombiano) li em êxtase Os detetives selvagens. A partir desse momento, continuei procurando e lendo com ansiedade os demais livros escritos por Bolaño. Nenhum deles me pareceu tão bom quanto Os detetives, até ler sua ambiciosa obra póstuma e inconclusa 2666, publicada em 2004.

Em uma entrevista para a edição mexicana da revista Playboy, realizada poucos meses antes de sua morte – em 15 de julho de 2003, aos 50 anos – Bolaño diz que, se não fosse escritor, seria detetive de homicídios para voltar sozinho, à noite, à cena do crime, e não se assustar com os fantasmas. Pois bem, acredito que, em 2666, ele volta ao lugar do crime e finalmente enfrenta os fantasmas. Dois tipos de fantasmas: aqueles que rodeiam a vida do escritor e a solidão do ato da escrita; e aqueles que estão do lado do mal e da violência (e que talvez possam ser os mesmos, como fica sugerido em várias de suas obras).

O primeiro tipo de fantasma aparece em 2666 na história do escritor alemão Benno von Archimboldi que ocupa, basicamente, a primeira – “A parte dos críticos” – e a última parte do romance. Na história de abertura, quatro críticos literários europeus tornam-se amigos ao estudar a obra do misterioso escritor que, apesar do reconhecimento da crítica e de ter sido indicado várias vezes ao Prêmio Nobel, nunca aparece em público; ninguém conhece detalhes de sua biografia. Bolaño descreve as tensões que constituem o campo literário, não a partir da perspectiva dos escritores e poetas marginais, como fez em Os detetives selvagens, e sim do ponto de vista dos estudiosos da literatura, com suas brigas e conspirações intelectuais, embora destacando a amizade e o amor que surge entre eles. De certo modo, esta primeira parte pode ser lida também como uma história de amor (não um triângulo, mas um quadrado amoroso com final inesperado).

“A parte de Archimboldi”, última do texto, está construída como um romance de formação e narra a história de vida do escritor alemão Hans Reiter (que usa o pseudônimo de Benno von Archimboldi), nascido em 1920. Como em outros de seus romances e contos, Bolaño constrói a figura do escritor como um ser marginal, errante e melancólico, afastado dos centros de poder do campo literário e político. Na visão de Bolaño, o verdadeiro escritor estaria próximo de algo que foge ao literário. Talvez por isso, na história de Reiter, a experiência (sobretudo a participação na Segunda Guerra) é definitiva para seu futuro como escritor. Esta parte do romance está atravessada por questões literárias: de onde vem o impulso da escrita? Vale mais a leitura ou a experiência para escrever uma obra-prima? Qual deve ser o lugar do escritor e suas relações com editores e leitores?

A história do escritor alemão e a história dos críticos têm seu ponto de encontro na cidade imaginária de Santa Teresa (nome fictício de Cidade Juarez, localizada na fronteira entre o México e os Estados Unidos, marcada tragicamente pelos milhares de assassinatos de mulheres que vêm acorrendo desde 1993). Os críticos viajam a Santa Teresa ao serem informados de que, possivelmente, ali se encontra Archimboldi. O escritor alemão deseja encontrar seu sobrinho, acusado de ser o autor ou pelo menos de participar daqueles crimes.

No ar estranho da cidade e do deserto que a rodeia, confluem os fantasmas da violência retratada por Bolaño com técnica hiper-detalhista que simula os informes forenses para descrever, em cadeia, os corpos das mulheres assassinadas. “A parte dos crimes” é a mais extensa e a mais arrepiante do romance pela acumulação de mortes e pela aparente ausência de explicação e de sentido para tanta violência. Machismo, narcotráfico, pornografia snuff são algumas das possíveis causas dos crimes, mas nenhuma delas consegue explicá-los por completo.

O que flutua como uma sombra em toda a narrativa é precisamente a pergunta sobre a origem e a causalidade ou casualidade do mal (tema caro a Bolaño e que aparece em seus primeiros textos). Esta parte pode ser lida como um romance policial, inclusive com a participação de um detetive americano com aparência de Sherlock Holmes. Mas, em 2666, os crimes são impossíveis de resolver, deixando no fim uma sensação de impotência e desolação.

Duas histórias, centradas em Santa Teresa, completam as cinco partes do romance: a do professor de filosofia chileno Amalfitano (que compartilha com Bolaño alguns rasgos biográficos); e a história do jornalista americano Oscar Fate.

O professor chileno é um personagem perdido, exilado e próximo à loucura. Em sua cabeça confluem, delirantemente, a filosofia e a história política do século 20. Escuta vozes permanentemente e, em suas noites de insônia, realiza estranhas performances no pátio de sua casa inspirado em instalações de Marcel Duchamp. Apesar do humor e da ironia presentes na história de Amalfitano, o que predomina é um clima de tristeza, melancolia e medo, pois ele teme, o tempo todo, pela vida de sua filha em Santa Teresa.

Cada parte do romance parece nos levar por questões centrais da história do século 20, formando um grande painel histórico-ficcional. No caso do jornalista Oscar Fate, entramos na história do partido dos Panteras Negras através da voz de Barry Seaman, um de seus fundadores. No meio da reportagem sobre Seaman, Fate é obrigado por sua revista a cobrir uma luta de boxe em Santa Teresa e, quase por azar, fica envolvido com a investigação dos crimes.

Embora existam pontos de contato entre todas as histórias, cada parte do romance pode ser lida de forma independente (e Bolaño queria que fosse assim, publicadas com intervalos de um ano para assegurar o futuro econômico de seus filhos). Porém, em conjunto, constituem uma das empresas mais impressionantes da narrativa contemporânea, uma imersão profunda pelos labirintos da criação literária e uma aproximação nada modesta ao mal absoluto.

Em 2666 convivem todas as obsessões bolanianas: a relação entre literatura e vida, a pergunta pela origem do mal e da violência, a proximidade entre literatura e perversão. Escrito com uma prosa direta e objetiva, através da acumulação de histórias e digressões, e apesar de sua longuíssima extensão, Bolaño consegue prender o leitor como só os grandes mestres da narrativa conseguem.

(*) Escritor e crítico literário. Doutor em literatura pela PUC-Rio.