A ignorância de Paulo Francis

Quando Paulo Francis (1930-1997) morreu, em fevereiro de 1997, provavelmente devido a um erro médico, morria com ele uma de minhas maiores diversões, que era a de procurar erros em sua coluna Diário da Corte. Todo domingo de manhã, tomava café tentando identificar seus chutes e comemorava cada bola para fora cantando os primeiros compassos da música de abertura para o futebol no Canal 100 (“Na Cadência do Samba”, de Luís Bandeira, depois rebatizada para “Que Bonito É”). Hoje minha memória já não é aquela de antes dos 40 anos e esqueço muitas coisas, mas os artigos do jornalista, cheio de referências culturais equivocadas, faziam a alegria de quem era um catálogo ambulante como eu. Fui um adolescente que lia muito e decorava as coisas sem desejá-lo, conhecia bem as obras de muitos autores que Francis citava, assim como também coisas perfeitamente inúteis: a lista de ganhadores do Nobel, o nome de cidades do interior da Mongólia ou a população de Mossoró no último censo…

Não pretendo falar sobre suas participações na TV. Via pouco os jornais onde ele fazia comentários e lembro mais de sua cara de batata inglesa ao lado de Lucas Mendes no Manhattan Connection, comentando as coisas de Nova Iorque com alguma indulgência, atacando nossas jequices e procurando polêmica, quesito em que foi um mestre. Ainda ouço seu sotaque e sua forma de falar muito própria, que continha em si boa dose de riso. A morte de Francis, ocorrida dois ou três dias após uma gravação do Manhattan, foi estranha. Quase todas as pessoas sabem que dificuldades para respirar e dores no ombro que irradiam para o braço esquerdo são prenúncio de infarto. Francis sentia exatamente estas dores há cinco dias, mas elas foram tratadas por seu médico e amigo particular, Jesus Cheddar, com uma injeção para minorar a dor.

Não simpatizava nem um pouco com Paulo Francis, mas reconheço nele um excelente cronista. Tinha texto irresistível e suas provocações — muitas vezes racistas e gratuitas — eram cuidadosa e sutilmente bombásticas. O que gostava mesmo em Francis — nascido Franz Paulo Trannin Heilborn –, era de encontrar seus incontáveis erros. Acreditava ser quase um solitário nesta arte até que, na semana passada, ganhei de presente o livro Vida e Obra do Plagiário Paulo Francis de Fernando Jorge. O livro, de 1996, traz 502 páginas recheadas não apenas de equívocos espetaculares, mas – pasmem – de plágios! O livro tem o subtítulo O Mergulho da Ignorância no Poço da Estupidez… Waaal, não cheguemos a tanto. O subtítulo mostra bem o que é o livro: o estilo de Fernando Jorge é permanentemente furibundo contra Francis, o que, se por vezes lhe dá um jeito de Céline ou de Bernhard, por outras fica tão exagerado que torna-se cômico. Fico pensando na incoerência que é não conferir o que escrevia ao mesmo tempo que esmerava-se em copiar… E Fernando Jorge comprova cópias e mais cópias num tempo em que ainda não existia o Ctlr C – Ctrl V. Pô, dava trabalho copiar!

O que me interessa no livro é a constatação do quanto perdi em meu “ludus”. Muito mais importante do que ler absurdos como o fato de que Jane Austen era lésbica (não era) ou de rir sobre o fato de que Beethoven ficara indignado com Mozart em 1770 (ano de nascimento do primeiro) é a percepção de seus plágios. Com incrível erudição e minúcia, Fernando Jorge organiza o livro em seções chamadas, por exemplo, de:

— A Vida de um Plagiário (págs. 1 a 108);
— Os Plágios Intermináveis de Paulo Francis (págs. 109 a 210);
— As Intermináveis Informações Erradas de Paulo Francis (págs. 211 a 294);
— Os Erros Monumentais de Paulo Francis no Campo da Literatura (págs. 329 a 358);
— Os Impressionantes Erros do Paulo Francis no Campo da História (págs. 359 a 418).

Sim, Fernando Jorge é o rei dos superlativos.

Voltando a mim e a minha diversão, informo a vocês que fui um adolescente apaixonado pela literatura inglesa e russa. Francis o era igualmente, só que, não conferirindo o que escrevia, cometia equívocos engraçadíssimos como o já citado sobre Jane Austen — que pode ser um ataque inconsequente — ou, por exemplo, sobre o fato de Charlotte e Emily Brontë serem gêmeas (Charlotte nasceu em 1816. Emily em 1818…) ou ainda — o melhor de tudo — escrevia frases tão inconsistentes como “Poucos Escritores se interessam por animais, D.H. Lawrence é um dos raros. Seus poemas sobre bichos são extraordinários.”… Ora, ainda hoje, posso citar mais de 20 escritores iguais ou maiores que o citado David Herbert e que escreveram poemas, contos ou romances sobre e com bichos. Só na querida literatura de língua inglesa de Francis há Edgar Allan Poe, Melville, Jack London, Mark Twain, Steinbeck, Bellow, Lewis Carrol (!), Rudyard Kipling (!), George Orwell (!), T.S. Elliot (o único escritor que me fez gostar de gatos), Oscar Wilde, etc. só para citar os primeiros que me ocorrem. E este gênero de afirmativas era feito a cada coluna.

Em minha opinião, além da truculência, há um grande problema no livro de Fernando Jorge. Ele não explora um notável filão: o da música erudita. Era o que mais me deixava feliz. O terreno ultraperigoso da música erudita não permite amadorismos; aqui não tem jeito, ou percorremos um longo e prazeroso aprendizado ou é melhor não se aventurar a escrever a respeito. São necessários anos de vivência auditiva — e de outras vivências — antes de partir para os comentários ambiciosos. Por isto, há tantos comentários “poéticos”, que fazem referências a sentimentos sugeridos pela música e que não conseguem estabelecer vínculos com outras obras. Porém, o que não faltava a Francis era coragem. Seus comentários sobre as sinfonias de Haydn me causavam, machadianamente, frouxos de riso. Há uma pequena obra sensacional de Peter Gammond traduzida no Brasil. Este livro, O Manual do Blefador de Música Erudita ensina-nos, em apenas 100 páginas, a simular profundos conhecimentos de música erudita. É engraçadíssimo e Francis deveria lê-lo para não relacionar Haydn à angustia, coisa que gostava de fazer. Francis, durante um período, dedicou-se, sabe-se lá porque motivo, às sinfonias de Haydn. Era uma pândega. Cito Gammond de memória: “Haydn seria tão grande quanto Mozart se não tivesse sido tão irremediavelmente feliz… Só no final de sua vida, ao ser obrigado a cumprir prazos para entregar suas últimas sinfonias ao empresário e violinista Salomon, é que notamos aquela pitadinha de drama que lhe faltava. Mesmo assim, é quase nada. Suas Missas e Oratórios, por exemplo, são festas de cabo a rabo. Qualquer tristeza dura pouco. Nunca esquecer que ele viveu muito e foi professor de Mozart e Beethoven”.

Realmente, não detesto a “bicha amarga” (*), como Caetano Veloso o chamou. Sinto sua falta. Comparados com ele, os Mainardi e os Reinaldo de Azevedo da vida são um saco, pois para arriscar-se e chocar é preciso ter talento. Ator medíocre transformado em temido crítico teatral, romancista médio transfigurado em leonino crítico literário, Francis era notável provocador e hábil “parodista”.

O livro: Vida e Obra do Plagiário Paulo Francis, de Fernando Jorge. Geração Editorial, 1996, 502 páginas. Acaba de sair uma nova edição.

(*) A propósito, Hélio Fernandes, que foi amigo-inimigo de Francis por longos anos, revela: “Paulo Francis adora falar em sexo, mas deveria ser a última pessoa a falar a respeito porque nesta matéria ele é rigosamente invicto, nunca praticou sexo nem de um lado nem de outro. Ele é o que se chamava na Segunda Guerra de não-beligerante”. Pô, o Caetano também não acerta uma!

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Flagrantes Flip 2004 III – Palestras, mesas

Antes de fazer algumas anotações sobre as palestras que assisti, faço registro de um telefonema recebido sexta-feira à tarde, 5 dias após o término da FLIP. Do outro lado estava Augusto Sales. Ele foi o organizador, junto com Mariana Ruiz, da Oficina Literária Veredas de Literatura, ministrada por Milton Hatoum. Para meu espanto, Sales começou a falar sobre a FLIP da mesma forma como eu começaria. Disse-me que ainda estava sem chão, que ainda não tinha conseguido voltar inteiramente ao Rio de Janeiro para trabalhar e seguir a vida. É a mesma impressão que tenho. Ao chegar em Porto Alegre, não fui trabalhar segunda-feira passada (ele chegou a seu escritório às 16h) e tudo o que fiz depois foi toldado pela certeza de que era meio sem graça. O que tinha graça havia ficara em Parati.

Gostaria de ter assistido mais palestras na FLIP. Infelizmente, a venda de ingressos foi uma confusão. Havia pouca coisa disponível para compra antecipada na Internet, mas muitos convidados do Unibanco não se interessavam por nada daquilo e quase sempre conseguíamos entrar comprando ingressos na última hora.

Não vou fazer uma avaliação das diversas mesas, apenas anotarei algumas afirmativas que tiveram valor pessoal, que disseram algo a mim. Tais anotações têm valor somente dentro deste âmbito, o pessoal. A maior decepção da FLIP foi a palestra de Margaret Atwood. Com voz monocórdica, de matemática uniformidade, ela conseguiu pôr toda aquela excitação para dormir. Para piorar as coisas, insistia em contar piadas de escritores. As piadas até que eram boas, mas trata-se de péssima piadista. Uma piada é formada por piada + piadista. Quando falta um dos dois… Fiquei de tal forma mal-humorado que, lá pela metade, demiti-me da palestra e fiquei pensando na vida. Havia muito em que pensar, havia a excelente Oficina com Milton Hatoum e, naquele mesmo dia tínhamos assistido à melhor das mesas… mas poucos estiveram lá. Falo sobre Luiz Vilela e Sérgio Sant`Anna. Nenhum deles tem vocação para showman, apenas têm muito a dizer e o fazem com graça. A partir de agora, vou citar desorganizadamente algumas declarações de memória. Espero não alterá-las muito.

Milton Hatoum (citando Borges): A pintura está no espaço; a literatura, no tempo.

Vilela: Todos nós que escrevemos hoje, um dia fomos leitores; isto é, fomos influenciados por um ou outro ou muitos escritores. Mas há uma coisa fundamental: a influência não cria nada – nem que o cara copie! -, apenas desperta coisas dentro de nós.

Vilela: Há regras para escrever um conto? Parece que Henry James deixou um monte de regrinhas prontas. Respeito James, porém mando suas regras à puta que o pariu. Preciso de liberdade.

Sant`Anna: Olha, gosto muito do Machado de Assis, mas de vez em quando ele é um saco! Leio Machado e penso “lá vem ele com aquela ironia” e ele vem mesmo. É um mestre, mas às vezes é um saco.

Mediador da mesa do Vilela e do Sant`Anna (um cara ótimo, esqueci seu nome): Atenção, jornalistas. A manchete da FLIP de amanhã é SÉRGIO SANT`ANNA DIZ QUE MACHADO É UM SACO. Risadas.

Hatoum: Um romancista precisa de concentração e muita dedicação para escrever. No Brasil é complicado, todo mundo tem que ralar muito para ganhar a vida. O melhor para um romancista é receber uma bolsa na Suíça. Funciona assim: você vai para a Suíça, comete um grave delito e vai preso. Então recebe de graça uma prisão com todo o conforto e escreve seu romance. O que acham?

Sant`Anna: Acho incrível quando a Bravo declara mortas as vanguardas. Será que isto dá Ibope? Guimarães Rosa, homenageado desta FLIP, tão imitado e lido, era retaguarda?

Miguel de Sousa Tavares: Começou sua exposição declamando uma poesia de sua mãe, a imensa Sophia de Mello Breyner Andresen, morta havia 8 dias, e deixou todos encantado com sua argumentação defendendo o romance histórico e contando casos e piadas. Foi o campeão individual da FLIP. Quando fui pegar-lhe um autógrafo, chamei-o de MST. Ele riu e disse que tinha um xerox ampliado de uma capa da Folha de São Paulo que dizia, em letras garrafais: “MST invade Brasília”.

Chico Buarque: Os escritores gostam de dizer que não lêem seus contemporâneos e que seus preferidos são Flaubert, Dostoiévski e Kafka. Todos dizem isto, só muda a ordem dos nomes.

Atwood: É desumano ter de divulgar seu próprio livro quando de um lançamento mundial. A gente pára de escrever. Você não deveria fazer isto comigo, Liz Calder. A editora Liz estava ali ao lado, como mediadora.

Vilela: Recebo um monte de livros de novos escritores. Na maioria das vezes, só leio o primeiro parágrafo. Por exemplo, se o cara começa assim: “O astro-rei escondeu-se por detrás da montanha…”, faço o seguinte: confiro se não é uma paródia e, se não é, desisto na hora. Quase todos os livros não me dão nenhum trabalho.

Vilela: Os leitores acham que, para a gente escrever, basta sentar e a coisa vai saindo. Nada disto, isto só nos acontece no banheiro.

Sant`Anna: O Vilela lê seus textos sentado, deitado e em pé. Diz ele que a perspectiva da leitura depende muito da postura adotada… Vilela confirmou tudo depois.

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Flagrantes FLIP 2004 II – A noite que chamei Chico Buarque de bobão

Na última noite em que estaríamos na FLIP, sábado, marcamos um jantar no restaurante mais fino de Parati. Assim, faríamos uma despedida formal e provisória do grupo multiestadual, tendo como ganho secundário a chance de nos vingar de todas as refeições “mais ou menos” que fizemos na cidade.

Cheguei sozinho ao restaurante Porto. Todo mundo — incluindo meus amigos — parecia estar buscando encontros, autógrafos ou simplesmente olhar para Chico Buarque ou Paul Auster. Dois dias antes, a Claudia havia reservado uma mesa para 8 pessoas numa discreta saleta do restaurante. Posso jurar-lhes que ela falou o seguinte: marcando um jantar no melhor restaurante, no último dia e na sala mais escondida, tínhamos boas chances de cruzar com algum dos notáveis da FLIP… Assim que sentei, os donos do estabelecimento vieram falar comigo. Pensei que eles fossem comentaristas do meu blog, tal era a recepção que estava recebendo. Parecia um rei. Depois de alguns minutos, descobri o motivo real.

— Reservamos a mesa ao lado para o Chico Buarque. Talvez o Paul Auster também venha. O Chico pediu que sua presença aqui não fosse divulgada; gosta de tranqüilidade e já está a caminho.
— Sem problemas, só acho que ele vai demorar. Deve estar autografando Budapeste para uma fila que vai até o morro lá atrás.
— Não, ele não vai autografar livros hoje, está quase chegando.

Prometi formalmente que não deixaria nossas mulheres saltarem sobre ele; saltaria sozinho. A Claudia e a Stella chegaram e avisei-lhes que estaríamos na presença do semideus. Minutos depois, entra Chico Buarque acompanhado de sua filha (Sílvia?) e de amigos. Quando alguém se juntava a nós, era curioso apontar para a mesa ao lado e observar a cara de pasmo da criatura. O sangue errava de veia e se perdia, só podia. A mesma ficava balbuciando que estava atrás de um autógrafo e ele… aqui… Às vezes eu olhava rapidamente para a mesa ao lado e ficava pensando no que aquele homem já produzira e em como eu o admirava. Voltava a olhar para a frente e sentia falta de minha irmã — como ela adoraria estar naquele jantar! — e de gente como a Mônica do Crônicas e a Andréa do Literatus, que escreveram maravilhas sobre os 60 anos do músico e escritor. Veio-me também à lembrança uma frase bem prosaica de uma amiga, ouvida há muitos anos: “Meu Deus, se eu visse o Chico Buarque na rua, ele não ia nem ver de onde eu vim”. Achei graça.

O vinho que bebemos era positivamente espantoso – um Merlot argentino da Argento, penso eu – e isto fez com que ficássemos alegres, muito alegres. Bebemos muito. Calma, não aconteceu nada demais, apenas começamos a nos divertir, a contar casos e a rir muito alto. Acho que o ambiente, o vinho, a companhia aqui e ao lado, a FLIP, os livros sobre a mesa, Parati e a proximidade da despedida (provisória, repito) deixou-nos muito apressados para falar e felizes, felizes. Algo semelhante acontecia na mesa de Chico e, repentinamente, a conversa deles nos interessou.

Chico começou a elogiar Débora Secco. Em meio a gritos de seus amigos — todos falavam ao mesmo tempo — disse que ela era linda, maravilhosa, gostosa e tesuda. Onde esconder sua enorme euforia com a atriz? Os homens de sua mesa concordavam e teciam outros elogios, alguns de gênero merecidamente hardcore, enquanto as mulheres olhavam sorridentes esperando pacientemente aquela lamentável crise passar. Porém, havia uma exceção. Sua filha não parecia nada satisfeita com o que afirmava papai e, após muxoxos outros, disse no volume máximo:

– Pai, acho que você saiu direto da Idade do Lobo para a Idade do Bobo.

Todos riram, lá e aqui. Chico jogava o corpo para trás, descontrolado. E então aconteceu a piada. Ela não tem nada de engraçado, ainda mais por escrito. É uma piada de oportunidade, de bêbado, daquelas que quebram a expectativa e o leve nervosismo de estar… bem, com Chico Buarque. Enquanto ríamos do que dissera a filha, eu apontei indiferente o polegar para a mesa deles, voltei-me e disse reservadamente para nosso grupo:

– Bobão!

O curto veredito teve efeito excepcional. Foi uma explosão interminável de gargalhadas. Ainda vejo os rostos contorcidos da Eugênia, da Stella, da Laura, da Sue e da Ivone. E Chico, bobão que é, ficou olhando para nós, querendo adivinhar o motivo para tanta alegria. Era ele mesmo. Um companheiro de trabalho que acaba de ler este texto e é o melhor piadista que conheço, afirma que a piada é até engraçadinha, mas que pode tornar-se irresistível sob o efeito do vinho e da pseudo-irreverência diante da raríssima companhia de um gênio. Chico, meu guri, desculpe, a partir de agora você é nosso bobão.


Toda a vulgaridade de Débora Secco. Te perdoo por te traíres, Chico Bobão.

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Amuleto, de Roberto Bolaño

Há vários capítulos inesquecíveis em Os Detetives Selvagens, porém, se há um menos esquecível que os outros, talvez seja aquele que narra a história da uruguaia Auxilio Lacouture, a mulher que ficou presa num banheiro feminino da Universidade Autônoma do México (Unam), em setembro de 1968. Auxilio costumava ler no banheiro, só que daquela vez começou a ouvir gritos e explosões e, ao sair de seu local de leitura a fim de averiguar o que estaria acontecendo, viu militares levando funcionários e estudantes para fora do prédio da Faculdade de Letras. Voltou ao banheiro para esconder-se e permaneceu 13 dias ali fechada até o dia da liberação da Universidade para professores, funcionários e alunos. Então, uma secretária abriu a porta do esconderijo e deu de cara com Auxilio, que caiu desmaiada.

O que era um belíssimo capítulo sem continuidade nos Detetives, torna-se novela — e das boas, e altamente poética — em Amuleto. Os fatos reais: houve uma pesada e trágica repressão militar na Universidade Autônoma do México (Unam) em 1968; esta foi invadida e temporariamente fechada; seguiu-se o massacre de centenas de estudantes na praça das Três Culturas de Tlatelolco, durante as Olimpíadas. Os fatos romanescos: Auxilio Lacouture, uma personagem absolutamente sedutora, uma andarilha que se autodenomina a mãe de todos os poetas mexicanos, uma quarentona sem emprego que perdeu por aí os dentes da frente, que vive de pequenos serviços para os professores da universidade, alguém que leu e lê muito, que põe a mão na frente da boca quando sorri — síntese genial de um personagem que fica entre o melancólico e o bem humorado –, que visita poetas e escritores propondo-se a lavar suas roupas e a varrer o chão em troca de alguns dias de hospedagem, uma mulher que ia a muitos bares, tendo bebido e conversado com todos os escritores do México, uma espécie de hippie sem-teto, culta, alta, loira, magra e exilada ilegal, esta é a uruguaia Auxilio Lacouture que, dizem os amigos de Bolaño, existiu e se chamava Alcira, tendo, na imaginação de Bolaño, ficado presa com sua saia branca, blusa azul e um livro num sanitário feminino da Unam quando ocorreu a ocupação.

A resistência poética de Auxilio, suas memórias e diálogos enlouquecidos, são narrados com a arte superior de Bolaño. A capacidade narrativa do chileno é realmente arrebatadora. Estão presentes novamente as histórias inconclusas e as narrações que nascem umas dentro das outras (uma superfetação de fantasias), mas o registro é um pouco mais delirante e onírico que o de outros romances, apesar de que o destino daqueles de quem Auxilio se julga mãe, seja aludido por ela num sonho semelhante ao flautista de Hamelin. Aliás, talvez seja paradoxal que em seu livro mais poético, Bolaño chegue ao mais duro julgamento de sua (nossa, minha) geração e até do futuro da literatura — previsto em trecho absolutamente cômico.

Não é um Bolaño típico, mas é fundamental.

Observações:
1. Houve realmente uma mulher que ficou presa na Universidade durante a invasão, mas não foi a Alcira conhecida de Bolaño.
2. Ah, obviamente um dos filhos da “Mãe de todos os poetas do México” era ele, o de sempre: Arturo Belano.

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O e-mail que recebi hoje de um editor (e escritor) continha a imagem abaixo:


Não, não enviei originais para ele. Se o tivesse feito, ele estaria morto…

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A Confissão de Lúcio, de Mário de Sá-Carneiro

Estou terminando de ler a surpreendente novela do modernista português Mário de Sá-Carneiro “A Confissão de Lúcio”. Procurei no Google algum artigo que falasse sobre as questões de identidade sexual suscitadas pela obra, mas não encontrei quase nada, só algumas observações pudicas feitas por portugueses preocupados em negar ou esconder a homossexualidade – a meu ver inegável – do autor por trás de considerações oníricas… O simbolismo do livro é claro e não há problema algum em ser homossexual, o curioso é a forma com que os portugueses parecem querem proteger seu clássico das más-línguas. Para um clássico, o livro é muito descuidado. Foi escrito rapidamente em 27 dias.

Mário nasceu em 1890 e suicidou-se em 1916, em Paris, antes de completar 26 anos. “A Confissão de Lúcio” trata basicamente do triângulo amoroso formado pelo escritor Lúcio, o poeta Ricardo de Loureiro e a sua esposa Marta. Uma noite, em conversa com Lúcio e antes de conhecer sua esposa, Ricardo resolve revelar-lhe uma estranheza de sua personalidade. Deixemos a palavra a Sá-Carneiro:

Ricardo deteve-se um instante, e de súbito, em outro tom: – É isto só: – disse – não posso ser amigo de ninguém… Não proteste… Eu não sou seu amigo. Nunca soube ter afetos (já lhe contei), apenas ternuras. A amizade máxima, para mim, traduzir-se-ia unicamente pela maior ternura. E uma ternura traz sempre consigo um desejo caricioso: um desejo de beijar… de estreitar… Enfim: de possuir! (…) Para ser amigo de alguém (visto que em mim a ternura equivale à amizade) forçoso me seria antes possuir quem eu estimasse, ou homem ou mulher. Mas uma criatura do nosso sexo, não a podemos possuir. Logo, eu só poderia ser amigo de uma criatura do meu sexo, se essa criatura ou eu mudássemos de sexo.

(As expressões grifadas são do original de Sá-Carneiro).

E Ricardo diz mais:

Entretanto estes desejos materiais (ainda não lhe disse tudo) não julgue que os sinto na minha carne; sinto-os na minha alma. Só com a minha alma po­deria matar as minhas ânsias enternecidas. Só com a minha alma eu lo­graria possuir as criaturas que adivinho estimar – e assim, satisfazer, isto é, retribuir sentindo as minhas amizades.

Depois, Ricardo casa-se com uma belíssima mulher, Marta. Lúcio a conhecerá e será seu amante, porém, mesmo com toda a intimidade adquirida, nunca saberá nada de seu passado ou de seus planos. Saberá apenas que ela também mantém casos amorosos com alguns outros amigos de seu marido. Depois, Lúcio, presa de loucos ciúmes dos outros e sem entender a aparente indiferença de Ricardo a tudo isto, resolve matá-lo e, matando-o, faz desaparecer Marta. É como se ela nunca houvesse existido.

Ainda Ricardo falando a Lúcio:

– Ai, como eu sofri… como eu sofri!… Dedicavas-me um grande afeto; eu queria vibrar esse teu afeto – isto é: retribuir-to; e era-me impossível!… Só se te beijasse, se te enlaçasse, se te possuísse… Ah! mas como possuir uma criatura do nosso sexo.

E ele volta à lenga-lenga:

… Marta é como se fora a minha própria alma… estreitando-te ela, era eu próprio quem te estreitava… Satisfiz minha ternura: venci! Chegou a hora de dissipar os fantasmas… Repito-te: foi como se a minha alma, sendo sexualizada, se materializasse para te possuir…

Então ouve-se o tiro disparado por Ricardo contra sua esposa Marta, mas quem morre é Ricardo. No mesmo momento, Marta desaparece como que por encanto. É um suicídio, claro. Ricardo, dando um tiro em sua alma sexualizada e materializada, mata-se. Mas Lúcio é quem cumpre pena por ter matado o amigo.

Concordo com a portuguesa Maria Estela Guedes quando ela diz sobre Sá-Carneiro:

Ele, o Esfinge Gorda! Ora me parece a mim que o mistério maior da vida dele é não haver nela mistério nenhum. Lançar a dúvida na mente dos outros é a sua Grande Obra, rasgo francamente genial.

Genial? Nem tanto. O livro é muito curioso, simbólico e com prazo de validade vencido. Mas vale a pena lê-lo. Comprei-o por R$ 5,00, numa edição da Editora Moderna, 2001.

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Reparação, de Ian McEwan

Reparação é tudo o que não há em Reparação (Atonement), de Ian McEwan. A tradução brasileira acrescenta uma curiosa ironia ao romance em que Briony comete e procura reparar uma crueldade infantil, mas que não chega a conseguir. Os portugueses fazem melhor ao traduzir Atonement por Expiação, mas convenhamos, não é um nome bonito para um romance tão bom.

McEwan é um grande escritor, mas acho exagerados os tonitruantes elogios que este romance habitualmente recebe. Coloco Reparação em um nível muito alto, apenas discordo daqueles que o citam como “o melhor da década”, “o melhor que já li” e outras sandices do gênero. Menos, gente. É um livro esplêndido, em que McEwan mantém-se extremamente próximo dos personagens, detalhando suas ações a cada mínimo passo ou pensamento. Neste sentido, é ontológico no grau exato, não entrando na microscopia do argentino Saer, um parente próximo e ainda mais detalhista que McEwan.

O livro é dividido em quatro seções muito distintas entre si. A primeira parte do romance passa-se num dia de verão de 1935 na casa de campo da família Tallis. A narrativa alterna seu ponto de vista entre Cecilia, irmã mais velha de Briony que tem por volta de 18 anos, Robbie, o agregado filho da faxineira da casa, protegido do patriarca Tallis, Briony (de 13 anos) e sua mãe Emily. Os artifícios narrativos de McEwan são muito inteligentes e requerem algum virtuosismo. A narrativa é lenta e nunca sabemos exatamente a sequência exata dos acontecimentos. Porém, conseguimos organizá-los pois, aqui e ali, cenas que haviam sido narradas do ponto de vista de um personagem voltam a ocorrer, agora descritas a partir de outro ponto de vista, permitindo outras interpretações. Essa relatividade, além de ser perturbadora, serve para que compreendamos os fatos e seu efeito estético é arrebatador.

O plot é muito semelhante ao do clássico de E. M. Forster, Passagem para a Índia. No livro de Forster, o Dr. Aziz leva a moderninha vitoriana Adela Quested para conhecer as Cavernas de Marabar, a “verdadeira Índia”. Algo então acontece e Adela foge morro abaixo, machucando-se muito. Adela acusa Aziz de tentar estuprá-la. O médico desce o morro preocupado, sem saber o que aconteceu com Adela, se está perdida no labirinto de cavernas ou não, e é surpreendido pela acusação. O Robbie de McEwan, após passar a noite procurando duas crianças fujonas, retorna vitorioso com elas nos braços e recebe a acusação de ter, durante sua procura, estuprado Lola, uma insinuante adolescente de 15 anos, prima de Cecilia e Briony. O testemunho de Briony — que sabemos fantasioso, imaginativo, vingativo, ciumento, preconceituoso e mentiroso — é absolutamente decisivo.

Não é uma cópia, longe disso; faço as comparações para demonstrar uma curiosa comunicação entre dois grandes romances ingleses. Se lá em Forster o tema é o preconceito inglês contra os indianos e a amizade, aqui o leque é muito mais amplo. Mas não nos adiantemos.

Na segunda parte, em 1940, Robbie já cumpre sua pena. Deixou a cadeia em troca de alistar-se como soldado na Segunda Guerra Mundial. O romance muda, torna-se mais ágil, menos interessante, quase comum. Mas é um trecho absolutamente necessário. Afinal, é a primeira expiação, a do inocente.

A terceira parte foca-se na expiação de Briony, ao tentar finalmente reparar seu erro. Aqui, McEwan volta a ser grandioso. É mostrada em toda a extensão as consequencias de um ato de crueldade. O autor espreme até a última gota a culpa de Briony, a relação do casal Cecilia-Robbie com um ato de inconcebível maldade e da gratuidade, o perdão, o remorso, a fantasia e a mentira. McEwan mostra-se um escritor do tamanho de seus temas e isso não é pouco: o desafio era complicadíssimo.

A quarta parte do romance é curta, 24 páginas. Traz Briony aos 77 anos, em 1999. Ficamos sabendo que ela é a narradora do romance. E que a reparação é-lhe negada de todas as formas possíveis.

É um tremendo romance.

No último encontro entre Briony, Robbie e Cecilia, Robbie pergunta:

“Você acha que eu estuprei sua prima?”
“Não.”
“E achava na época?”
Ela procura as palavras. “Sim, sim e não. Eu não tinha certeza.”
“E por que você tem tanta certeza agora?”
Ela hesitou, consciente de que ao responder estaria oferecendo uma espécie de defesa, uma justificativa, e que isso poderia irritá-lo ainda mais.
“Porque cresci”.

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O Monólogo Amoroso (XIV)

O médico informa a Nina sobre sua liberação do hospital nos próximos dias. Ela pensa que aquilo só pode ser resultado de um pedido de Ana. Afinal, o dia de seu aniversário está próximo e é provável que a filha deseje ver a mãe passá-lo em casa. Meu último aniversário, ela diz para si mesma. Não pergunta sobre o significado daquela “alta”, nem quando acontecerá. Permanece longamente em silêncio; depois, pega o gravador, deita-se de lado como lhe foi aconselhado e continua sua história para Ana.

Continuando… Bem, se eu vivia sob alguma oposição em casa, era muito feliz na universidade. Ana, tu conheces Brueghel, não? Há um quadro chamado A Batalha entre o Carnaval e a Quaresma. Não é bem uma batalha, é antes o encontro de dois grupos, um alegre e bizarro, o outro contrito. Mas o autor não parece simplesmente aprovar a felicidade do primeiro grupo – há até alguns estropiados e pedintes que são ignorados pelos “carnavalescos” -, nem desaprovar a contenção religiosa do segundo. É uma pintura curiosa e eu, naquela época, pensava viver a Quaresma em casa e o Carnaval no Instituto de Letras. Talvez a analogia não fosse feliz porque não é razoável considerar minha relação contigo como parte da Quaresma, mas, enfim, está dito. Obviamente, eu não tinha muito jeito para a contrição e a castidade e fui cada vez mais me aproximando e permanecendo preferencialmente com o grupo carnavalesco.

As caronas de meu professor preferido tornaram-se frequentes — eu o aguardava ou ele a mim e quando algum motivo o impedia de me levar, era avisada com antecedência e vice-versa –, assim como os encontros e idas aos bares com os colegas. Se as caronas significavam uma amizade de natureza um pouco dúbia, os encontros em bares acabaram ganhando grande importância. Sair à noite, beber e rir era uma novidade para mim. Nossa vida quieta em casa era afetuosa e sem incômodos, tu retribuías minha dedicação com sorrisos e amor; porém a ruidosa vida da rua prometia, finalmente, fatos novos. Tratei de manter a Quaresma organizada e emiti repetidos sinais de que precisaria passar mais tempo na universidade. Também providenciei comentários para as caronas que ganhava. O atraente professor Roberto, que depois soube ter vinte anos a mais do que eu, tornou-se “o velho que mora aqui perto e me traz em casa”. Ele morava do outro lado da cidade. Por uma questão profilática, também não fazia questão de ser visitada pelos amigos da faculdade; diferentemente (ou não) do quadro de Brueghel, achava que poderia ser perigosa a introdução do mundo carnavalesco na circunspeção de casa. Os pontos de interseção entre os dois mundos poderiam tornar-se problemas a serem administrados e o máximo de aproximação que admitia era o carro tcheco do professor na frente do edifício. Várias vezes ele brincou que acabaria apanhando do marido ou de um namoradinho nervoso. Nunca respondi se este era ou não um risco real, preferia fazer a mulher misteriosa. Na verdade, acho que inconscientemente criei uma personagem de ficção para meu professor: uma jovem madura, discreta, elegante e delicada (puf!) destinada inexoravelmente a tornar-se uma mulher inteligente, sedutora, culta e ativa (puf!). Investia na personagem em cada contato e é provável que meu objetivo fosse apenas o de satisfazer minha vaidade, pois não projetava o caminho que me levaria a ter um caso com ele. Pensava que ter uma aventura com um homem casado àquela altura seria como me drogar na tua frente ou virar alcoólatra. Seria muito bom tê-lo, mas pouco inteligente. E eu já tinha uma visão prática o suficiente para não considerar novos conflitos como “produtivos”. Claro que havia a atração física e como! Porém, por impressões difíceis de explicar, tinha certeza que ele não tomaria a iniciativa. Talvez minha presença servisse a ele de forma análoga, isto é, talvez eu servisse para satisfazer sua vaidade e estávamos empatados. Era bom ser alvo de suas atenções e retribuir me deixava feliz.

Então, é claro, ele fez jus a nosso jogo sem consequências e, num desses dias de carona, falou que estava com pressa porque precisava comprar um presente para o aniversário de seu cunhado. Naquela noite haveria a festa e Isabel tinha-lhe passado a incumbência. Isabel? Pela maneira como tinha sido citada, sem maiores explicações, era inequívoco: tratava-se de sua mulher. Ele dispunha de pouco tempo para comprá-lo. Fingi não dar importância à novidade e até tentei auxiliá-lo: perguntei que idade tinha o cunhado, do que gostava, quais eram seus interesses, grau de intimidade, etc. Mas saí do carro decepcionada, pensando que era uma imbecil. Tinha recebido, em minha opinião, a confirmação de que seríamos “apenas bons amigos”.

Nada grave, apesar de lembrar que Roberto tinha escancarado seu interesse por mim e eu por ele. Ou não? Eu o evitei? Ou ele era um medroso, apenas se regozijando em travar um joguinho de sedução com uma aluna mais jovem? Ou desinteressou-se subitamente?

Mas não foi nada grave, já disse, e decidi que me adaptaria ao papel de aluna e amiga meio-solteira do professor casado. Passados alguns dias, ele me convidou para um jantar em sua casa, onde estariam presentes Isabel e uns poucos amigos. Fui apresentada a Isabel como uma “brilhante” aluna do curso de Letras e, é claro, fiquei me comparando com ela. Minha maldade fez com que eu não me impressionasse nada. Era alta, sorridente, usava roupas caras — logo achei que fosse de família rica –, tinha trinta e poucos anos, estava em boa forma e só. Tratou-me muito bem. Eu estava bastante contrariada porque Isabel e Roberto eram muito carinhosos um com o outro, trocavam carícias, beijinhos e até fizeram um brinde particular depois de servido o vinho, como se estivessem numa festinha íntima com a libido a mil. OK, estava enciumada, mas, em torno da mesa, já indulgente pelo efeito do vinho e refletindo sobre meus fracos direitos sobre o mestre, pouco a pouco entrava na conversa e sentia-me ironicamente agradecida a meu ex-futuro amante pelo convite. Era um grupo de pessoas muito interessante e eu fora distinguida por ele para estar ali. Era a única estudante presente, a pessoa mais jovem, a mais inexperiente, a que precisou explicar que não era parente nem de Roberto, nem de Isabel, que era uma simples… estudante de graduação. Roberto respondeu que eu não era uma simples aluna, que eu era “a aluna”, alguém muito capaz, com luz própria – lugar comum roubado ao futebol – e, além de tudo – olhem bem para ela! –, muito bonita. Estava comovida, sentindo como me acolhiam e matutando, com álcool, que adoraria me integrar a um grupo assim. Isabel permanecia tranqüila e sorridente, sem demonstrar nenhum ciúme ou hostilidade. Comecei a simpatizar com ela. Depois de dois cálices, talvez simpatizasse com Hitler. Não, a comparação é injusta, sou amiga de Isabel, gosto dela.

Acabei me integrando mais rapidamente do que esperava… Como estava meio alta, um professor amigo do casal ofereceu-se para levar-me em casa. Só que no meio do caminho, ele me convidou para ir ao Alaska, onde bebemos algumas batidas de coco – eram chamadas de coquinhos – e depois ainda fomos ao Estudantil, um antro frequentado por menos intelectuais e que tinha um garçom chamado Ataliba e dois ambientes: o da frente, iluminado e com mesas, e o de trás, que era escuro e destinado às atividades sexuais. Do amasso ao coito, podia tudo. Foi interessante.

Nina desliga o gravador.

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O melhor de 2008 segundo este blogueiro

O Digestivo Cultural resolveu publicar meus pitacos sobre o melhor que tivemos no ano passado. O foco é a literatura e o cinema. Leiam aqui.

Abaixo, o texto completo:

Raramente nos aproximaremos de um grupo de pessoas e estas, sejam elas quais forem, estarão discutindo literatura. Ou, se estiverem, dificilmente o livro discutido é recente. A cultura comum, a cultura como assunto de conversa é o cinema ― e olhe lá ―, não a literatura. Digo isso porque 2008 foi o ano em que finalmente pudemos discutir um livro que muitos tinham lido, ou que muitos tinham ouvido falar e sabiam do que se tratava e que era escrito por um escritor, não por uma Bruna Surfistinha. 2008 foi o ano de um livro escrito em 2007: O filho eterno, de Cristovão Tezza. Só isso já bastaria para que escondêssemos nossas previsões apocalípticas na gaveta à esquerda.

Espécie de relato autobiográfico disfarçado de romance, o livro de Tezza narra a dilacerante relação entre um pai escritor e seu filho, vítima da Síndrome de Down. É um livro que impressiona tanto pela franqueza e coragem da exposição quanto por seu texto. Tezza faz um livro de frases longas e que não deseja comprar o leitor com facilidades. Mereceu a chuva de prêmios que caiu-lhe sobre a cabeça: o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte no ano passado, o Portugal Telecom, o Jabuti de melhor romance, o Prêmio Bravo de Literatura e a primeira edição do recém criado Prêmio São Paulo de Literatura ― o certame que mais pagou a um autor no Brasil: R$ 200 mil.

No terreno das estréias, Pó de parede, de Carol Bensimon, foi o melhor de 2008. Formado de três novelas de boas histórias e esplendidamente escritas, o volume não é o tradicional livro de estréia autobiográfico e íntimo; é antes uma música de câmara elegante, leve e tranquila, que evoca realidades externas com algum desencanto. A voz da autora é incomum, mas a linguagem não é exagerada ou cansativa. Nenhuma das três histórias é esquecível, mas minha preferência vai para “Falta céu”, onde, a partir de poucas informações, uma situação bastante complexa é construída. Bensimon deixa lacunas a serem preenchidas pela experiência do leitor e consegue direcionar e surpreender nossa fantasia. É autora para se acompanhar de perto.

No plano internacional, o melhor romance que li foi El común olvido, de Sylvia Molloy. O livro é de 2002! Incompreensível que nunca tenha sido traduzido no Brasil. Narrado na primeira pessoa, inicia-se com a chegada de Daniel ao Aeroporto de Ezeiza, em Buenos Aires, com as cinzas de sua mãe. Ele emigrara para os Estados Unidos ainda criança, logo após a separação dos pais, acompanhado da mãe. Poucas vezes tinha retornado à Argentina e o pai já morrera há anos. Daniel fala de si, de sua profissão de tradutor, da tese que escreve, mas o foco logo se altera. Este “Em busca da mãe perdida” torna-se uma arrebatadora demonstração dos enganos de nossa memória, levada com virtuosismo pela autora. Cada item que é acrescentado ou retificado em sua memória, cada acontecimento ― a sexualidade da mãe, o acidente de carro, as brigas com o pai, a apresentação da amante da mãe ―, torna impossível o retorno à vida anterior. As retificações e questionamentos são apresentados pela autora com a mesma lentidão e tranqüilidade com que Kafka comprazia-se ― ou parecia comprazer-se ― em mostrar coisas que nos parecem verdadeiros horrores não por si, mas pelo deslocamento a que sua aceitação nos obriga. É importante dizer que Molloy tem de Kafka apenas a característica de ser imperturbável, pois seu humor e elegantes anedotas são tipicamente platinas.

Acho que nunca vi tantos filmes regulares como em 2008. Pouca coisa era agressivamente ruim e quase nada era indiscutivelmente bom. Mas acho que dá para salvar 4,5 filmes. Podemos começar por O Segredo do Grão, de Abdel Kechiche, um filme de visceral realismo que tem como tema a singela inauguração de um restaurante dentro de um barco numa cidade portuária da França. Trata do choque cultural entre a comunidade árabe e a francesa, mas é universal ao descrever detalhadamente conflitos familiares. A câmara móvel de Kechiche é apenas aparentada dos filmes do Dogma 95, pois ela não serve para demonstrar movimento ou despojamento, estando mais a serviço da busca de ângulos originais, muitas vezes aproximando-se dos atores como se quisesse penetrá-los ou acariciá-los.

Outro grande filme foi o romeno 4 meses, 3 semanas e 2 dias, de Cristian Mungiu, Palma de Ouro de 2007. Ele conta a história de duas colegas de quarto obrigadas a uma verdadeira odisséia para que uma delas pudesse realizar um aborto ilegal na Romênia de Ceaucescu. É um filme sem a menor preocupação moral ou religiosa. Descreve como as duas fizeram para livrar-se de um incômodo. Gabita, a grávida, deixa a operacionalização do aborto para Otilia, sua amiga. Gabita parece indiferente enquanto Otilia faz contatos com aborteiros, porteiros ― todos pequenos ditadores cheios de mistérios ― e depois trata de livrar-se do corpo do inquilino da amiga. Estes dois filmes têm algo em comum: ambos têm longas cenas que causam enorme angústia ao espectador.

E sim, os dois filmes dos irmãos Coen foram excelentes. Em No country for old men (Este país não é para velhos em Portugal e um título qualquer no Brasil), a acidez dos Coen cai adequadamente para narrar com frieza uma história amalucada e violenta. Meio western, meio thriller, quase sem trilha sonora e com cenas antológicas, é um grande filme. Já Burn after reading (surpreendentemente Queime depois de ler no Brasil) tem a paranóia americana como alvo. É um filme que conta muita coisa em círculos, não chega a lugar algum e nem deseja, mas nos arranca boas risadas. A cena de George Clooney em pânico por motivos que o espectador sabe serem falsos vai para minha galeria pessoal de momentos inesquecíveis.

Disse 4,5 filmes? Pois é, o 0,5 é do excelente Vicky Cristina Barcelona de Woody Allen.

E o Prêmio de Maior Mico de 2008 vai para o discursivo homem de cuecas: Batman: O Cavaleiro das Trevas.

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José Saramago, Gabriel García Márquez e Ela

Dois escritores de línguas latinas, dois velhos, um com 83 anos, outro com 77, os dois ganhadores do Prêmio Nobel, ambos mestres reconhecidos mundialmente e homens de esquerda, publicaram livros em 2005. Como se não bastasse, o tema de As Intermitências de Morte e de Memória de Minhas Putas Tristes é o mesmo: a morte. E são, apesar de se utilizarem de abordagens inteiramente diferentes, excelentes romances, vivos, belos e otimistas, apesar do realismo de ambos impedir quaisquer frases menos claras do que esta de García Márquez: “Faça o que você fizer, neste ano ou em cem, você estará morto para sempre e jamais”.

E aqui cessam as semelhanças, pois talvez a intenção e a expectativa dos dois sejam diversas. Se Saramago escreveu um de seus melhores livros, uma obra muito ambiciosa e original, García Márquez criou um delicado divertimento, uma obra menor – o que não é demérito nenhum -, que fica no terreno do onírico e do poético. Porém, paradoxalmente, o livro de Saramago, aquele que não é um “divertimento”, é engraçadíssimo e posso dizer que há anos não ria tanto lendo um livro.

(Gostaria de acalmar meus 7 leitores dizendo-lhes que não contarei as histórias dos livros. Na verdade, duvido que alguém NÃO tenha comparado estes dois livros ainda. Mas pesquisei no Google e não encontrei nada… Adiante!)

As Intermitências de Morte pode ser dividido em duas partes; a primeira é a mais cômica e descreve o momento em que a morte desiste de matar os habitantes de um pequeno país. Este passa a crer-se como protegido por Deus, há euforia e atmosfera de orgulho no ar, porém a governo e a Igreja incomodam-se muitíssimo. Depois a morte volta a atuar, mas de outra forma, e acaba tendo sérios problemas com um habitante, o qual não consegue absolutamente matar. O caráter da Morte de Saramago é bem diferente do que vemos usualmente em obras artísticas. Trata-se apenas de uma burocrata com, digamos, excessivo poder e que organiza seu trabalho em fichas. Às vezes, ela se atrapalha, estando bem distante daquela Morte imaginada por Bergman em O Sétimo Selo e que aceita jogar xadrez com sua vítima, demonstrando ser uma jogadora suja e implácavel. A segunda parte dá notável e justo destaque à 6ª Suíte para Violoncelo Solo de J. S. Bach, que é eleita pelo autor como uma espécie de símbolo da imortalidade , o qual é respeitado e admirado até pela Morte. Aqui o romance torna-se mais reflexivo e lento, estamos dentro do terreno do destino inexorável e o senso de estilo de Saramago dobra-se e adapta-se perfeitamente a este clima, levando-nos a um final literária e literalmente arrepiante.

García Márquez optou por ser bem mais modesto. Se Saramago apresenta-nos a Morte “viva”, movendo-se e dialogando como Thomas Mann fez com o Demônio num dos capítulos mais gloriosos de toda a literatura, García Márquez dá a uma prostituta de 14 anos a representação da morte. O personagem principal e narrador, um jornalista de 89 anos ainda em atividade e que manteve-se solteiro por toda sua vida, pede uma menina ainda virgem a sua velha amiga cafetina, no dia em que completará 90 anos. Esta menina chama-se Delgadina, provavelmente uma ironia para com a figura da morte, sempre delgada e elegante em sua existência de puro-osso. Delgadina – sempre cansada do trabalho – costuma permanecer dormindo nas “noites de amor” com o velho, que parece descobrir pouco a pouco a vantagem de nunca acordá-la e de deixar-lhe apenas mimos, enquanto a jovem prostituta reclama para a cafetina o fato de nunca ser acordada e de ainda ser virgem… Porém, nem sempre ele conseguirá que seja assim.

Trata-se de um livro mais leve, poético e “fácil”, mas, se tivesse que sugerir leituras de férias a meus 7 leitores, sugeriria os dois livros; mas, se fosse obrigado a escolher apenas um, os mandaria direto ao assunto, direto a Saramago.

Para terminar, gostaria de destacar mais uma curiosíssima coincidência entre os livros:

García Márquez: Às quatro horas tentei me apaziguar com as seis suítes para cello solo de Johann Sebastian Bach, na versão definitiva de dom Pablo Casals. Acho que é o que de mais sábio existe em toda a música, mas em vez de me apaziguar como de costume me deixaram num estado da pior prostração.

José Saramago (utilizo a mesma grafia do romance): Por um instante a morte soltou-se a si mesma, expandindo-se até as paredes, encheu o quarto todo e alongou-se como um fluido até a sala contígua, aí uma parte de si deteve-se a olhar o caderno que estava aberto sobre uma cadeira, era a suite número seis opus mil e doze em ré maior para violoncelo de johann sebastian bach composta em cöthen e não precisou ter aprendido música para saber que havia sido escrita, como a nona sinfonia de beethoven, na tonalidade da alegria, da unidade entre os homens, da amizade e do amor. Então aconteceu algo nunca visto, algo não imaginável, a morte deixou-se cair de joelhos, era toda ela, agora, um corpo refeito, por isso é que tinha joelhos, e pernas, e pés, e braços, e mãos, e uma cara que entre as mãos se escondia, e uns ombros que tremiam não se sabe porquê, chorar não será, não se pode pedir tanto a quem sempre deixa um rasto de lágrimas por onde passa, mas nenhuma delas que seja sua.

Sim, Bach, sempre ele, o homem de obras elas quase tantas como foram as da criação (ainda Saramago), Bach e suas suítes para violoncelo solo, aquelas mesmas que dou a tantos amigos, que falam como os homens, que trazem a humanidade em si e que podem tornar a morte humana, ao menos na arte.

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O Monólogo Amoroso (XIII)

Após uma noite de paranoia e preocupação, em que temeu algumas maquinações dos médicos e de sua filha, Nina recebeu os calmantes prescritos e continuou o monólogo.

O retorno à vida normal não foi nada fácil. Era como ter saído de uma piscina num dia quentíssimo para enfrentar uma longa caminhada. Porto Alegre é uma cidade insuportável no verão e neste período deveria alterar seu nome para Forno Alegre. Minha paciência encurtava na medida em que considerava os dias de convivência amorosa, pacífica e interessante que tivera e vislumbrava como seriam os seguintes. Em nossa despedida não houve promessa alguma; a vida deveria correr livremente então. E havia outro modo? Certamente não, mas ficava incomodada com a indeterminação, sei lá. Estava decidida a cumprir o que tinha planejado fazer e, antes que o verdugo da rotina me hipnotizasse, disse para minha mãe, em voz um tanto histérica, que desejava deixar as coisas claras para mim e para todos – parentes e amigos. Queria a separação. De enfiada, pedi para continuar morando em meu quarto contigo. Ela me pediu calma, o que significava “Olha, filha, vamos varrer esta sujeira para baixo do tapete e aguardar”. Era óbvio que o paradoxo da mãe solteira porém casada lhe agradava. Meu pai, sempre ausente e ao sabor dos ventos, desta vez entrou na discussão: insistiu para que eu desse uma chance para o rapaz; afinal, Raul era um bom menino. A mim, os dois pareciam doidos varridos; ainda contavam que acabaríamos formando uma harmoniosa família a três… Resolvi então falar com Raul.

Anunciei-lhe que queria me separar oficialmente. E logo. Mas uma separação não é simples. Ou melhor, acho que até poderia ser se eu fosse direto a um advogado, sem muita conversa. Porém, alguns casais primeiro tentam enfiar seu inferno pessoal um na cabeça do outro, precisam tornar impossível o entendimento para então poder encher a boca e declarar: não dá mais, é insustentável! Ele ouviu, deu meia volta e sumiu. Dias depois, voltou, disse que me amava mas que eu nunca lhe dera uma chance real, que tínhamos uma filha e que eu deveria ser responsável e pensar no teu futuro. Quando ouvi aquilo, parecia que ia ter uma convulsão, tal o ódio de que fui tomada. Passei a gritar, será que o menininho despreparado e silencioso, que morava na casa da mãe após minha negativa de ir para um apartamento com ele, o surdo-mudo que evitava falava sobre a relação paupérrima que tínhamos, que evitava inclusive a relação, agora estava pronto a mudar de vida? Éramos uns namoradinhos que tinham gerado uma criança e ele se escondera na hora de resolver o problema e mais ainda quando tu nascente, quando passou a ser um objeto figurativo enquanto eu cuidava de ti e estudava. Estava transtornada e disse, claro, verdades e injustiças. Acusei-o de não fazer absolutamente nada, de nunca me ajudar e de passar o tempo maquinando coisas com sua mãe. Ele respondia no mesmo tom: ele sustentava uma prostituta que tinha sua filha como refém, eu o ignorava, eu o expulsava da casa em que sua filha morava, ele estava trabalhando ao passo que eu ficava em casa fazendo coisa nenhuma, indo para a rua procurar homens, eu usava os serviços de uma babá inútil e explorava a ele e a minha família fazendo um curso para mulheres desocupadas, uma faculdade de espera-marido, etc.

Enfim, quase conseguimos. Tanto fizemos que quase tornamos impossível qualquer diálogo. Eu não sei, não sei mesmo quem tinha razão e nem se interessava saber. Não sei o dia nem a hora em que deixamos de conversar para viver cada um sua vida com uma criança entre nós. Ele entrava em nossa casa, brincava contigo – tu adoravas o papai – e ia embora. É, acho que nunca dei-lhe uma chance, mas ele também nunca se impôs, sempre foi omisso e obediente. E cometi mais um erro. Propus dar um tempo… Pouco depois, voltei ao assunto.

E tudo recomeçou. Raul passou a falar comigo duas ou três vezes por dia, fazendo os mais incríveis pedidos e promessas. Eram súplicas que me deixavam acabrunhada. Eu era ora má, ora a mulher com que ele sempre sonhou, ora excelente mãe, ou péssima, era linda e inteligente, mas também burra e pretensiosa, um martírio. Eu nunca sabia que versão de Raul encontraria, ele mais parecia uma fila inteira de suplicantes e… Procurei mais um adiamento, cuidando para que tu ficasses fora da discussão. Mas agora ele tomava as iniciativas. Eu encarnava ao mesmo tempo tudo o que havia de bom e ruim, tudo o que ele precisava e o que ele conhecia de mais nauseabundo. Era adorável e repugnante, uma boa e desejável mãe e, ao mesmo tempo, uma megera aproveitadora e calculista que estava destruindo sua vida e planos. Como as discussões eram na minha casa, meus pais opinavam: ele dizendo nem tão veladamente que eu era uma inconseqüente, ela me aconselhando a deixar a coisa como estava. Não foi nada divertido, passei três meses no pior dos ambientes, já era março e nada tinha acontecido, pois eu estava aguardando que Raul parasse com as brigas. Mas um belo dia brigamos tanto que efetivamente conseguimos. Era impossível a menor conversa. Deves estar rindo de toda essa bagunça, Ana. Afinal, ainda hoje, deitada nesta cama de hospital, sou oficial e inutilmente casada com teu pai. Nunca nos separamos, apenas permanecemos alguns anos falando mal um do outro pelas costas e depois nem isso.

As aulas recomeçaram e, quando entrou na sala o professor de Literatura Brasileira Roberto Simões, pensei: este homem, apesar daquela aliança, me atrai. Nunca houve nada entre nós, nunca nos tocamos, mas ele me ajudou muito. Comecei a me arrumar melhor para assistir suas aulas. Fazia-lhe perguntas tentando mostrar-me inteligente. Como não estava alcançando meu intento, passei a estudar a matéria antes que fosse ensinada para poder fazer perguntas ainda mais inteligentes. Trazia as perguntas prontas e passamos a conversar depois das aulas; ele me emprestou um livro e lembrei de Ricardo; vi que ele almoçava no bar da Filosofia e resolvi que iria almoçar ali quando, coisa rara, tivesse algum dinheiro ou tempo sobrando. Nunca consegui almoçar com ele, mas passei a sentir-me observada. Dias depois, em plena aula, ele me usou como exemplo de beleza para caracterizar a bela Virgília, de Memórias Póstumas de Brás Cubas, personagem de quem não gostava muito, mas que, naquele momento, me servia; só não gostei quando ele disse que Virgília tornara-se amante de Brás aos 28 anos e concluiu que eu ainda precisaria esperar alguns anos. (Procurei esta idade no livro e não encontrei). Um dia, ele, o professor Roberto Simões, chefe do Departamento de Letras, ofereceu-me carona para casa.

O percurso foi uma comédia. Ele mostrou-se engraçado descrevendo a vida de um professor sob a censura e me contando que tinham sido excluídos todos os autores contemporâneos do currículo do curso de Letras por absoluta falta de distanciamento histórico… Não valia a pena estudar autores que ainda estavam produzindo suas obras, ora. Depois, discorreu sobre o incrível número de alunas desinteressadas das letras, da literatura, da cultura. Chamou-me de avis rara e eu respondi mentalmente avis rara, avis cara. Sim, minha filha, se antes dos militares não tivessem retirado também o latim do currículo dos colégios, saberias que este ditado faz referência a uma visita rara, porém bem-vinda. Ele brincava comigo: enquanto eu flertava, ele satisfazia sua vaidade com uma aluna, mas não queria problemas. Despediu-se como um agente secreto, revelou que seu carro era um Skoda, fabricado na Tchecoslováquia, e que, portanto, eu tinha sido transportada num carro comunista. Aquela carona era a antítese do que estava vivendo em casa. E repetiu-se nos dias seguintes, repetiu-se na verdade por anos. Tudo indicava que eu ficaria célebre como a promíscua do bairro.

Ainda agitada, mas agora sorridente, ela desliga o gravador.

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Porto do Desespero – Mais Vôos – Cap. XVIII

Publicado em 30 de junho de 2006

Obs.: Aqui, damos continuidade à novela coletiva Porto do Desespero. O segmento anterior está aqui e dizem que todos os outros capítulos estão aqui, na coluna da esquerda. Mas tem que dar uma procurada dentro de cada blog que você entrar, viu?

Os décimos de segundo que o corpo de Daniel levou para cair da janela até o chão foram longuíssimos. Todos os principais fatos de sua vida foram-lhe apresentados como num filme para que pudesse, quem sabe, arrepender-se. Como fundo, a voz de Cid Moreira, recitando em tom fúnebre:

Se eu pudesse viver novamente a minha vida,
na próxima trataria de cometer mais erros.
Não tentaria ser tão perfeito, relaxaria mais.

Enquanto via o chão branco com 50 centímetros de neve aproximar-se rapidamente, continuava a ouvir:

Eu era um desses que nunca ia a parte alguma sem um termômetro,
sem uma bolsa d’água quente, um guarda-chuva e um pára-quedas;
se voltasse a viver, viajaria mais leve.

Daniel, cada vez mais preocupado com a batida contra o solo, especulava: quem me dera ter um pára-quedas ou ser mais leve! Será que o autor deste ícone da auto-ajuda achava que o cego Borges andava para lá e para cá com um pára-quedas sob a axila?

Porém, quando Cid chegou na sílaba tônica de “leve”, Daniel chegou ao chão. O fato de haver ouvido claramente a segunda sílaba era no mínimo alvissareiro. Visto da janela de onde saíra há poucos segundos, o recorte de seu corpo enterrado na neve faria a alegria de qualquer cineasta. Os poucos transeuntes que viram a cena – todos velhinhos canadenses que costumavam passear quando a temperatura chegava aos vinte graus negativos – exclamavam-se, mas uma velha senhora gritava desesperadamente. Mesmo com o nariz enterrado na neve, Daniel notou que caíra sobre algo peludo e gostoso de abraçar, ao mesmo tempo que escutava destacar-se a voz da velha:

– Ele levou um tiro e caiu sobre o cão de minha sobrinha-neta Anne-Lucie! Eu ouvi o tiro. Que horror!

Sob um ohhhhh dos circunstantes, Daniel ergueu-se lentamente e, com uma furtiva lágrima caindo-lhe do olho esquerdo, disse à velha senhora:

– Diga a Ana Lúcia que seu cão não morreu em vão. E… Gostaria de lhe dizer que… Sei lá, sabe? É que se eu pudesse voltar a viver, começaria a andar descalço no começo da primavera e continuaria assim até o fim do outono.

Os velhinhos olharam apalermados uns para os outros quando um casal saiu correndo do Hotel Quebec pedindo para que Daniel os acompanhasse. Mariana chorava e Roberto a puxava pelo braço. Roberto disse a Daniel:

– Vamos resolver esta merda com um moderador. Queremos que o Idelber Avelar resolva quem de nós, a partir de agora, comerá Mariana.

– Mas ele nem tem um blog! – reclamou Mariana.
– Já tem de novo!

Olhou para Daniel novamente.

– Essa vaca queria que o Smart Shade of Blue fosse nosso moderador, disse que todos o odiavam. Claro que, em sendo assim, deve ser um justo. Mas prefiro ir a New Orleans, muito mais perto.

Entraram os três no Karmann Ghia de Roberto. Como isto é uma Pulp Fiction, havia espaço de sobra.

– Você está bem, Daniel? – perguntara docemente Mariana, enquanto o via abrir o zíper das calças.
– Preciso de maior leveza, gente. Vou me masturbar.
– Ninguém vai sujar de porra a porra do meu carro – trovejou Roberto.

(Porém, meus sete leitores devem estar se perguntando sobre o tiro ouvido no quarto durante a longa queda de Daniel. Simples, no momento em que Mariana e Roberto lutavam, um homem de fenótipo neo-nazista – musculoso, skinhead, de botas pretas e piedosos cilícios nos pulsos – derrubara a porta com um pontapé e perguntara:

– Há alguém aqui que não aprecia os Wunderblogs?

Mariana percebeu a gritaria lá fora e concluiu que Daniel, aquele boca aberta, teria caído e morrido na queda. Também viu uma tatuajem no pulço do homem, logo abaixo dos torturantes silícios vindos diretamente da Califórnia.

Era o rosto de Alexandre Soares Silva!

Naquele momento, sentiu que crescera como ser humano. Entendeu que tinha que ser autêntica na presença do corpo morto de um dos homens com os quais praticara intercurso e declarou, veemente:

– Eu não gosto!

E Roberto interveio:

– Ele perguntou o quê? Se a gente não gosta do blog do Wunder Wildner? Eu adoro o Wunder. Ele tem blog?

Em resposta, a cara do articulado skinhead torceu-se em indescritível mágoa. Ele puxou um trabuco e fez mira em Mariana. Antes de atirar, gritou dramaticamente “Morraaaaaaa!”, porém Roberto, ex-goleiro do ASA de Arapiraca, saltou sobre seu braço, desviando o tiro. Quando preparava-se para encher o cara de porradas, Roberto sentiu que o skinhead desistira do combate por decisão deste escriba. Saiu furibundo dizendo que

– porra, o Flavio Prada me deixa apanhar de uma mulher no capítulo anterior, e neste não me deixam bater no Wunderbar, que merda.

Após rápida deliberação, fugiram do hotel. Nas escadas, Mariana explicava-lhe que o cantor era Wander – e não Wunder – Wildner. Fim da história do tiro.)

Agora, eles rumavam para New Orleans, milhares de quilômetros ao sul de Quebec, a fim de que Idelber resolvesse a pendenga sobre quem continuaria comendo quem. Não conseguiam descobrir a pronúncia correta do nome do moderador. Roberto garantia: era Ídelber; Daniel sustentava ser Idélber e Mariana queria um Idle Bear. Enquanto dirigia, Roberto via como Daniel se recuperara da queda. Com a ponta dos dedos da mão esquerda, ele segurava um dos mamilos de Mariana, enquanto que, com a mão direita, se masturbava. Só que, sentado no meio do espaçoso banco de trás, era obrigado a cruzar os braços, pois não conseguia masturbar-se com a mão esquerda. Com isto seu braço esquerdo atravessava o carro em direção ao seio de Mariana, enquanto que, com a mão direita, tentava manter um certo ritmo. Não era confortável. Mariana tirava o máximo prazer possível da situação com suas duas mãos dentro da calcinha. Chegou tão rapidamente a seu objetivo que Roberto refletia sobre quão rodada seria aquela gata.

Foi uma viagem altamente confusa, psicologicamente tensa e cheia de momentos bergmanianos – pois os rapazes não sabiam mesmo quem comeria quem e apenas Mariana tinha alguma idéia do que fazer. Roberto insistia em cheirar a cada parada, além de polvilhar com a droga tudo o que comia. Finalmente, chegaram a New Orleans. Estava tudo diferente. A cidade parecia um lago. Viram um cãozinho chamado Oliver vibrando com a oportunidade de ganhar um novo dono, um blogueiro desesperado por ver submersos os pés das mulheres, os professores de Tulane boiando nas águas aproveitando o sol e pássaros voando sem ter onde pousar.

Foi quando o Karmann-Ghia (um anfíbio?) começou a ser acompanhado por uma enorme sombra. Aquilo assustou-os. Era estranho: sol por toda a paisagem e uma sombra acompanhando-os! Depois desta situação hitchcoquiana, notaram que as pessoas olhavam admiradas para algo que estava sobre o carro. Foi uma circunstância fortemente shyamalaniana. Enquanto resolviam – sem decidirem-se a nada – quem sairia para examinar o que havia no teto, viram enormes garras envolver o carro como se este fosse uma lata de sardinha. Perceberam que eram erguidos ao mesmo tempo que enormes asas assomavam às janelas. Começaram a gritar desesperamente, mas só obtiveram como resposta um

– Graaaaak!

Creio que todos vocês sabem de quem será o próximo segmento da sensacional, aleatória e aleotária novela feminista “Porto do Desespero”. Sim, ele mesmo, El Rey, terá que se ver novamente com o pássaro que acaba de matar num post.

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O Monólogo Amoroso (XI)

Raul senta-se calmamente diante do psiquiatra e recomeça.

Eu era muito moço e não sabia que uma separação era algo tão terrível. OK…, sim, na vez passada eu falava sobre como descobri que a Nina estava se encontrando com seu ex-namorado, é isso? Bem, um amigo me contou. Um dia, o Flávio veio cheio de dedos, dizendo que ia me contar uma coisa pela amizade que nos ligava e que eu não me irritasse. E falou claramente que a Nina entrava e saía e passava a noite no apartamento do tal de Ricardo. Minha primeira reação foi de ódio, mas acho que uma hora depois minha tristeza e desespero eram tão profundos que eu não queria voltar a conversar sobre o assunto. Enquanto estava com Flávio, perguntei duas ou três vezes se ele tinha certeza daquilo, se ele vira, se o fato se repetira, se era ela mesmo. Quis saber sobre horários e até sobre suas roupas. Não havia a menor sombra de dúvida: era ela, era ele e só se meu amigo fosse um louco de filme americano para inventar tantos detalhes. Pior: sua mãe era quem tinha visto primeiro.

O ciúme é o inferno, o ciúme é o inferno, o ciúme é o inferno. Nossa relação quase não existia mais, mas quando vi que nosso pobre relacionamento estava sob ameaça, ele tornou-se a coisa mais valiosa de minha vida. Como não me enganava a respeito da Nina – a qual mal possuíra e agora me fugia para sempre –, punha toda minha frustração sobre o afastamento que sofreria de Ana e em minha frustração e azar de ter casado com uma puta, etc. Mas o pior era o que eu sentia. O ódio que tivera dela no primeiro momento retornou contra mim sob muitas outras formas. Passei a me sentir incapaz, infeliz comigo mesmo, perdi o prazer de participar das brincadeiras no trabalho, passei a achar tudo uma idiotice. Não tinha concentração para fazer a mais simples das tarefas, o cansaço tomou conta de mim e comia o mínimo. Minha mãe notou que eu não estava bem e disse que tudo era culpa de Nina, que eu devia obrigá-la a morar comigo ou que a mandasse pedir o desquite. (Suspira). Mas eu não queria conversar sobre o que me deixava tão triste e, se conversasse, não seria com minha mãe, sempre muito alterada quando o assunto era Nina. Fui me isolando cada vez mais; imagina que até os carros passaram a ser coisas pouco importantes, assim como a família e os amigos; sentia-me burro, incapaz, azarado, inferior a todos os que conhecia.

Então, um dia, ao visitar a Ana, segui a Nina até seu quarto, uma atitude cada vez mais rara, mas que não chegava e ser uma invasão de privacidade porque aquele era supostamente “o nosso quarto”, e perguntei com voz embargada, louco de vontade de chorar – uma constante, apesar de que nunca chorava –, como nós ficaríamos. Naqueles dias, o ar de desinteresse dela por tudo o que eu dissesse era evidente, até suas brincadeiras e piadas tinham diminuído muito, ela estava vivendo livremente sua vida, mas parecia que eu precisava ouvir dela palavras ainda mais duras, aquelas que me fariam mergulhar com maior convicção ainda na minha incompetência e desespero. Ela me olhou com ar casual e respondeu que nada mudara.

— Por que isso agora? E Raul, teu humor funéreo vai acabar assustando a Ana. Tua cara não recomenda.

— É. Acho melhor tu ficar com ela. Eu me afasto por completo e tu educa ela. Mando dinheiro.

— Mas, por favor! O que está acontecendo? É o apocalipse?

— Tu sabe o que está acontecendo. Quero dizer, eu estou nesta merda e tu feliz por aí.

— Que merda, o que está acontecendo? Poderia ser mais claro? Tu está me criticando por ser ou estar ou parecer mais feliz do que tu? É isso?

— Nina, nossa situação é uma tragédia. Eu gostaria de morar contigo, temos uma filha, a chance de construir alguma coisa e tu fica por aí balançando o rabo como uma inconseqüente.

— Raul, eu não pretendo responder a tuas agressões. Acho que a única expectativa que tu deves depositar em mim é a de que eu cuide e ame nossa filha. E mais nada. Para mim, tu és um ex-namorado ou ex-marido, se um dia chegamos a tanto. É assim que tu deverias me tratar. Fui clara?

— E já que tu acha que é assim, isso te permite encontros com ex-namorados e outras putarias por aí?

O rosto dela ficou muito vermelho. O meu também. Conseguira falar. Incrivelmente, meu objetivo interno era reconquistá-la e viver uma vida confortável noutro lugar, mas tinha feito com ela o que não fazia com mais ninguém: despejei nela um pouco do que estava pensando e sofrendo, um pouco do meu enorme ressentimento. Hoje sei que virar meu caminhão de lixo em cima dela não me traria resultado nenhum, só que eu não conseguia pensar, só tinha certeza que minha vida estava sendo destruída pela única pessoa que me interessava no mundo. Pensei que a vermelhidão no rosto dela era de raiva, mas tinha mais: ela se sentira atingida por eu saber de suas escapadas. Ela falou calmamente:

— Então tu e o mundo já sabem.

— Não, acho que só eu, o Flávio e a mãe dele.

— E todas as amigas dela e os dele.

— Mas tu tens te encontrado mesmo com o tal de Ricardo?

— Sim, Raul. Eu me sinto separada de ti, apesar de tu me veres como a prometida.

— É que temos toda a possibilidade de uma vida…

— Pára com isso, Raul. Está tudo atravessado, fora do lugar. Eu sou a mulher casada que dá para outro e tu és o corno. Até o “nosso futuro” da tua imaginação é impossível. Tua família logo vai saber e eu serei tratada como uma bruxa a ser queimada.

— Eu não deixarei que aconteça isso.

— Bah, tu não tem mesmo pudor de ser patético, hein? Agora, dane-se. A culpa é minha de não ter me protegido. Me encontro com Ricardo em qualquer lugar, entende? Não fico me esgueirando.

Com a confirmação, comecei a fantasiar todo tipo de suicídio, viagens para lugares longínquos onde me estabeleceria deixando tudo para trás. Era um merda. Por meses não conversei pessoalmente com Nina. Escrevi me comprometendo a pagar para minha filha um valor que inventei e até hoje ela não me respondeu. Mas eu pagava. Era um valor decente. Quase tudo o que ganhava. Em finais de semana alternados, ia a sua casa pegar Ana e retornava para entregá-la de volta segunda pela manhã. Nada disso, mas absolutamente nada disso melhorou meu humor e minhas negativas a comentar os fatos. Meu trabalho voltou ao normal, o resto demorou muito mais ou nunca voltou ao normal. Quando minha mãe me perguntava sobre meu casamento, recebia de volta um grito dizendo que aquilo não interessava a ela, ela que fosse cuidar de sua vida. Meu pai dizia que a “véia” estava muito triste e preocupada comigo e eu o mandava à merda. Comecei a sair à noite e ia bastante com prostitutas. Parecia bem, acho, mas a nuvem em torno da minha cabeça me ameaça até hoje. Uma separação, qualquer separação, é o maior dos horrores e não desejo para ninguém. A auto-estima some. Não é assim com todo mundo?

O psiquiatra aponta para o relógio e Raul ergue-se lentamente, dizendo-lhe que seu emprego era chato, mas que não dava incomodação.

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O professor de botânica, de Samir Machado de Machado

A Não Editora segue surpreendendo. Tem nove livros, li dois e ambos são bons. O professor de botânica é um divertido e maldoso mergulho no ambiente acadêmico. Dividido em departamentos que mais parecem pequenos cestos de ofídios onde cada um de seus membros espreitam a mínima desatenção do outro, armando parcerias e inimizades aqui e ali, planejando viagens (muitas) e sacanagens, tais cestinhos cheios de emoções são bons locais para o exercício da ficção.

No quesito saco cheio, o professor de Samir está próximo do velho catedrático Nicolai Stiepánovich de Tal, da novela Uma história enfadonha, de Tchekhov, mas sua fama e modus operandi é muito diversa. Perto de uma vulgar aposentadoria, ainda luta por seus bolsistas e enfrenta seus inimigos, no caso Rogério Mourão, que o ameaça com a perda de seu bolsista, um jovem na verdade indiferente à biologia e que tem o discutível mérito de suportar o mau humor do chefe. Durante uma visita a uma reserva ecológica, Samir nos prega um elegante susto ao fazer de conta que a trama se tornará um whodunit, mas a ameaça não se cumpre. Ainda bem.

O livro gruda. Tanto que foi lido na tarde de 23 de dezembro apenas com três interrupções para que este leitor bebesse a água necessária à sobrevivência na insuportável canícula porto-alegrense.

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Anos de Formação de um Sequestrador

Publicado em 28 de outubro de 2004

Alexandre envolvia-se com drogas desde os tempos do segundo grau. Quando tinha 16 anos, levava uma vida tranqüila com seus pais. Não precisava trabalhar nem estudar muito e usava seu tempo livre no cinema e com os amigos. Dinheiro não era uma grande preocupação até que começou a experimentar drogas. Estas eram fáceis de conseguir e acessíveis, mas trouxeram outros amigos, festas, bebida e ele precisou de meios para financiar o novo estilo de vida. Para não levantar suspeitas, decidiu não pedir dinheiro à mãe.

Lia era uma respeitável e emotiva senhora de 75 anos e há 16 vivia com Belle, uma cachorrinha da raça cocker. Lia tivera cinco filhos que a visitavam raramente, enquanto Belle nunca tivera uma ninhada, pois sempre vivera no pequeno apartamento com sua dona. Quem as conhecia, sabia que se amavam. Belle seguia Lia onde quer que fosse, enroscava-se em suas pernas, pedia colo e, devido à pouca mobilidade de sua dona, engordava. Comiam da mesma comida, deitavam-se no mesmo sofá e na mesma cama; enfim, faziam companhia constante uma à outra. Lia conversava com Belle, reclamava das dores da idade, da ausência dos filhos, das fofocas dos vizinhos, dos preços da farmácia e do supermercado. Belle, com o olhar triste e sonolento dos de sua raça, acompanhava tudo compreensiva e passivamente.

Alexandre passou a dedicar-se a pequenos roubos num ambiente que conhecia bem: o do ônibus. Ali, nos horários de maior movimento, explorava as bolsas das mulheres. Poucas vezes foi flagrado em ação e, quando acontecia, reagia dizendo que a bolsa estava aberta, que a mulher era louca, etc. Roubava normalmente os trocados da passagem.

Numa madrugada gelada, Lia foi ao banheiro (ia muitas vezes durante a noite) e verificou não ter sido acompanhada por Belle. Ao voltar, foi olhar sua cachorra ao lado da cama. Belle estava tranqüila, de olhos abertos e morta.

Nos últimos dias, Alexandre passou a achar que seus ganhos nos ônibus eram insuficientes se comparados com os riscos envolvidos. Sonhava com um lance maior, mas como conseguir isto dentro de um local freqüentado somente por pés-rapados como ele?

A perda fez Lia sofrer como nunca. Não sofrera tanto nem quando seu marido falecera após longa doença. Dependia daquele amor, como Belle dependia dela para comer e permanecer limpa, sem pulgas e perfumada. Porém, Lia não desejava ser ridicularizada por amar tanto a um cão. Prezava a discrição. Assim, passou dois dias fechada em casa choramingando e se perguntando sobre o que seria de sua vida sem sua querida. Quando um de seus filhos lhe telefonou, procurou esconder o luto que lhe embargava a voz. O filho nada notou; ademais, não queria saber de nenhum problema que o fizesse perder tempo. Tudo o que queria era que sua mãe estivesse bem de saúde e longe.

Alexandre resolveu tentar a sorte num bairro longínquo. Escolheu Petrópolis, um local cheio de velhinhas de bom poder aquisitivo.

No terceiro dia, Lia concluiu que teria de fazer alguma coisa com o corpo de sua companheira. Fez-lhe um lindo pacote e finalmente saiu de casa com Belle. Era difícil carregá-la, a cachorra era pesada e ela precisava pegar um ônibus para ir ao hospital veterinário. Com esforço e dignidade, chegou à parada. Mesmo sob a baixa temperatura, suava. Vestia casacão, blusão de lã, camisa de algodão grosso e camiseta. Subiu equilibrando-se no coletivo e conseguiu um lugar para sentar-se e descansar um pouco.

Alexandre encontrou sua vítima numa senhora que parecia carregar um tesouro consigo. O que haveria ali dentro? Era uma caixa retangular, parecia um pequeno baú e estava enrolado em belo pano bordado. Pensou em alguma peça antiga, bastante valiosa e fácil de vender; ou talvez num aparelho eletrônico que ela estivesse levando para uma amiga ou neto.

O ônibus foi ficando cheio e Lia levantou-se a fim de chegar perto da saída. Na porta, havia um jovem bem apessoado que lhe inspirou imediata simpatia; ele se oferecera para segurar o fardo. Lia aceitou. Com o olhar úmido, confidenciou-lhe que naquele volume havia algo de muito importante, tudo o que lhe restava neste mundo. O olhar risonho do menino pareceu-lhe consolador e Lia sentiu-se invadida por doce ternura. Então a porta abriu-se e Alexandre saiu correndo, carregando as melhores lembranças de Lia.

Ela foi até o fim da linha e voltou para casa no mesmo ônibus. No caminho, pensava no menino, no roubo e na surpresa que ele teria ao abrir o embrulho. Quando lembrava, não conseguia evitar um sorriso. Enquanto isto, Alexandre, no banheiro do colégio, deparava-se com Belle. Após o horror inicial, deixara o cão ali mesmo e concluíra:

– Não adianta! Acho que o negócio é seqüestrar alguém.

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Por que Dostoiévski é diferente?

Durante minha adolescência e após, quando era um estudante universitário com bastante tempo livre — ou, como diria Kafka, com mais energia do que necessidade de produzir –, passei um longo tempo lendo clássicos. Houve alguns autores que ataquei de forma sistemática, pois minha expectativa a seu respeito era muito alta. Foi o caso de Dostoiévski. A leitura de todas as suas obras em ordem cronológica constituiu-se numa experiência inesquecível. Como literatura e visão de mundo, foi algo arrebatador, chocante mesmo. Ele era um escritor… diferente, mas eu não imaginava o motivo disto. Se a aventura de lê-lo jovem nos causa profundas marcas emocionais, também tolhe-nos, pela inexperiência, a análise das razões de tal assombro.

Após este período, já aos 24 anos, li um livro que investigava os procedimentos ficcionais do escritor russo e aquilo que neles havia de original. Problemas da Poética de Dostoiévski, de Mikhail Bakhtin, é uma obra complexa, mas que vale o investimento de tempo, pois analisa o tratamento que o autor dá a cada ponto de sua literatura. Procurarei resumir um dos capítulos deste livro: A Idéia em Dostoievski, pois em minha opinião, nele está descrito o que há de mais surpreendente em sua obra e, talvez, o que mais seduz seus leitores.

Primeiramente, Bakhtin nos fala de Sócrates e sobre a natureza dialógica da idéia. Segundo o grego, o habitat natural das idéias é diálogo. A idéia internalizada é algo inútil e morto; porém, se a mera divulgação de uma idéia já a altera pelas limitações da linguagem e de quem a expressa, imaginem as transformações que nela ocorrem quando em choque com outras. O diálogo socrático influenciou tanto Dostoievski que ele direcionou sua arte no sentido de tornar-se principalmente um regente de personagens, retirando de seu texto a voz onisciente (que tudo sabe) do autor. Seu objetivo era o de deixar suas criaturas livres e de colocar-se à altura delas, nunca acima. Para fazer isto, o escritor tinha de converter seu pensamento numa arena na qual as diversas vozes do romance lutavam, sofriam, amavam, decidiam e se debatiam, sempre com lógica interna e verossimilhança – mas sem a aparente mediação do autor. Não é fácil. Com esta disposição, Dostoiévski coloca-se como um criador de biografias pessoais e de situações que falam simbolicamente por si mesmas; mas que, pronto isto, parece deixar seus personagens livres, agindo e opinando de forma independente, enquanto anota o que dizem.

A tal projeto artístico, a esta quase insanidade de tornar sua obra uma arena, temos que acrescentar o fato de que Dostoiévski dá razão a todos e a ninguém, pois NUNCA EMITE JULGAMENTO DEFINITIVOS. O escritor-voz-da-razão, o que elabora belas teses e aforismos infalíveis foi misturado a seus personagens. Dostoiévski não é divino nem definitivo. O realismo o obrigou a isto.

A partir de Crime e Castigo – isto significa eliminar apenas as obras da juventude – só se conhecem as idéias de cada personagem, não a clara opinião do autor sobre elas. E muito menos se saberá quem o representa dentre os personagens. Ele não nos deixa pistas claras, pois permanece não distante, mas eqüidistante. Some-se a isto uma imensa capacidade de observação, um talento artístico ímpar e o fato do homem ser um manancial de preocupações éticas muito a frente de seu tempo, e estaremos no caminho de entender porque Dostoiévski é tão apaixonante.

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Sexo Anal [uma novela marrom], de Luiz Biajoni

O Biajoni, nosso amigo da Verbeat, fez o seguinte: escreveu a novela Sexo Anal e, antes de procurar uma editora, mandou confeccionar 180 exemplares para que os amigos e potenciais editores pudessem lê-los em formato agradável. Trata-se de um respeitável investimento. A quem não faz falta R$ 1.500,00? Pois o livro ficou bonito, com depoimentos de vários blogueiros na contracapa, com o Idelber e seus títulos numa orelha e com uma foto desnecessária do autor na outra.

Tenho que começar comentando o título da novela. Recebi-a na Primavera dos Livros em São Paulo e deixei-a sobre a minha mesa de autógrafos – estávamos em novembro, época do lançamento do Blog de Papel. Notei logo que as pessoas olhavam espantadas para o livro do Bia e depois para o meu. Tratei de virá-lo, escondendo sua capa. O Bia, há 100 metros da mesa e com olhos de lince, viu minha atitude e desesperou-se… Eu estava envergonhado de sua novela! Fato semelhante ocorreu numa sala de espera de um médico. Todo um mulherio desconhecido estava aguardando comigo e eu não quis ser identificado por elas como o cara que lê Sexo Anal. Sou um cara discreto, meio sem graça, aceitavelmente simpático. Então, peguei minha agenda, pus meu sexo anal dentro dela, sorri vitoriosamente para aquelas doentes e continuei minha leitura. Aliás, recebi importantes feedbacks e o Bia tem que saber disso: os homens dão gargalhadas com o título, as mulheres são discretas quando lêem “Sexo Anal”, mas o subtítulo “Uma Novela Marrom” causa-lhes rejeição e horríveis caretas. Quando a gente começa a ler, fica sabendo que a história em grande parte retrata a vida dentro da redação de um jornal da imprensa marrom, porém quem lê o título acha que o marrom alude a outra coisa… É um jogo de palavras bem ao estilo do Bia, porém minha irmã, a Claudia e também a bela Belly, do Mishappenings – que veio iluminar uma manhã meio chata aqui no escritório – torceram o nariz para a coloração da coisa. Sabemos que o cérebro feminino funciona diferentemente do nosso, muito mais simples.

Faço todo este blá-blá-blá porque a novela é muito boa e é uma injustiça pensar que trata-se de um título escandaloso a encobrir uma história chata e de prosa raquítica. Pelo contrário! O Biajoni é um escritor pop, o gênero de ficção que ele faz é pulp, ele está totalmente voltado a contar uma história e o faz com grande fluência (li as 200 páginas em três dias, o que é muito rápido para quem trabalha bastante como eu). Com personagens muito bem construídos, a novela grudou em mim e Biajoni – tudo para contar a história – usa bastante e habilmente um achado que funciona bem, acelerando a narrativa. Numa novela cheia de diálogos, o Bia faz assim, ó:

– Vamos voltar?
– …
– Vamos voltar ao que era antes… No final de semana vamos dançar, etc.

Aquelas reticências utilizadas como resposta no diálogo tornam desnecessárias grandes explicações. O leitor sabe que do outro lado está alguém ouvindo e que a frase anterior teve alguma repercussão. O conteúdo dela pouco interessa, o que interessa é que algo bateu do outro lado. Nós, com a nossa experiência, trataremos de dar-lhe algum significado. Isto acelera a narrativa e evita os parágrafos descritivos. Muito bom.

E a história de Virgínia, Luiz, Ana, do outro Luiz e de sua filha, entremeada do ambiente de redação de um pequeno jornal que sobrevive de manchetes sanguinolentas é muito boa. Virgínia é uma jornalista que namora Luiz, um funcionariozinho sem graça de um escritório de contabilidade que lhe dá aquilo que ela gosta. Só que ela o trai com seu médico e, por pura honestidade, conta para Luiz. O que vem depois é a história da crise entre os dois, onde participam o amigo legal (o outro Luiz), Ana (a homossexual interessada em Virgínia), a filha de Luiz e toda a fauna do jornal em que Virginia trabalha. Para perturbar ainda mais a namorada do funcionário, seu chefe passa a encarregá-la de trabalhos cada vez mais importantes dentro do órgão marrom que chefia, o que a faz pensar que Luiz não seria um bom investimento para uma jornalista prestes a tornar-se famosa, mas até tal ascensão é relativa… Bom, não vou contar tudo!

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Para não ficar só nos elogios, tenho algumas restrições ao final do livro e disse isto ao Bia. É uma questão de gosto pessoal. Acho que o livro deveria ir algumas páginas além, complementando a história da filha do Luiz. O que fazer se a considerei uma personagem especial e me preocupei com ela?

Como special guest star, temos um certo Alexandre, um sujeito absolutamente tarado por pés e que protagoniza patéticas cenas lambendo, beijando e etc. os pés das heroínas… Fazendo uma interpretação não autorizada, diria que Bia está “homenageando” seu grande amigo blogueiro Alex Castro, altíssimo intelectual e notório podólatra carioca, que fotografa e manipula os pés de suas amigas, às vezes criando uma verdadeira podoteca em seu blog.

Fico pasmo pela dificuldade do Bia em encontrar editora para sua novela. É pura diversão, não há teses, não irá mudar o mundo, não é auto-ajuda e… e daí? Sexo Anal é eficiente naquilo que se propõe – contar uma história grudenta e tornar interessantes – e são!, e devem ser contadas! – as vidas de pessoas absolutamente comuns. E, por favor, não pensem que é uma novela pornográfica ou erótica. Também é, mas penso que Sexo Anal sirva melhor à diversão do que à masturbação.

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Monica Bellucci – não quero travar relações com esta mulher

Vejam o que ela lê…

Meu mundo caiu.

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O Animal Agonizante, de Philip Roth x Fatal, de Isabel Coixet

Foi uma curiosa experiência ter visto primeiro o filme Fatal (Elegy) para na semana seguinte ler o livro no qual se baseia, O Animal Agonizante (The Dying Animal). Como seria de se esperar, eles contam a mesma história, mas colocam seus focos narrativos em pontos diferentes.

A situação é simples: o professor aposentado David Kepesh, de 62 anos, vive sozinho colecionando casos amorosos. Dentre eles, há um gênero de encontro que se repete. Ele sempre escolhe uma de suas alunas num curso quinzenal que ministra anualmente. Tais casos sempre começam na festa que oferece em sua casa no último dia de aula. Num desses cursos, ele encontra a belíssima Consuela Castillo, de 24 anos, que se transformará numa obsessão para o velho professor.

No livro, Roth preocupa-se principalmente com a sexualidade dos personagens. O velho fauno Kepesh fica absolutamente transtornado pela beleza e juventude da moça e Roth analisa de sua forma habitual — direta e visceral — não apenas sua sexualidade como a de seu país. Há um interessante paralelo entre o medo fóbico de separação de que sofre seu filho contra a noção de separação como libertação, defendida algo cinicamente por Kepesh. A virada final do livro dá-se quando, anos após a separação involuntária porém previsível — e que causa inédito e ENORME sofrimento ao professor –, Consuelo reaparece doente.

Trechos:

A vida de casal e a vida em família ressaltam o lado infantil de todas as pessoas envolvidas. Por que é que eles têm de dormir noite após noite na mesma cama. Por que é que precisam telefonar um para o outro cinco vezes ao dia? Por que é que tem de estar sempre um com o outro?

(…)

Sexo não é só atrito e diversão superficial. É também a maneira como nos vingamos da morte. Não se esqueça da morte. Não se esqueça da morte jamais.

(…)

… (na cidade) onde entrei na adolescência nos anos 40, só se podia ter uma relação sexual consensual com uma prostituta ou então com a garota que se namorava desde menino e que todos imaginavam que fosse acabar se casando com você.

(…)

— Por que não é legal com eles? — Eles só sabem se masturbar em cima do meu corpo. — Isso é lamentável. É uma burrice. É uma loucura.

(…)

As primeiras vezes em que me chupou, Consuela sacudia a cabeça com uma rapidez implacável, tá-tá-tá — era impossível não gozar muito antes do que eu pretendia, mas então, no momento em que eu começava a ejacular, ela parava de repente e recebia o jato como se fosse um ralo aberto. Era como gozar dentro de uma cesta de papéis. Ninguém jamais havia dito a ela para não parar naquela hora. Nenhum dos cinco namorados anteriores tinha ousado lhe dizer isto. Eram jovens demais. Eram da idade dela. Já estavam mais do que satisfeitos de estar conseguindo aquilo.

Obviamente, o segundo tema do livro é a velhice, o profundo ciúme e as fantasias causadas pelo mundo desconhecido, jovem e inatingível de Consuela em Kepesh.

E é isto que Isabel Coixet desloca para o cerne de seu filme. Não que ela tenha admitido um relato mais superficial, ela apenas o trouxe para o cinema: saíram as longas digressões sobre sexo e entrou o embate entre maturidade e juventude. Num filme que conta com atuações esplêndidas de Ben Kingsley e Penélope Cruz, Coixet realiza um grande filme acerca da finitude do ser humano. Kingsley, em atuação não menos que genial, é extremamente sedutor, mas quando conhece Consuela, sua idade e a idéia de seu fim próximo cai-lhe sobre a cabeça como uma injustiça. No filme, o sofrimento do professor Kepesh torna-o humano e o retorno de Consuela tem o efeito de torná-lo solidário. Não, não pense que o filme é moralizante, longe disso, é um filme tristíssimo sobre a degradação do corpo e de como o cérebro segue impondo suas demandas por vida e amor, ignorando a passagem do tempo.

Acho que a espanhola Coixet — grande diretora para a qual já babei em A Vida Secreta das Palavras –, deveria ter repetido o livro na cena do chapéu de Consuela, mas ela ou seus produtores não quiseram chocar um público tão delicado quanto o americano. Penso que seria uma cena absolutamente desconcertante e necessária ao relato, mas sabem como é, poderia diminuir a bilheteria…

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Pó de parede, de Carol Bensimon

Observação inicial: Quando peguei este Pó de parede, logo pensei: ih, autora gaúcha, lá vem confusão. Acontece que alguns comentaristas sulinos ficaram nervosos quando achei apenas correto o romance Música Perdida de Luiz Antônio de Assis Brasil ou repetitivos alguns Noll. Há pessoas que vêem política, interesse e “intenções” suspeitas nessas curtas anotações diletantes a que chamo pretensiosamente de resenhas e cuja maior motivação é, singelamente, a de não esquecer o livro. Claro que nelas revelo o maior ou menor prazer que tive ao terminá-lo, mas, pô, nada de nervos, gente.

Carol Bensimon veio recomendadíssima: aposta de Luiz Ruffatto na Bravo!, artigo na Aplauso, além de elogios ouvidos aqui e ali a uma jovem escritora e é óbvio que comprei seu belo livro de estréia na Feira, obra da também gaúcha Não Editora.

Pó de parede é formado de três novelas na tradição de alguns volumes muito queridos meus: há as três clássicas de Tolstói na tradução de Boris Schnaiderman, Sonata a Kreutzer, A Felicidade Conjugal e A Morte de Ivan Illich; as três de Turguenev, O primeiro amor, Ássia e Águas primaveris; as três de Flaubert, Uma alma simples, A lenda de São Julião Hospitaleiro e Herodíade; as três de James, A lição do mestre, O desenho no tapete e A vida privada; ou seja, parece que os autores ou os editores gostam do formato do trio de novelas. Mas vamos ao livro.

A primeira surpresa é a inventiva prosa de Carol. Ela tem um pensado trabalho de linguagem em que toda rebarba fica de fora, mas o resultado não é daquele gênero no qual a inteligência e o suor do autor acabam por sufocar quem lê; não, o resultado é leve, coloquial e poético. Seus diálogos, por exemplo, são ótimos, transcritos de forma pouco convencional, variando entre o formato utilizado por Saramago, o de Pedro Rosa Mendes e disposições que parecem poesia, soltas no ar. O texto é pontuado por analogias muito próprias e femininas, distantes de quaisquer clichês ou influências reconhecíveis. Sim, Carol Bensimon é excelente escritora.

Todas as histórias tem o ponto comum de referirem-se a casas. É como um jazzista que repete o tema tocado pelo solista anterior para dar unidade à música. A primeira história, A caixa, é muito bonita. Dividida em capítulos cujos títulos são os anos em que se passa a ação, A caixa acaba por ser um mosaico de onde emerge clara a amizade entre Laura e a narradora. Falta céu é a melhor das três novelas. É curta mas trata de um grande número de personagens contra um triste cenário de construção-desconstrução. É uma novela nada esquecível, realista, de boa história, personagens bem construídos e polifonia arrebatadora. Capitão Capivara é bem humorado e simples, possuindo o clima triste de alguns filmes de Allen e Altman, com personagens insatisfeitos vivendo num estranho Sanatório Berghof que faz marketing adoidado.

Boa escritora, poética e delicada, Carol Bensimon não fala de seu umbigo, não se apóia apenas em sexo e violência e muito menos naquela autenticidade “do caralho”. Acho que só faz parte da Nova Literatura por fazer literatura e ser bem novinha. 26 anos, imaginem.

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