Anton Bruckner: Sinfonia Nº 9 – 2º Mvto (Scherzo, em duas partes)

O velhinho Günter Wand (1912-2002), aos 76 anos, dá aqui uma amostra de sua genialidade no Scherzo que o personagem de Erland Josephson em Sarabande, de Ingmar Bergman, ouvia com a cabeça entre duas imensas caixas de som. Wand é uma figura queridíssima dos aficionados da música erudita. Suas notáveis interpretações e sábias entrevistas — inteiramente livres daquele Complexo de Deus que aflige a 77,5% dos médicos (já vivi com uma que contraiu a doença), 75,3% dos advogados e 50,1% dos regentes — são referências de boas leituras e de compreensão do outro.

Sugiro a quem tiver acesso a exemplares antigos da revista Gramophone: procurem a entrevista de Wand onde ele fala de seu trabalho de adaptação às sinfonias de Mozart, Beethoven, Brahms e Bruckner. Realmente, o velho não sofria do citado Complexo. Dá-lhe, Wand!

Ou aqui.

Ou aqui.

Shostakovich: Sinfonia Nº 10 (2º Mvto: Allegro, 3º Mvto: Fragmento do Allegretto )

A grande imprensa brasileira parece proibida de tecer observações elogiosas a quaisquer aspectos da Venezuela, mas tal preconceito não é de nenhuma forma seguido pelos europeus. Lá, Hugo Chávez é apenas eventualmente o outro nome de Satanás e a Orquestra Jovem Simón Bolivar da Venezuela tem recebido enorme atenção de alemães, ingleses e espanhóis. Por exemplo, a filmagem acima ocorreu no Royal Albert Hall de Londres, no exato dia em que eu completava 50 anos, em 19 de agosto de 2007.

Mas aí você me pergunta: o que é esta orquestra, quem é o rapaz que a rege? A Simón Bolivar é a orquestra líder de outras 120 orquestras de jovens venezuelanos. Trata-se de um programa chamado El Sistema, criado em 1975 pelo maestro José Antonio Abreu e que viabiliza a educação musical às crianças mais pobres do país. Ou seja, há milhares de jovens em torno dos 150 músicos da Simón Bolivar. Mais exatamente 250.000. São pessoas que nunca saberiam da música que trazem em si não fora o El Sistema apoiado pelo diabo. Atualmente, a orquestra grava para a Deutsche Grammophon e já há venezuelanos vencendo concursos na Orquestra Filarmônica de Berlim e em outros conjuntos europeus. E Gustavo Dudamel? É um espetacular talento de 27 anos que Claudio Abbado saúda como o novo Bernstein. Ele acaba de ser contratado como regente titular da Filarmônica de Los Angeles, mas não abandonará a Simón Bolivar.

Ontem, Zero Hora publicou um artigo em seu Caderno de Cultura, porém esqueceu-se de Chávez. É estranho, pois trata-se de um projeto importantíssimo de inclusão cultural que é inteiramente bancado pelo governo da Venezuela. Se é mais antigo que Chávez, este soube avaliá-lo e acelerá-lo. E pasmem: será copiado na Inglaterra. ZH diz que o será também no Rio Grande do Sul… Na Venezuela, ele salva crianças a um custo de 30 milhões de dólares anuais. Uma bagatela. São 120 dólares por criança ao ano, 10 ao mês. Apenas R$ 25,00 por criança.

A música. A Sinfonia Nº 10 é a primeira que Dmitri Shostakovich escreveu logo após a morte de Stálin. O Allegro acima seria um retrato da violência do grande desafeto do compositor. Shosta nunca negou. O furacão Dudamel sai-se maravilhosamente. Já o Alegretto que o sucede (tela abaixo) é gentil e apresenta pela primeira vez uma assinatura do autor. Aos 3min35, há um solo de trompa — que, se não me engano, é repetido mais três vezes — cujas notas, em notação alemã, são D-S-C-H… (em alemão, Dmitri Schostakovich). Ou seja, Stálin morreu, mas eu estou vivo. É música de primeiríssima linha, cheia de alusões e intenções, muito complexa e inteiramente inadequada a uma orquestra despreparada.

Sigam com o início do Allegretto, 3º movimento da décima de Shostakovich. É coisa de gênio. O resto pode-se encontrar no Youtube ou em mp3: aqui na versão de Kondrashin e aqui na de Mravinsky.

Obs.: Quem tiver browsers rebeldes deve clicar aqui para assistir a primeira parte e aqui para a segunda.

A Provocação de Glenn Gould

Quem é intolerante a respeito de música não faz jus a seu aparelho auditivo. E quem não tem capacidade de reflexão e descoberta não deveria usar a palavra “arte”.

Este post é dedicado ao autor da afirmativa acima, Tiago Casagrande, e a Gilberto Agostinho.

Antigamente, a música — mesmo a mais grandiosa — era utilizada como pano de fundo para jantares e comemorações. Para nós é difícil conceber isto, mas a música de Vivaldi, por exemplo, era ouvida sob o provavelmente alegre som de comensais italianos alcoolizados… Excetuando-se os saraus privados, o único local onde podia-se ouvir música em silêncio era nas igrejas. O ritual de deslocar-se até uma sala de concertos a fim de ouvir e ver silenciosamente a performance de orquestras, cantores e recitalistas é relativamente recente – começou há uns 150 anos. Sob uma forma mais barulhenta, a música popular aderiu a este ritual no século XX, porém hoje seus concertos visam mais a celebração do artista do que a finalidades “expressivas” ou “interpretativas”. Alguns radicais, como o extraordinário pianista canadense Glenn Gould (1932-1982) – cujas interpretações de Bach são até hoje difíceis de superar – trilharam o caminho inverso chegando ao extremo de abandonar suas carreiras de concertistas por não acreditarem mais que o formato de concertos e shows fosse aceitável quando comparado às vantagens oferecidas pelos estúdios de gravação. Não obstante o abandono dos holofotes e dos aplausos — em seu caso sempre entusiásticos –, Gould seguiu pianista e continuou produzindo discos cada vez melhores; mesmo sem ter marcado um mísero concerto em seus 27(!) últimos anos de vida.

Glenn Gould acreditava que a tecnologia oferecida pelos estúdios o colocava mais próximo de seu ideal artístico, que colocava a técnica pianística em segundo plano. Apesar de ser um instrumentista absolutamente preciso e hábil, a impressão mais forte que temos ao ouvi-lo não é a do virtuosismo, mas a da expressividade. Com ele, pode-se ouvir a música. Gould pensava que existia somente uma interpretação perfeita de cada obra e que esta só poderia ser obtida em estúdio com auxílio da tecnologia.

A verdade é que as gravações revolucionaram inteiramente nossa abordagem à música. Em menos de um século, passamos do sarau ao CD, fomos do amadorismo afetuoso e comovedor de nossas residências (que bom se pudéssemos voltar no tempo, não?) ao sampler. Vejamos como:

1877: Thomas Edison constrói e dá nome ao primeiro fonógrafo, um aparelho que registra e reproduz sons, utilizando um cilindro de parafina.

1888: O disco envernizado substitui o cilindro de Edison.

1925: Aparece o primeiro toca-discos elétrico, que funcionava com discos de 78 rpm. Um movimento – cheio de chiados – de uma sonata de Beethoven poderia ocupar vários discos… Meu pai tinha o Op. 111 do compositor alemão em 8 discos ou 16 lados de discos 78 rpm!

1940: O acetato e o verniz começam a ser substituídos pela fita magnética.

1948: Surge o LP, que podia receber até 30 minutos de música (uma sinfonia de Mozart!) de cada lado. Todos os discos de 78 rotações deveriam ser jogados fora. (Este é outro assunto…)

1958: O som estereofônico torna obsoletas as gravações anteriores, feitas em mono. Chegou a vez de jogar fora tudo o que não era estéreo.

1965: A fita cassete ameaça o disco, mas não o vence.

1979: Aparecem as fitas digitais (DAT) com som semelhante ao do CD; isto é, muito mais claras do que tudo o que já havia surgido antes.

1983: Chega o CD, mais uma vez desvalorizando todas as outras gravações realizadas em outros meios.

Gould falava em quão recente era a supostamente eterna tradição das salas de concerto e ridicularizava vários de seus aspectos. Por que haveria de ser necessário alguém atravessar a cidade — talvez com chuva ou sem a vestimenta adequada –, para ir sentar-se, com hora marcada, em cadeiras normalmente piores do que as de nossas casas, a fim de ouvir o mesmo velho e conhecido repertório tocado com acompanhamento de sussurros e tosses? Segundo ele, a única coisa que mantinha viva a tradição dos concertos era a oligarquia do mundo dos negócios musicais, acrescida do que Glenn Gould chamava de “uma afetuosa, ainda que às vezes frustrante, característica humana: a relutância em aceitar as conseqüências de uma nova tecnologia.”

Eu, modestamente, adoro ir a concertos. Amo aquela celebração dedicada aos músicos e à música; mas concordo com Gould em muitas coisas. É complicado sair de casa para ver, muitas vezes, concertos constrangedoramente inferiores àquilo que temos em nossa discoteca. Outra coisa triste é o conservadorismo do repertório apresentado: principalmente no Brasil, considera-se que estejamos eternamente “educando o público para a música erudita”. Com este argumento, as orquestras obtém o aval para apresentarem somente o mainstream do repertório. (Há as exceções, mas são raras…) Enquanto isto, o LP e o CD abriram um leque de opções que mudaram nosso conhecimento musical. Obras extraordinárias puderam voltar a fazer parte de nossa cultura, grande parte da música de câmara (música escrita para pequenos grupos de instrumentistas) e da música antiga, inadequadas para as grandes salas, voltaram através dos discos.

Houve uma importante alteração na maneira de tocar a música e, por conseguinte, de ouvi-la e compreendê-la. Uma vez que, no estúdio, os músicos não tinham mais de preencher os grandes espaços das salas de concerto com som, todo o processo de fazer música passou a colocar mais ênfase na clareza e beleza do fraseado. Os microfones que fizessem o resto! Os antigos instrumentos – de som mais fraco – retornaram à vida e surgiram as gravações com interpretações históricas, utilizando instrumentos de época, que respeitam a dinâmica e a forma original das obras.

Peço agora que vocês, meus prezados 7 leitores, leiam principalmente a segunda observação abaixo. Ao final dela, vocês entenderão o motivo pelo qual este texto acaba (ou não acaba) tão bruscamente.

Observação:

— A maior parte dos argumentos aqui colocados livremente estão sistematizados no livro de Otto Friedrich Glenn Gould: A Life and Variations.

Prokofiev – 3º Movimento da Sonata Nº 7 (Precipitato)

Ontem, Bach fez 324 anos de nascimento, este é o 399º post deste blog e hoje escolhi um Prokofiev. Grigory Sokolov vai um pouco mais lento que Pollini e sem o descontrole da versão de Argerich. É espantoso o que faz aqui o russo Sokolov, nascido em Leningrado no ano de 1950. Toda a sétima sonata é extraordinária, mas esse finale, do qual a Medici TV apresenta os últimos 3 minutos…

Quem não vê nada acima, deve clicar ou passar o mouse aqui.

A biblioteca perdida de Goran Bregovic

Goran Bregovic está excursionando pela Espanha para apresentar o novo CD, Alkohol, já comentado por mim. Hoje, El Pais publicou uma entrevista sua. Há nela alguns aspectos comoventes e outros que me interessaram muito. Para variar, quem me enviou o link foi Helen Osório. Faço um resumo abaixo:

Goran considera-se iugoslavo: Si tu país desaparece, descubres que no era algo político ni geográfico, sino emocional. No me siento represente de una nación o un Estado. Sólo represento ese territorio emocional que no tiene nada que ver con la política.

O que diz sobre os criminosos de guerra: Creo que conozco a casi todos los criminales de guerra. Conozco a Radovan Karadzic, que antes de la guerra era poeta. Algunos de mis profesores de la Facultad de Filosofía están en La Haya. Eran políticos pequeños que creyeron interpretar personajes históricos. Los seres humanos están condicionados. Si les dejas la oportunidad de convertirse en animales se convertirán en animales. La cultura no nos protege.

Sobre o poder da arte mudar as pessoas: A los artistas occidentales les gusta decir grandes cosas, como que la música puede cambiar el mundo. Vengo de un país comunista y sé dónde está el poder. Aunque trabajo con la misma temperatura que los artistas occidentales, sé que hay un largo camino hasta ser iluminado. Las luces pequeñas ayudan, pero en el fondo no cambian nada.

Sobre uma destas pequenas luzes, ele narra um acontecimento quando de seu primeiro concerto em Buenos Aires: Al llegar al hotel me dieron un sobre que me habían dejado de parte de Sábato. Contenía un libro, Sobre héroes y tumbas, y una carta en la que me pedía disculpas por no acudir al concierto. Me explicaba que mi música le había salvado en momentos de depresión. Lo curioso es que cuando hice el servicio militar en Nis, en la época comunista, robé de la biblioteca del cuartel un ejemplar de ese libro. Lo tuve en mi casa de Sarajevo durante años y lo perdí. Con la guerra perdí todo, también mi biblioteca. Puedes empezar dos veces tu vida, pero no puedes empezar dos veces una biblioteca. Todas las cosas grandes que me han pasado están guiadas por cosas pequeñas que se vuelven grandes, como el libro de Sábato.

Ele surpreende ao falar sobre algumas acusações de plágio: Me llaman compositor porque compongo lo que ya existe. Así ha sido siempre, desde Stravinski, Gershwin, Bono, Lennon… Se trata de un viejo método: tomas algo de tu tradición, robas y dejas atrás cosas para que otros con talento roben también. La cultura es eso, una transformación continua.

E este filho de pai sérvio e mãe croata, casado com uma muçulmana, finaliza: La guerra no es sólo matar gente, quemar casas, la guerra mata una infraestructura cultural, edificada por los hombres con gran dificultad durante mucho tiempo.

É uma boa entrevista. O que me emocionou foi a referência que ele fez a sua biblioteca perdida:

Com a guerra perdi tudo e também minha biblioteca. Podes começar tua vida duas vezes, mas não podes começar duas vezes uma biblioteca.

Eu nunca tinha pensado nisso. Uma biblioteca pessoal é algo que não se recomeça. Ou ela é inteira ou é um amontoado. Uma biblioteca sem as tantas bobagens lidas durante a adolescência, sem as anotações que não consigo deixar de fazer nos livros e sem as anotações dos amigos, deixaria de contar à sua maneira minha história e a de meu tempo. Eu não iria morrer sem esses 3000 ou mais paralelepípedos cheios de pó mal organizados às minhas costas. Mas perderia o meu mais importante meio de recordações, pois só consigo chegar ao Milton de 15 anos quando abro O Lobo da Estepe e constato o quanto amei e manuseei aquele exato livro que hoje leria com enfado. E quando abro Baía dos Tigres sei onde estava e o que pensava enquanto o lia e o mesmo ocorre com quase todos os outros. Sei lá por quê, minha vida tem largos períodos sem fotos e minha memória associa-se sempre aos livros. Não sei se esta é uma sensação comum às pessoas que leem permanentemente. Não sei mesmo. Aliás, antes do dia de hoje nem sabia que uma biblioteca não se recomeçava…

Uma polêmica suscitada pela Zero Hora

No sábado retrasado (07/03), o jornalista Gustavo Brigatti, meu amigo, deu novamente mostras de que não é nada tolo. Com sua cara de Gary Oldman bonzinho, escreveu o artigo de capa do Segundo Caderno — chamado Ópera? Só no cinema — sabendo que expunha dois corpos a leões barulhentos, irônicos e domiciliados fora do Rio Grande do Sul. (Conclusão minha, não falei com Gustavo). Não é responsabilidade dele se Fernando Mattos, compositor, violonista e professor do Departamento de Música da UFRGS, decidiu ter seu momento de tolice bem na frente do jornalista. E muito menos se Mônica Leal disse mais uma de suas bobagens, até porque é incapaz de outra coisa.

O fato é que pensei em mandar o artigo para dois outros amigos meus: o pianista Carlos Morejano e o tenor Flávio Leite. Eles saberiam destroçar os pobres argumentos de Mattos e, bem, não precisariam preocupar-se com Mônica Leal pois ela parece programada para apenas emitir destroços. É fato óbvio que o Rio Grande do Sul dá uma contribuição fundamental para a cena operística. Ele exporta — ou melhor seria dizer deporta, desterra, elimina, proscreve ou, quem sabe, expatria? — os muitos talentos que produz.

A declaração de Fernando Mattos …

— Aqui no Rio Grande do Sul não há gente especializada, principalmente solistas. E isso diminui muito o repertório, obrigando a usar um ou dois profissionais locais e trazer o resto de fora até do país.

… comprova sua dedicação exclusivíssima à UFRGS e à vida acadêmica, pois de cada 20 escolhidos para o Guaíra, dez são a metade (vide artigo abaixo).

E a declaração de Mônica Leal…

— Ocorre que o patrocinador, ao investir em determinado projeto, avalia o mercado e as suas demandas. Se há público em Porto Alegre interessado, certamente haverá patrocínio. Mas não cabe ao Estado promover estes eventos. Cabe, isso sim, incentivá-los.

… é mais um atestado de que o Rio Grande irá contrariar as expectativas de todos. Sim, nosso estado se tornará um deserto, mas primeiro virá o deserto cultural, só depois vindo o outro, o da Aracruz.

Contudo, eu não mandei e-mail nem para o Flávio nem para o Morejano. Fico feliz por saber que não precisava, pois Flávio conseguiu espaço no Caderno de Cultura de ZH do último sábado a fim de reduzir a pó os argumentos do re-putado professor e da putativa filha do coronel. Respondam a isso. Quero ver.

Por uma ópera não só no cinema

O tenor Flávio Leite critica a falta de uma temporada lírica regular no Estado, lembra que temos bons profissionais especializados e cobra uma reflexão mais séria sobre o tema.

A inserção de Porto Alegre no circuito internacional de transmissões nos cinemas das produções de óperas gravadas no Metropolitan de Nova York é um fato histórico na vida cultural da nossa cidade. Com um passado lírico glorioso, onde ouviu-se La Bohème de Puccini antes aqui do que em Viena ou no próprio Metropolitan, nossa capital vive em uma espécie de vácuo lírico há muitos anos por vários motivos – salvo heróicas iniciativas mesmo lutando contra as adversidades citadas na reportagem de sábado passado no Segundo Caderno (“Ópera? Só no Cinema”, de Gustavo Brigatti), não permitiram que o gênero que está lotando as salas de cinema em nossa cidade morresse.

Dentre essas adversidades citou-se a falta de apoio público no fomento e promoção da arte lírica. Lembremos que os casos nacionais de maior profissionalismo, sucesso e relevância internacional do gênero como o Festival Amazonas de Ópera, que atrai turistas do mundo todo a Manaus com uma temporada invejável e a temporada do Teatro Municipal de São Paulo, acompanhada pelas principais revistas especializadas da Europa, para citar somente dois exemplos, são iniciativas da Secretaria de Cultura do Estado do Amazonas e da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, respectivamente, contrariando a afirmação da filha do Coronel Pedro Américo Leal, atual Secretária da Cultura, que não cabe ao Estado promover estes eventos. Triste a má sorte dos gaúchos amantes de música, pois foi em um governo do mesmo partido de nossa governadora que São Paulo ganhou a revitalização e transformação da Osesp em uma das principais orquestras da atualidade.

Outro depoimento que me causou estranheza no mesmo artigo foi o do respeitado acadêmico Fernando Mattos, quando afirma que um dos motivos da impossibilidade de uma temporada lírica no Estado seria a falta de profissionais especializados, principalmente solistas, forçando a importação de tais profissionais encarecendo e impossibilitando o processo. Tal afirmação surpreendeu-me duplamente, pois na vida profissional ocorre exatamente o inverso. Somos muitos gaúchos em carreira pelo resto do país e exterior justamente porque aqui não temos um mercado profissional de atuação.

O número de cantores líricos gaúchos altamente especializados em carreira profissional no resto do país e no Exterior é mais do que significativo. Além de presença nas temporadas do Rio, São Paulo, Manaus, Belo Horizonte e Belém, citemos por exemplo a última montagem de L’Elisir D’Amore, de Donizetti, em Florianópolis, onde quatro dos principais solistas, escolhidos por concurso público, eram gaúchos. O soprano Cláudia Azevedo, que se alternava no papel de protagonista com a também gaúcha Carla Domingues, é detentora de feitos importantes, como seu título de especialista em ópera pelo Conservatorio Superior del Liceu em Barcelona, sua premiação no Concurso Internacional de Canto Bidu Sayão, sua atuação no mais importante festival de verão da Europa, Rossini Opera Festival de Pesaro na Itália e seu debut agendado ainda para este ano no mítico Teatro Colón de Buenos Aires.

Outra prova da qualidade dos artistas líricos gaúchos está ocorrendo no Teatro Guaíra, em Curitiba, onde está acontecendo o segundo módulo de um Ópera Estúdio, um curso de aprimoramento de alto nível para jovens cantores profissionais, inédito no país, com professores vindos da Itália, oriundos de teatros como alla Scala e La Fenice, onde das 20 vagas oferecidas para todo o país 10 dos participantes aceitos, também via concurso público, são gaúchos. Isso para citarmos alguns nomes da nova geração, sem mencionar profissionais gabaritados e com ampla experiência internacional da geração anterior, como o soprano Laura de Souza, os tenores Martin Mühle e Juremir Vieira e o baixo Luiz Molz, alguns não ouvidos aqui desde os tempos de estudante.

O outro motivo que cabe salientar é o fato de que em nenhuma casa de ópera importante do mundo se faz uma temporada somente com artistas locais, pois nem em Viena, Paris ou Londres existem especialistas locais para todos os papéis do repertório. Podemos não ter uma Lucia de Lammermoor de primeiro calibre em Porto Alegre, mas mesmo no Met, com os seus US$ 300 milhões de orçamento e sua centenária tradição, a estrela Anna Netrebko deixou a desejar em sua conhecida ária da loucura quando deixou de cantar um de seus esperados mi bemóis superagudos na performance conferida pelos porto-alegrenses no último domingo no cinema.

Cobrar a perfeição existente somente no Walhalla acadêmico e tachar as parcas tentativas de sobrevivência do gênero em Porto Alegre, de beirar o ridículo, não preenchem a lacuna deixada pela falta de regularidade de produções operísticas em nosso Estado. É necessária uma reflexão séria por parte de artistas, produtores, autoridades, patrocinadores, acadêmicos e público para que os gaúchos que superlotaram as salas de cinema e controlaram seu impulso de aplaudir uma ópera gravada, possam honrar o seu passado e voltar a se emocionar com o fenômeno da voz ao vivo.

FLÁVIO LEITE
Tenor gaúcho

A propósito de um CD da Antares…

…que reúne músicas para violoncelo e piano de Schumann, Beethoven e Shostakovitch, por Rodrigo Alquati (violoncelo) e Luiz Gustavo Carvalho (piano).

Robert Schumann, Fantasiestücke, Op.73

Robert Schumann (1810-1856) adotou um curioso método para produzir sua obra musical. Até os 29 anos, ele apenas produzira composições para piano. Então, no ano de 1840, mudou, escrevendo 138 lieder, uma produção luminosa, que revela não apenas um enorme talento para o gênero como também a felicidade plena deste período de sua vida. Em 1841, Schumann mudou de novo dedicando-se somente à música sinfônica, a qual foi sempre pouco valorizada. No ano seguinte, 1842, voltou a mudar, produzindo novamente grande música: foi o ano da música de câmara.

Além de indicar para um cuidadoso alargamento de interesses e experiências, este método – ou esquisitice, ou obsessão – também facilita a abordagem de sua imensa obra. Sua música de câmara ficou aglutinada em quatro anos bem definidos: 1842, 1847, 1849 e 1851. Ele só quebrou esta disciplina para compor a Märchenerzählungen, op.132 (1853) e o belíssimo Andante e Variações para 2 pianos, 2 violoncelos e trompa, op.46 (1843).

Quando analisamos cada um destes quatro anos, notamos que eles possuem individualidades bem diversas. O primeiro, muito numeroso, é sereno e obedece às formas clássicas da música de câmara; importantes exemplos desta fase são o Quarteto para piano, violino, viola e violoncelo, op. 47, e o Quinteto para piano e quarteto de cordas, op. 44. Já os trios do segundo grupo são arrebatados e líricos. O terceiro período caracteriza-se pelas melodias leves e espontâneas, e as obras do quarto denunciam a decadência da produção de Schumann, já quase tombado pela sucessão de crises depressivas que o levariam à deterioração mental e à morte.

As Peças de Fantasia (Phantasiestücke), op.73, estão inseridas no terceiro grupo de obras de câmara e mostram a maestria do grande compositor de Lieder. Há ecos de voz humana nesta música que possui ainda outra versão, na qual o violoncelo é substituído pelo clarinete. A primeira peça – Zart mit Ausdruck (Terno com expressão) – é brilhante e através dela reconhecemos a óbvia relação de Schumann com a música que Brahms criaria depois. A seguinte, Lebhaft, leicht (Vivo, leve), é uma melodia tipicamente schumanniana que flui com absoluta tranqüilidade. A obra é finalizada por um Rasch und mit Feuer (Rápido e com fogo) com um andamento bem mais rápido e trovejante, característico dos finali românticos.

Ludwig van Beethoven, Sonata para Cello e Piano, Op. 5 Nro. 2

As primeiras sonatas para violoncelo e piano de Ludwig van Beethoven (1770-1827) foram compostas no ano de 1796. O compositor, que nunca exibiu a precocidade de um Mozart, tinha 25 anos e estava terminando sua formação de um modo inteiramente diverso de seus antecessores Mozart e Haydn: tinha assistido a cursos de literatura em Bonn com empenho maior do que o de um mero diletante e isto – em suas próprias palavras – “o estimularia a produzir e a tornar-se o verdadeiro Tondichter (poeta dos sons) da Alemanha”.

Em 1793, Beethoven foi para Viena a fim de tornar-se aluno de Haydn, entre outros mestres. A opinião destes acerca de seu aluno servem bem para mostrar que não era muito fácil conviver com o jovem gênio. Haydn, que o apelidara de “o grão-mogol”, disse que seu aluno era inadaptável a qualquer tipo de sistematização, pois era presa de uma indomável originalidade; já outro mestre, um precipitado Albrechtsberger, entrou direto pela porta dos fundos da história da música ao dar o seguinte conselho a seus outros alunos, acerca do jovem Ludwig: “É um exaltado livre-pensador musical, não o freqüentem. Ele nada aprendeu e nunca fará nada de grande”.

Apesar disto, os anos vienenses (1793-1802) foram especialmente felizes para Beethoven. Ele era um virtuose respeitado pelo público e estava começando a compor suas primeiras obras. São deste período as primeiras sonatas para piano e seu Opus 5, do qual fazem parte duas sonatas para violoncelo. Na época, o violoncelo não gozava de muito prestígio. O instrumento havia sobrevivido a uma demorada luta contra a viola-da-gamba e apenas Carl Philipp Emanuel Bach e Haydn haviam escrito grandes obras para ele. Neste sentido, o Op. 5 de Beethoven era uma novidade.

A Sonata em Sol menor Op. 5 Nro. 2 teve sua estréia em 1796 com Jean-Pierre Dupont ao violoncelo e o próprio Beethoven ao piano. A utilização da estrutura Adagio – Allegro – Rondó, já mostra que o jovem Beethoven tinha pouco do reverente respeito às normas estabelecidas pelo passado. O Adagio sostenuto espressivo tem grande parentesco com a solenidade dos episódios iniciais das sinfonias de Haydn. Porém, sua dilatada extensão, os silêncios que brotam em meio ao movimento e sua surpreendente tragicidade apontam para dramas mais profundos. Segue-se um Allegro molto piu tosto. Presto que faz contraponto ao movimento anterior e é um produto típico de Beethoven: há quebras de um tema para exposição de outro e também os célebres motivos concisos e enérgicos. A sonata termina com um rápido Rondo (Allegro), de grande efeito concertístico, que nos leva a pensar nos melhores movimentos de dança de Mozart e Haydn.

Dmitri Shostakovitch, Sonata para Cello e Piano Op. 40

A biografia e enorme obra de Shostakovitch (1906-1975) – toda composta dentro da ex-União Soviética – serviu de tema para várias controvérsias políticas durante a Guerra Fria. O Ocidente o descrevia como um dissidente do regime, sem liberdade para compor e sempre em luta contra Stálin, Jdanov e a União dos Compositores. Porém, apenas parte disto é verdade. Já a União Soviética gostaria de tê-lo como seu compositor oficial, o que nunca conseguiu.

Talvez incorrendo em uma simplificação demasiada, poderíamos dizer que hoje sabemos que Shostakovitch era um sincero comunista e patriota, mas que teve três graves lutas para ter sua obra divulgada dentro de seu país: a primeira contra Stálin que, em 1935, aborreceu-se com a ópera Lady Macbeth de Mzenski, chamando-a de “muito burguesa e decadente” – palavras comuns na época – e qualificando-a como uma “pornofonia”- expressão absolutamente incomum em qualquer época. (A ópera, que era um estrondoso sucesso, foi censurada e liberada apenas 27 anos depois…) A segunda luta foi contra o Relatório Jdanov, de 1948, que pretendia adequar a obra de todos os artistas do país aos moldes do severo realismo socialista; e a terceira, em 1962, em defesa de sua Sinfonia nro. 13, composta sobre o poema Babi Yar de Evgueni Evtuchenko, que denunciava a repressão stalinista.

Note-se que, mesmo com todo este ruído, registrado dentro e fora de seu país, os ataques a sua obra foram mínimos, pois esta é inatacável.

Shostakovitch foi um grande mestre. Suas obras, quase sempre de grandes proporções, procuram abarcar todo um mundo ao descreverem, dentro de si, diferentes situações e sentimentos. Na obra de Shostakovitch, podemos ouvir as vozes mais íntimas e profundas ao lado da alegria mais ingênua, da alegoria, da galhofa, da farsa, da grandiloqüência e da mais completa fúria.

A Sonata em Ré Menor Op. 40 foi composta em 1934, no período em que Shostakovitch apaixonara-se por uma jovem estudante, o que ocasionou um efêmero divórcio de sua esposa Nina. O compositor dedicou esta sonata ao violoncelista Victor Lubatski e ambos a estrearam em Moscou, no dia 25 de dezembro de 1934.

O primeiro movimento (Allegro non troppo) é escrito em forma sonata. O primeiro tema, bastante extenso, é apresentado pelo violoncelo, acompanhado por arpeggios do piano e depois desenvolvido por este até seu clímax; o segundo tema, muito mais delicado, é, contrariamente, apresentado pelo piano e imitado pelo violoncelo. Durante o desenvolvimento o primeiro tema ganha motivos rítmicos, mas logo o afetuoso segundo tema reaparece. Tudo parece em ordem, encaminhando-se para o final do movimento, mas Shostakovitch nos surpreende ao inserir alguns acordes em staccato do piano, acompanhados por notas sustentadas pelo violoncelo, o que faz com que a música torne-se quase estática. É uma estranha preparação para o que se ouvirá no segundo movimento (Allegro) o qual é um scherzo típico de Shostakovitch. Trata-se de um frenético ostinato que é interrompido por um tema apresentado pelo piano que, apesar de mais tranqüilo, é também muito pouco contemplativo. O terceiro movimento (Largo) faz-lhe intenso contraste, pois é uma melodia tranqüila e vocal, acompanhada pelo piano de forma introspectiva, dissonante e um tanto fúnebre. O Allegro final é um rondó bastante irônico no qual o tema principal é apresentado três vezes, ligados, a cada intervalo, por estranhas e vertiginosas cadenzas.

Dia Internacional da Mulher

Para Susana Castro, que a conhece,
e Roberto Markarian,
que a desconhecia.

Neste Dia Internacional da Mulher, homenageio Clara Schumann (1819-1896), née Wieck, pianista e compositora alemã do período romântico.

Seu pai, Friedrich Wieck, era professor de piano e foi com ele que a Clara começou seu aprendizado do instrumento. Era uma família de pianistas: a mãe, Marianne, era famosa concertista. Quando Clara tinha 4 anos, seus pais se divorciaram. Friedrich recebeu a custódia da filha e, um ano depois, começou a ensinar-lhe o instrumento. A partir dos 13 anos, ela já apresentava-se em concertos por toda a Europa. Destacava-se por suas interpretações de outros românticos da época, como Chopin e Weber. Ainda adolescente, compôs o Concerto para piano em lá menor, estreado por ela sob a regência de Felix Mendelssohn. Um merecido sucesso.

Foi neste período que conheceu Robert Schumann, nove anos mais velho, na época aluno de seu pai. Apaixonou-se por ele. Ao tomar conhecimento da ligação da filha com Robert, o velho Wieck ficou furioso, pois Schumann tinha problemas com bebida, fumo e era suscetível a crises depressivas. Assim sendo, foi contra o pai que Clara travou sua primeira batalha. Por fim, obteve autorização judicial para casar-se com quem quisesse, mas só após completar 21 anos.

Depois do casamento, Clara e Robert iniciaram longa colaboração, ele compondo e ela interpretando e divulgando a obra do marido. Clara seguia compondo, mas a vida em comum tornava pouco a pouco inviável tal atividade, pois, apesar de Schumann aparentemente encorajar sua criação musical, cada vez mais insistia para que ela interpretasse suas obras, o que a obrigava a deixar de lado sua carreira de compositora. Ademais, houve oito gestações com pequenos intervalos. A situação era agravada por outras diferenças: Clara adorava turnês, Robert as odiava; mais: ele precisava de silêncio e tranqüilidade para trabalhar em sua obra “maior e mais importante”, o que levava Clara novamente a um segundo plano, pois somente após as horas e horas de estudos do marido ela poderia ter as suas.

Outro problema eram as constantes crises nervosas do marido, que lentamemte fizeram Clara assumir o sustento familiar. Quando Schumann entrou em crise depressiva crônica, a família viu-se obrigada a interná-lo num manicômio, onde ficou até a morte, dois anos depois. Após 14 anos de casamento, Clara ficou sozinha com os filhos, tendo que dar aulas e apresentações para garantir o necessário à família.

Compreensivelmente, a partir daí, Clara ficou livre para compor, dar concertos e sua carreira reacendeu-se. A amizade com Johannes Brahms – quatorze anos mais moço – foi o principal sustentáculo nesse período, o que deu margem a suposições de que os dois teriam um romance. Para aumentar os boatos, Brahms dizia ser celibatário, mas a visitava muito. Ela revisava as obras dele e dava-lhe sugestões. Ele fazia o mesmo com as obras de Clara. Foram anos de colaboração mútua, ainda mais que os dois artistas eram defensores de uma estética romântica ligada a padrões mais formais, em oposição a Wagner, Bruckner e Liszt, românticos mais escabelados. (À exceção do careca Bruckner, é claro.)

Era uma mulher considerada muito bonita por seus contemporâneos. Não se sabe de nenhum outro caso amoroso posterior ao casamento com Schumann, além do suposto com Brahms. A amizade entre eles durou até o final da vida de Clara. Seus anos de maturidade foram marcados por uma brilhante carreira como professora e pelo reconhecimento como concertista.

É esta mulher extremamente digna, talentosa e de bela carreira num campo à sua época inteiramente masculino, que lembro neste dia. A citação de Fábio Danesi Rossi está ali por ser muito engraçada e não deve ser vista como algo de outro sentido que não seja o de fazer rir.

Principais Obras:

Para piano:
Quatro polonesas, Op. 1 (1828-30)
Etudes (década de 1830)
Valses romantiques, Op. 4 (1833-35)
Quatro peças características, Op. 5 (1835-6)
Soirées musicales, Op. 6 (1835-6)
Scherzo em Dó menor, Op. 14 (1845)
Quatre pièces fugitives, Op. 15 (1845)

Para orquestra:
Concerto para piano em lá menor, Op. 7 (1835-6)
Scherzo para orquestra (1830-31,perdido)

Obras de câmara:
Piano Trio em Sol menor, Op. 17 (1846)

Lieder:
Volkslied (1840)
Die gute Nacht, die ich dir sage(1841)
Gedichte aus Rückert’s Liebesfrühling Op. 12 (1841)
Lorelei -poema musicado de Heine-(1843)
Oh weh des Scheidens, das er tat(1843)
Mein Stern (1846)
Das Veilchen –sobre poema de Goethe-(1853)

Fontes: Nem vou detalhar, pois se trata de uma série de textos decididamente ruins que encontrei na rede e que me obrigaram a reformas radicais e a todo cruzamento de informações. Era tanta coisa errada que nem pude dar a muita atenção ao que estava escrevendo. Meus amados livros de música? Esqueça, estão empacotados para a mudança!

J. S. Bach – Ária da Cantata BWV 30, com Magdalena Kožená

A história contada pelo belo vídeo abaixo talvez não seja inteiramente compreendida por todos. Na época de Bach, era vetado às mulheres cantarem nas igrejas e, por isso, as vozes de contralto e soprano eram cantadas por meninos. Porém, como Bach estava em permanente atrito com seus empregadores, não seria de todo estranho se ele permitisse a uma mulher participar de um ensaio, mormente se esta fosse a divina tcheca Magdalena Kožená.

Se a imagem não aparecer, clique aqui.

Alkohol (Sljivovica & Champagne), de Goran Bregović

Minha mãe divorciou-se de meu pai porque, como muitos oficiais, ele bebia exageradamente a Sljivovica (*). Depois que ela o deixou, ele começou um tratamento a fim de livrar-se da bebida. Pelos 15 anos seguintes ele não bebeu. Minha mãe morreu de leucemia.

A segunda mulher de meu pai contou-me que ela algumas vezes o seguia secretamente pelas ruas. Noite após noite, meu pai podia ser visto sentado, fumando até o nascer do sol debaixo da janela do hospital onde minha mãe agonizara no terceiro andar. Era um hospital militar localizado em Split.

Depois, ele retornou a sua vila na fronteira com a Hungria e plantou vinhedos com os quais produzia 1000 litros por ano. Ele sobreviveu 20 anos a minha mãe e bebia seus 1000 litros mais ou menos sozinho.

Eu dedico ALKOHOL a meus pais.

Texto introdutório do último CD de Goran Bregović, traduzido meio de qualquer jeito por mim.

Eu gosto muito de Goran Bregović. Como todo mundo, conheci-o como autor das trilhas sonoras de alguns dos principais filmes de Emir Kusturica. São trilhas alucinadas, de uma criatividade absolutamente estupefaciente — se há alguma dúvida, ouça a de Underground e a de Black Cat, White Cat –, sempre levadas por ritmos ciganos cujas melodias são ou conduzidas ou ornamentadas por um naipe de metais de contínuo e desencontrado vibrato. Um espanto. Depois de baixar uns dez de seus CDs na rede e de comprar outros seis, descobri que Bregović é menos prolífico como compositor do que eu imaginava e que a área onde é imbatível é a dos arranjos. Por exemplo, neste Alkohol há treze faixas, das quais 4 já estiveram em CDs anteriores e outras duas são de temas tradicionais sérvios. Só que as canções repetidas – e cada canção do CD – recebem uma roupagem tão diferente, original e individual que é impossível não admirar a arte de Bregović. O homem faz três ou quatro arranjos para cada uma e a gente gosta de todos.

Para seus padrões habituais, é um disco de camarístico: esta versão da Wedding and Funeral Band conta com apenas 5 metais (dois trompetes, sax, trompa e tuba), duas cantoras, um percussionista, um baixo e a guitarra e a voz de Bregović. Os destaques ficam para Yeremia, Truckers` song, On the back-seat of my car, Streets are drunk e Gas gas gas. Num disco chamado Alkohol, só há lugar para uma balada: For Esma. O resto é uma paulada atrás da outra.

Filho de um pai croata e uma mãe sérvia, Goran Bregovic nasceu em Sarajevo, é casado com uma bósnia mulçumana. Ou seja, a Guerra dos Balcãs poderia ter ocorrido dentro de casa… Sua música tem enorme influência cigana: “uma música moderna que reúne fusões diversas e que espelha o ecletismo natural da sua cultura” – mas ele também fez parte de um grupo de rock na ex-Iugoslávia… Na verdade, Bregovic alterna loucura cigana com momentos quase eruditos e umas pitadas de rock. É popularíssimo em toda a Europa. Os ingressos para seus concertos são disputados.

Para quem desconhece Bregovic, coloco abaixo a versão original do clássico Kalashnikov (sim, uma “homenagem” à arma favorita de nove entre dez guerrilheiros, criada por Mikhail Timofeevich Kalashnikov). A canção foi utilizada por Kusturica em Underground e esta interpretação é a mais indicada para quem não a conhece:

A versão do Wedding atual, ao vivo.

E uma inacreditável versão sinfônica deste hino da Sérvia.

Para baixar a bola, Cesária Évora cantando Ausência em seu português de Cabo Verde:

E finalizando, uma explicação sobre a Sljivovica:

(*)
Autumn has arrived, along with the need for comfort, delicious rich foods and of course hot plum brandy “sljivovica”. Before 5PM it is medicine, after 5PM it’s alcohol.

Como preparar:

Things you’ll need:

* 2 cups of plum brandy (Serbian or Croatian)
* 2 tbs. of sugar
* 1 tbs of water

Step1: Place sugar and water in a small-medium size pot. Cook it on medium temperature until golden brown. Stay next to the pot, since it may burn quickly.

Step2: Pour 2 cups of plum brandy over caramelized sugar. Turn the heat down a little.

Step3: Begin swirling the pot to slowly melt the sugar. This may take couple of minutes.

Step4: When sugar melts, pour into small glasses.

Step5: Serve with a smile.

Despretensiosamente, sobre All Things Must Pass

Há algumas décadas ouço pouco a chamada música popular. Meu filho Bernardo é quem acaba forçando meu retorno àquele tempo. Costumeiramente, ele explora meus antigos vinis e faz com que eu relembre os discos – são LPs mesmo e não CDs – que ouvia durante minha adolescência. Domingo passado, ele olhou bem sério para mim e disse: “Pai, quando tu morreres, quero o teu Quadrophenia em vinil”. Não me preocupei muito com este desejo post-mortem e, para ele não ficar interessado em antecipar nada, até poderia dar-lhe o álbum-duplo de presente. Let`s nor rush it, Dado.

Mas este não é meu assunto. Quase todos os CDs de música popular têm duas os três boas canções e o resto a gente apenas suporta. Por exemplo, com os Stones é assim; eles têm uns 4 discos em que conseguem superar esta média (Let it Bleed, Exile on Main Street, Sticky Fingers e Tatoo You?). Poucos artistas enfileiraram discos excepcionais: lembro dos Beatles, de Chico Buarque, do Led Zeppelin, The Who… Outros, produzem eventualmente tais raridades. Se forçasse, lembraria mais, certamente.

Todos aqueles que conhecem os discos dos Beatles sabem de sua estrutura. Em média, tínhamos cinco canções de Paul McCartney, cinco de John Lennon e duas de George Harrison. (Sim, as canções eram assinadas por Lennon e McCartney, mas todos sabem que raramente algum deles cantava uma música que não fosse de sua autoria. Assim, sabemos sempre quem foi o compositor.) Com tantos bons compositores em um mesmo grupo e com cada um deles gravando apenas o melhor de si, era difícil não criar uma obra-prima por ano. Porém, após a dissolução do grupo, as pessoas torceram o nariz para quase todos trabalhos individuais lançados por Paul, John e George. É óbvio: passando a divulgar dez ou doze canções por ano, da quais a metade nunca figuraria em discos dos Beatles, houve uma diluição.

Paul sempre foi combatido. Suas seqüências de canções açucaradas tornaram-se difíceis de engolir sem o contraponto salgado de John Lennon. Logo após a dissolução do grupo, McCartney apareceu com o duvidoso McCartney, onde havia… cinco canções muito boas. Lennon fez o maravilhoso (e curto) John Lennon and The Plastic Ono Band, que – apesar de ter sido recebido discretamente pelo público – fez algum sucesso de crítica com suas… cinco canções de primeira linha. Certa vez, Rafael Galvão fez um interessante levantamento sobre como seriam bons os próximos discos do grupo de Liverpool. Pegou, ano a ano após a separação, cinco boas músicas de Paul, cinco de Lennon e duas de George. O resultado foi espetacular. Isto é, através de um artifício inteligente, o Rafael fez os Beatles renascerem. Eles reviveram com grandes discos anuais e, se o Rafa tivesse algum tino comercial, venderia os trabalhos inéditos dos Beatles pós-separação… Mas houve a exceção: All Things Must Pass, o primeiro álbum-solo de George Harrison. Creio que é o único trabalho indiscutível, aquele que podemos chamar tranqüilamente de “um grande trabalho”, aquele que possui um volume inacreditável e coerente de boas canções.

Mas por que logo o terceiro beatle acabou por produzir o melhor disco individual? Ora, simples; o motivo é que a cota de Harrison estava mal calculada – ele crescera muito como compositor no período final dos Beatles – e o homem ficara com excelente material em suas gavetas. O álbum-duplo começa com duas músicas incompreensivelmente fracas, chatas até: I’d Have You Anytime e My Sweet Lord. A seguir, Harrison dá um verdadeiro show de competência com as extraordinárias Wah-Wah , a bela e triste Isn’t It A Pity (constrangedoramente semelhante a algumas composições do Oasis), a impossível de ouvir apenas uma vez What Is Life, If Not For You (de Bob Dylan), a raivosa Let It Down, a lenta Beware of Darkness, a inesperada The Ballad Of Sir Frankie Crisp (Let It Roll), a bobinha Apple Scruffs, a “realista” All Things Must Pass, a estranhamente feliz The Art Of Dying e a melodia inteligente (muito inteligente) de I Dig Love. Há outras mais fracas, mas que não chegam a prejudicar o efeito do conjunto.

Paro para consultar a internet. Alguns exagerados dizem que este seria o maior álbum de rock de todos os tempos. Não é. Porém, domingo à tarde, com os headphones a todo o volume, recordando o ano de 1971, quando tinha quatorze anos e ouvi All Things Must Pass pela primeira vez, foi.

Louco por Beethoven

Pois pensei ter ouvido as 32 Sonatas para Piano de Beethoven em dois dias. Foram mais de dez horas de música. Não indico tal empreitada a quem não conheça as sonatas, pois acho que a falta de convivência com elas pode causar uma massa de milhares de notas sem maior sentido. Por que fiz isso? Ora, Beethoven escreveu sonatas durante toda sua vida e pensei que seria interessante ouvir a evolução de sua linguagem através delas.

Foi uma boa idéia, não me arrependo. Para fazer a maratona, escolhi a versão do estupendo pianista ucraniano Emil Gilels (1916-1985), que gravou a quase integral para a Deutsche Grammophon. Fiz excelente escolha de pianista, mas… a versão de Gilels tem apenas 29 sonatas e as 15 Variações e Fuga sobre o tema de Prometeus da Eroica. Ele estava completando a série quando faleceu. Dei-me conta da incompletude da série quando notei a falta da transcedental Sonata Nº 32, Op. 111, sobre a qual tinha escrito aqui, referindo ao famoso capítulo 8 de Fausto de Mann. Para minha sorte, as outras duas sonatas faltantes acrescentariam pouco ao mosaico. Estão lá a nº 29, a imensa Hammerklavier — premiada pela revista Gramophone como a melhor gravação do ano de 1984 –, a Moonlight, a Patética, a Appassionata, a Waldstein, a 13ª e as últimas, com exceção da 32ª.

Gilels teve uma morte bem ao estilo da guerra fria. Já fora vítima de um ataque cardíaco em Amsterdam em 1981, mas o ocidente, auxiliado por Sviatoslav Richter, atribuiu sua morte a um médico incompetente do Hospital do Kremlin, que teria errado o conteúdo de uma injeção… Acredite quem quiser.

Para descrever a evolução do compositor através das sonatas seria preciso escrever um livro. Apesar de Beethoven ter morrido em 1827, sua evolução parece ultrapassar seu ano de morte: vem desde a virada do século XVIII para o XIX, impregnado que estava de seus contemporâneos de juventude: Haydn e Mozart; entra decidido no romantismo com obras fortes e grandiosas — expressão às vezes paroxística de um romantismo muito bem compreendido por sua época — e, paradoxalmente, avança em direção ao século XX, tornando-se modelo e norte para os compositores que o sucederam, ao menos até o início do século XX. “Entenderão depois”, dizia Beethoven a quem criticava esta fase “inacessível”. Torna-se um espantoso criador de arquiteturas que, se foram melhor apresentadas nos últimos quartetos, também o foram nas sonatas. Estamos diante de uma culminância da arte ocidental. Sim, o homem foi um monstro só comparável a Bach, deixando Brahms, Mozart e Bartók empatados no segundo lugar de meu panteão particular.

Gilels talvez tenha a melhor versão das sonatas. As clássicas versões de Arthur Schnabel e Wilhelm Kempf estão no mesmo patamar esta turma póstuma só é derrotada quando o italiano Maurizio Pollini — que não tem a integral delas — ataca as chamadas últimas sonatas e algumas românticas, como a Waldstein. Todos tem suas manias e eu não fujo à regra. Quando quero analisar um pianista tocando Beethoven, vou direto à Waldstein. Visceralmente romântica, radicalmente contrastante, obriga o pianista a passar da obsessão furiosa do primeiro movimento para a lenta solenidade do movimento central que dará lugar a um delicado final. Ninguém, mas ninguém supera Maurizio Pollini nestas variações assombrosas, talvez inconcebíveis, de humor. E a segunda melhor gravação que ouvi desta sonata vem de um irlandês que gravou uma importante integral das sonatas pela Telarc e do qual se fala muito pouco no Brasil: John O’Conor.

A Hammerklavier (Pianoforte) e a Op.111 de Pollini também são imbatíveis. Imaginem que Beethoven indicou que sua sonata Op. 106 tinha de ser tocada no piano, pois muitos ainda utilizavam o cravo!

Não conheço todas as integrais. Ouvi as citadas e mais a de Arrau, que não acrescenta muito. Vou parar por aqui porque me deu vontade de ouvir a Waldstein com o Pollini, ao vivo. Fui.

Flagrantes FLIP 2004 II – A noite que chamei Chico Buarque de bobão

Na última noite em que estaríamos na FLIP, sábado, marcamos um jantar no restaurante mais fino de Parati. Assim, faríamos uma despedida formal e provisória do grupo multiestadual, tendo como ganho secundário a chance de nos vingar de todas as refeições “mais ou menos” que fizemos na cidade.

Cheguei sozinho ao restaurante Porto. Todo mundo — incluindo meus amigos — parecia estar buscando encontros, autógrafos ou simplesmente olhar para Chico Buarque ou Paul Auster. Dois dias antes, a Claudia havia reservado uma mesa para 8 pessoas numa discreta saleta do restaurante. Posso jurar-lhes que ela falou o seguinte: marcando um jantar no melhor restaurante, no último dia e na sala mais escondida, tínhamos boas chances de cruzar com algum dos notáveis da FLIP… Assim que sentei, os donos do estabelecimento vieram falar comigo. Pensei que eles fossem comentaristas do meu blog, tal era a recepção que estava recebendo. Parecia um rei. Depois de alguns minutos, descobri o motivo real.

— Reservamos a mesa ao lado para o Chico Buarque. Talvez o Paul Auster também venha. O Chico pediu que sua presença aqui não fosse divulgada; gosta de tranqüilidade e já está a caminho.
— Sem problemas, só acho que ele vai demorar. Deve estar autografando Budapeste para uma fila que vai até o morro lá atrás.
— Não, ele não vai autografar livros hoje, está quase chegando.

Prometi formalmente que não deixaria nossas mulheres saltarem sobre ele; saltaria sozinho. A Claudia e a Stella chegaram e avisei-lhes que estaríamos na presença do semideus. Minutos depois, entra Chico Buarque acompanhado de sua filha (Sílvia?) e de amigos. Quando alguém se juntava a nós, era curioso apontar para a mesa ao lado e observar a cara de pasmo da criatura. O sangue errava de veia e se perdia, só podia. A mesma ficava balbuciando que estava atrás de um autógrafo e ele… aqui… Às vezes eu olhava rapidamente para a mesa ao lado e ficava pensando no que aquele homem já produzira e em como eu o admirava. Voltava a olhar para a frente e sentia falta de minha irmã — como ela adoraria estar naquele jantar! — e de gente como a Mônica do Crônicas e a Andréa do Literatus, que escreveram maravilhas sobre os 60 anos do músico e escritor. Veio-me também à lembrança uma frase bem prosaica de uma amiga, ouvida há muitos anos: “Meu Deus, se eu visse o Chico Buarque na rua, ele não ia nem ver de onde eu vim”. Achei graça.

O vinho que bebemos era positivamente espantoso – um Merlot argentino da Argento, penso eu – e isto fez com que ficássemos alegres, muito alegres. Bebemos muito. Calma, não aconteceu nada demais, apenas começamos a nos divertir, a contar casos e a rir muito alto. Acho que o ambiente, o vinho, a companhia aqui e ao lado, a FLIP, os livros sobre a mesa, Parati e a proximidade da despedida (provisória, repito) deixou-nos muito apressados para falar e felizes, felizes. Algo semelhante acontecia na mesa de Chico e, repentinamente, a conversa deles nos interessou.

Chico começou a elogiar Débora Secco. Em meio a gritos de seus amigos — todos falavam ao mesmo tempo — disse que ela era linda, maravilhosa, gostosa e tesuda. Onde esconder sua enorme euforia com a atriz? Os homens de sua mesa concordavam e teciam outros elogios, alguns de gênero merecidamente hardcore, enquanto as mulheres olhavam sorridentes esperando pacientemente aquela lamentável crise passar. Porém, havia uma exceção. Sua filha não parecia nada satisfeita com o que afirmava papai e, após muxoxos outros, disse no volume máximo:

– Pai, acho que você saiu direto da Idade do Lobo para a Idade do Bobo.

Todos riram, lá e aqui. Chico jogava o corpo para trás, descontrolado. E então aconteceu a piada. Ela não tem nada de engraçado, ainda mais por escrito. É uma piada de oportunidade, de bêbado, daquelas que quebram a expectativa e o leve nervosismo de estar… bem, com Chico Buarque. Enquanto ríamos do que dissera a filha, eu apontei indiferente o polegar para a mesa deles, voltei-me e disse reservadamente para nosso grupo:

– Bobão!

O curto veredito teve efeito excepcional. Foi uma explosão interminável de gargalhadas. Ainda vejo os rostos contorcidos da Eugênia, da Stella, da Laura, da Sue e da Ivone. E Chico, bobão que é, ficou olhando para nós, querendo adivinhar o motivo para tanta alegria. Era ele mesmo. Um companheiro de trabalho que acaba de ler este texto e é o melhor piadista que conheço, afirma que a piada é até engraçadinha, mas que pode tornar-se irresistível sob o efeito do vinho e da pseudo-irreverência diante da raríssima companhia de um gênio. Chico, meu guri, desculpe, a partir de agora você é nosso bobão.


Toda a vulgaridade de Débora Secco. Te perdoo por te traíres, Chico Bobão.

Flagrantes Flip 2004 I – A noite em que Mônica Salmaso me beijou

Porque a Camila Pavanelli escreveu esta maravilha, revisei e ressuscitei esta historinha escrita há cinco anos às pressas no Aeroporto de Guarulhos, antes do embarque de volta para Porto Alegre.

Poderia iniciar estes flashes pelo jantar perfeito que a Stella nos ofereceu assim que chegamos à São Paulo. Ou seria melhor começar pela noite em que chamei Chico Buarque de “bobão” (*) ? Ou talvez por algumas das palestras? Não, prefiro começar pelo beijo que ganhei de Mônica Salmaso.

Mas antes quero saudar a FLIP. Foi uma longa sessão de oxigenação, gentileza e bom humor. Havia eletricidade no ar. As palestras de Sérgio Sant`Anna + Luiz Vilela, a de Miguel Sousa Tavares (conhecido em Portugal por MST), a Oficina com Milton Hatoum e a palestra de Chico + Paul Auster foram esplêndidas. Conheci pessoalmente muitos blogueiros. Porém, perdi a chance de conhecer meu querido amigo Guiu Lamenha, cujo blog acabou em setembro. Falamo-nos ao telefone e nosso encontro deu errado por culpa minha.

Bom, vamos ao beijo de que tanto me orgulho. Descobrimos que Mônica Salmaso faria um recital com Paulo Bellinati na noite de quinta-feira, às 23h. O local seria o pequeno Paraty Café. Depois de um rápido jantar, fomos para lá. O local estava lotado, cheio, cheíssimo. Havia apenas duas mesas livres; uma para o grupo de Caetano Veloso, outra para o de Arnaldo Antunes. Não havia o que fazer. Porém, na porta estava o tradicional aglomerado de chorões suplicando ao porteiro:

— Não tem um lugarzinho? Nada? Nenhum? Fico em qualquer canto…
— Não! Agora só entrarão convidados da FLIP.

Dei umas voltas por ali com a Claudia, enquanto a Stella desistia e ia às compras. Estávamos quase conformados quando vi que o grupo de suplicantes da porta era encabeçado agora por 3 belas moças. Era nossa chance. Obviamente, aquelas entrariam depois de seduzirem o porteiro — ele já estava todo risonho… — e, quando elas entrassem, eu daria um jeito de entrar junto. Peguei a Claudia pela mão e fomos passando entre as pessoas até a porta. Estava num dilema, pois minha intenção era a de entabular conversação com uma das três moças, a mais bonita, a da frente, mas estava junto com a Claudia, que pode tornar-se ciumenta. Acho que ela entendeu meu plano e comecei a conversar com a desconhecida. A conversação com ela era tão fácil quanto observá-la e, pela forma com que o porteiro já estava seduzido por seus lábios vermelhos e carnudos, era iminente nosso ingresso. Ela suplicava para entrar. Entramos os cinco juntos, enquanto as moças davam abaninhos para o terrível e incorruptível Cérbero (que nos dizia todo feliz para ficarmos bem quietinhos em pé no balcão…).

Lá dentro, pedi para a Claudia falar com um carioca que tinha — não sei como — dois lugares livres em sua mesa. Ela se vingaria de mim e obteria importante ganho secundário. Ela começou dizendo que tínhamos vindo de longe, de Porto Alegre, aquele papo. Ele, outro risonho, perguntou para que time ela torcia e ela lhe respondeu que era gremista. Ele replicou bestamente dizendo que “detestava” colorados… Então ela, de forma muito temerária, declarou que seu marido era colorado e me apresentou ao homem. Ele deu uma risada dando-me os parabéns pela goleada que seu Botafogo tinha imposto ao meu Inter e nos cedeu o lugar. É claro que ficamos todos amigos. A cariocada é sensacional — todo mundo ali era amigo e o que todo mundo queria era a Mônica! Já instalado, telefonei para a Stella.

— Stella, eu e a Claudia estamos aqui dentro.
— Como é que é? Me esperem que eu já vou entrar!

Três minutos depois, sinto alguém tocando meu ombro. Era a Stella e, atrás dela, toda uma cambada. Com sua autoridade natural de psicanalista “holandesa e voadora” que tudo sabe, com seus 1,80m de altura, tinha dito ao porteiro:

— Estamos com o grupo de Milton Ribeiro. Ele nos está aguardando aí dentro.
— Estejam à vontade, senhoras. Entrem, por favor.

Disse-me ela que havia muitos Famosos Alguéns na cidade e que, afinal, eu era o famoso blogueiro Milton Ribeiro!

O recital começou. Meu Deus, toda a malandragem utilizada ganhou um sentido consistente. Que cantora, como ela cresce no palco, como fica bonita, que intérprete! Sem dúvida, é a maior cantora brasileira. Ficamos hipnotizados pela hora e meia daquele recital perfeito. Soubemos depois que servirá de base para um CD da Biscoito Fino.

Após o bis, resolvi comprar o único CD da Mônica que não possuía. Fiquei na fila de autógrafos e, quando chegou minha vez, achei muito longos os segundos ao pé da deusa. Fiquei angustiado, ela não parava de escrever a dedicatória no CD. Então, comecei a falar sobre os contrastes de sua maravilhosa interpretação de “Véspera de Natal” de Adoniran Barbosa, sobre o show, sobre determinada frase que começava pateticamente feliz e terminava pesadamente triste e como ela conseguira nos passar isso, etc. Na verdade, não lembro bem o que disse sobre a música de Adoniran (só lembro que estava inspirado, meus 7 leitores, muito inspirado), mas sei que ela parou, levantou os olhos lentamente para mim, abriu um sorrisão que quase me fez dobrar os joelhos e se dependurou no meu pescoço, dizendo “Você notou? Que lindinho que você é!”. Só depois do beijo estalado na bochecha e de muita conversa é que a musa acabou a dedicatória. Até agora estou nas nuvens.

(*) Esclarecimento Importante: Sábado, em Parati, nós jantamos numa mesa ao lado daquela em que estava Chico Buarque e seus amigos. Eu o chamei de “bobão” em resposta a uma observação feita em voz altíssima por sua filha. Só que minha resposta foi dada em voz baixíssima, só para nossa mesa. Quem sou eu para ofender Chico, mesmo que de brincadeira? No próximo post conto esta história de cabo a rabo, certo?

Sempre saudades de Elis Regina

Hoje, faz 27 anos que ela morreu.

Nasceu ali no IAPI. Dizem que brincava sob aquela figueira lá no fundo.

Depois virou “paulista por opção”, irritando aos tradicionalistas gaúchos. (E há algo melhor que irritá-los? Ainda mais a eles, que antes fingiam ignorá-la.)

Vontade de ouvir este disco.

Saudades desses dois.

Elis Regina Carvalho Costa – 17 de março de 1945 a 19 de janeiro de 1982, apenas.

Foi muito pouco.

Hugo Langone e Milton Ribeiro entrevistam Emma Kirkby

Não me invejem muito. Permaneço aquela criatura humilde de sempre. Leiam aqui. A publicação é da revista Pequena Morte.

Abaixo, o texto completo (tradução de Hugo Langone):

Desde a década de 1970, a soprano Emma Kirkby se destaca como um dos maiores expoentes da música erudita, principalmente no que diz respeito aos períodos renascentista e barroco. Com mais de cem gravações no currículo — dentre as quais se destacam as interpretações de Purcell, Buxtehude, Monteverdi, Dowland, Händel, Mozart e Haydn –, a inglesa foi incluída na lista da BBC Music Magazine que escolheu as vinte maiores sopranos de todos os tempos, e em novembro de 2000 recebeu as condecorações da Ordem do Império Britânico. Nesta entrevista, Emma nos conta um pouco sobre o seu processo de trabalho e sobre suas expectativas com relação à difusão da música antiga.

Entrevista concedida a Hugo Langone e Milton Ribeiro.

Emma, antes de mais nada, agradecemos pela sua disponibilidade. Você é considerada uma das maiores especialistas em música antiga. Como esse contato com a música primitiva modelou sua maneira de ver a música de hoje? Qual é o papel do pesquisador em música antiga, freqüentemente se encontrando entre o velho e seus ecos?

Bem, eu não sou nenhuma pesquisadora. Eu apenas tive a sorte de, com o passar dos anos, conhecer especialistas que disponibilizaram suas descobertas aos artistas que queriam interpretá-las. Hoje em dia as coisas estão mais acessíveis. A maioria das grandes bibliotecas disponibiliza seus acervos na internet, e, nas escolas e faculdades de música, os estudantes são incentivados a encontrar sozinhos um repertório que vá além do pequeno grupo de trabalhos que foram (mal ou bem) editados no século passado. Agora, então, nós podemos esperar que o ritmo cresça! Ainda assim, o musicólogo experiente continuará a ser importante, para acrescentar a essa atividade uma perspectiva histórica.

Como artista, você descobre o que for possível sobre uma obra, mas no final é necessário encontrar sua própria relação com ela. A música antiga lida com temas universais, e é preciso achar as suas imediações para partilhá-la com o público. Existem alguns terrenos em que me sinto à vontade (como nas canções inglesas de Dowland, Lawes e Purcell, por exemplo), mas apenas porque eu vivi neles por muitos anos; em outros, principalmente com relação aos compositores mais recentes — e que são mais novos para mim —, eu descubro tudo o que posso sobre o contexto da composição. Ao som do(s) instrumento(s) que me acompanha(m), encontro diversas informações, informações que esclarecem quase que por reflexo uma determinada resposta tonal. Nos textos em si, eu espero escutar a voz do tempo, mas também acredito que as primitivas leis da retórica ainda se aplicam de alguma forma.

A música pré-Bach tem um histórico de gravações muito menor do que os dos compositores românticos, por exemplo. De certo modo, os principais referenciais desta música estão se criando e se desenvolvendo agora, o que lhes garante certa “imortalidade”. Como um das principais expoentes na área, o que você teria a comentar?

A “imortalidade” conferida pelas gravações sempre foi uma faca de dois gumes! Mesmo com a edição, a gravação continua sendo apenas um retrato dos artistas naquele lugar, naquela semana. Além disso, principalmente no que diz respeito à voz, uma série de outros fatores podem estar envolvidos — e isso é carne e osso, em toda a sua fragilidade!

É bom saber que muita gente anda partilhando gravações, embora o cenário tenha ficado um pouco confuso. Pelo menos, é menos provável que as pessoas continuem procurando pelo Cálice Sagrado, pela Forma Perfeita de se apresentar uma obra, o que sempre foi uma loucura.

Hoje, qualquer um pode formar um respeitável acervo musical a partir de gravações encontradas na internet, e sobre elas o artista não obtém nenhum lucro. Isso inviabiliza aquele ideal de Gould de viver apenas de gravações? Ou o artista deve sempre dar concertos?

Na área em que atuo, a maioria das pessoas há muito tempo já desistiu de viver de direitos autorais. Eu não lamento muito porque a experiência de cantar ao vivo é inestimável e inimitável, resistindo a todas as tentativas de preservação, a não ser como o eco fraco de uma experiência transcendental. Isso acontece porque a música mora em um plano — ao mesmo tempo dentro e fora de nós — que não pode ser descrito com palavras, e onde nos sentimos em paz e à vontade. O caminho pode ser tortuoso, emocionante ou encantador. O que é vital, porém, é que isso é partilhado pelos ouvintes, ouvintes que, com a atenção dispensada, elevam o ambiente, saindo com um sentimento inexprimível em seus corações.

Você trabalhou com nomes importantes da música clássica, como a Academy of Ancient Music, a Freiburger Barockorchester, a London Baroque Orchestra, entre outros. Ao mesmo tempo, você parece se interessar pelos grupos mais novos. Por quê? Você acha que a música antiga finalmente se encontra onde deveria estar, ganhando espaço entre os novos músicos e os novos pesquisadores?

É claro que eu me interesso pelos grupos mais novos! Quem não se interessaria? Como você sugere, nos encontramos num momento muito propício para novas iniciativas. Eu tenho plena consciência de como tivemos sorte nas décadas de 1970 e 1980, quando as gravadoras e a BBC nos deram espaço. Além disso, sei também como éramos poucos, pelo menos se comparados ao abarrotado cenário atual. Porém, o vigor dos jovens ainda é, e sempre será, o grande atrativo para o público (e eles também ajudam a encorajar os patrocinadores!). E hoje também existem veículos que não existiam, principalmente a internet. Portanto, embora isso não seja de grande interesse para as massas, atualmente é muito mais fácil entrar em contato com aqueles que se interessam pelo repertório, onde quer que estejam.

Em 2007, eu [Milton] vi um recital seu em Buenos Aires. Foi uma experiência maravilhosa, tanto em termos auditivos quanto do repertório apresentado. Parece que os anos apenas lhe acrescentaram qualidades, mas minha pergunta é sobre a escolha do repertório. De onde surgem as “novidades”? Vêm apenas da pesquisa individual?

Durante todos esses anos, eu tive muita sorte de conhecer pessoas que são especialistas em musicologia e que disponibilizaram, com boa vontade, os resultados de suas pesquisas. O próprio Anthony Rooley transita entre esses dois mundos, reunindo uma atuação dinâmica e um faro esquisito para novos repertórios — que, aparentemente, são descobertos com rapidez nas ocasionais visitas que ele faz às bibliotecas! Como eu disse antes, hoje em dia as coisas estão mais acessíveis, mas ainda é necessário ter noção do que vale a pena ser ressuscitado!

Além disso, os velhos amigos são sempre os melhores! Purcell, Blow, Lawes, Dowland, Danyel, Coprario, Monteverdi… eu os conheço há décadas, e mesmo assim fico sempre emocionada ao revê-los.

Chico Buarque

Tinha 9 anos quando meu pai trouxe para casa o recém-lançado vinil “Chico Buarque de Hollanda”. Na capa, duas fotos de Chico – uma sorridente e outra sério – sobre fundo azul contínuo. Ali havia “A Banda”, “Olê Olá”, “Pedro Pedreiro”, “Você Não Ouviu”, “Tem Mais Samba”, “A Rita”, “Juca” e mais 5 músicas. Tal como os discos dos Beatles que ouvia com minha irmã, era um vinil de que se podia ouvir todas as canções. Não havia nada de segunda linha. Depois, continuamos a acompanhar a carreira de Chico comprando cada um de seus discos, até os italianos. Como muitos brasileiros, posso cantar muitíssimas músicas dele; faz parte da vida e da memória de nosso país e, quando meu pai faleceu, uma das poucas coisas que fiz questão de pegar foi este vinil.

Dia desses, vi numa comunidade do orkut pessoas escolhendo suas letras preferidas de Chico. É complicado — a audição ou leitura da obra de Chico mais parece antologia de grande autor do que obras completas –, são muitas letras notáveis e cada um só podia escolher três. A escolha passa necessariamente por nossas preferências pessoais e pelas idiossincrasias de cada um… Bem, eu meti a colher escolhendo “Eu te amo”, “Flor da Idade” e “Moto-contínuo”.

Depois, deitado em busca de sono, decidi que gostava mais da letra de “Moto-contínuo”. Em primeiro lugar por causa da perfeita combinação com a música de Edu Lobo, em segundo lugar por ser uma música sobre um assunto raro: a fé do homem e a fé no homem. Quem chamou minha atenção para esta letra foi meu amigo Alejandro Borche Casalas, pois, quando a ouvi pela primeira vez no vinil “Almanaque”, fiquei tão hipnotizado pela música de Edu que deixei de lado a letra, que pareceu-me confusamente dedicada a alguma musa de Chico… Engano crasso. Alejandro, num final de noite de 1982, perguntou-nos: sobre o que fala esta música? Não lembro de minha resposta nem das dos amigos. Lembro que ninguém disse que era sobre a fé. Como Alejandro é uruguaio, esclareceu-nos: é sobre a fê; disse assim mesmo: fê.

“Eu te amo” é uma escolha lírica e “Flor da Idade” é sua antítese; talvez seja a música mais sacana de Chico. Sacana no sentido de sacanagem mesmo.

Abaixo, transcrevo as letras de minhas preferidas para meus 7 leitores. Vocês concordam? Discordam?

Moto-Contínuo

Um homem pode ir ao fundo do fundo do fundo se for por você
Um homem pode tapar os buracos do mundo se for por você
Pode inventar qualquer mundo, como um vagabundo se for por você
Basta sonhar com você

Homem também pode amar e abraçar e afagar seu ofício
Porque vai habitar o edifício que fez pra você
E no aconchego da pele na pele, da carne na carne
Entender que o homem foi feito direito
Do jeito que é feito o prazer

Homem constrói sete usinas usando a energia
Que vem de você
Homem conduz a alegria que sai das turbinas
De volta a você
E cria o moto-contínuo da noite pro dia se for por você

E quando o homem já está de partida
Da curva da vida ele vê
Que o seu caminho não foi um caminho sozinho porque

Sabe que o homem vai fundo e vai fundo e vai fundo
se for por você.

Eu te amo

Ah, se já perdemos a noção da hora,
Se juntos já jogamos tudo fora,
Me conta agora como hei de partir?

Se, ao te conhecer, dei pra sonhar, fiz tantos desvarios,
Rompi com o mundo, queimei meus navios,
Me diz pra onde é que inda posso ir…

Se nós, nas travessuras das noites eternas,
Já confundimos tanto as nossas pernas,
Diz com que pernas eu devo seguir…

Se entornaste a nossa sorte pelo chão,
Se na bagunça do teu coração
Meu sangue errou de veia e se perdeu…

Como, se na desordem do armário embutido
Meu paletó enlaça o teu vestido
E o meu sapato inda pisa no teu…

Como, se nos amamos feito dois pagãos,
Teus seios inda estão nas minhas mãos,
Me explica com que cara eu vou sair?

Não, acho que estás te fazendo de tonta,
Te dei meus olhos pra tomares conta,
Agora conta como hei de partir…

Flor da Idade

A gente faz hora, faz fila na vila do meio dia
Pra ver Maria
A gente almoça e só se coça e se roça e só se vicia
A porta dela não tem tramela
A janela é sem gelosia
Nem desconfia
Ai, a primeira festa, a primeira fresta, o primeiro amor
Na hora certa, a casa aberta, o pijama aberto, a família
A armadilha
A mesa posta de peixe, deixa um cheirinho da sua filha
Ela vive parada no sucesso do rádio de pilha
Que maravilha
Ai, o primeiro copo, o primeiro corpo, o primeiro amor
Vê passar ela, como dança, balança, avança e recua
A gente sua
A roupa suja da cuja se lava no meio da rua
Despudorada, dada, à danada agrada andar seminua
E continua
Ai, a primeira dama, o primeiro drama, o primeiro amor
Carlos amava Dora que amava Lia que amava Léa que amava Paulo
Que amava Juca que amava Dora que amava Carlos que amava Dora
Que amava Rita que amava Dito que amava Rita que amava Dito que amava Rita que amava
Carlos amava Dora que amava Pedro que amava tanto que amava
a filha que amava Carlos que amava Dora que amava toda a quadrilha

11 de dezembro de 2008

Hoje, o compositor americano Elliott Carter completa 100 anos de vida. Escrevo este texto às 21h30 da noite de 10 de dezembro de 2008. Há 15 anos, mais ou menos neste horário, encontrei meu pai no Supermercado Zaffari da Av. Ipiranga, em Porto Alegre. Fiz o que sempre fazia com ele e ele comigo: dei-lhe um encontrão por trás e…

— Desculpe, senhor… Nossa! Pai! Tu aqui?

Conversamos sobre os CDs que ele comprara e que ouviríamos — um minuto por faixa, a toda velocidade — no dia seguinte, durante o almoço. Sempre almoçava lá aos sábados.

Às seis da madrugada daquele sábado, minha mãe ligou. Não gritava, apenas falava rápido parecendo que queria me acalmar. Disse que encontrara meu pai deitado no banheiro; não disse caído, disse deitado porque ele estava reto de costas, com a mão no peito, como se tivesse lentamente sentado no chão e depois deitado, esperando que a dor do enfarto passasse.

Quando cheguei em casa a equipe da Unimed, minha mãe e irmã cercavam o corpo. Ou não, acho que minha irmã chegou depois. O cara da Unimed me fez um sinal com o polegar para baixo. A mãe dizia que não o tinha visto sair da cama e que fizera tudo o que sabia: respiração boca a boca, pressão no peito, etc. Tratei de consolá-la. Fim.

Tive receio que Carter não chegasse ao fatídico 11 de dezembro, mas chegou. 100 anos! É incrível que esteja produzindo. Estreou 10 novas obras entre 2006 a 2008, dos 98 aos 100… Fantástico. No dia 8 de agosto passado, terminou uma peça para grande orquestra chamada Wind Rose. Suas obras são dificílimas, quase inviáveis. P.Q.P. Bach publicou seu Concerto para Piano e o Concerto para Orquestra. Talvez haja alguma homenagem hoje. Não consigo imaginar música mais complicada.

Espero um 11 de dezembro tranqüilo. Haverá concertos em Nova Iorque (onde Carter reside), Washington, Montreal, Amsterdam, Berlim, Helsinki, Viena, etc. e gostaria de saber se alguma publicação brasileira fará referência ao aniversário de Carter. Duvido muito. A conferir.