A incrível Simone Kermes em árias de Hasse, Händel e Broschi

Nascida em Leipzig, a sensacional soprano de coloratura Simone Kermes dá toda a impressão de ser uma latina bastante doida. Ainda mais cantando em italiano. Muito entusiasmada e com uma relação visivelmente feliz com a música, parece que foi retirada do blog PQP Bach, o qual abriga um bando considerável de malucos. A especialidade da alemã são as óperas clássico-barrocas, principalmente as de Mozart e Händel. Quem me apresentou foi minha mulher. Simone Kermes (seu nome é pronunciado Zimone Kermas) parece, até pela postura e pela forma com que dança e marca o ritmo, estar cantando música popular. Confira abaixo esta tremenda cantora.

No primeiro filme, a ária começa aos 2min20. Nos outros dois, entre direto. Vale a pena assistir.

Ou clique aqui.

Ou clique aqui.

Ou clique aqui.

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Dazed and Confused (1969, 1968) – Uma coisa, outra coisa

Incrível o upgrade sofrido por Jimmy Page ao mudar-se do The Yardbirds para um certo Led Zeppelin. São absolutamente chocantes as diferenças na qualidade do grupo e na abordagem da mesma Dazed and Confused e isso com apenas um ano de diferença.

Led Zeppelin – Dazed and Confused (London 1969)

Ou clique aqui.

The Yardbirds – Dazed and Confused (1968)

Ou clique aqui.

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Beethoven – Quarteto de Cordas, Op.59, "Razumovski", Nº 3 – 2º e 4º Mvtos

Para o Dr. Milton Cardoso Ribeiro

Hoje faz 17 anos que meu pai morreu. Esta era uma das músicas que ele mais amava, o terceiro Quarteto Rasumovsky (com “s” ou “z”), especialmente seu tranquilo segundo movimento e o quarto, bem diferente. Infelizmente, não os encontrei com o mesmo quarteto. O 2º vai pelo Alban Berg — esplêndido, esplêndido, esplêndido — e o 4º pelo Borealis, muito bem editado. Nossa, é música de primeira qualidade, nem vou escrever mais.

Ou clique aqui.

Ou clique aqui.

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

E a melhor canção dos Beatles vai para…

… Bem, quem me conhece sabe que eu guardo extremado amor por umas 60, talvez 100 músicas dos Beatles. Mas se eu — após horas de tortura — fosse obrigado a escolher 5, ficaria com duas de Paul, For no one e She`s leaving home, duas de John, as típicas I`m the walrus e Rain, e uma de George, While my guitar gently weeps. Porém, se meu torturador ameaçasse enfiar um arame em minha uretra se eu não dissesse uma e apenas uma canção, eu gritaria a plenos pulmões que a melhor é While my guitar gently weeps! Isso hoje, né? Amanhã, posso gostar mais de outra, sei lá.

O filme abaixo mostra While my guitar gently weeps num daqueles eventos pós-morte de Harrison. Ignoro quem sejam todos eles, mas digo que quem canta mal no início é Tom Petty, quem salva com brilhantismo o vocal é o ex-Electric Light Orchestra Jeff Lynne, há Paul McCartney nos teclados, além do filho de George, Dhani Harrison, e há principalmente Prince, que finaliza tudo com um solo de guitarra que beira a falta de educação, se pensarmos que ele estava num evento-velório… Ou não há nada disso? Confiram aí! É um belo solo do anão de Minneapolis.

Ou clique aqui.

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

OSPA: a verdade que salva e liberta

Sim, eu sei. Meus sete leitores vêm aqui sempre em busca da verdade que salva e liberta. Então lhes digo que o primeiro clarinetista da OSPA (Orquestra Sinfônica de Porto Alegre), Augusto Maurer, acertou na longa argumentação onde defendeu a ausência de regente titular na OSPA a partir de 2011. O músico fê-la publicar (chupa, Machado!) na edição de hoje do brioso Caderno de Cultura de ZH na forma de uma Carta Aberta ao futuro Secretário de Cultura do Estado, Luiz Antônio de Assis Brasil. Seu texto chegou convenientemente a nossa caixa de e-mails há mais ou menos uma hora.

O fato é que a discussão estava em banho-maria até o concerto da última terça-feira, quando o nervosismo da Orquestra fez entornar a água que aquecia o destino da Orquestra, deixando a coisa, para dizer o mínimo, bastante mais quente. Metemos nossa colher torta no debate e houve reações de diversos calibres – de Piaget a Pinochet, de Ademir da Guia a Edinho. Traduzo: houve reações compreensivas, reflexivas e serenas e outras surdas, truculentas e inábeis.

Comprovando que o dedo deste comentarista e de outros têm penetrado em locais bastante desconfortáveis do corpo da Orquestra, tivemos reações que merecem cuidadoso catálogo, apesar de que será mantida a identidade dos manifestantes em obsequioso sigilo, pois estamos cansados de processos, uf.

1. A ala Pinochet: Houve quem ressuscitasse a Segunda Escola de Viena ao flautear que estranhava nossa arrogância ao ousar fazer críticas aos andamentos do último concerto, ainda mais por serem advindas de um simples melômano, donde concluo que sou inadequado para criticar a Orquestra e, consequentemente, de ouvi-la, pois os seres humanos insistem em estabelecer juízos críticos mesmo sobre aquilo que não dominam e, mesmo sendo um reles melômano daltônico e cambota, ainda me classifico entre os seres humanos, até por gerado ter dois deles. (Não lhes disse que hoje dotei-me do poder de apenas declinar nestas linhas a verdade que salva e liberta?). O que mais nos estarrece neste grupo é a forma calorosa com que recebe nossos elogios, o que diz muito mais sobre a natureza humana do que toda a Obra de Paulo Coelho.

2. A ala Piaget: Mesmo hostis a este comentarista, a ala Piaget busca compreender nossas razões e a aqui declino outra verdade que salva e liberta: “Quem compreende perdoa”. Obviamente, é possível conversar com esta ala articulada da Orquestra que busca com seus arcos algum resquício de lógica em nossas opiniões e que, espertas, respeita os sete leitores que nos visitam.

3. A ala Ademir da Guia: esta ala é assim chamada pela serenidade e concordância com nossas teses. Como sou um ser humano dotado de falhas, inclino-me a achar inteligentes as pessoas que concordam comigo. Como pontuou Marcelo Backes em tempestiva manifestação, Serenidade é alegria, tranquilidade, sabedoria e clareza, tudo isso num som que ecoa o azul do céu e a claridade do éter. Parece a descrição do futebol de Ademir da Guia, não? Bem, esqueçam. O fato é que a bloco hostil (ver 1 e 2) foi furado de forma consistente quando músicos disseram que, sim, os andamentos estavam rápidos – bem como eu disse – talvez em função da péssima acústica. Este argumento é duplamente inteligente e não é por concordar comigo: (1) ele encaminha uma explicação e (2) projeta a discussão a outro nível, o da absurda e obscena penúria de uma instituição que os gaúchos dizem amar. (Imaginem o que fariam se a odiassem!!!). Os Pinochets não veem que o importante está logo ali atrás da questiúncula!

4. A ala Edinho: Jogando com três volantes na proteção da zaga, esta ala é irremediavelmente retranqueira e acha que os problemas da Orquestra devem ser discutidos reservadamente, como se não fossem “coisa pública” e sim pura magia. Não sei, mas acho que os gabinetes não têm sido legais à OSPA, que – e agora deixamos de lado as brincadeiras para adquirimos o cenho sério de quem vai falar grosso – está sem teatro, sem local para ensaios, sem regente, com defasagens pecuniárias, necessitada de mais músicos e, voltando à verdade que salva e liberta, cansada de tudo isso, tal como os ouvintes. Pois lhes afirmo que o cansaço é audível sim.

O catálogo acima deve servir como demonstração de que, quando a confusão impera, cada um corre para o lado que melhor lhe apraz, enquanto fala pelos cotovelos. Então, procuraremos objetivar para que nossos leitores, já sabedores do esquema das pequenas tragédias que cercam a OSPA, entendam o que há por vir.

Augusto Maurer pede para que Isaac Karabtchevsky seja substituído parcialmente em suas funções como regente e diretor artístico. Ele sugere Celso Loureiro Chaves ou Ney Fialkow para a direção artística da OSPA e a extinção da figura de regente titular. Concordo 100% com ele neste último quesito. Sobre os nomes sugeridos, tenho certeza de que o primeiro é excelente. Sei que ele não deixaria a Orquestra neste marasmo de repertório que é seu habitat atual. Só conheço Ney como pianista, então não posso nem cantar suas qualidades nem expor-lhes os defeitos. Mas o Augusto sabe julgar, posso garantir.

Mas você pergunta: por que é ruim ter um regente titular? Ora, além das razões explicitadas pelo Augusto abaixo, eu, como arauto da verdade, digo-lhes: os regentes titulares privilegiam seus concertos, além de terem a tendência de estender seus corpos na maldita “zona de conforto”, local inadequado para artistas, como vocês sabem.

Mas você ainda pergunta: esta é a maior das vicissitudes da OSPA? Não sei, porém, em minha opinião, é a primeira a ser tratada e então urge resolvê-la com critério, bom senso e caldo de galinha. Depois, há o repertório (argh!), os concursos, o teatro e a glória perdida. Como há um longo caminho para percorrer, certamente será melhor deixarmos o rebotalho e o regente único em casa. E, antes de nos despedirmos, somos obrigados a deitar aqui mais uma verdade daquelas que salvam e libertam: estaremos sempre ao lado da Orquestra, pois, não obstante nossas críticas aqui e ali, amamos a música e quem a faz. Podem contar conosco.

~o~

Carta Aberta ao futuro Secretário da Cultura do Rio Grande do Sul, por Augusto Maurer

“Sempre defenderei o regime estatutário de contratação pública por ser o único sob o qual se pode dizer o que se pensa.”

LUIS OSVALDO LEITE, quando presidente da OSPA

Caro secretário,

não é preciso muita imaginação para adivinhar que, desde que sua participação no próximo governo do Estado foi anunciada, o senhor tenha se tornado alvo de intenso assédio por parte de uma variada gama de aspirantes a cargos de confiança vinculados a sua pasta. É, assim, igualmente fácil adivinhar que a corrida aos cargos com lotação na administração da Fundação Orquestra Sinfônica de Porto Alegre também já esteja a pleno vapor, ainda que, compreensível e estrategicamente, distante dos olhares da mídia.

No delicado momento de transição governamental, em que mazelas e vícios administrativos facilmente se perpetuam ao mesmo tempo que virtuosos e legítimos anseios se postergam por, na melhor das hipóteses, ao menos mais quatro anos, tomo a liberdade de lhe falar franca e abertamente sobre a natureza e particularidades da gestão artística de corpos sinfônicos.

Pelas razões e circunstâncias abaixo, penso que as últimas coisas das quais a Ospa precisa, em nome da qualidade de sua programação e de seu progresso artístico, sejam mais um regente titular e outro maestro de carreira como seu diretor artístico.

Instituições públicas, dentre elas as culturais, são corpos volumosos cuja evolução é tremendamente limitada pela forte inércia de tradições caducas, por vezes blindadas à crítica e à atualização. É sabido, também, que em nosso sistema político a participação na esfera pública é muitas vezes não mais do que uma figura de linguagem exclusivamente presente na retórica eleitoral – já que, quando se trata de ocupar os cobiçados assentos de um governo, políticos eleitos costumam se voltar não à sociedade mas, invariavelmente, a quadros ociosos de sua base partidária de apoio – as honrosas exceções, neste caso, apenas confirmando a regra.

Ocorre, então, que, na pirâmide descendente de confiança decrescente das administrações direta e indireta, acabamos governados por afiliados e/ou afilhados políticos que jamais obteriam o consentimento social para o exercício das funções que desempenham. Não quero aqui, no entanto, falar de política, mas de suas nefastas implicações na gestão da coisa pública cultural, musical em geral e sinfônica em particular.

Qualquer músico que tenha tocado por algum tempo em orquestras sinfônicas públicas e, gosto de acreditar, ao menos a parte mais atenta de seus ouvintes percebe que uma orquestra qualificada toca melhor e mais motivada sob variadas batutas igualmente qualificadas do que quando submetida ao pulso tirânico, imutável e entediante de uma única. É claro que essa regra não vale para a escassa categoria dos regentes exponenciais, sonhos de consumo de qualquer orquestra – cujos honorários artísticos, no entanto, são comumente cotados muito além do cacife da grande maioria das orquestras, na qual a Ospa está incluída. Quando, todavia, uma orquestra de média magnitude logra, contrariando quaisquer expectativas, contratar para uma longa residência um desses salvadores, o resultado é, quase sempre, o seguinte.

O ás da batuta contratado como salvador logo se entedia da lida corriqueira com os mesmos músicos (a menos, é claro, que estivéssemos falando da Filarmônica de Viena ou similares). Como corolário, não tarda a descobrir (se já não sabia) que o melhor caminho para a superação deste quadro depressivo é o portão de embarque do aeroporto. Com efeito, regentes exponenciais são cidadãos do mundo, vivendo em hotéis e flertando com os melhores conjuntos do planeta a lhe disputar a agenda. Daí se tem que mesmo orquestras respeitáveis, como, por exemplo, a Filarmônica de Los Angeles sob Gustavo Dudamel, tendem a cair em abandono quando confiadas a salvadores notáveis.

Descartados, desse modo, os gênios, os prognósticos são ainda menos auspiciosos quando batutas públicas são delegadas apenas às mãos de um único regente suficientemente bom. Por uns poucos meses, o jovem, ambicioso, aplicado e, talvez, inocente maestro cativará orquestra e audiência até que, inevitavelmente, seu repertório se esgote – quando, então, também tomará, por pânico ou ambição, o caminho do aeroporto. Só que, não pertencendo ao concorrido jet set dos astros da batuta, terá sua arena de atuação limitada a orquestras geridas por pares pertencentes a sua rede de contatos, às quais se fará convidar mediante convites recíprocos para reger a orquestra que lhe foi confiada. Tal prática pode ser facilmente comprovada mediante o simples cruzamento entre a agenda do regente titular e as dos convidados de uma orquestra. Um exame mais cuidadoso das mesmas também revela que titulares itinerantes se valem amiúde de orquestras às quais atribuem menor prestígio (provincianas, como alguns as designam) como plataforma de treinamento para enfrentar repertórios mais exigentes diante de audiências mais cosmopolitas.

Nesse cenário pessimista, muitos já anteviram, como uma luz no fim do túnel, a possibilidade, jamais posta em prática no âmbito da OSPA, do não preenchimento, pela Secretaria de Cultura e pela Presidência da Fundação, de seu cargo de regente titular – ficando, neste caso, a qualidade da programação e o entusiasmo do conjunto assegurados mediante realização de uma temporada de concertos a cargo de regentes convidados para residências de curta duração – contratados, por sua vez, com os próprios recursos, geralmente volumosos, outrossim alocados à manutenção de titulares onerosos e de curta validade. Neste modelo, que já me resignei a considerar como utópico, repertórios, solistas e regentes convidados seriam fruto de um consenso viabilizado pela existência e atuação, de fato e de direito, de uma entidade colegiada com força deliberativa composta paritariamente pelo poder público, a orquestra e sua audiência. Gosto de pensar nisso como uma instância ideal do tão alardeado e nem sempre aplicado controle social.

Feito isso, restaria ainda ao secretário de Cultura e ao presidente da Fundação a complexa atribuição de designar para a Ospa um diretor artístico. Como amante e artífice das letras, talvez não lhe seja estranha uma passagem da formidável novela Árvores Abatidas – Uma Provocação (trad. Lya Luft, 1985), do grande Thomas Bernhard, em que o herói e alter-ego do autor cinicamente prevê, num banquete cultural em Viena, o inexorável declínio do prestígio de um incensado diretor artístico recém designado para um importante teatro em razão direta do desgaste inerente ao exercício do próprio cargo. Tivéssemos aqui mais tempo, traçaríamos sem dúvida deliciosos paralelos entre O Homem Amoroso e a novela de Bernhard.

Devo, no entanto, me ater, por hora, ao futuro da Ospa e, indo direto ao ponto, chamar a atenção para o fato de que a escolha de seu diretor artístico não deve de modo algum se restringir àqueles que sejam também maestros por ofício (empíricos) e/ou formação (diplomados). A tradição de que diretores artísticos de orquestras sejam, quase sempre, profissionais da batuta se deve exclusivamente ao fato de que, para atrair salvadores, tidos por muitos gestores como escassos, organizações sinfônicas recorram com freqüência ao duplo expediente de lhes permitir o acúmulo de vencimentos por ambos os cargos (de regente titular e de diretor artístico) – lhes garantindo, ao mesmo tempo, a centralização das decisões que lhe afetam a programação (uma moeda valiosíssima, como vimos acima).

Onde e como procurar, então, dentre os não maestros, aqueles com o perfil mais recomendável para exercer a direção artística de organizações sinfônicas? Evidentemente, entre os que mais conhecem música, isto é, músicos, compositores, musicólogos, críticos e, last but not least, ouvintes – desde que, é claro, comprometidos com a premissa anterior de gestão social da coisa artística pública. Pois, é bom lembrar, assim como a Osesp recorreu a Arthur Nestrovski para (espero) varrer o ranço autoritário de Neschling, penso que aqui Celso Loureiro Chaves (oxalá aceitasse!) ou Ney Fialkow, para citar uns poucos e apenas à guisa de exemplo, poderiam realizar, dada a magnitude de sua autoridade musical, um trabalho excelente e sem precedentes entre maestros diplomados ou empíricos à frente da gestão artística da Ospa.

Por isso, apelo para sua sensibilidade sem ser ingênuo em relação a forças políticas que se sobreponham eventualmente a seu cargo. Lembro, no entanto, que não raro esferas artísticas sirvam de contextos propícios ou mesmo ideais para movimentos em direção ao progresso social – como, por exemplo, na célebre instância em que o grande Kurt Masur chegou a ser cogitado para exercer o cargo de chanceler da Alemanha recém unificada.

Deste modo, se tiver a oportunidade e o apoio necessários para inovar em relação à gestão social e participativa da Ospa, dará um grande passo tanto no âmbito da cultura como no da política em nosso estado. Senão, terá sido para mim ainda assim um prazer debater e amadurecer ideias progressistas com alguém de sua estatura humanística.

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

E a discussão foi para o Facebook…

Gostava mais quando as discussões eram aqui, mas o Facebook não quer saber e leva as coisas para lá mesmo. Sobre o post abaixo:

Francisco Marshall, historiador, coordenador do Studio Clio: A OSPA vive uma enorme crise. A comunidade, distanciada da orquestra, espera que sobreviva, pois tem 60 anos, o Érico disse aquilo, é um órgão público, etc, etc. A verdade, porém, é que está no fundo do poço, sem regente titular, desmotivad…a, com salários baixos, sem casa, com um projeto de teatro novo que poucos conhecem e quem conhece não gosta (cafona, horrível), sem associação de amigos, sem escola… que que falta? Tocar pagode? Daqui a pouco diremos no além-Mampituba: “Eu venho de uma cidade que teve uma orquestra sinfônica, e fechou.”

Elena Romanov, violinista da OSPA: Discordo completamente. A Nona de ontem foi emocionante!
Fiquei muito orgulhosa de fazer parte desta Nona… espero que a maioria dos colegas sente o mesmo orgulho. E Karabtchevsky continua sendo Karabtchevsky, mesmo gripado e criticado.

Francisco Marshall: Bueno, eu não ouvi, e vou por ti, Elena, quanto à música. Parabéns!
O que falo diz respeito à situação política, social e administrativa da OSPA, muito preocupante.

Elena Romanov: à situação política, social e administrativa da OSPA, muito preocupante…
Com isso não posso não concordar… infelizmente.

Milton Ribeiro: Elena, é estranho. Ouço a Nona há anos (claro!) e tomo por base o que tenho ouvido. Concedo que a má interpretação do Scherzo pode ser impressão, apesar de que não estava nada divertido, porém o Adágio estava muuuuito rápido. Não estava nad…a delicado, tenho convicção de que estava ruim e conheço n gravações onde ele aparece muito mais interessante e… lento. A concepção me pareceu antiquada.

Mas estou longe de me considerar o dono da verdade e posso estar erradíssimo, apesar do que dizem meus ouvidos. Minha opinião so tem validade absoluta dentro do perímetro do meu cérebro, dali pra fora…

Abraço.

Elena Romanov: Pois é, Milton. Todos nós gostamos algo mais e algo menos… isso é normal e humano. Mas a OSPA deu seu melhor ontem. Ao vivo. Numa acústica terrível. E estava de aniversário.
Merecemos um Parabéns sem as criticas 🙂

Milton Ribeiro: Elena, eu acho que OSPA merece todos os parabéns e mais 60 anos de vida. O que fiz foi uma crítica a uma interpretação. Nunca seria estúpido (pois é esta a palavra) de desconsiderar a instituição. Ao contrário, sinto enormes saudades dos te…mpos de Komlós, David Machado e Eleazar. Sinto saudades, sobretudo, de REPERTÓRIOS MAIS AMPLOS, da música moderna, dos compositores brasileiros, da fuga da atual zona de conforto e estou disposto a lutar pela melhoria da situação. Sinto saudades dos tempos em que a orquestra me parecia mais disposta a desafios e que era a melhor do país. Sobre o esforço de vcs: minha nossa, sei que deve ser imenso. Vcs são músicos que ensaiam e tocam em locais de acústica lastimável. Mas sou público ouvinte e essas pessoas têm a mania de cobrar qualidade mesmo que as circunstâncias sejam precárias.

Sim, temos discordâncias sobre a Nona. Sou um ouvinte de longa vivência (deves conhecer aquele blog de múisca erudita que mantenho, não?) e tu és uma musicista. É claro que tua opinião é mais abalizada do que a minha e que tu estás sendo bondosa ao me poupar de explicações técnicas. O que desejo deixar claro é frequento a OSPA desde criança, adoro a orquestra e tanto sinto-a como minha que fico envergonhado pela “situação política, social e administrativa” dela.

Agora há colegas teus que têm reações as mais estranhas: enquanto um diz que o Scherzo da Nona é sério — o que é uma piada involuntária, me faz imaginar Beethoven escrevendo uma peça bem humorada que fosse inteiramente despretensiosa (fato impossível) e me faz pensar em Scherzi bem mais sérios como os de Bruckner –, houve outro que me fez um sinal de que gostaria de vomitar e isto em pleno concerto! (não diria seu nome nem sob tortura, OK?). Ou seja, há opiniões e opiniões, mesmo dentro da orquestra.

Abraço.

Claudia de Ávila Antonini: Acho vocês músicos uns heróis.
Não sei onde encontram motivação tendo que ouvir antes do concerto notícias sobre pagamentos atrasados e estando sem casa própria, sem local adequado para ensaios e sem verba para a manutenção dos instrumentos… e trajes. Haja magia…
E que vergonha isso para nós portoalegrenses!
Sobre o ex-titular, desculpe mas me é antipático, não consigo não vê-lo como um turista pretensioso que queria ser o Neschling do Sul mas só se não desse muito trabalho…
Espero que os novos ares mudem estes rumos em breve e que sejam vocês músicos a cortar a fita de inauguração do novo teatro.

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Entre promessas e constrangimentos, OSPA é homenageada e faz mau concerto

Durante o concerto comemorativo aos 60 anos da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (OSPA), nesta terça-feira, ouviu-se não apenas a 9ª Sinfonia de Beethoven, mas vários discursos.

Quando o prefeito de Porto Alegre, José Fortunati, declarou a OSPA como “Bem Cultural de Natureza Imaterial” da cidade, houve certa reação de uma plateia que conhece a história recente da Orquestra. Ouviram-se murmúrios, para dizer o mínimo. A Ospa está há anos sem sede. Após ter sido rejeitado por algumas associações de moradores — houve o célebre caso dos Histéricos da Gonçalo de Carvalho que desejam proteger o ecossistema da rua… — , o projeto da sede, hoje, só se materializa no papel e em tapumes no Parque Maurício Sirotsky. Como se não bastasse, a verba indenizatória para manutenção de instrumentos e indumentária dos músicos está defasada, o regente titular está demissionário, o local de ensaios é totalmente inadequado – um armazém no cais do porto – e o Conservatório Pablo Komlós está desativado. Sob esta perspectiva, o ato de registrar a OSPA como Bem Imaterial foi ouvido como uma fina ironia involutária, porque “bens materiais” é tudo que lhe falta.

Porém, a reação maior veio quando o Secretário de Cultura do Estado, César Prestes, discursou, representando o Governo do Estado. Ao referir-se a uma suposta boa convivência da Secretaria com a Orquestra, Prestes ouviu algumas risadas em tom de escárnio. Apesar do secretário ignorá-las, o constrangimento foi geral. Depois, foram chamados para discursar o deputado estadual Adão Villaverde (PT). Ele tentou tranquilizar a plateia, garantindo que os recursos para a construção do novo teatro estão na previsão do futuro governador Tarso Genro e da bancada federal gaúcha para o próximo ano. Porém, o presidente da Fundação Orquestra Sinfônica de Porto Alegre, Ivo Nesralla, após citar a presença do futuro Secretário da Cultura, Luiz Antônio de Assis Brasil, do ex-governador Olivio Dutra, do deputado Raul Pont (PT), do secretário municipal da Cultura, Sergius Gonzaga, e de outras autoridades, fez retornar o clima pesado ao dar a boa notícia de que finalmente as verbas para manutenção dos instrumentos e da indumentária seria reajustada e paga. Só que o bom anúncio foi feito com tal falta de entusiasmo que os murmúrios voltaram à plateia. Só foram interrompidos por Beethoven, regido por Isaac Karabtchevsky em seu último concerto e que recebeu uma interpretação apenas correta, bem abaixo da capacidade dos músicos.

Se no primeiro movimento a orquestra somente tratou de bater o ponto, um Molto Vivace (Scherzo) duro e estranhamente militar deu o pontapé inicial para a  tragédia. Há que ter humor para tocá-lo e parecia que não havia muito disponível em estoque.  Obs.: Scherzo significa “brincadeira”. O Adagio molto e cantabile veio em inusitada velocidade, como se Karabtchevsky quisesse jantar logo. Desde que Karl Böhm passou a tocar este movimento em 18 minutos lá pelos anos 70 — contra os 14 de Karajan, por exemplo — que a concepção mais rápida do Adágio da Nona ficou abalada. Hoje, poucos o interpretam da forma escandalosamente açodada que ouvimos ontem e conheço muitas gravações dele, pois é meu movimento preferido da Nona. O Coral final esteve realmente perfeito, mas foi só. Falando com franqueza, acho que o internacional Karabtchevsky não tem mais ambiente e já vai tarde.

Por falar em tarde, hoje à tarde, a Assembleia Legislativa do Estado homenageou a OSPA por seus 60 anos. No Plenário da Assembleia Legislativa, ouviram-se novas promessas de apoio à instituição. Fala-se em recursos federais de R$ 30 milhões para o início das obras, mas não há confirmação de valores.

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

John Zorn e grupo no Festival de Marciac, França, 2010

Marc Ribot, guitarra
Jamie Saft, órgão
Trevor Dunn, baixo
Kenny Wollesen, vibrafone
Joey Baron, bateria
Cyro Baptista, percussão

Gosto muito de John Zorn. Simples assim.

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Dmitri Shostakovich (VII) – Os Anos Finais e a Fixação na Morte

As obras do período final da vida de Shostakovich foram compostas sobre um e apenas um assunto: a morte. Ele parecia inteiramente fixado no tema e não é exagero nenhum dizer-se que todas as obras, a partir do opus que comento abaixo, são fundamentalmente sobre a morte. E notem que algumas sinfonias e outras obras anteriores também o eram. O compositor sofreu um ataque cardíaco em 1966, mas desde antes já sofria de uma doença degenerativa que ainda hoje é tema de discussões médicas. A propósito, no dia 27 de setembro de 2006, dois dias após o centenário de seu nascimento, haveria em Londres um seminário sobre sua obra dentro do qual, entre eventos mais agradáveis, médicos se reuniriam com o público a fim de revelar new medical evidences. Ou seja, ninguém sabe exatamente do que sofria Shostakovich. O que se sabe é que, no final dos anos 50, o compositor deixara o piano por dores e descontrole dos movimentos de sua mão direita. Sabe-se mais: o grande Robert Craft, ao conhecer Shostakovich em 1962, disse que “ele era o mais tímido e nervoso ser humano que jamais conhecera”, que “passava todo o tempo mexendo com as mãos e ajeitando os óculos” e que “às vezes, parecia feliz para, no minuto seguinte, estar pronto para chorar”. Rostropovich declarou que, em seus anos finais, Shostakovich apenas desejava “a presença de uma pessoa de quem gostasse, sentada com ele em silêncio, em seu quarto”. Enquanto a doença e a angústia progrediam, Shostakovich era adulado e aclamado em todo o mundo. Não apenas Craft foi conhecê-lo, mas também Benjamim Britten ia visitá-lo e acabaram tão amigos que a Sinfonia Nº 14 é muito influenciada por Britten.

Estes paradoxos entre doença acrescida de angústia e homenagens de onde surgiam novas amizades permaneceram até final da vida de um compositor que seguia produzindo música da melhor qualidade, porém, repito, inteiramente voltada para a morte. A partir da Sinfonia Nº 11, o que temos é a maior e melhor produção de música lúgubre, com explosões de alegria e sarcasmo aqui e ali. Dentro deste espírito, seguem as obras-primas.

Sinfonia Nº 14, Op. 135 (1969)

A Sinfonia Nº 14 — espécie de ciclo de canções — foi dedicada a Britten, que a estreou em 1970 na Inglaterra. É a menos casual das dedicatórias. Seu formato e sonoridade é semelhante à Serenata para Tenor, Trompa e Cordas, Op. 31, e à Les Illuminations para tenor e orquestra de cordas, Op. 18, ambas do compositor inglês. Os dois eram amigos pessoais; conheceram-se em Londres em 1960, e Britten, depois disto, fez várias visitas à URSS. Se o formato musical vem de Britten, o espírito da música é inteiramente de Shostakovich, que se utiliza de poemas de Lorca, Brentano, Apollinaire, Küchelbecker e Rilke, sempre sobre o mesmo assunto: a morte. O ciclo, escrito para soprano, baixo, percussão e cordas, não deixa a margem à consolação, é música de tristeza sem esperança. Cada canção tem personalidade própria, indo do sombrio e elegíaco em A la Santé, An Delvig e A Morte do Poeta, ao macabro na sensacional Malagueña, ao amargo em Les Attentives, ao grotesco em Réponse des Cosaques Zaporogues e à evocação dramática de Loreley. É uma música que trabalha para a poesia, chegando, por vezes, a casar-se com ela sílaba por sílaba para torná-la mais expressiva. Há uma versão da sinfonia no idioma original de cada poema, mas sempre a ouvi em russo. Então, já que não entendo esta língua, tenho que ouvi-la ao mesmo tempo em que leio uma tradução dos poemas. Posso dizer que a sinfonia torna-se apenas triste se estiver desacompanhada da compreensão dos poemas – pecado que cometi por anos! Ela perde sentido se não temos consciência de seu conteúdo autenticamente fúnebre. Além do mais, os poemas são notáveis. Não está entre minhas obras preferidas, porém são indiscutíveis seus méritos musicais e sua extrema sinceridade. Me entusiasmam especialmente a Malagueña, feita sobre poema de Lorca e a estranha Conclusão (Schluss-Stück) de Rilke, que é brevíssima, sardônica e — puxa vida — muito, mas muito final.

Quarteto Nº 13, Op. 138 (1970)

Um pouco menos funéreo que a Sinfonia Nº 14, este quarteto foi escrito nos intervalos do tratamento ortopédico que conseguiu devolver-lhe do parte do movimento das mãos e antes do segundo ataque cardíaco. O décimo-terceiro quarteto é um longo e triste adágio de cerca de vinte minutos. O quarteto foi dedicado ao violista Vadim Borisovsky, do Quarteto Beethoven, e a viola não somente abre o quarteto como é seu instrumento principal. Trata-se de um belo quarteto cuja tranquilidade só é quebrada por um pequeno scherzando estranhamente aparentado do bebop (sim, isso mesmo).

Sinfonia Nº 15, Op. 141 (1971)

Sem dúvida, a Sinfonia Nº 15 é uma de minhas preferidas no gênero. É difícil estabelecer um conteúdo programático para ela. Trata-se de uma música muito viva, com colorido orquestral atraente, temas facilmente assimiláveis e nada triviais, clímax e pausas meditativas que empolgam e mantém o ouvinte permanentemente atento. E com os contrastes inesperados característicos de Shostakovich. Parece um roteiro de Shakespeare passado à música, trazendo o trágico ao festivo, empurrando a reflexão para junto da zombaria. Bom, já viram que sou um apaixonado desta sinfonia. O primeiro movimento (Allegretto) é uma curiosidade por manter sempre ativo o motivo da cavalgada da abertura Guilherme Tell, de Rossini, e pela participação incessante da percussão. O segundo movimento (Adagio) é circunspecto. Os metais trazem uma melodia sombria, para depois o violoncelo completá-la com um solo dilacerante, a cujas cores será acrescida, mais adiante, a ressonância do contrabaixo. Um novo Alegretto surge repentinamente do Adagio, retomando o clima do primeiro movimento, mas desta vez somos levados pelos solos do fagote, violino, clarinete e flautim. O movimento final, outro adagio, é enigmático. A simbologia está presente com a apresentação de imediato do Prenúncio da Morte, composto por Wagner para a Tetralogia do Anel. O ouvinte wagneriano fica desconcertado ao escutar de imediato esta música conhecida, parece tratar-se de um equívoco, de um erro de partitura. Ao pesado motivo de Wagner são contrapostos temas executados por setores “mais leves” da orquestra, porém, a todo instante, o sinistro aviso retorna e, mais adiante, os metais refletirão angustiada exasperação… A sinfonia esvai-se em delicados sons de percussão, deixando um ponto de interrogação no ar. É desconcertante. O significado do Prenúncio da Morte é óbvio, porém, o que significam a percussão, a orquestração e as melodias jocosas que o cercam? Uma simples experiência sinfônica? Impossível. O desejo de felicidade de alguém cuja vida se encerra? Ou, voltando a Shakespeare, que a vida é uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria, que nada significa (*)? Porém, a significação, a intenção exata de uma obra instrumental é tão importante? Ou seria mais inteligente fazer como fez Shostakovich, levando-nos bem próximo ao irrespondível para nos abandonar por lá?

(*) Macbeth, William Shakespeare.

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Carioca, de Chico Buarque

Post publicado em 11 de maio de 2006.

(Antes do Chico, vamos responder à pergunta proposta no post anterior. Foi este cara.)

Sim, é um trabalho muito bem acabado e Chico agrega-se ao notável grupo de MPB da gravadora Biscoito Fino. Não há lugar melhor para ele. Mas não esperem obras-primas como as do passado. Nem é esta a intenção, creio eu. Ser dublê de escritor e compositor popular exige algumas limitações. Carioca é um trabalho clássico, agradável e bom, que só avança na inclusão de um pequeno rap na segunda melhor canção do CD, Ode aos Ratos, com melodia de Edu Lobo. De resto, é um Chico parecido com o de seu último trabalho. Um Chico que não vai tocar no rádio, mas que todas as pessoas interessadas em MPB conhecerão e assobiarão. Um CD de arranjos perfeitamente convencionais, mas com letras de qualidade superior, a gentileza habitual da casa.

Fico meio nervoso quando me deparo com um CD de apenas trinta e sete minutos de duração. Não dá vontade de comprar. Talvez acostumado com os de música erudita e jazz, acho pouco. E, na primeira audição, tomei um susto ao ouvir o dueto com Mônica Salmaso, pois sabia que aquela era a última canção do disco. Já? É demais exigir que Budapeste seja seguido por uma grande obra musical. Afinal, apesar do que dizem as mulheres, Chico é apenas um ser humano; talvez menor do que a imaginação de alguns deseja e certamente maior do que os poucos hostis querem.

O que me surpreende é a forma como os compositores de música popular envelhecem mal. Se Chico bipartiu sua carreira tornando-se um excelente escritor, sua música parece cada vez mais parida a fórceps. Em vez das composições ficarem mais fáceis e naturais, em vez da construção de uma linguagem e de um estilo, os compositores de música popular ficam, com o tempo, encalacrados. O estranho é que os compositores eruditos fazem o caminho contrário, indo paralelamente e na mesma direção do que seria uma vida ideal: sempre melhorando e evoluindo. Parece que a música popular acompanha o envelhecimento físico de seus protagonistas, enquanto que a erudita evolui plenamente com o tempo. Por quê? Talvez Tom Jobim seja daquelas exceções que sirvam – clichê dos clichês – para confirmar a regra.

(A Claudia chega por trás de mim e, em sua permanente campanha para me desacreditar junto a meus sete leitores, esclarece a questão. Diz ela que a música popular vive da emoção e a erudita da técnica. E que o fenômeno Tom Jobim é facilmente explicado por tratar-se de um autor de melodias e harmonias muito mais elaboradas do que as utilizadas pelo comum dos compositores. Claudinha complementa a questão dizendo que, com o tempo, a emoção se acomoda e a técnica se aprimora. Por que não a conheci antes? Fecho parênteses.)

Outro fato que me surpreende é a ordem das músicas. Será que é puro acaso a colocação das melhores músicas todas juntas? Ouvi o disco umas sete vezes e estou convicto que o melhor está entre as faixas de 1 a 5 e de 10 a 12, ou seja, as melhores ficam no começo e no final, para garantir uma boa primeira e última impressões. As faixas de 6 a 9 baixam o nível do trabalho e me causaram algum mau humor, com destaque para a tentativa desesperada do arranjador Luiz Cláudio Ramos de salvar a melodia de As Atrizes com uma instrumentação pesada e cinematográfica. Se isto lhe é permitido pelo tema da canção, resulta em algo difícil de se suportar sem estendermos a mão ao player em busca da próxima faixa. É difícil compreender a insistência dos arranjadores de música popular quando chamam a atenção para o que há de ruim num trabalho em vez de desviar nossa atenção com improvisos instrumentais e um contigente mais leve.

Perfeitas são as canções Outros Sonhos, Ode aos Ratos, Dura na Queda, Leve e a campeã Imagina, com a participação da grande Mônica Salmaso. A propósito, se alguém puder me explicar porque uma melodia tão etérea e sonhadora ganhou um final de touradas, faça-o.

Ou seja, o mundo não vai mudar, nem o Brasil. Guinga continuará sendo o meu número um de hoje e as rádios continuarão nos torturando com a música-tema do filme Closer, Blower´s Daughter (de Damien Rice), devidamente retorcida por Ana Carolina e “Seu” Jorge. Um desastre. Mais detalhes aqui. É isso aííííííííí…

As Canções de Carioca:

01. Subúrbio (Chico Buarque)
02. Outros Sonhos (Chico Buarque)
03. Ode aos Ratos (Edu Lobo / Chico Buarque)
04. Dura na Queda (Chico Buarque)
05. Porque Era Ela, Porque Era Eu (Chico Buarque)
06. As Atrizes (Chico Buarque)
07. Ela Faz Cinema (Chico Buarque)
08. Bolero Blues (Jorge Helder / Chico Buarque)
09. Renata Maria (Ivan Lins / Chico Buarque)
10. Leve (Carlinhos Vergueiro / Chico Buarque)
11. Sempre (Chico Buarque)
12. Imagina (Tom Jobim / Chico Buarque)

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

A Whiter Shade of Pale, com o Procol Harum

Há décadas que eu me divirto com esta música. Hoje a @aiaiai63 e o @inagaki estavam trocando tuitadas e rindo das roupas e do clipe do primeiro filme. Apesar da observação da época — conhecida de mim, que nasci em 1957 — , fico com o segundo filme.

A Whiter Shade of Pale é a canção de estreia dos ingleses do Procol Harum. O compacto foi lançado em 12 de maio de 1967 e chegou à primeira colocação dentre as músicas mais ouvidas na Inglaterra em 8 de junho de 1967, permanecendo lá por seis semanas. Sem muita promoção, atingiu a quinta posição nas paradas americanas.

São conhecidas mais de 900 gravações por outros artistas. A música foi incluída em inúmeras compilações de sucessos da década de 60 e foi usada em trilhas sonoras de muitos filmes, como The Big Chill, Purple Haze, Breaking the Waves, The Boat That Rocked e, com direção de Martin Scorsese, New York Stories. Outras versões da canção são utilizadas em outros filmes como, por exemplo, a de King Curtis em Withnail and I e a de Annie Lennox em The Net.

Os créditos de composição originais foram somente para Gary Brooker e Keith Reid. Em 30 de julho de 2009, Matthew Fisher ganhou, nos tribunais, direitos de co-autoria.

Enjoy!

Ou clique aqui.

Ou clique aqui.

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

A cantora que pensa, e mais

Não sou um cara muito atento à MPB e há poucos artistas que têm o poder de me mobilizar para ouvir seus trabalhos. Talvez sejam eles Hermeto Pascoal, Guinga, Mônica Salmaso e Chico Buarque. Posso então dizer que 2007 foi um grande ano: em 4 meses tivemos o último Guinga, Casa de Villa e agora chega esta perfeição de Mônica Salmaso, Noites de Gala, Samba na Rua.

Muita gente já fez trabalhos interpretando Chico Buarque, mas ninguém chegou a este nível. Em primeiro lugar, ao ver a relação de catorze canções, vemos que Mônica decidiu-se finalmente a enfrentar alguns riscos. Construção, música que originalmente fora insuperavelmente arranjada por Rogério Duprat para o próprio Chico, é o maior deles. Porém, se Mônica e o grupo Pau Brasil – que a acompanha em todas as faixas – não supera o original, a nova interpretação é muito boa e não deixa de lado as dissonâncias e as estranhezas que a canção exige.

Como é Mônica? Ora, é uma cantora de grande técnica e de um virtuosismo não voltado ao espetacular e sim à expressão. Tem voz belíssima, meio entubada, perfeita para as canções intimistas e inadequada às músicas “pra cima”. Sim, é um enorme elogio, mas vá ouvir o CD antes de reclamar que exagero.

Voltando ao CD. Nele há alguns achados como a desconhecida e malandríssima Logo eu e a pouco executada Você você que Chico escreveu para um neto que ainda não havia nascido e que recebe de Mônica Salmaso uma interpretação de indescritível carinho para com seu filho Theo, que se encontrava na sua barriga de sete meses à época da gravação. É arrepiante. Além das citadas, o resto do CD, sempre com o criativo acompanhamento do grupo Pau Brasil – pontuado de silêncios, acústico, presente mas sem pontificar e com um extraordinários violonista e pianista – tem seus melhores momentos em Morena dos Olhos D`Água, Ciranda da Bailarina (em extraordinário registro com bem humoradas marimbas), Partido Alto, Suburbano Coração e O Velho Francisco. Mas as outras não são nada esquecíveis.

Se você está atrás de milagres, esqueça Bento XVI e fique com Mônica Salmaso. Pode comprar hoje! Se não gostar, por favor, não me avise, pois eu ficarei muito desconfiado.

Posso contar uma história? Eu estava assistindo um show de Mônica Salmaso em Parati. Terminado o espetáculo – e foi mesmo um espetáculo -, resolvi comprar um CD dela que não tinha e entrei na fila de autógrafos. OK, eu sou um filha-da-puta e, nos cinco minutos em que fiquei na fila pensei em dizer algo muito marcante a ela, que é uma mulher comunicativa e simpaticíssima. Foram cinco minutos de considerável trabalho para meu limitado cérebro. Pensei ter encontrado a solução quando ecoei uma frase de Adoniran Barbosa que Mônica recém dividira de forma brilhante, conseguindo que sua tristeza e humor (que esqueci) ficasse longe do patético, permanecendo dentro do habitat poético que merecia. Resumi e decorei direitinho o que devia dizer e, quando entreguei-lhe o CD para a assinatura e depois de dizer meu nome, despejei meu discurso. O efeito foi monumental. Ela se levantou subitamente como se o botão de eject tivesse sido abruptamente acionado, deu a volta na mesa e lançou-se sobre mim num daqueles abraços em que a gente fica balançando como se fosse um João Bobo ou como um reencontro de velhos e íntimos amigos, separados há uma década.

— Ai, que felicidade ouvir isso. Aquele trecho é dificílimo, é o centro, o cerne da música e foi o maior trabalho entender como devia ser cantada. Fiquei anos tentando! Você é músico?

E ficamos conversando por alguns minutos, pouquíssimos para mim e longos para o resto da fila que ficou comentando quem era aquele cara que tinha alugado a Mônica… Depois lhe disse rindo que viera a Parati só para ouvi-la. Ela deu uma gargalhada:

– Ô gaúcho mentiroso. Você veio pra FLIP!

Claro, claro.

Oh, eu sei, sei que não deveria contar sem constrangimento uma história em que brilho tanto, mas, acreditem, eu ESTOU constrangido, mas é que me orgulha tanto, sabe…? 

Mas houve outro lançamento relevante. A cantora portuguesa Teresa Salgueiro, do Madredeus, reaparece muito bem, muito bem mesmo, em seu segundo trabalho solo. Ela canta 22 clássicos da MPB de todos os tempos e surpreende por várias razões. A primeira pelo fato de ela ter esquecido em algum lugar seu sotaque português. Sim, alguma coisa ficou – ninguém no Brasil canta “eu voU pra Maracangália, eu voU” – e às vezes o sotaque volta, mas, pô, o que conseguiu foi outro milagre. A segunda é que a voz de Teresa vestiu-se de profana ao abandonar inteiramente a impostação quase clássica exigida pelo grupo português, mostrando que ela pode e faz o que quer. Você imagina Teresa Salgueiro saracoteando, dançando? Bem, se imagina, deve ter uma vida interior muito tumultuada.

Aqui também temos um extraordinário grupo de músicos trabalhando em favor da música. Trata-se do Septeto de João Cristal (prazer em conhecer). O trabalho dos caras é genial. O CD de Teresa está vendendo muito na Europa, principalmente na Alemanha e entre os ibéricos. Gostaria de saber o que pensam os portugueses de sua cantora, agora com sotaque brasileiro. Penso em quando Elis Regina chegou ao Rio de Janeiro e, para horror de alguns gaúchos, começou a chiar…

Se você tiver grana para apenas um CD, compre o de Mônica. Mas se der parcelar no cartão, leve os dois. O Milton garante, apesar repelir quaisquer protestos.

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Mstislav Rostropovich (1927-2007)

Eu o vi apenas uma vez, em Buenos Aires, no Colón. Tocou os dois concertos de Haydn, solando e regendo. Como bis, alguns movimentos das Suítes para Violoncelo Solo de Bach. Nada mal para quem só teve dinheiro para entrar na galeria mais alta do Colón, de onde podia ver sua reluzente careca tirando um som estupendo do instrumento — e era algo que parecia bater no nosso ouvido e, curiosamente, também no estômago. Mexia-se muito, mas parecia fazer o que fazia com extrema facilidade. Parecia uma brincadeira. Talvez as maiores obras para violoncelo do século XX tenham sido dedicadas e estreadas por Rostropovich. Os dois concertos de Shostakovich, a notável Sinfonia Concertante de Prokofiev — ambos professores seus no Conservatório de Moscou — e a Sonata de Britten foram escritas para ele. Penderecki também batizou um de seus “solos” para violoncelo com um lacônico Para Slava. Tímido, gentil, sério e inteligente, foi antes de tudo um enorme músico.

Era daquela classe de semideuses que hoje parece em vias de extinção e da qual faziam parte Rubinstein, Heifetz, Gilels, Richter e Richter, Oistrakh, Arrau, Carlos Kleiber, Karajan, Leonhardt (este vivo, e como!), Harnoncourt (idem!), Klemperer, Walter, Furtwangler e poucos outros. Com o tempo, surgiu o maestro Rostropovich. Um pouco entediado de tocar cello, queria expandir seu repertório, dizia com simplicidade. E é como regente que faz algumas das melhores gravações dos anos 90. Um belo dia de 1989, após a queda do muro e sem aviso prévio, esse cidadão, que dizia e sabia rir de si mesmo e do mundo, viaja a Berlim, caminha com seu cello até o muro, senta-se e dá um concerto para quem estivesse por ali (foto acima). As Suítes de Bach, claro. A explicação? “Fiz o que meu coração mandou. Era um ajuste de contas”. Abaixo, Slava por Salvador Dali.

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Dmitri Shostakovich (V)

Para Paulo Ricardo Brinckmann Oliveira

Seguimos nossa série iniciada aqui, continuada ali e ainda aqui e acolá.

Sinfonia Nº 13 (Babi Yar), Op. 113 (1962)

Após o equívoco da Sinfonia Nº 12 – lembrem que até Beethoven escreveu uma medonha Vitória de Wellington, curiosamente estreada na mesma noite da sublime 7ª Sinfonia, mas este é outro assunto… -, Shostakovich inauguraria sua última fase como compositor começando pela Sinfonia Nº 13, Babi Yar. Iniciava-se aqui a produção de uma sequência de obras-primas que só terminaria com sua morte, em 1975. Esta sinfonia tem seus pés firmemente apoiados na história da União Soviética durante a Segunda Guerra Mundial. É uma sinfonia cantada, quase uma cantata em seu formato, que conta com a nada desprezível colaboração do grande poeta russo Evgeny Evtuchenko (conforme alguns, como a Ed. Brasilinense, porém pode-se encontrar a grafia Ievtuchenko, Yevtuchenko ou Yevtushenko, enfim!).

O que é, afinal, Babi Yar? Babi Yar é o nome de uma pequena localidade situada perto de Kiev, na atual Ucrânia, cuja tradução poderia ser Barranco das Vovós. Ali, em 29 e 30 de setembro de 1941, teve lugar o assassinato de 34 mil judeus pelos nazistas. Eles foram mortos com tiros na cabeça e a participação comprovada de colaboradores ucranianos no massacre permanece até hoje tema de doloroso debate público naquele país. Nos dois anos seguintes, o número de mortos em Babi Yar subiu para 200 mil, em sua maioria judeus. Perto do fim da guerra, os nazistas ordenaram que os corpos fossem desenterrados e queimados, mas não conseguiram destruir todos os indícios. Ievtuchenko criticou a maneira que o governo soviético tratara o local. O monumento em homenagem aos mortos referia-se às vítimas como ucranianas e russas, o que também eram, apesar de se saber que o fato determinante de suas mortes era o de serem judeus. O motivo? Ora, Babi Yar deveria parecer mais uma prova do heroísmo e sofrimento do povo soviético e não de uma fatia dele, logo dele, que seria uma sociedade sem classes nem religiões… O jovem poeta Ievtushenko considerou isso uma hipocrisia e escreveu o poema em homenagem aos judeus mortos. O que parece ser uma crítica de importância relativa para nós, era digna de censura, na época. O poema — o qual tem extraordinários méritos literários — foi publicado na revista Literatournaia Gazetta e causou problemas a seu autor e depois, também a Shostakovich, ao qual foram pedidas alterações que nunca foram feitas na sinfonia. No Ocidente, Babi Yar foi considerado prova da violência antissemita na União Soviética, mas o próprio Ievtuchenko declara candidamente em sua Autobiografia Precoce (Ed. Brasiliense, 1987) que a tentativa de censura ao poema não teve nada a ver com este gênero de discussão e que, das trinta mil cartas que recebeu falando em Babi Yar, menos de trinta provinham de antissemitas…

O massacre de Babi Yar é tão lembrado que não serviu apenas a Ievtuchenko e a Shostakovich, tornando-se também tema de filmes e documentários recentes, assim como do romance Babi Yar de Anatoly Kuznetsov. Não é assunto morto, ainda.

O tratamento que Shostakovich dá ao poema é fortemente catalisador. Como se fosse uma cantata em cinco movimentos, os versos de Ievtuchenko são levados por um baixo solista, acompanhado de coral masculino (formado apenas por baixos) e orquestra. É música de impressionante gravidade e luto; a belíssima linha melódica ora assemelha-se a um serviço religioso, ora aum dos grandes modelos de Shostakovich, Mussorgski; mesmo assim, fiel a seu estilo, Shostakovich encontra espaço para seu habitual sarcasmo.

Tranquila crueldade: soldados alemães examinam as roupas dos mortos em Babi Yar.

“Babi Yar” é como ficou conhecida a sinfonia para coro masculino, baixo e orquestra.  A partir do texto de dura indignação de Ievgueni Evtuchenko e apesar dos problemas que ele geraria na União Soviética pós-stalinista, Shostakovich construiu um painel de extraordinária força em torno de mazelas típicas de seu tempo: o medo e a opressão, o conformismo e o carreirismo, o massacre cotidiano num Estado policial e a possibilidade de superação através do humor e da intransigência.

Em linguagem quase descritiva, combinando a severidade da orquestra com a impostação épica das vozes, “Babi Yar” tem um poder de evocação cinematográfico: raramente se ouviu música tão plástica. O realismo e a imagens dos poemas são admiravelmente apoiados pelo estilo alternadamente sombrio e agressivo da música de Shostakovich. Não obstante o grande efetivo orquestral e a tensão dos clímaxes, as texturas são rarefeitas e o coro, declamando ou murmurando, canta quase sempre em uníssono ou em oitavas — mais um elemento dessa estrutura preparada para expressar a desolação e o nervosismo.

O primeiro movimento alterna estrofes que exploram o horror e a culpa de Babi Yar com relatos de dois outros episódios — o de Anne Frank e o de um menino massacrado em Bielostok. No segundo movimento, ritmado de forma tipicamente shostakovichiana, o tom enfático das vozes falam da resistência que o “Humor” jamais deixará de oferecer à tirania. “Na loja”, o Adagio que se segue, descreve quase fisicamente as filas das humilhadas donas-de-casa numa linha sinuosa à espera de um pouco de comida. Quando chegam ao balcão, o poema diz: “Elas nos honram e nos julgam”, enquanto percussão e castanholas simulam panelas e garrafas se entrechocando. É em clima que estupefação que o movimento se encerra: “Nada está fora de seu alcance”.

A linha sinuosa torna-se reta ao prosseguir sem interrupção para o episódio seguinte, um ameaçador ‘sostenuto’ das cordas graves sob solo da tuba: é o “Medo”, componente constante da vida soviética. Contrapondo-se às sombras que até aqui dominam a sinfonia, Shostakovich a conclui com uma satírica reflexão sobre o que é seguir uma “Carreira”. Em ritmo de valsa lenta, ficamos sabendo que a verdadeira carreira não é a dos que se submetem, mas a de Galileu, Shakespeare ou Pasteur, Newton ou Tolstói: “Seguirei minha carreira de tal forma que não a esteja seguindo”, conclui o baixo, com o eco do sino que abrira pesadamente a sinfonia, agora aliviado pela celesta.

Shostakovich (esquerda), com o poeta Evgeni Ievtuchenko (direita)e o regente Kiril Kondrashin na estréia da 13ª Sinfonia.

A história da primeira execução de Babi Yar foi terrível. Houve protestos e ameaças por parte das autoridades soviéticas. Se até 1962, Shostakovich dava preferência a estrear suas obras sinfônicas com Evgeny Mravinsky (1903-1988), Babi Yar causou um surdo rompimento na parceria entre ambos. O lendário regente da Sinfônica de Leningrado amedrontou-se (teve razões para tanto) e desistiu da obra pouco antes de começarem os ensaios. Porém, como na União Soviética e a Rússia os talentos brotam por todo lado, Mravinsky foi substituído por Kiril Kondrashin (1914-1981) que teve uma performance inacreditável e cujo registro em disco é das coisas mais espetaculares que se possa ouvir.

P.S.- Por uma dessas coisas inexplicáveis, encontrei o disco soviético com o registro da estreia num sebo de Porto Alegre em 1975. Comprei, claro.

Obs.: A descrição da música foi adaptada de um texto que Clovis Marques escreveu para um concerto no Municipal do Rio de Janeiro.

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

As gravações históricas, uma maldição

Quando a gente ouve Pablo Casals tocando Bach, não está ouvindo Bach, o que se ouve é Pablo Casals (1876-1973) — um grande e importante homem — tocando Bach. Pablo (ou Pau, em catalão) foi enorme na luta contra a ditadura de Francisco Franco e o domínio nazista. Mais: foi ele quem trouxe de volta ao repertório as Suítes para Violoncelo de Bach mas, cá entre nós, suas gravações são péssimas. Às vezes ele desafina e o fraseado é tão duro que, bem, chega-se à óbvia e sabida conclusão de que ninguém, antes de Glenn Gould e principalmente das orquestras e executantes em instrumentos originais, sabia tocar Bach.

Sim, sei que é muita arrogância dizer que minha época sabe interpretar Bach; sim, sei que cada época deve ter o direito de dar sua interpretação para seja para ele, como para Shakespeare, Freud e outros gigantes do passado, mas também sei que nos aproximamos muito, não só dos instrumentos e da sonoridade da época, como de seu fraseado.

Hoje pela manhã, vinha de carro para o trabalho, ouvindo, como sempre, minha querida e cinquentenária Rádio da Universidade. Foi quando começou a Suíte Nº 6 com o famigerado catalão. Era um som de serrote tão horrendo que apenas esperei a manifestação de desagrado de minha mulher, uma amante da música barroca. Não deve ter demorado 3 minutos.

Essa coisa de ouvir Bruno Walter, Wilhelm Furtwängler, Karl Richter, Arthur Rubinstein e outros que vão sendo superados à medida que o tempo passa, é a própria definição de “anacrônico”. Pois homenageamos não a época do compositor, mas sim o precursor, o pioneiro, um intermediário. Quem sabe a gente deixa isso para quem se dedica à história das gravações e interpretações, hein? Nosso ouvidos merecem o melhor. Sempre.


Volta pra tumba, grande Casals!

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Mahler, Sinfonia Nº 1, Titã, 3º movimento

Para aquele advogado que (re)conheci quarta-feira
— deixei o cartão no escritório… era Herr Volkweiss? —
e que adora Mahler.

Mahler nunca teve problemas de autoestima, tanto que tinha certeza de que ficaria rico e famoso desde sua Sinfonia Nº 1. Mas algo deu errado. Este algo tem motivações que nossos ouvidos modernos não compreendem e que Sir Simon Rattle, atual regente da Orquestra Filarmônica de Berlim, tenta explicar abaixo. Os primeiros ouvintes julgaram inconcebível o trecho mais simples e melodioso da sinfonia, o 3º movimento baseado na antiquíssima canção de ninar francesa Frade Jacques (Frère Jacques). As ousadias do restante da obra passaram batidas, já a cançãozinha…

Abaixo, deixo-vos com a sempre tranquila explicação de Rattle e, após, com a interpretação do maestro anterior da Filarmônica de Berlim, Claudio Abbado, para a peça:

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Dmitri Shostakovich (II)

Passei minha vida não como um extático, mas como um trabalhador comum. Trabalhei muito desde menino.

SHOSTAKOVICH

Hoje, começo a escrever sucintamente sobre aquilo que, em minha opinião, Shostakovich produziu de melhor. Não sou músico, não leio partituras, mas tenho grande vivência como ouvinte de muitos compositores, maior até do que a da maioria dos músicos. Ouço muita música, talvez demais.

Sinfonia Nº 1, Op. 10 (1924-1925)

Shostakovich começou a escrever esta sinfonia quando tinha dezessete anos. Antes disso, tinha composto alguns scherzi que só interessaram à musicólogos. Sua estréia foi mesmo com esta Nº 1, terminada antes do autor completar vinte anos. Ela tornou aquele estudante de música, mais conhecido por ser o pianista-improvisador de três cinemas mudos de Petrogrado, internacionalmente célebre. Tal fama pode ser atribuída por Shostakovich ser o primeiro rebento musical do comunismo, mas ouvindo a sinfonia hoje, não nos decepcionamos de modo algum. É música de um futuro mestre.

Ela começa com um toque de trompete ao qual, se acrescentarmos um crescendo, tornar-se-á um tema de Petrouchka, de Igor Stravinsky. Alguns regentes russos fazem esta introdução exatamemente igual à Petroushka. É algo curioso que o jovem Dmitri tenha feito esta homenagem, quando dizia que seus modelos — e isto foi comprovadíssimo logo adiante — eram Mahler, Bach, Beethoven e Mussorgski. Mas há mesmo algo de “boneca triste” no primeiro movimento desta sinfonia. O segundo movimento possui um curioso tema árabe, que é a primeira grande paródia encontrada em sua obra. Um achado.

O movimento lento, muito triste, é daqueles que os anticomunistas mais truculentos considerariam uma comprovação do sofrimento do compositor sob o comunismo e de uma postura fatalista do tipo isto-não-vai-dar-nada-certo, porém acreditamos que a morte de seu pai, ocorrida alguns meses antes e a internação de Dmitri num sanatório da Criméia (ele contraíra tuberculose) tenha mais a ver. Há um belíssimo solo funéreo de oboé nele.

Concerto para Piano, Trompete e Cordas, Op. 35 (1933)

Shostakovich foi excelente pianista. Poderia ter feito carreira como virtuose, mas, para nossa sorte, escolheu compor. Foi o vencedor do internacional Concurso Chopin de 1927 e fazia apresentações regulares executando seus trabalhos. O pequeno número de gravações do próprio compositor como pianista talvez deva-se ao fato de ele ter perdido parcialmente os movimentos de sua mão direita ao final dos anos sessenta. Há registros no YouTube de Shostakovich tocando como um velocista o Finale deste concerto.

Trata-se de uma obra realmente espetacular. Era uma boa época para os concertos para piano. O de Ravel aparecera um ano antes, assim como o 5º de Prokofiev. É coincidente que os três sejam alegres, luminosos, divertidos mesmo. É formado de quatro movimentos, sendo o primeiro muito melodioso e gentil, os dois centrais lentos e o último capaz de provocar gargalhadas. A participação de um trompetista meio espalhafatoso é fundamental, assim como de um pianista que possa fazer rapidamente a conversão entre a música de cabaré e a música militar exigidas no último movimento. Uma vez, assistindo a uma apresentação, vi como as pessoas sorriam durante a audição deste movimento. Não há pontos baixos neste maravilhoso concerto, que ainda traz, em seu segundo movimento, um lindíssimo solo para trompete, além de uma cadenza esplêndida, de ecos beethovenianos.

Shostakovich foi o pianista de sua estréia, em 1933, na cidade de Leningrado.

Jazz Suite Nº 1, Op. 38B (1934) e Nº 2 (for Variety Stage Orchestra), Op. 50B (1938)

Em um famoso conto de Machado de Assis, Um Homem Célebre, havia um grande compositor de polcas, o Pestana, que queria fazer algo maior, grandioso, mas — que diabo! — só lhe saíam mais polcas. O que fazer? O personagem fazia o maior esforço, passava meses trancado em casa a fim de parir a grande obra, porém não produzia nada além de belas polcas, que logo se tornavam popularíssimas e eram assobiadas pelo povo nas ruas, para desespero do Pestana. Estas eram compostas copiosa e rapidamente. Acabou rico, infeliz e doente. Coitado.

Com Shostakovitch o caso é diferente. Compôs copiosamente obras-primas, tem obra profunda e numerosa, mas, um belo dia, resolveu escrever suítes para grupos de jazz. Vocês podem adivinhar o que aconteceu? Saíram apenas… polcas. Polcas e valsas. O timbre é o do jazz – não poderia ser diferente com aquela formação orquestral — , já a música são as polcas do personagem machadiano. Ah, vocês não acreditam? Então ouçam as obras acima. Não obstante, é muito bom. Há a espetacular Valsa 2 da Suíte Nro. 2, que foi utilizada por Stanley Kubrick na abertura de De Olhos bem Fechados, com um ritmo e um solo de sax que nos obriga a levantar e ensaiar uns passinhos pela sala; há várias polquinhas bem legais e há uma imitação de Duke Ellington — o Foxtrot (Blues) da Suíte Nº 1 — que dá para rolar de rir. O “Grande Projeto Falhado” do imortal Shosta é muito bom.

Sonata para Violoncelo e Piano, Op. 40 (1934)

A Sonata em Ré Menor Op. 40 foi composta em 1934, no período em que Shostakovitch apaixonara-se por uma jovem estudante, o que ocasionou um efêmero divórcio de sua esposa Nina. O compositor dedicou esta sonata ao violoncelista Victor Lubatski e ambos a estrearam em Moscou, no dia 25 de dezembro de 1934.

O primeiro movimento (Allegro non troppo) é escrito em forma sonata. O primeiro tema, bastante extenso, é apresentado pelo violoncelo, acompanhado por arpeggios do piano e depois desenvolvido por este até seu clímax; o segundo tema, muito mais delicado, é, contrariamente, apresentado pelo piano e imitado pelo violoncelo. Durante o desenvolvimento o primeiro tema ganha motivos rítmicos, mas logo o afetuoso segundo tema reaparece. Tudo parece em ordem, encaminhando-se para o final do movimento, mas Shostakovitch nos surpreende ao inserir alguns acordes em staccato do piano, acompanhados por notas sustentadas pelo violoncelo, o que faz com que a música torne-se quase estática. É uma estranha preparação para o que se ouvirá no segundo movimento (Allegro) o qual é um scherzo típico de Shostakovitch. Trata-se de um frenético ostinato que é interrompido por um tema apresentado pelo piano que, apesar de mais tranqüilo, é também muito pouco contemplativo. O terceiro movimento (Largo) faz-lhe intenso contraste, pois é uma melodia tranqüila e vocal, acompanhada pelo piano de forma introspectiva, dissonante e um tanto fúnebre. O Allegro final é um rondó bastante irônico no qual o tema principal é apresentado três vezes, ligados, a cada intervalo, por estranhas e vertiginosas cadenzas.

Sinfonia Nº 4, Op. 43 (1936)

Uma sinfonia decididamente mahleriana. Shostakovich estudara Mahler por vários anos e aqui estão ecos monumentais destes estudos. Sim, monumentais. Uma orquestra imensa, uma música com grandes contrastes e um tratamento de câmara em muitos episódios rarefeitos: Mahler. O maior mérito desta sinfonia é seu poderoso primeiro movimento, que é transformação constante de dois temas principais em que o compositor austríaco é trazido para as marchas de outubro, porém, minha preferência vai para o também mahleriano scherzo central. Ali, Shostakovich realiza uma curiosa mistura entre o tema introdutório da quinta sinfonia de Beethoven e o desenvolve como se fosse a sinfonia “Ressurreição”, Nº 2, de Mahler. Uma alegria para quem gosta de apontar estes diálogos. O final é um “sanduíche”. O bizarro tema ritmado central é envolvido por dois scherzi algo agressivos e ainda por uma música de réquiem. As explicações são muitas e aqui o referencial político parece ser mesmo o mais correto para quem, como Shostakovich, considerava que a URSS viera das mortes da revolução de outubro e estava se dirigindo para as mortes da próxima guerra.

Sinfonia Nº 5, Op. 47 (1937)

Esta é a obra mais popular de Dmitri Shostakovich. Recebeu incontáveis gravações e não é para menos. O público costuma torcer o nariz para obras mais modernas e aqui o compositor retorna no tempo para compor uma grande sinfonia ao estilo do século XIX. Sim, é em ré menor e possui quatro movimentos, tendo bem no meio, um scherzo composto por um Haydn mais parrudo. Mesmo para os aficcionados, é uma obra apetitosa, por transformar a linguagem do compositor em algo mais sonhador do que o habitual. Foi a primeira sinfonia de Shostakovich que ouvi. Meu pai, um romântico, apresentou-me a sinfonia dizendo que muito melhor que as de Prokofiev, exceção feita à Nº 1, Clássica, que ele amava. Alguns consideram esta obra uma grande paródia; eu a vejo como uma homenagem ao glorioso passado sinfônico do século anterior. A abertura e a coda do último movimento (Allegro non troppo) costuma aparecer, com boa freqüência, em programas de rádio que se querem sérios e influentes… Apesar de não ser típica, é absoluta e totalmente a sintaxe, o discurso e o sotaque do compositor. É a música ideal para o primeiro contato com Shostakovich.

Sinfonia Nº 6, Op. 54 (1939)

Uma perfeição esta sinfonia cujo dramático, concentrado e lírico primeiro movimento (um enorme Largo) é seguido por dois allegros, sendo o último pra lá de burlesco e circense (Presto). A estrutura estranha e inexplicável tem o efeito, ao menos em mim, de uma compulsão por ouvi-la e reouvi-la. Acho que volto sempre a ela com a finalidade de conferir se o primeiro movimento é mesmo tão perfeito e profundo e para buscar uma explicação para a galinhagem final — isto aqui não é uma tese acadêmica, daí a palavra “galinhagem” ser permitida… Nossa sorte é que existe aquele segundo Allegro central para tornar a passagem menos chocante. Esta belíssima obra talvez faça a alegria de qualquer maníaco-depressivo. É uma trilha sonora perfeita para quem sai das trevas para um humor primaveril em trinta minutos — ou menos. Começa estática e intelectual para terminar num circo. Simplesmente amo esta música! É um pacote completo de desespero, sorrisos e gargalhadas.

Bibliografia: quase tudo de memória, apoiado por algumas capas de CD.

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Como Kubrick deixou popular uma obscura obra de Shostakovich

Não é uma obra típica de Shostakovich, é tranquila e nada complexa ou raivosa ou sarcástica. Uma melodia simples que estava lá, quieta no meio de uma Suíte secundária, uma brincadeira como tantas que russo deixou por aí e que ninguém ouve. Mas Stanley Kubrick costumava encontrar obras perfeitas para ornamentar suas cenas perfeitas. E como! A simples abertura de Eyes Wide Shut (De Olhos bem Fechados), serviu para popularizar uma pequena e desimportante obra do grande russo. É claro que Shosta ficaria riria se pudesse ver todos os filmes abaixo e mais as outras dezenas que há no YouTube. Então, com vocês, a Valsa II da Suíte for Jazz Variety Orchestra, de Dmitri Shostakovich, em várias versões.

No filme de Kubrick:

Numa propaganda da Blockbuster:

No metrô de Paris:

Na interpretação (com improvisações e belos erros) de uma menininha:

E para servir de fundo a filmes de gosto pra lá de duvidoso:

Bom domingo a todos. Que Dilma e Tarso (no RS) acabem logo com isso.

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Dmitri Shostakovich (I)

Pois hoje é o Dia Mundial da Música! Então inicio uma série sobre Dmitri Shostakovich que publicarei a cada sexta-feira, OK?

A música pode ser amarga, jamais pode ser cínica.

DMITRI SHOSTAKOVICH


Muitíssimas vezes, quando ouvimos Shostakovich (1906-1975), sentimos certa estranheza, notamos intenções ou um torna-se palpável uma enorma revolta e desconforto. Percebe-se que o drama e os contrastes apresentados referem-se a acontecimentos externos, sejam de ordem pessoal ou não. Em contato com essas obras firmemente assentadas sobre os ombros de Bach, Beethoven, Mahler, Tchaikovsky e Mussorgsky, somos, de alguma forma muito particular, solicitados a conhecer mais das circunstâncias em que foram compostas e da vida pessoal do compositor. Isto já pode ser notado desde a sua Sinfonia Nro. 1, composta antes dos vinte anos e que o deixou célebre internacionalmente antes mesmo de finalizar seus estudos.

Vamos começar esta série pela parte mais difícil: as relações do músico com o poder. Aqui há três pontos importantes para a compreensão de Shostakovich. O Ocidente costuma simplificar os fatos conferindo ao autor a condição simples de mártir e dissidente do regime. Tais “enganos” datam dos tempos da guerra fria e persistem até hoje. Aqui, procurarei equilibrar as coisas através de leituras mais recentes que fiz. Procurarei expor os fatos políticos e tomarei partido apenas da obra do compositor, a qual amo apaixonadamente.

O Comunista: Shostakovich foi, certamente, um comunista sincero, não obstante suas divergências com uma doutrina oficial que nem sempre seguiu um caminho retilíneo. Sem seu engajamento nítido em favor dos princípios originais que criaram a União Soviética, seria impossível inventar o sopro lírico e épico que atravessa algumas de suas composições. Mas há o verdadeiro e o forçado, ou o espontâneo e a encomenda, ou a alegria e  o sarcasmo. A segunda de suas sinfonias (A Revolução de Outubro, de 1927), apesar de fraca, pertence às obras autênticas, já a décima-segunda (À Memória de Lênin, de 1961) parece ter sido obra de um autor amargo, sarcástico e que  estava mandando provisoriamente sua obra às favas.  No início de sua carreira de compositor, Shoatakovich tinha aquele entusiasmo que foi próprio de uma geração de criadores que — como Eisenstein e Maiakovski — , em determinado momento, acreditou ser para amanhã o paraíso terrestre, antes de renunciarem a suas esperanças, às vezes de forma trágica. Não obstante o que era dito durante a Guerra Fria, Shostakovich não estava preso à União Soviética e teve inúmeras oportunidades de fugir. Quando sua doença começou a prejudicá-lo como intérprete, ele estava fora do país, também esteve algumas vezes com Britten na Inglaterra … Ou seja, Shostakovich teve numerosas oportunidades que o compositor teve para emigrar – não o fazendo nunca. Houve declarações anti-soviéticas? Mas é claro, ele foi massacrado por Stálin e depois, mas nunca foi o dissidente típico. Seus problemas eram relativos às arbitrariedades dos dirigentes do país e não com aquilo que a imprensa ocidental desejava.

A Morte: Após a doença, Shostakovich era obcecado pela idéia da morte. Não devemos colocar toda a sua psicologia na conta do geopolítico. Ele possuía muito daqueles niilistas russos do século XIX, tão bem retratados nos romances de Dostoiévski. Há algo de Kirilov nele… Confundir isso com as torturas morais causadas pelos comissários políticos soviéticos é aplainar a grandiosa obra do compositor e é fatal para quem queira compreendê-lo. Obras como o Trio Nº. 2, Op. 67, de 1944, a Sonata para viola e piano, Op. 147, de 1975 ou a Sinfonia Nº 15, de 1974, todas com suas “Canções da Morte”, são inequívocas, assim como a Sinfonia Nº 14. As trevas sem fim que emanam destas composições e a melancolia por vezes desesperada só podem surgir de uma personalidade permeável a pensamentos macabros. Porém, até hoje, costuma-se esquecer demais da história pessoal de Shostakovich e colocar todos os seus momentos de depressão numa conta do geopolítico…

O Artista: como os verdadeiros artistas e, principalmente, os músicos, Shostakovich pensava que o estatuto particular de sua arte desobrigava-o a seguir palavras de ordem como aquelas que eram impostas aos operários, aos mineiros ou aos camponeses da União Soviética. Sob este aspecto, era ele quem enganava-se. Os sucessivos dirigentes jamais esqueceram de intervir diretamente nas orientações estéticas a serem seguidas por pintores, escritores, cineastas e… músicos. Sempre esteve fora das cogitações governamentais a existência de uma vanguarda artística na União Soviética, pelo menos depois da morte de Lênin.

Shostakovich sofreu gravemente três vezes os efeitos de restrições a seus trabalhos. 1936 pode ter sido um ano péssimo para ele, porém, em minha opinião, os detalhes jocosos da primeira proibição superam em muito o que ela tem de funesto para sua carreira. Ele havia composto sua segunda e última ópera — a primeira fora O Nariz, baseada no conto de Gógol — quando Stálin foi assisti-la. Lady Macbeth de Mtsensk — baseada na esplêndida novela de Nikolai Leskov e só encontrável em espanhol (recomendo a leitura) — conta como uma mulher se tornou assassina por amor e demonstra que, se ela foi levada a cometer crimes, a causa estava no comportamento odioso de suas vítimas, na realidade autênticos carrascos. Sim, uma distorção pero no mucho do Macbeth original. Stálin, que era um grande apreciador de óperas e ouvinte de música erudita, detestou-a. Mostrou-se chocado com o erotismo de certas cenas, com a complicada escrita vocal, com o uso brincalhão e extravagante dos instrumentos e o ritmo esbaforido da música. Chamou Lady Macbeth de “pornofonia” — termo surpreendente em qualquer época — e baniu-a de todos os teatros soviéticos. Foi preciso esperar 27 anos para retornar à cena e, ainda assim, com a supressão do episódio orquestral que descrevia uma cena de sexo… É curioso que as eructações, flatulências e gargarejos de O Nariz nunca tenham sido alvo de censuras. Talvez Gógol imponha mais respeito que Leskov…

A segunda vez que Shostakovich entrou no index ocorreu independentemente de qualquer obra. Logo após a notoriedade internacional da Sinfonia Nº 7 — que descreve com pungência inalcançável o sofrimento passado pelo povo soviético durante o cerco de Leningrado — foi baixada uma resolução do Comitê Central do Partido Comunista Soviético que depois foi conhecida por “Relatório Jdanov”. Isto ocorreu em 10 de fevereiro de 1948 e colocou no mesmo saco Prokofiev, Khatchaturian, Shostakovich e quase todos os artistas do país. Shostakovich foi o mais atingido, pois negara-se a fazer de sua Sinfonia Nº 9 um elogio a Stálin e ao Exército Vermelho, publicando em seu lugar uma piada musical, que foi recebida com alegria e aplausos no Ocidente, tendo em Leonard Bernstein seu maior divulgador. O que Bernstein só soube depois é que a nona sinfonia deixara Stálin novamente furibundo com Shostakovich, ao ver suas ordens desobedecidas. Como resultado, suas peças sumiram do repertório.

Mas ele seguiu produzindo e, quando Stalin morreu, em 1953, Shostakovich tinha as gavetas lotadas de novidades. Havia, inclusive uma vingança contra o ditador.

O terceiro e maior desentendimento aconteceu em 1962. Neste ano, aparecia a Sinfonia Nro. 13, para solo de baixo, coro masculino e orquestra. Os textos cantados vinham do poema Babi Yar, de Evgueni Ievtuchenko e, em lugar de cantar o porvir, o poema denunciava os crimes nazistas cometidos naquela cidade perto de Kiev, onde 34 mil judeus foram assassinados. Denunciar os crimes nazistas não seria problema, mas o poema de Ievtuchenko fala sobre como os soviéticos insistiam em considerar russos e ucranianos os mortos, em vez de judeus. É claro que o motivo de suas mortes era a etnia judaica e não outro. É claro, que aquele foi um episódio meio obscuro, onde há indícios de colaboração. Ele e Ievtuchenko, celebridades internacionais, foram fortemente repreendidos pelas autoridades, que exigiram a substituição completa dos textos, sob pena de a música não vir a ser executada. A Sinfonia nunca foi alterada.

Bibliografia: grande parte das informações históricas foram obtidas em incontáveis discos, CDs e outras publicações, mas foram  um pouco sistematizadas pela leitura do texto de Philippe Olivier, dentro da História da Música Ocidental, Nova Fronteira, 1997, assim como de Shostakovich – Vida, Música, Tempo, de Lauro Machado Coelho, Perpectiva, 2006.

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Gustav Mahler e Jordi Savall

esta Wer hat dies Liedlein erdacht uma das canções do Des Knaben Wunderhorn, de Mahler. (Gosto de lavar a louça sob algo como Mahler ou Bruckner, a todo volume…) Era a gravação de Anne Sofie von Otter com Claudio Abbado, bem mais rápida do que esta da dupla Lucia Popp e Leonard Bernstein. Abaixo, com a zombeteira Lucia Popp e Bernstein uma versão um tantinho mais dura do que a de Abbado com von Otter. Mesmo assim dá para dançar. Ah, podemos afirmar tranquilamente que não bailamos com qualquer porcaria não… A canção é belíssima!

Ou clique aqui.

O grande mestre catalão Jordi Savall, mostra-nos seu instrumento, a viola da gamba, que se originou na Espanha no século XV e caiu em desuso no final do século XVIII, quando o aparecimento das grandes orquestras condenou a delicada gamba ao silêncio. Jordi Savall é um tremendo pesquisador e gambista que, a partir de documentos históricos, recupera o som de um dos mais incríveis instrumentos que conheço. O som da viola da gamba é mais impressionante, na minha opinião, do que o do violoncelo. No vídeo abaixo, ele toca um pouco, explica coisas sobre a gamba (perna, em italiano) e sobre a música em geral. Bom domingo para todos!

Ou clique aqui.

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!