Uma fotografia amarelada que não vi

Sim, amarelada e ao fundo, atrás da mesa de trabalho do detetive Jaime Ramos, na sede da polícia da cidade do Porto, em Portugal, havia uma fotografia antiga. Qualquer torcedor do Porto reconheceria o sorriso do maior jogador de futebol nascido no Peru em todos os tempos e herói do clube português: Teófilo Cubillas. Enquanto leio Longe de Manaus, lembro da melhor escalação peruana: Rubiños; Campos, Fernández, Chumpitáz e Fuentes; Roberto Challe, “El Cabezón” Mifflin e Teófilo “Nene” Cubillas; Baylón (“Cholo” Sotil), Perico León e Gallardo.

Eu era uma criança e tal escalação era algo que ouvia como se fosse um poema. Não tinha muito contato com a língua espanhola e adorava a sonoridade de nomes como Chumpitáz, Roberto Challe, Mifflin, Hugo Sotil e do musical ataque de Baylón, Perico León e Gallardo. Porém, …

Falemos sério, o Peru não existe há décadas no mapa do futebol. Um grande time peruano nos parece mais inacreditável quanto um Uruguai candidato a algo grandioso, mas quando os anos 60 viravam em direção aos 70, a sonora seleção peruana era temida. Tinha grandes jogadores. Se Mifflin jogou no grande Santos de Pelé e Gallardo no Palmeiras campeão de 1967, houve dois supercraques que ganharam o mundo: Cubillas e “Cholo” Sotil. Sotil não interessa a esta crônica, mas mesmo assim vamos dar-lhe a chance de mostrar-se no Impedimento através de seu gol no espetacular Real Madrid 0 x 5 Barcelona na temporada de 73-74. O jogo ficou famosíssimo na época, o treinador da Barça era Rinus Michels, o maestro era Cruyff, o cruzamento é do próprio Johan e o narrador é catalão…

Teófilo Cubillas era uma espécie de sósia de Muhammad Ali e é lembrado por muitos como o maior jogador que já vestiu a “camisola” do FC Porto, do Alianza e da seleção peruana. Jogava na posição dos craques, fazendo a ligação entre o meio de campo e o ataque. Costumava driblar sempre para a frente e tinha um chute potentíssimo e certeiro. Fazia muitos gols. É o oitavo maior goleador em Copas do Mundo e, tendo jogado 905 partidas em sua carreira, marcou 526 gols, fazendo uma média de 0,58 gols por jogo (0,61 em seus tempos de Porto ou 72 gols em 118 jogos e ainda, pasmem, 0,77 gols por jogo em Copa do Mundo, o que o torna o maior goleador não-atacante das Copas). Não é, portanto, jogador para ser esquecido por torcida nenhuma.

Por isso é que o detetive Jaime Ramos, do excelente romance Longe de Manaus, de autoria do português Francisco José Viegas, tem uma foto amarelada dele em seu escritório, um antigo e insistente recorte de jornal mostrando os dentes brancos do sorriso de Teófilo Cubillas. Os fóruns de “adeptos” do FC Porto lastimam que não haja NENHUM GOL feito por Cubillas para o Porto no YouTube. E não há mesmo! Os que estão disponíveis com boa imagem são os seguintes.

Na Copa de 70 contra o Brasil:

A virada contra a Bulgária na Copa de 70 (Cubillas marca o 3 a 2):

Novamente contra o Brasil na Copa América de 1975, vencida pelo Peru:

Dois gols geniais no mesmo ângulo, contra a Escócia na Copa de 78:

O câncer no futebol peruano parece ter sido instalado naquele dia 21 de junho de 1978, quando a Argentina fez-lhes 6 x 0 num jogo pra lá de esquisito. Houve suborno? Estou certo que sim. O time peruano, de futebol vistoso e ofensivo, podia tomar 6 a 0 dos argentinos, mas nunca com aquela postura de Clemer cagado na Bombonera. Cubillas estava em campo. Ele e seus companheiros pareciam ter sido acometidos pela Síndrome de Bartleby: a bola vinha para o Peru e eles faziam como o personagem de Melville: I would prefer not to. O país ainda foi à Copa de 1982. Lá fez um fiasco e nunca mais. Tanto que hoje é o último colocado nas eliminatórias.

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Longe de Manaus, de Francisco José Viegas

A religião devia ser praticada em silêncio. Devia ser tão silenciosa como o vento nas florestas, apenas um rumor a chegar à atmosfera, uma fogueira crepitando lá, muito longe. É assim. Menos Deus, delegado, menos Deus. Para sermos melhores, precisamos de menos Deus, de menos crime, de menos assassinos, de menos mandamentos, de menos obrigações. E de mais cerveja barata, sem dúvida.

Delegado Osmar Santos, em Longe de Manaus

Faltam 12 páginas para eu acabar a leitura, mas, apesar do autor qualificá-lo como um “romance policial”, acho que posso ler depois as 12 faltantes das 462 páginas do livro. Porém, Longe de Manaus começa assim:

Um romance policial, como se sabe,
tem suas regras.
Este não tem.

Hum… Melhor ler as 12 páginas antes de continuar.

Voltei. Foi complicado conseguir Longe de Manaus. Num dia de 2005, a dona de uma livraria de Aveiro, O Navio de Espelhos, entrou em contato comigo a fim de obter permissão para entregar a seus clientes um mimo: meu pequeno conto O teclado onde pomos nossas mãos, que seria impresso pela livraria de forma artesanal. Em troca, pedi apenas duas coisas a Sónia Sequeira: que me enviasse uma versão do mimo e o romance Longe de Manaus, naquela época recém publicado. Esperei um ano e, antes de enviar um e-mail furibundo para Aveiro, terra de meus avós, fiz rápida pesquisa e descobri que a livraria tinha falido, provavelmente por culpa de meu conto. Esqueci a história e o livro. Depois, soube que Longe de Manaus fora lançado no Brasil pela Record, mas demorei a comprá-lo. Comprei-o há pouco e, em época de tantos arrependimentos, não me arrependo de tê-lo feito. O livro é bom pacas e deve ter merecido os prêmios (ou o prêmio) que ganhou em Portugal.

Tratar Longe de Manaus como um livro policial é uma redução. Guardadas as proporções, podemos resumir Os Irmãos Karamazov a um whodunit: “Quem matou o velho Fiódor?” Ou seja, ambos são policiais, mas também não são. Ou, escrevendo melhor, somos levados pelo que o romance tem de policial, mas o foco de interesse dos autores também é outro. Depois de um conflito bastante complexo e muito bem posto, Viegas e seu detetive Jaime Ramos vão nos apresentando pachorrentamente uma série de personagens construídos minuciosamente que têm em comum a distância geográfica, a língua e a solidão. Talvez a única exceção sejam Daniela e Helena, mas esta acaba assassinada e aquela só não parece mais solitária pela escancarada paixão com que o autor a trata.

Francisco José Viegas faz variações sobre o gênero estabelecido dos romances policiais. A primeira surpresa é que lemos um romance intimista onde as informações que fazem a trama ir à frente são largadas de forma casual — muitas vezes em digressões interessantes, mas que não parecem dizer respeito ao enredo –, formando um todo rarefeito. É curioso. Também seu detetive está fora da rotina: é um pequeno-burguês meio de saco cheio, louco para voltar para casa, abrir uma cerveja, dependendo desta acender um charuto, e ter uma conversa autista com Rosa. Mas não pensem que nas variações há vanguarda ou elaborado trabalho de linguagem. Não. É um romance clássico cheio de inventividade e charme. Também não pensem que ele está na categoria dos livros que parecem terem sido escritos para o passado. Sua amoralidade não deixa dúvidas que pertence ao tempo presente, assim como o fato de Viegas utilizar o “português brasileiro” e o “português português”, num livro que se passa em Angola, em Portugal e no Brasil.

Sim, apesar das diferenças ideológicas que mantenho com Viegas — que incluem sua trágica e ridícula preferência pelo FC do Porto, além de ele ter se equivocado sobre a qualidade do futebol de Rentería — indico fortemente a leitura deste vinho do Porto. Sem tônica, argh, por favor. (Piada misteriosa, só compreendida por quem leu o livro).

Obs.: De alguma maneira, esta resenha terá algum seguimento durante a semana no Impedimento. Motivo: a foto amarelada de Teófilo Cubillas no escritório de Jaime Ramos.

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Ah, as fotos de abertura do Diário Gauche…

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Anton Bruckner: Sinfonia Nº 9 – 2º Mvto (Scherzo, em duas partes)

O velhinho Günter Wand (1912-2002), aos 76 anos, dá aqui uma amostra de sua genialidade no Scherzo que o personagem de Erland Josephson em Sarabande, de Ingmar Bergman, ouvia com a cabeça entre duas imensas caixas de som. Wand é uma figura queridíssima dos aficionados da música erudita. Suas notáveis interpretações e sábias entrevistas — inteiramente livres daquele Complexo de Deus que aflige a 77,5% dos médicos (já vivi com uma que contraiu a doença), 75,3% dos advogados e 50,1% dos regentes — são referências de boas leituras e de compreensão do outro.

Sugiro a quem tiver acesso a exemplares antigos da revista Gramophone: procurem a entrevista de Wand onde ele fala de seu trabalho de adaptação às sinfonias de Mozart, Beethoven, Brahms e Bruckner. Realmente, o velho não sofria do citado Complexo. Dá-lhe, Wand!

Ou aqui.

Ou aqui.

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Porque hoje é sábado, Audrey Hepburn

As muito feias que me perdoem // Mas beleza é fundamental. É preciso

Que haja qualquer coisa de flor em tudo isso // Qualquer coisa de dança, qualquer coisa de haute couture

Em tudo isso (ou então // Que a mulher se socialize elegantemente em azul, como na República Popular Chinesa).

Não há meio-termo possível. É preciso // Que tudo isso seja belo. É preciso que súbito

Tenha-se a impressão de ver uma garça apenas pousada e que um rosto

Adquira de vez em quando essa cor só encontrável no terceiro minuto da aurora.

É preciso que tudo isso seja sem ser, mas que se reflita e desabroche

No olhar dos homens. É preciso, é absolutamente preciso

Que seja tudo belo e inesperado. É preciso que umas pálpebras cerradas

Lembrem um verso de Éluard e que se acaricie nuns braços

Alguma coisa além da carne: que se os toque // Como no âmbar de uma tarde. Ah, deixai-me dizer-vos

Que é preciso que a mulher que ali está como a corola ante o pássaro

Seja bela ou tenha pelo menos um rosto que lembre um templo e

Seja leve como um resto de nuvem: mas que seja uma nuvem

Com olhos e nádegas. Nádegas é importantíssimo. Olhos então

Nem se fala, que olhe com certa maldade inocente. Uma boca // Fresca (nunca úmida!) é também de extrema pertinência.

É preciso que as extremidades sejam magras; que uns ossos

Despontem, sobretudo a rótula no cruzar das pernas, e as pontas pélvicas

No enlaçar de uma cintura semovente. // Gravíssimo é porém o problema das saboneteiras: uma mulher sem saboneteiras

É como um rio sem pontes. Indispensável.

Texto: fragmento inicial do poema Receita de Mulher, de Vinícius de Moraes.

Dedicatória: Porque eu SEMPRE CONCORDO com o Cristóvão Feil, dedico este PHES ao notável blog Diário Gauche — talvez o único que leio TODOS OS DIAS –, que publicou em sua sempre mutante abertura a primeira foto deste post.

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A Cordialidade Desnecessária & A Salvação por Clint Eastwood

Por uma questão de “teologia e simetria”, como diria o grande escritor e gozador John Kennedy Toole, Clint Eastwood fez da cena final de Gran Torino uma grande exceção em sua carreira. É seu último filme como ator. Menos pior que segue diretor.

Faz algum tempo, o escritor português Francisco José Viegas escreveu em seu blog:

O ressentimento apoderou-se da blogosfera nos últimos tempos sob a máscara do debate. Não, não é que deva existir um debate «frouxo», inócuo — falo dos termos do debate. Mas, como tenho dito várias vezes, longe de mim tentar propor «um tom», seja lá isso o que for, uma espécie de norma bem-educada de dizer as coisas. Às vezes, basta ler os adjectivos — quando não há nome (designação, pessoa, outro, coisa) que não tenha um adjectivo por perto. Evidentemente que o «ressentimento» é outra coisa, uma espécie de marca da cultura oficial contemporânea. Por exemplo: todo o texto que nos é estranho passa por ser a manifestação de um pecado original; os outros transportam sempre um vírus. Nesses casos, até o riso é feito de ressentimento. E o ressentimento está ligado à vigilância permanente, às comparações abusivas, ao controle à distância, ao patrulhamento ideológico. E se não está, é meio caminho.

Em meu blog, com raras exceções, o debate tem sido leve e tranquilo. Porém, noto ranço em várias outras plagas virtuais. Uma vez, há uns quatro anos, escrevi um post sobre a Rádio da Universidade que foi distribuído entre professores do Instituto de Artes e profissionais da rádio. Nunca li tantas ofensas! Quanta descortesia e ressentimento, ainda mais que eu flagrantemente conhecia a rádio, conhecia música e tinha razão. Depois daquilo, a rádio mudou. Claro, não sou santo, fiz analogias que queria engraçadas, mas que certamente soaram agressivas por lá. Poderia desculpar-me de meus excessos se o pessoal da rádio se manifestasse com calma. A discordância permaneceria. Será que também entrei no jogo?

Este tema pode ser expandido para fora do mundo dos blogues. De forma geral, a vida está muito “gritada”. Podem ser gritos literais ou podem ser insistências cujo efeito é o mesmo. Ontem, um vendedor de seguros me telefonou e, após apresentar-se, procurou vender seu produto. Tratei de explicar com simplicidade que já tenho seguro para o carro, para a saúde, para a vida, para a morte e não desejava pagar outro. (Não usei estas palavras, fui gentil.) Isto provocou o sarcasmo do vendedor Vinícius, que me felicitou por ser tão feliz e não precisar de nada. (Na verdade eu preciso de tudo).

Outro exemplo: no final de semana, fui a uma “comemoração” na qual houve discussões sobre futebol que ultrapassaram os limites do objeto da controvérsia. Rapidamente, um gremista estava chamando de palhaço um colorado. Eu peguei meu copo de cerveja e dei meia volta. Eles que se matassem.

Porém à noite assisti à uma entrevista de Clint Eastwood na TV (Actor`s Studio). Foram duas horas de uma pessoa encantadora, alegre, inteligente e fundamentalmente inteira (*)! Fiquei engolindo cada palavra com a certeza de que meu objetivo de velhice seria o de tornar-me um cara parecido, em humor, com ele. Meu filho Bernardo também ficou cativado pelo homem Clint Eastwood.

(*) Pessoa inteira: jargão da área psi. Trata-se de uma pessoa centrada, mas não auto-centrada ou em faixa própria. Alguém que possui uma trajetória com um conceito, com uma essência que o apóia. Pessoa de ética inabalável, tolerante e que não pula de galho em galho. Simplificando, o “inteiro” é o mesmo em qualquer circunstância, não diz uma coisa e faz outra, nem tem duas caras.

O comentário de Charlles Campos merece vir para o post:

Há alguns anos, deprimido diante ao que me afigurava ser um constante fracasso emocional, escrevi alguns cartázes de urgência com a frase”Jamais, em qualquer ocasião, magoe as pessoas!”, e afixei em pontos estratégicos pela casa. Quando retornei, ao final da tarde, encontrei-os empilhados sobre a estante, e imaginei que a moça da limpeza deveria ter sentido um constrangimento quase igual ao meu por não saber onde colocar aqueles frutos do meu esquecimento. Uma das histórias dolorosamente inesquecíveis e redentoras do meu avô, que ele a contava sempre à atenção dos constantes pedidos da família, foi quando, em uma de suas idas da fazenda à cidade, parou sua caminhoneta para auxiliar um homem que se encontrava com o carro danificado ao lado, na estrada de chão. Meu avô não se lembra que peça sobressalente de sua caminhoneta ele dispôs para sanar o avario do veículo, ele só se lembra da para sempre incompreensível resposta que deu quando o desconhecido lhe perguntou quanto havia sido a ajuda, e meu avô respondeu:”Uns dez reais e morre o assunto”. Como haveria de ser, um mês depois, meu avô se viu com o pneu do carro retalhado, em uma estrada de terra de pouquíssimo movimento, sozinho e sem macaco sob o sol a pino… e quem aparece? Para-lhe do lado aquele mesmo desconhecido, com um sorriso cordial e uma disposição de erguer o carro com os braços, se fosse preciso. Mas não foi; ele retirou seus acessórios do porta malas, trocou o pneu de aro espesso e trabalhoso, detectou que se perdera um dos parafusos e usou um dos seus. No final, diante o homem suado e sujo de terra, meu avô profere aquela já por ele intuída sentença de condenação:”quanto foi?”, ao que o homem responde:”ô compadre!, coisas assim a gente não cobra não. Somos um pelo outro.” Foi a maior vergonha da vida de meu avô, ele contava. Ele nunca desejou tanto um tapa na cara. Imagino que, numa escala continental, ele se sentiu como a companhia imperial inglesa diante todos aqueles indianos seminus sentados em posição de lotus e não reagentes, que conseguiram a independência nacional através de uma arma inédita na història: o constrangimento do lado que detêm o poder, pela súbita consciência explícita da desarrazoada desproporção do uso do poder.

Esse não é um assunto superficial, e é uma surpresa encontrá-lo em seu blog logo cedo ao acordar. Minha preocupação constante continua sendo o de não magoar as pessoas com o que digo, por várias razões. Piegas dizer isto? É; mas não sei dizê-lo de uma forma menos convencional, menos lyaluftiniana. Ao mesmo tempo, acho salutar expressar o pensamento, com toda a afronta a enorme tendência ao senso comum que nos domina, com seu poder de atração quase irrefutável. Por isto a surpresa de, após um noite de insônia diante o micro, aterrorizado diante o passeio alucinógino por tantos endereços cheios de pretensões, vaidades, inocuidade de espírito e de intelecto, com “ensaios” literários atravessados em colunas opressivas de propaganda de varejo e últimas novidades tecnológicas (textos que sempre me lembram aqueles coitados sentados em pleno centro urbano, com um colete amarelo no qual se lê ”Compra-se Ouro”), retorno ao seu espaço e vejo essa confluência cigana de medos intimamente arraigados sobre fúria, necessidade de calma, e ainda a necessidade da crença desesperada na palavra.

Vou ter um filho daqui a quatro meses, o que me faz temerosamente feliz. E a maior lição que prevejo pela frente, a passar para ele, é o exercício salutar e superestimadamente sofrível de engolir sapos, e ao mesmo tempo incentivá-lo ao contato com mortos ilustres que nunca fizeram outra coisa senão expulsar anuros a grito. Ensina-lo que a gentileza possui uma estética muito sui generis, às vezes não tão catártica quanto acompanhar aos berros “God Save the Queen” dos Sex Pistols, mas mais verdadeira e compensadora na hora de saber o valor de favores desabnegados e aceitar o dedo em riste no trânsito até que se desgaste por total inapetência a vontade onanística de matar. Por que, no primeiríssimo momento que precede à reação, nós somos uns serezinhos cruéis. Mas só nesse enorme e libidinoso momento inicial.

Para terminar, uma lembrança de uma grande palestra do Joseph Bródski ( no livro de ensaios “Menos que Um”), que versa sobre a interpretação do dito “ofereça a outra face”. Bródski diz que ignora-se, a maioria das vezes, o que vem depois neste vaticínio, que é: “e se alguém lhe solicita acompanhá-lo por uma jarda,vá com ele mais cem”. e cita o exemplo de um prisioneiro de um gulag, que, oprimido por um guarda à tarefa inócua de remover um monturo de pedras de um lado para outro do pátio da prisão, o faz inúmeras vezes, durante um dia e uma noite inteiras, durante muito mais tempo que o guarda levou para se humanizar e olhar aquilo como o reflexo de seu brutal constrangimento.

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Passei a vida procurando a mulher de físico perfeito…

… e finalmente encontrei a mulher com o melhor físico do mundo:

P.S.: Olha o sapato do Beto!

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Cortando o cabelo com o Sr. Renato

Luiz corta seu cabelo no mesmo lugar há décadas. Hoje, porém, entrou no primeiro barbeiro que encontrou e que lhe pareceu agradável: um antigo e tradicional local no centro de Porto Alegre com o incrível nome de Salão Elegante.

Mal tinha adentrado o enorme recinto — um verdadeiro salão — extremamente simples e um senhor parou a sua frente, com a mão estendida:

— Sou Renato — cumprimentou — e estou inteiramente a seu dispor.

Após apertar-lhe a mão, Renato fez uma série de salamaleques servis que Luiz achou risíveis. O barbeiro tinha por volta de 65 anos e cara de vovô bondoso. Luiz notou que a função com ele seria lenta, lentíssima, e que não adiantaria nada dizer “Estou com pressa, meu amigo”. Era uma questão de estilo. Começou a observar e a admirar seus antiquados gestos rituais. Ficou fascinado com a forma com que o Sr. Renato pegava as tesouras e testava-as no ar antes de qualquer corte. Lembrou-se de uma cena do filme de Luchino Visconti, Morte em Veneza: aquela em que Dirk Bogarde (no papel de Aschenbach) faz a barba pensando apaixonadamente no menino Tadzio. Luiz tinha relaxado na cadeira e entrara no clima do filme, tanto que o Adagietto da 5ª Sinfonia de Mahler — trilha sonora do filme — começava a ser executado em sua memória, acrescido de um interessante sono pós-prandial. Foi quando o Sr. Renato atalhou:

— O Sr. não vai deixar de ler a última Playboy, né?

Abriu os olhos e deu de cara com a grande bunda de uma mulher.

Já vira aquele latifúndio dotado de duas belas coxilhas saracoteando na TV e em fotos. Certamente fotoxopadas. Um heterossexual mais truculento diria que um anjo macho soara o alarme a fim de tirar-lhe às pressas — e de forma competente — daquele devaneio homossexual entre Aschenbach e Tadzio. Luiz até pensou em dizer ao Sr. Renato que verdadeiramente não estava com vontade de ver o traseiro de nenhuma mulher naquele momento, mas sabia, desde que se conhecia por gente, da existência de um código masculino que o obrigava a uma vulgaridade e taradice sem tréguas, sob pena de ser apontado como “aquele gay que teve nojo da mulher da capa da Playboy”. As mulheres apreciam homens sensíveis, mas colegas de sexo não podem ficar desapontados. Luiz não cometeria deslizes, não poderia voltar-se para o respeitável Sr. Renato e dizer-lhe:

— Meu amigo, estava fantasiando com um filme de Visconti que descreve a paixão de um compositor no final de sua vida por um menino belíssimo. Amo este filme e, de olhos fechados, já estava ouvindo sua trilha sonora quando o Sr. me veio com a bunda dessa gostosa. Guarde a revista!

Ou será que poderia usar esta alternativa?

— Ihhh, cansei de comer esta mulher.

Ou:

— Minha esposa está vindo aí. Deixa pra lá.

O fato é que, obedientemente, pegou a revista e começou a folheá-la, enquanto a 5ª seguia tocando mesmo fora de seu habitat.

— Tem uns artigos ótimos aí. Bons para um dia de chuva.

Arrã, então Luiz já sabia a que se dedicava o respeitável Sr. Renato em dias de chuva…

— Mas o Sr. oferece esta revista por causa dos artigos? -– perguntou Luiz.

— É claro, há as mulheres também; veja a capa, é uma bonita moça, quem não gosta? — respondeu o respeitável Renato –, mas o principal são os artigos. Eu só leio os artigos.

Claro. Luiz olhou para o chão e viu uma pilha de mais ou menos duzentas Playboys. Quantos artigos não haveria ali? Eram dignos de serem catalogados por assunto. Como o Sr. Renato faria suas consultas?

Ironicamente, um artigo lhe interessou verdadeiramente e Luiz seguiu lendo a Playboy até o fim. Ficou na dúvida entre devolvê-la ou não acompanhada de uma observação hardcore quando, rápido como um raio, ouviu o barbeiro trovejar:

– E esta aqui é a do mês passado!

Enquanto folheava a segunda revista, sorria ironicamente à imagem de Aschenbach morrendo serenamente no Lido, com o olhar posto em Tadzio. E dormiu.

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Sibelius: Valsa Triste

Esta animação do filme Allegro non troppo (Música e Fantasia) (1977), de Bruno Bozzetto, é uma obra-prima. Para os browsers rebeldes: aqui.

E aqui (ou abaixo), uma versão da Valsa Triste com melhor qualidade de som.

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Amor

Quando eu era criança, costumava fechar a porta do meu quarto para narrar futebol em voz alta com maior liberdade. Minha irmã me enchia o saco, dizendo para eu parar de inventar aquilo. Narrava jogos espetaculares onde o Inter vingava-se de todas as humilhações que o Grêmio nos submetia naqueles anos 60. Era uma vida interior movimentada, que fazia minha garganta doer pelo esforço de gritar tantos gols. Também sonhava com jogos, escrevia escalações, contratava jogadores inatingíveis – muitas vezes era um deles — e fazia cálculos, anotando num caderno vermelho todos os jogos dos campeonatos que o Inter participava. Era uma coisa meio demente, ainda mais num tempo em que o Campeonato Gaúcho valia alguma coisa e em que o Grêmio havia vencido 12 dos últimos 13. Era uma tragédia ter 11 anos naquele 1968 que terminaria com o AI-5. Mas tinha certeza que os anos me fariam melhorar. Minha mãe também.

É, mas não mudou muito. É um grave defeito de fabricação. Vocês não me pegarão mais aos berros no meu quarto – ainda mais se estiver acompanhado –, mas minha vida interior, quando não estou submetido a estresse, inclui aquele momento em que passo a pensar no próximo jogo, na próxima escalação e, ainda, nas próximas jogadas. Entro no elevador e de repente vejo D`Alessandro pisando na bola, retardando o ataque… Aquilo me irrita e já saio do elevador preocupado. No dia seguinte, acordo e de cara levantam uma bola em nossa área. Sandro salva e partimos para um contra-ataque com Taison e Nilmar: gol certo enquanto escovo os dentes.

Acho que há pessoas que pensam em dinheiro e mulheres o tempo inteiro — eu até perco muito tempo também nisso –, mas a vida interior do torcedor de futebol é um pouco diferente. Claro que todo este interesse está associado a um clube que amamos e que, por definição, é mais importante do que todos os outros. E quando este clube tem um inimigo, este será o mais odioso e horrendo – e sifilítico e purulento e idiota e filha da puta e a nossa cara. Sim, acabo de descrever sucintamente o Grêmio.

E então este clube faz cem anos, contingência inevitável para quem, mesmo endividado, não morre e a gente fica todo bobo, achando que o dia 4 de abril nos oferecerá vales onde correm o leite e o mel, com 11.000 virgens amorosas vertendo Baileys das tetas. Confesso que balancei quando meu sobrinho me convidou para ir ao jantar do centenário, mas recuei ao saber que custava R$ 200,00. Também não me entusiasmei pelos tais fogos — quase sempre fecho minhas noites de sextas-feiras em cinemas –, mas achei legal a coisa da caminhada até o Beira-rio no sábado, a tal Marcha do Centenário.

Fiquei indignado quando um pessoal aí, os quais são indiscutivelmente os maiores representantes das torcidas gaúchas (preciso indicar a ironia?), convidaram o prefeito gremista para a caminhada e ameaçaram até com a Yeda. Céus, que gente mais sem noção! Para que misturar a mais simples das comemorações – a procissão de colorados do incerto local onde o clube foi fundado até o Beira-Rio – com mais uma tentativa desesperada de manter a troca de favores com o poder? E eles seriam retaliados, vaiados, precisariam de seguranças. Nosso momento cívico ficaria uma merda.

Sim, eu disse cívico, pois colorado é o que sou. Se habito fisicamente a Rua Gaurama, tenho uma segunda vida com endereço aqui; se tenho um telefone, também tenho e-mail; se sou Suda de modo geral, sou especificamente brasileiro; se tenho o futebol em minha vida interior — assim como tenho a Gaurama, o blog, o número do telefone, o endereço de e-mail, a Suda e o Brasil — esta se foca repetida e especificamente para o Inter. O Inter e seus grandes times moram em mim, completam um século neste sábado e é fato dos mais dignos de celebração que eu possa imaginar, mesmo que tenha achado todos os outros centenários (principalmente aquele) manifestações ridículas e sentimentalóides, sem intersecção com nosso centenário. Não tinha pensado nisso, mas devo me comover na caminhada. Afinal, ninguém consegue ser crítico de si mesmo e o Inter, sei, sou eu.

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Visitantes

Sou um detetive particular brasileiro. Aqui, nosso trabalho não é aquele de ficar sentado numa saleta enfumaçada, interrogando elegantemente uma bela mulher sob luz amarelada, adornada por um lento ventilador de teto. Aqui, acostumamo-nos a apenas ouvir ligações dos outros. Só saio de casa para projetar e instalar grampos e olhe lá. No Brasil, nosso trabalho foi rebaixado ao de ouvinte. Trabalhamos para políticos, empresas, esposas e maridos. Violência, na minha vida, é apenas a moral. Colocamos os fones de ouvidos e ouvimos o que nos contam os arquivos sonoros. É chato, mas pagam razoavelmente. Eu sempre trabalho meio bêbado, com um copo de Bailey`s a meu lado. Eu não o tomo como licor, mas à irlandesa: com gelo e em boa quantidade. É o correto. Apesar de gelado, lembra o líquido do seio materno. Aquece.

Quando comecei, há décadas, mantinha uma pequena nota numas páginas amarelas aí — Décio Marques, investigador particular e um número de telefone. Hoje, sou conhecido, não preciso mais de propaganda, tenho muito trabalho. Gravo 30 ou 40 horas por dia de besteiras. É claro que não ouço a metade. Em 15 segundos, decido se a conversa interessa ou não e, se achar que é abobrinha, pulo para a próxima. Mesmo assim, os resultados são bons, os clientes gostam de meu trabalho e de minha discrição.

A maioria daqueles que me descobrem são maridos e esposas. Num final de tarde, recebi uma ligação curiosa. A moça estava muito agitada.

— Acabo de voltar de uma viagem e tem gente aqui em casa.
— Sim. E quem são?
— Eu não vi, mas está tudo bagunçado. Minha casa foi deixada limpa, com tudo em seu lugar.
— De onde a Sra. fala?
— Daqui do apartamento.
— A senhora deveria retirar-se imediatamente e ligar para a Brigada Militar, telefone 190.

Nada de interessante. Depois de uma hora, nova ligação. Era ela.

— Olha, vieram uns PM`s aqui e disseram que o apartamento está vazio, mas quero descobrir quem pode ter invadido.

Tanta foi a insistência que fui. O apartamento era de alta classe média. Muito bonito. Olhei rapidamente para a moça. Tinha marido? Não. Como não ia ficar olhando os móveis, as pinturas, o tamanho da sala, limitei-me a dizer que o prédio me parecia seguro. Ela negou veementemente. Olhei-a nos olhos fazendo questão de demonstrar não estar impressionado com o apartamento que era também organizadíssimo.

Então ela me mostrou a cozinha. A pia parecia uma instalação da Bienal: uma montanha de panelas, copos, pratos e talheres. Tudo sujíssimo e bem recente. Molho de tomate à beça. Nenhuma podridão. Comecei a fazer-lhe perguntas sobre quem tinha suas chaves, mas, por deformação profissional, já planejava silenciosamente alguns grampos. Em meio à conversa, comecei inadvertidamente a lavar a louça. Estava acostumado, não gostava de acumular na pia coisas que se tornavam malcheirosas ao amanhecer. Ela não reclamou nem fez menção de me impedir.

No outro dia, nova ligação. No seguinte, também. E sempre a montanha na pia. Aquilo parecia A Montanha Mágica: enorme, de abordagem cuidadosa e todo dia eu parecia voltar ao mesmo ponto. Tornou-se um hábito tão arraigado que eu já nem esperava ser chamado. Ia direto.

Hoje, ouço lá meus arquivos de áudio. Além dos políticos de sempre, suas amigas (e amigos) são meus clientes. Todos sabem de minha profissão, mas nem sonham que já investiguei alguns deles. Houve um marido que me pagou para acompanhar a esposa; dez dias depois ela me pediu o mesmo em relação ao marido. Que remédio, fiz os dois trabalhos. Perguntei à Daniela o que deveria revelar e se ela achava adequado mantê-los juntos. Acabei produzindo uma peça de ficção cor-de-rosa e mantive o casal junto. Pus algum contorno erótico na mulher, mas garanti-o como coisa irrealizada; no outro relatório, escrevi que o homem era adito de uma secretária no passado, porém ele nunca quisera abandonar a esposa e a família.

A aventura com a “secretina” — como a mulher referia-se à vagabunda –, era o motivo do desinteresse do marido por minha contratante. Por outro lado, ela se contentava, como a Madonna. Meus emolumentos vieram acompanhados de suspiros de alívio, ambos crédulos de suas respectivas espertezas.

Temos 3 filhos: Sarah, Iaron e o Junior. Nunca comprei um lava-louças automático. A pia ainda é minha. Levo uma vida sossegada de reprodutor extinto. Estou enfadado do trabalho, durmo muito ouvindo as gravações de políticos. Um paga, o outro recebe, tudo sempre igual. Meu Bailey´s fica aguado, o que é detestável.

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De um conhecido blogueiro, ontem, no MSN:

Rapaz, se eu falar que bati punheta pra sogra do Mick Jagger, vão dizer que eu tenho 108 anos!!!

Ao lado, Vera Gimenez, mãe de Luciana. O não referido blogueiro deve estar lá pelos 42 ou 43 anos… Em minha defesa (?), posso dizer que não lembro ter homenageado a dama que ornamenta este fundamental post. Aliás, Vera Gimenez era atriz, jurada de programa, modelo, atriz-pornô…? Não sei qual era sua faixa de atuação. Mas a expressão “sogra do Mick Jagger” é apavorante e me faz pensar num Keith Richards piorado…

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Cinzas do Norte, de Milton Hatoum

Cinzas do Norte foi o vencedor do Prêmio Jabuti como o melhor romance de 2005. Não discordarei do prêmio e nem poderia, pois não conheço nem um quinto da produção brasileira do ano passado. Mas é óbvio que o Jabuti agora se agarra ao livro como uma grife, dizendo a todos: é coisa boa.

E, no começo, não me decepcionei. A leitura fluiu rápida, levada por um autor de entonação clássica e tranqüila. Nos intervalos da leitura, pensava sobre como a devoção de Hatoum à Guimarães Rosa – confessada num curso que ele ministrou em Parati durante a Flip 2004 – não possui nenhuma repercussão em sua literatura. Sem problemas, quase todos os autores gostam de Kafka. o que não significa que seus projetos literários tenham algo a ver com o tcheco. Porém, mesmo assim, é surpreendente que Hatoum seja tão “clássico”. Cinzas do Norte tem uma estrutura em tudo semelhante a de O Tempo e o Vento, de Erico Verissimo, com os capítulos numerados da história sendo interrompidos contrapontiscamente por outros não numerados, escritos em itálico e que contam uma história complementar.

O romance é ambicioso: narra a amizade entre Raimundo (Mundo) e Olavo (Lavo); aquele, filho de um poderoso e provinciano empresário de Manaus, este – que é também o narrador do romance -, um órfão criado pela tia costureira e pelo tio, digamos, aproveitador e sedutor. Mundo tem personalidade de artista, mas seu pai (Jano) é ostensivamente hostil a seus desenhos, quadros e idéias. Há ecos da extraordinária novela de Thomas Mann Tonio Kroeger na formação de Mundo como pintor. Jano prefere Lavo que, apesar da amizade com Mundo, está destinado a uma vida tranqüila como advogado em Manaus. Mundo – seu apelido é significativo – é o personagem que quebra a precária estrutura familiar, como o Bazarov de Pais e Filhos. O mérito de Hatoum está no contar uma boa história ligando elementos díspares como a truculência de Jano e da Revolução de 1964 massacrando um artista nascente, a tensão entre estabilidade (Lavo, Jano, Ramira, Arana) e instabilidade (Mundo, Alícia, o tio Ranulfo), entre amar ou deixar o país e, principalmente, entre espera ou evasão, entre rebeldia e conformismo. Os personagens são construídos lentamente, vão tomando corpo em meio a um tema nada fácil e Hatoum nos leva com grande segurança até quase o final – li o livro absolutamente apaixonado -, quando, num momento de desatino, dá um inexplicável tiro no pé!

Ignoro o que levou Hatoum a mexicanizar o final do romance. Como se estivesse possuído por um escritor inglês do século XVIII – não me refiro a Sterne, é claro -, ele resolve, em 30 páginas, amarrar todos os laços soltos da história. Faz questão de explicar e dar destino a tudo e a todos. Eu preferiria não saber sobre a paternidade de Mundo; aquela incerteza apenas sugerida era elegante, convinha à história como conveio a Machado não dizer quem era o pai do Ezequiel de Capitu. Porém, meu xará tem um ataque parecido com os que tinham alguns autores de TV e, analogamente aos montes de casamentos que ocorriam nos finais das novelas antigas, apresenta-nos um caminhão de novidades que não acrescentam nada ao romance e que quase o estragam. Como já disse, as explicações sobre a paternidade são desnecessárias e o é mais ainda a exposição do sofrimento de Alícia, com direito a copiosas lágrimas e a cenas melodramáticas como a destruição dos quadros do filho.

Melhor ficar com o resto do livro e é isto que estou fazendo. Como o personagem de Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças, vou apagar o final de meu cérebro e pensar que Cinzas do Norte é – e é mesmo! – um belo romance sobre a amizade, a rebeldia, a destruição e a truculência. Nem lembro mais do tiro no pé.

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Shostakovich: Sinfonia Nº 10 (2º Mvto: Allegro, 3º Mvto: Fragmento do Allegretto )

A grande imprensa brasileira parece proibida de tecer observações elogiosas a quaisquer aspectos da Venezuela, mas tal preconceito não é de nenhuma forma seguido pelos europeus. Lá, Hugo Chávez é apenas eventualmente o outro nome de Satanás e a Orquestra Jovem Simón Bolivar da Venezuela tem recebido enorme atenção de alemães, ingleses e espanhóis. Por exemplo, a filmagem acima ocorreu no Royal Albert Hall de Londres, no exato dia em que eu completava 50 anos, em 19 de agosto de 2007.

Mas aí você me pergunta: o que é esta orquestra, quem é o rapaz que a rege? A Simón Bolivar é a orquestra líder de outras 120 orquestras de jovens venezuelanos. Trata-se de um programa chamado El Sistema, criado em 1975 pelo maestro José Antonio Abreu e que viabiliza a educação musical às crianças mais pobres do país. Ou seja, há milhares de jovens em torno dos 150 músicos da Simón Bolivar. Mais exatamente 250.000. São pessoas que nunca saberiam da música que trazem em si não fora o El Sistema apoiado pelo diabo. Atualmente, a orquestra grava para a Deutsche Grammophon e já há venezuelanos vencendo concursos na Orquestra Filarmônica de Berlim e em outros conjuntos europeus. E Gustavo Dudamel? É um espetacular talento de 27 anos que Claudio Abbado saúda como o novo Bernstein. Ele acaba de ser contratado como regente titular da Filarmônica de Los Angeles, mas não abandonará a Simón Bolivar.

Ontem, Zero Hora publicou um artigo em seu Caderno de Cultura, porém esqueceu-se de Chávez. É estranho, pois trata-se de um projeto importantíssimo de inclusão cultural que é inteiramente bancado pelo governo da Venezuela. Se é mais antigo que Chávez, este soube avaliá-lo e acelerá-lo. E pasmem: será copiado na Inglaterra. ZH diz que o será também no Rio Grande do Sul… Na Venezuela, ele salva crianças a um custo de 30 milhões de dólares anuais. Uma bagatela. São 120 dólares por criança ao ano, 10 ao mês. Apenas R$ 25,00 por criança.

A música. A Sinfonia Nº 10 é a primeira que Dmitri Shostakovich escreveu logo após a morte de Stálin. O Allegro acima seria um retrato da violência do grande desafeto do compositor. Shosta nunca negou. O furacão Dudamel sai-se maravilhosamente. Já o Alegretto que o sucede (tela abaixo) é gentil e apresenta pela primeira vez uma assinatura do autor. Aos 3min35, há um solo de trompa — que, se não me engano, é repetido mais três vezes — cujas notas, em notação alemã, são D-S-C-H… (em alemão, Dmitri Schostakovich). Ou seja, Stálin morreu, mas eu estou vivo. É música de primeiríssima linha, cheia de alusões e intenções, muito complexa e inteiramente inadequada a uma orquestra despreparada.

Sigam com o início do Allegretto, 3º movimento da décima de Shostakovich. É coisa de gênio. O resto pode-se encontrar no Youtube ou em mp3: aqui na versão de Kondrashin e aqui na de Mravinsky.

Obs.: Quem tiver browsers rebeldes deve clicar aqui para assistir a primeira parte e aqui para a segunda.

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Encontramos a bebida de Benjamin Button

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Pequeno manual prático de coisas inúteis, de Theo G. Alves

Li vários livros lançados por blogueiros e ex-blogueiros. Alguns são muito fracos e, é claro, há os médios e os bons. Os melhores que li foram os de Branco Leone e Theo Alves. O último é morador da pequena Currais Novos, no Rio Grande do Norte. O primeiro livro que li de sua autoria foi A Casa Miúda. Formado por narrativas curtas, na verdade pequenos poemas em prosa — a referência  ao título de Baudelaire é proposital –, são condensadas e de tal modo significativas que fariam a alegria de Pound.

Não pensem que vou me despedir sem que vocês leiam o Theo. Vou publicar amostras de suas pequenas narrativas. Pedi permissão a ele para digitar três ou quatro de seus contos com a finalidade de que meus sete fiéis leitores tomassem contato. (Não pedi permissao para os poemas…!). Escolhi-os quase ao acaso, pois na verdade marquei quase todas as histórias para reler. Poderia ter copiado o belo e triste Pássaros mortos ou Destes caminhos; talvez A história de Cido Marinheiro, ou quem sabe maravilhoso A primeira vez que vi Eva, mas elegi os que estão abaixo.

E agora Theo lança um livro de poemas: Pequeno manual prático de coisas inúteis. OK, nada mais inútil do que a ficção e a poesia. OK, nada mais humano do que a gloriosa necessidade de ficção, de ilusão e de novos e desconhecidos (ou reconhecidos) mundos. É inútil por ser destituída de valor prático tangível, porém… Entre o irônico, o surpreendente e o desencantado, Theo Alves realiza…

Porém quem sabe eu paro de encher o saco de vocês e mostro um pouco do Theo? Os contos e poemas são curtos, fáceis de digitar. Ah, só mais uma coisa. Eu pus contos e poemas alternados porque creio que estes aí dialogam mais ou menos claramente.

Meu silêncio é Gregor Samsa

Não posso pensar no silêncio em que me encontro sem que recorde a imagem amedrontada e perdida, confusa de Gregor Samsa a dormir gente e acordar-se besouro na palavra virtuosa de Kafka.

É para mim dificílimo crer que algum de nós não tenha, em um dia sequer, ainda em uma hora absurda, se encontrado diante do espelho a rodar de costas ao chão, sem que a couraça duríssima nos permitisse virarmo-nos e pormo-nos em pé.

Pois este silêncio que me toma é o olhar de Gregor Samsa. Ponho-me diante do espelho e estou estranho a tudo: a esta aparência que carrego invariavelmente desde que nasci, a este quarto insólito por onde me entregam os pratos de comida que nem mesmo como, a esta voz surda e horrenda que se fez em minha garganta.

Sou estes dias de silêncio. Meu silêncio é Gregor Samsa.

A necessidade de encontrar um caminho que não sei onde começa, o movimento em falso, a distância que tantas vezes me golpeia no ventre, a distância de mim e dos meus: isto é meu silêncio, estas madrugadas inteiras a não lançar sobre os papéis uma palavra fértil sequer. A voz séssil, ainda que momentaneamente, ainda que dêem a esse calar absurdo o nome delicado e inteligente de “hiato”.

Não é hiato. Não é fenda. Nem abismo. É silêncio. Assustador e asqueroso como Gregor Samsa e, como ele, ainda vivo e amedrontado, essencialmente humano.

De A Casa Miúda

Um besouro

quando samsa
acordou-se besouro
a carapaça colada ao chão
era seu inferno

um bom deus
teria dado também
um escudo à consciência
do homem feito bicho

quando samsa
acordasse besouro
não pensaria no medo
ou noutras coisas inúteis

Do Pequeno manual prático de coisas inúteis

Da fé

Quando começamos a nos organizar em hordas e a percorrer as terras no início dos tempos, logo depois de aprendermos a magia do fogo, quando não nos tratávamos mesmo por nome algum, testemunhamos então a primeira morte de um de nossos homens.

Ao vê-lo imóvel, deitado sobre seu braço, ao fim dos dois dias em que descansávamos e comíamos sob arvores esparsas, retomamos a trilha deixando o primeiro de nosso mortos na mesma posição em que ele não se acordara.

Caminhamos por algumas horas até que um de nós, talvez o mais jovem, retornou ao acampamento abandonado empunhando um pequeno lume sob a luz pegajosa do dia e o deixou ao lado de nosso primeiro morto.

Apenas hoje, tantos anos depois daquele dia fatídico, é que volto a recordar seu gesto e compreendo que o fogo posto ao lado do corpo abandonado era uma esperança de que Deus — o Deus em que nenhum de nós havia pensado ainda — pudesse enxergá-lo, mesmo sob o peso daquelas noites sem lua.

De A Casa Miúda

A Memória

a memória —
perfumaria da alma —
e suas pequenas inutilidades
pesam constantemente
sobre as vigas frágeis
do corpo

a maldição da memória
reinventa o tempo —
que já não carece ser
inventado —
e torna amargo
qualquer sabor pueril

apenas o tempo —
nem outra coisa —
é menos útil que
uma lembrança precisa

Do Pequeno manual prático de coisas inúteis

Dos reencontros e de Cabíria

Pensei que aquelas noites com Cabíria se haviam perdido no tempo e noutros puteiros baratos.

Mas a surpresa de reencontrá-las, de rever antigos movimentos, de reencontrar toda a gente e a escuridão dos becos de Currais Novo, sempre inacreditavelmente lindos às três da manhã, foi de um amargor doloroso ainda que delicadamente belo.

Troppo belli, delicatto.

Quando se decide ir embora, voltar é o pior castigo. E, quando voltei para casa, trazendo um par ou dois de fracassos bem sólidos na mochila, senti ainda uma alegria hesitante de rever as ruas antigas, o tempo antigo, a vida que deixei alinhavada nas esquinas e em alguns bares minúsculos, ainda que merecedores de grandes honras.

Reencontro minha cidade e meu tempo. A cidade a que chamo costumeiramente Macondo é hoje a minha Cabíria, a minha puta que amava o amor, como em Fellini.

De A Casa Miúda

Instruções para reconstruir um homem

juntar os
cacos de um homem
não refaz
um homem inteiro

há sempre
um caco de homem perdido
excerto de
um homem inteiro

mas os
cacos amealhados
refazem mais que
um homem inteiro:

um homem refeito
e um caco a mais de esperança

Do Pequeno manual prático de coisas inúteis

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Dormir / Acordar

Dormir é a melhor coisa deste mundo. Nem leitura, nem diversão, nem uma boa mesa, nada se compara. Sexo então é fichinha perto. É um momento de magia quando você, só cansaço, cansaço da pesada, deita o seu corpo e a sua cabeça numa cama e num travesseiro. Ensaio, prosa, poesia, modernidade, tudo isso vai para o brejo quando você escorrega gostosamente da vigília para o sono. É o nirvana!

Raduan Nassar

Acordar, Viver

Como acordar sem sofrimento?
Recomeçar sem horror?
O sono transportou-me
àquele reino onde não existe vida
e eu quedo inerte sem paixão.

Como repetir, dia seguinte após dia seguinte,
a fábula inconclusa,
suportar a semelhança das coisas ásperas
de amanhã com as coisas ásperas de hoje?

Como proteger-me das feridas
que rasga em mim o acontecimento,
qualquer acontecimento
que lembra a Terra e sua púrpura
demente?
E mais aquela ferida que me inflijo
a cada hora, algoz
do inocente que não sou?

Ninguém responde, a vida é pétrea.

Carlos Drummond de Andrade

Eu concordo com Drummond de segunda a sexta, e com Nassar no fim de semana. Fico meio aterrorizado com as coisas a fazer dos dias úteis, então durmo e acordo meio no susto. Prazer é no fim de semana, e o sinto tanto ao acordar como ao escorregar para o sono. Tenho sorte: desconheço a insônia.

-=-=-=-=-=-=-

Dia desses, eu estava conversando sobre música com uma violinista chinesa de Xiamen. Pelo MSN, claro. Ela é uma pessoa muito séria.

Então, Fang Liu pediu para ver uma foto minha. Eu mandei a foto abaixo. Ela ficou absolutamente enternecida, mas não pela filha do Idelber, a Laurinha…

É que ela pensou que no Brasil nós comêssemos com pauzinhos (chopsticks)…

Me deu o maior trabalho explicar-lhe que nós não os utilizávamos e, pior ainda, que eu não sabia usá-los, mas que estava ensinando à Laura.

— Se você ensina, como pode não saber?

Fang, caríssima, não posso explicar.

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A Provocação de Glenn Gould

Quem é intolerante a respeito de música não faz jus a seu aparelho auditivo. E quem não tem capacidade de reflexão e descoberta não deveria usar a palavra “arte”.

Este post é dedicado ao autor da afirmativa acima, Tiago Casagrande, e a Gilberto Agostinho.

Antigamente, a música — mesmo a mais grandiosa — era utilizada como pano de fundo para jantares e comemorações. Para nós é difícil conceber isto, mas a música de Vivaldi, por exemplo, era ouvida sob o provavelmente alegre som de comensais italianos alcoolizados… Excetuando-se os saraus privados, o único local onde podia-se ouvir música em silêncio era nas igrejas. O ritual de deslocar-se até uma sala de concertos a fim de ouvir e ver silenciosamente a performance de orquestras, cantores e recitalistas é relativamente recente – começou há uns 150 anos. Sob uma forma mais barulhenta, a música popular aderiu a este ritual no século XX, porém hoje seus concertos visam mais a celebração do artista do que a finalidades “expressivas” ou “interpretativas”. Alguns radicais, como o extraordinário pianista canadense Glenn Gould (1932-1982) – cujas interpretações de Bach são até hoje difíceis de superar – trilharam o caminho inverso chegando ao extremo de abandonar suas carreiras de concertistas por não acreditarem mais que o formato de concertos e shows fosse aceitável quando comparado às vantagens oferecidas pelos estúdios de gravação. Não obstante o abandono dos holofotes e dos aplausos — em seu caso sempre entusiásticos –, Gould seguiu pianista e continuou produzindo discos cada vez melhores; mesmo sem ter marcado um mísero concerto em seus 27(!) últimos anos de vida.

Glenn Gould acreditava que a tecnologia oferecida pelos estúdios o colocava mais próximo de seu ideal artístico, que colocava a técnica pianística em segundo plano. Apesar de ser um instrumentista absolutamente preciso e hábil, a impressão mais forte que temos ao ouvi-lo não é a do virtuosismo, mas a da expressividade. Com ele, pode-se ouvir a música. Gould pensava que existia somente uma interpretação perfeita de cada obra e que esta só poderia ser obtida em estúdio com auxílio da tecnologia.

A verdade é que as gravações revolucionaram inteiramente nossa abordagem à música. Em menos de um século, passamos do sarau ao CD, fomos do amadorismo afetuoso e comovedor de nossas residências (que bom se pudéssemos voltar no tempo, não?) ao sampler. Vejamos como:

1877: Thomas Edison constrói e dá nome ao primeiro fonógrafo, um aparelho que registra e reproduz sons, utilizando um cilindro de parafina.

1888: O disco envernizado substitui o cilindro de Edison.

1925: Aparece o primeiro toca-discos elétrico, que funcionava com discos de 78 rpm. Um movimento – cheio de chiados – de uma sonata de Beethoven poderia ocupar vários discos… Meu pai tinha o Op. 111 do compositor alemão em 8 discos ou 16 lados de discos 78 rpm!

1940: O acetato e o verniz começam a ser substituídos pela fita magnética.

1948: Surge o LP, que podia receber até 30 minutos de música (uma sinfonia de Mozart!) de cada lado. Todos os discos de 78 rotações deveriam ser jogados fora. (Este é outro assunto…)

1958: O som estereofônico torna obsoletas as gravações anteriores, feitas em mono. Chegou a vez de jogar fora tudo o que não era estéreo.

1965: A fita cassete ameaça o disco, mas não o vence.

1979: Aparecem as fitas digitais (DAT) com som semelhante ao do CD; isto é, muito mais claras do que tudo o que já havia surgido antes.

1983: Chega o CD, mais uma vez desvalorizando todas as outras gravações realizadas em outros meios.

Gould falava em quão recente era a supostamente eterna tradição das salas de concerto e ridicularizava vários de seus aspectos. Por que haveria de ser necessário alguém atravessar a cidade — talvez com chuva ou sem a vestimenta adequada –, para ir sentar-se, com hora marcada, em cadeiras normalmente piores do que as de nossas casas, a fim de ouvir o mesmo velho e conhecido repertório tocado com acompanhamento de sussurros e tosses? Segundo ele, a única coisa que mantinha viva a tradição dos concertos era a oligarquia do mundo dos negócios musicais, acrescida do que Glenn Gould chamava de “uma afetuosa, ainda que às vezes frustrante, característica humana: a relutância em aceitar as conseqüências de uma nova tecnologia.”

Eu, modestamente, adoro ir a concertos. Amo aquela celebração dedicada aos músicos e à música; mas concordo com Gould em muitas coisas. É complicado sair de casa para ver, muitas vezes, concertos constrangedoramente inferiores àquilo que temos em nossa discoteca. Outra coisa triste é o conservadorismo do repertório apresentado: principalmente no Brasil, considera-se que estejamos eternamente “educando o público para a música erudita”. Com este argumento, as orquestras obtém o aval para apresentarem somente o mainstream do repertório. (Há as exceções, mas são raras…) Enquanto isto, o LP e o CD abriram um leque de opções que mudaram nosso conhecimento musical. Obras extraordinárias puderam voltar a fazer parte de nossa cultura, grande parte da música de câmara (música escrita para pequenos grupos de instrumentistas) e da música antiga, inadequadas para as grandes salas, voltaram através dos discos.

Houve uma importante alteração na maneira de tocar a música e, por conseguinte, de ouvi-la e compreendê-la. Uma vez que, no estúdio, os músicos não tinham mais de preencher os grandes espaços das salas de concerto com som, todo o processo de fazer música passou a colocar mais ênfase na clareza e beleza do fraseado. Os microfones que fizessem o resto! Os antigos instrumentos – de som mais fraco – retornaram à vida e surgiram as gravações com interpretações históricas, utilizando instrumentos de época, que respeitam a dinâmica e a forma original das obras.

Peço agora que vocês, meus prezados 7 leitores, leiam principalmente a segunda observação abaixo. Ao final dela, vocês entenderão o motivo pelo qual este texto acaba (ou não acaba) tão bruscamente.

Observação:

— A maior parte dos argumentos aqui colocados livremente estão sistematizados no livro de Otto Friedrich Glenn Gould: A Life and Variations.

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Chama um táxi?

Os principais órgãos da imprensa gaúcha, sempre indo ao cerne das questões, divulgam com grande destaque a mais nova aquisição do Sport Club Internacional. Sim, um ônibus. O site do clube teve o bom gosto de ainda não estampar fotos da geringonça abaixo. Mas deve ser algo muito importante. Afinal, avizinha-se o Campeonato Brasileiro e ele, o ônibus, deverá ser muito utilizado no translado até o aeroporto.

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Meio século de pretensão

Meus parabéns! E então chegas aos cinquenta anos e é apenas mais uma data. A Idade da Razão já está instalada há tantos anos que fica difícil encontrar coisas a comemorar que não sejam o novo cargo, o novo carro, a nova e sonhada situação adquirida sem refletir em los muertos de tu felicidad. Sempre buscaste o conforto e agora o tens sob várias formas, não obstante a antipatia dos circunstantes, dos filhos e o silêncio dos velhos amigos. Nunca demonstraste grande vontade de te sacrificares por alguém — mesmo tua participação política dava-se em bares, era anteação, talvez anteteórica –, mas a súbita adoção de um amor extremado pela privacidade, pela autoproteção, pela furiosa e agressiva resolução de teus problemas pessoais, surpreendeu a muitíssima gente. Sim, todos nós temos de nos adaptar aos fatos da vida mesmo sendo eles desagradáveis e avessos a nossos ideais, porém a coerência gera limites, principalmente para alguém que costumava expressar-se tanto.

Tua Idade da Razão é o medo do desconhecido e o sintoma mais aparente é teu desconforto por teres eliminado de tua vida uma das mais gloriosas e dignas necessidades humanas: a aventura da amizade. Sim, à exceção de velhos amigos, não aparece mais ninguém interessante, não acontece nada de novo. É curioso como conseguiste te encalacrar. Qual foi a última vez que alguém, digamos, na faixa dos 30 anos, te convidou para uma conversa? Quando ocorreu de um jovem repentinamente chegar à conclusão de que tinha absolutamente de conversar contigo e fez um convite para um café mais ou menos urgente? As viagens te dão autêntica satisfação, mas mesmo isso é um subproduto que roubas de teu trabalho. E os novos amigos que encontras nos congressos devem ser decepcionantes e iguais, pois quem não pode mais aquilo, fica com quem pode o mesmo isso. Achas hoje que a nova geração é feita de idiotas, que não vale a pena dar-lhes atenção, que tens perfeito bom senso e tratas de evitar os desvios daqueles que se encontram em tua zona de influência à base de berros e pressões, pois não podes conversar muito, há que ter tempo para coisas mais importantes, tais como cuidar das articulações políticas de teu trabalho, dos novos tratamentos de rejuvenescimento, da hora do médico e ainda ir ao shopping, único local que consideras seguro. Dia desses, ficaste feliz ao ver que os seguranças pediam educada e repetidamente a um senhor que, por favor, fizesse o obséquio de não correr nos corredores — um pediu aqui, outro mais adiante (este chegou a ir ao meio do corredor para cruzar com o homem, que respondeu “Estou atrasado para o cinema”, mas que obedeceu passando à marcha atlética porque temia ser detido por uma advertência mais longa. E tu pensaste “É verdade, quem corre é vagabundo, neste shopping pode-se vir”).

E, enfim, teu isolamento acabou te trazendo de volta a ti. E, olha, tu não és pessoa a ser deixada a sós sem maiores dores, coisas passam a acontecer, paranóias se criam de quase nada e melhor não pensar muito. Inventas enfermidades, te examinas com o olhar crítico de quem deveria viver para todo o sempre, ficas com receio das atitudes amalucadas dos filhos e, como não tens tempo para eles e trata-os isonomicamente, isto é, também aos gritos, eles aprenderam a te enganar com mentiras. “Vou aqui”, mas vão lá; “Estou fazendo isso”, quando na verdade farão aquilo. É a escola diária da mentira; eles sabem que, se forem francos, darão de cabeça na tua absoluta falta de negociação, na tua completa alienação de como eles vivem. Então para ti é mais fácil proibir. Pois gostas desta palavra: há coisas que devem ser proibidas e é uma sorte que teu novo amor fale tão pouco. Teus filhos não falam contigo nem quando encontram uma vestimenta íntima perdida na sala… É uma piada que fazem fora de casa. Não queres brigar com a vida que te dá conforto material, deste modo, preferes ouvir fatos concretos – mesmo que falsos. De invenção bastam as paranóias e as doenças, essas inevitabilidades.

50 anos. 50 anos e tu simplesmente te desarticulaste. Sim, não te faltam as qualidades de alguém centrado, autocentrado, em faixa própria, de ética, tolerância e solidariedade adaptáveis, que não pula de galho em galho, pois tens galho próprio e privativo, dissociado do ser fumante e usuário de drogas leves que foste, que apenas lembra de sua existência nos anos 70 e 80 quando Caetano cantava e que hoje vê sua posição pretensamente intelectual atacada quando o ser silencioso te constrange. A criatura pichadora e comunista hoje só quer vestir coisas chiques e muiiiito caras, prenhes de grifes, com o caimento que só uma grife dá. Ainda ouves Van der Graaf, aquele horror? Quanta pretensão. Parece que esta apenas faz crescer. Esse meio século de pretensão comprovam a terceira acepção da palavra: afã, ambição, anelo, apetite, aspiração, avidez, sofreguidão.

Hoje tua fala é afirmar que não estás do lado da classe dominante, mas “que nem todos à direita estão errados”; é asseverar que é preciso “ouvir as pessoas”, mas não que não se deve cair, em hipótese alguma, na liberalidade perigosa; é garantir que não és moralista, mas que julgas; é jurar que não escondes nada, mas que algumas intromissões e perguntas passam dos limites… Piadas. Por falar em piadas, vamos a uma.

Politicamente funcionas como um homem branco, machista, neoliberal, de retórica potente, autoritária e invasiva, que arranjou alguém que comporta-se como uma mulherzinha burra para te acompanhar. Tua grande Olenka (*) particular funciona adequadamente? Já sabe de todas as tuas preocupações? Angustia-se junto? Parabéns, Kukin-Pustovalov-Smirnin! E quando tua companhia leu aquele e-mail que comprovava irrefutavelmente o fato do homem não ter ido à Lua? Tu e Pustovalov não perderam tempo para fazer-lhe mudar rapidamente de idéia, não? “Nunca mais repita uma bobagem dessas!!!”. Engraçado, rimos muito.

Mas preciso finalizar, é tarde. Tua existência surpreende, repentinamente deixaste de pensar nas igualdades do mundo, deixando-as apenas para os discursos, tão considerados quanto os de José Dirceu. Se dizem que perder uma ilusão torna-nos mais sábios, o que dizer de alguém que perdeu todas? O desconcertante é que tal fato não te trouxe a serenidade que dizem ser uma das qualidades da sabedoria. Pobre de ti. Deixar tudo, arrepender-se não implicaria necessariamente nas ações de ímpeto e má consciência — que te comprazes em fazer — típicas de quem foi enganado e precisa vingar-se. Ou talvez faças isso para externar a felicidade de, finalmente, poderes agir autenticamente: sem te dares àquele trabalhão de teus anos jovens de ter de dissociar tudo o que pensavas do que dizias. Finalmente o autêntico está bem perto de ti, é só eliminar o que vem antes do mas. O resto é tu.

(*) Personagem de um conto de Anton Tchékhov que pode ser lido no link acima.

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