Rabelais: o politicamente incorreto que distorcia o mundo a fim de dissecá-lo

Tudo começa com um descomunal banquete. A Primeira Lei de Farinatti é respeitada: “Antes faça mal que vá fora”. A recusa está fora de questão. Gargamelle, mulher de Grandgousier, mastiga tripas de boi até explodir – e come tanto que acaba por parir seus próprios intestinos. Então, com apenas dois orifícios disponíveis, as duas orelhas, dá luz ao Gargântua, pai de Pantagruel, ambos memoráveis glutões.

Gargântua (1534) e Pantagruel (1532) fizeram a fama do respeitado e erudito médico e clérigo François Rabelais (ca. 1490-1553). Ele fez do grotesco e do escatológico uma das mais originais e radicais obras humanistas do final do Renascimento. De seus livros saiu um adjetivo em língua portuguesa, pantagruélico – adj. relativo a Pantagruel, personagem caricatural de um romance de Rabelais, o qual se singulariza por ser amante da boa mesa e do bom vinho. / Abundante em comidas e bebidas. Entre a devoção e o temor a Cristo de sua época, que alternativamente explorava a elegância dos temas clássicos e mitológicos — argh! — Rabelais foi ao encontro da cultura popular e do “mau gosto” a fim de satirizar seus pares.

Há um celebérrimo estudo, A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais, do teórico russo Mikhail Bakhtin, que trata da influência das fontes populares nos livros mais famosos de Rabelais. Desde seu lançamento em 1965, a obra é referência para quem se dedica à história do riso e à cultura popular. Pois o riso e sua penetração merecem ser muito estudados.

A literatura chegou tarde à vida de Rabelais. Foi franciscano – o que já é bastante engraçado – e depois beneditino. Deslocou seus interesses para a ciência-irmã medicina. Tornou-se médico. A literatura veio provavelmente como forma de sustento e logo passou a ser forma de ataque. Em Pantagruel atacava o academicismo da época. E a educação de Gargântua foi esmeradíssima, ele só frequentou os escolásticos, podia recitar obras de cor e salteado, o que não evitou que se tornasse “um idiota, palerma, distraído e bobo”. O autor também era um admirador do caráter laico da Reforma Protestante. Claro que seus livros, grandes sucessos, foram proibidos.

Como todo o verdadeiro humorista, Rabelais não era um mero palhaço. Suas críiticas eram sérias. Durante o Iluminismo, houve muita discussão acerca de sua importância. Em nossos dias, além do ensaio de Bakhtin, houve outro, de Lucien Febvre que conjeturava acerca de um provável ateísmo – coisa em que não acredito. De qualquer modo, a exploração da hipérbole e a distorção do mundo foi-nos mostrada pela primeira vez sob uma forma que é usada até hoje por humoristas, escritores e compositores inteligentes (Shostakovich é um grande rabelaisiano): como uma forma de decompor e recompor o mundo, como uma forma de observar sua anatomia e dissecá-lo.

Rabelais realmente “tirava profiteroles das indulgências”. Como? Olha, há muito que pensar a respeito.

Gargântua tinha que se alimentar, pois não?

Uma metáfora fora do lugar?

Quem sou eu para criticar Aleksandr Sokúrov, o novo mestre do cinema russo, continuador — segundo nove entre dez capas de DVDs — de Eisenstein e Tarkovski?, pergunta Milton Ribeiro antes de criticá-lo. Pois uma coisa em Sonata para Viola, filme que Sokúrov dedicou à memória e vida de Dmitri Shostakovich, me incomoda muito. Na cena final, o cineasta mostra alternadamente Leonard Bernstein e Yevgeny Mravinsky regendo o último movimento da 5ª Sinfonia de Shosta. A diferença é enorme. Bernstein dá um andamento rápido e literalmente se escabela, entusiasmado, frente à orquestra. A coisa toda é heróica. Já Mravinsky apenas indica o tempo, um tempo bem mais arrastado que o do americano. Parece, e é, fúnebre. O significado é óbvio: a liberdade e a alegria X a opressão e a tristeza. Porém, é justo aí que estão dois problemas: (1) Mravinsky é um regente tão grande quanto Bernstein foi e sua desqualificação artística é absolutamente imerecida e (2) Mravinsky interpreta o Allegro non troppo da 5ª Sinfonia rigorosamente dentro daquilo que foi solicitado por… Shostakovich, na época um amigo seu. Era música fúnebre mesmo. Claro que Sokúrov deve ter mil explicações para ter finalizado seu filme desta forma, mas, para mim, o grande problema de Sonata para Viola é sua metáfora final.

Volver a los 17

Hoje nasceram muitas pessoas e coisas sensacionais. Nasceram meus amados Dmitri Shostakovich, Glenn Gould e Jean-Philippe Rameau, além da Casa de Cultura Mario Quintana e até Catherine Zeta-Jones. E, em 1994, num domingo como hoje, às 19h35, nasceu minha filha. É uma data muito bem frequentada.

Como era
E a débil de hoje, numa festa da escola

J. S. Bach – Cantata BWV 80: Ein feste Burg ist unser Gott (completa) e o jazz de Hiromi Uehara

A Cantata BWV 80 de J.S. Bach é daquelas coisas que fazem os dias pararem, os outros compositores se embasbacarem, a gente acreditar na possibilidade de um deus e que justificam os versos finais de Anna Akhmátova que estão inscritos no túmulo de Dmitri Shostakovich:

Música

(…)

Depois que o último amigo tiver desviado o olhar,
ela ainda estará comigo no meu túmulo,
como se fosse o canto do primeiro trovão,
ou como se todas as flores tivessem começado a falar.

Na verdade, a Cantata tem uma estrutura simples e quase simétrica de variações sobre um Coral de Lutero. Um coral, um dueto, uma ária, um coral central, outro dueto e mais um coral. Sim, simples, mas e as variações de Bach?

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~o~

Para terminar, um show de Hiromi Uehara em Choux à la Crème. Ela não precisa de baixo… Vejam o que ela faz aos 5min20. Um Chick Corea alegre e de saias.


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Dmitri Shostakovich (VIII – Final)

Na primeira parte do último texto, escreverei uma pequena introdução sobre meu diletantismo radical de escolher um compositor para passar centenas de horas a lê-lo e ouvi-lo. Há muita coisa boa e muita porcaria publicada. Já as gravações são quase todas boas. Ele não é compositor para músicos diletantes…

Os piores textos vêm daquelas alas que atribuem ou buscam descobrir alguma posição política no homem e na obra. Tais posturas, encontráveis tanto à direita quanto à esquerda, com predominância daquela, servem apenas para mostrar a ideologia de quem escreve, o que, convenhamos, pouco interessa neste caso. Depois de muito ler, fica clara a grande e falsa exposição que Shostakovich obteve durante da Guerra Fria, no Oriente e no Ocidente. Ambos os lados o utilizaram como exemplo de suas teses. Ele e outros intelectuais soviéticos foram espécies de caixas pretas nas quais se podia adesivar as mais diversas opiniões e posições. Não, Shostakovich nem representava o governo soviético, nem esteve ao lado dos dissidentes Soljenítsin e Sakharov. Se teve inúmeras oportunidades de permanecer no Ocidente e não o fez (argumento da esquerda), também sofreu horrores com Jdanov, Stálin e mesmo depois (argumento da direita); se escreveu ironias ao estado soviético (Cantata Rayok, argumento da direita), também cantou o heroísmo da revolução em obras não encomendadas. Shostakovich parece-me ter sido alguém cujo pensamento político possuía pouca relevância e que agia sempre como artista e ponto. Só isso? Não, em minha opinião, ele era um comunista muito crítico e reto, com uma complexa relação de amor e ódio ao poder da URSS. Apenas Stálin era cem por cento abominado. Era um artista, não um político; não seguia as linhas tortuosas, às vezes indefensáveis, que os partidos frequentemente defendem. Utilizou-se de temas de sua época, porém a perspectiva sob a qual via o mundo era, curiosamente, sempre foi a dos mortos. Dos mortos pelos nazistas, pelos anti-semitas, pelos soviéticos, por Stálin ou pelo passar do tempo, como em toda sua obra final. Como escreveu Fernando Monteiro, toda grande obra gira em torno de três temas: Amor, Deus e Morte. Acho que Shostakovich, teve muito a dizer sobre todos, principalmente sobre os dois últimos temas; o primeiro pela inexistência, o segundo pela onipresença.

Aliás, com o passar do tempo — o qual tem o bom costume de fazer aparecer a verdade e o pouco recomendável hábito de fazer desaparecer nossos pobres corpos –, a discussão sobre o pensamento político de Shostakovich tornar-se-á ociosa e ficará o que interessa: o homem e o compositor; e este era um sujeito brilhante e produtivo, deprimido e eufórico, que torcia interminavelmente os dedos, como mostram os filmes soviéticos, sentado num trem olhando a chuva bater na janela; que homenageava a pureza de alguns revolucionários e criticava ou expelia seu amargor e sarcasmo aos governantes; que permanecia parado por horas em silêncio com os amigos de que gostava — e só com eles.

Por falar em gostar, o que gosto em Shostakovich é sua música. Ela é produto de um artista apaixonado e inacreditavelmente produtivo. A forma com que ele se relacionou com seu tempo serviu à sua música e não o contrário. Escrevia para ser compreendido e para expressar-se, mas não tinha ilusões de mudar seu país e o mundo, que é como parece pensar quem só vê política na arte de Shostakovich. Sua música, antiquada para os modernos e moderna para os anacrônicos (sem ofensas, sem ofensas…), consegue ser visceral e cerebral, e concordo com este artigo quando seu autor fala no quanto a audição de Shostakovich demandou-lhe subjetivamente. Não é música para ser assimilada nas primeiras abordagens e nem esquecida facilmente. São experiências oferecidas por alguém disposto a buscar tudo o que estivesse à mão para expressar o que desejava e que produziu uma obra séria, sarcástica, deprimente, divertida, inteligente, lúdica e extraordinária: às vezes, tudo ao mesmo tempo.

A seguir, comento as três últimas grandes obras de Shostakovich.

Quarteto de Cordas Nº 14, Op. 142 (1972-73)

Este é quase um quarteto para violoncelo solo e trio de cordas, tal é a proeminência dada àquele instrumento. É um quarteto inspiradíssimo, escrito em três movimentos (Allegretto – Adagio – Allegretto), e que tem seu centro dramático em um dilacerante adagio de 9 minutos. Não consigo imaginar uma audição deste quarteto sem a audição em seqüência do Nº 15. Eles, que costumam aparecer juntos, seja em vinil ou em CD, formam, em minha imaginação, uma só música.

Quarteto de Cordas Nº 15, Op. 144 (1974)

Este trabalho, assim como a sonata a seguir, são tidas como obras-primas e seriam os dois principais “réquiens privados” de Shostakovich. Concordo.

O que dizer de um obra escrita em seis movimentos, em que quatro deles são adagio e os outros dois são adagio molto, sendo que, destes dois últimos, um é uma marcha funeral e outro um epílogo…? Ora, no mínimo que é lenta. Porém, como estamos falando do Shostakovich final, estamos falando de uma obra que tem como fundo a morte. Há três movimentos realmente notáveis nesta música: a Serenata: Adagio, a Marcha Fúnebre – Adagio Molto e o musicalmente espetacular Epílogo – Adagio Molto. O Epílogo recebeu vários arranjos sinfônicos e costuma aparecer — separadamente ou não do resto do quarteto — em gravações orquestrais.

Sonata para Viola e piano, Op. 147 (1975) – A Última Composição

Esta é a última composição de Shostakovich e uma de minhas preferidas. Ele começou a escrevê-la em 25 de junho de 1975 e, apesar de ter sido hospitalizado por problemas no coração e nos pulmões neste ínterim, terminou a primeira versão rapidamente, em 6 de julho. Para piorar, os problemas ortopédicos voltaram: “Eu tinha dificuldades para escrever com minha mão direita, foi muito complicado, mas consegui terminar a Sonata para Viola e Piano”. Depois, passou um mês revisando o trabalho em meio aos novos episódios de ordem médica que o levaram a falecer em 9 de agosto.

Sentindo a proximidade da morte, Shostakovich escreveu que procurava repetir a postura estóica de Mussorgsky, que teria enfrentado o inevitável sem auto-comiseração. E, ao ouvirmos esta Sonata, parece que temos mesmo de volta alguma luz dentro da tristeza das últimas obras. A intenção era a de que o primeiro movimento fosse uma espécie de conto, o segundo um scherzo e o terceiro um adágio em homenagem a Beethoven. O resultado é arrasadoramente belo com o som encorpado da viola dominando a sonata.

Os primeiros compassos da Sonata ao Luar, de Beethoven, uma obra que Shostakovich frequentemente executava quando jovem pianista, é citada repetidamente no terceiro movimento, sempre de forma levemente transformada e arrepiante, ao menos no meu caso… O scherzo possui uma marcha e vários motivos dançantes, retirados de uma outra ópera baseada em Gógol — seria sua segunda ópera composta sobre histórias do ucraniano, pois, na sua juventude ele já escrevera O Nariz (1929) — que tinha sido abandonada há mais de trinta anos. Outras alusões são feitas nesta sonata. Há pequenas citações da 9ª Sinfonia (de Shostakovich), da 4ª de Tchaikovski, da 5ª de Beethoven, da Sonata Op.110 de Beethoven, de Stravinsky, Mahler e Brahms. E a abertura da Sonata utiliza trecho do Concerto para Violino de Alban Berg, também conhecido pelo nome de “À memória de um anjo”, o qual é dedicado à filha de Alma Mahler, Manon, morta aos 18 anos, com poliomielite.

Creio não ser apenas invenção deste ouvinte- – há uma constante interferência do inexorável nesta música, talvez sugerida pela intromissão de temas de outros compositores na partitura, talvez sugerida pela atmosfera melancólica da sonata, talvez por meu conhecimento de que ouço um réquiem. O fato é que Shostakovich estava aguardando.

Shostakovich morreu sem ouvir a sonata, que foi estreada num concerto privado no dia 25 de setembro de 1975, data em que faria 69 anos.

Dmitri Shostakovich (VI)

Ponho-me, de repente,
a rabiscar num pedaço de papel,
ouço zumbidos, apitos, coisas que não me espantam,
depois torturo os ouvidos de todo mundo;
em seguida, faço que seja publicado
e esquecido para todo sempre…

Poema escrito de brincadeira (ou não) por Shostakovich

Sigo minha série com um capítulo curto. Iniciamos aqui, continuamos ali e ainda aqui, acolá e alhures.


Quarteto Nº 9, Op. 117 (1964),
Quarteto Nº 10, Op. 118 (1964) e
Quarteto Nº 11, Op. 122 (1966)

Os quartetos de números 9, 10 e 11 são semelhantes em estrutura e espírito. São os três muito bons e têm em comum o fato de manterem por todo o tempo a alternância entre movimentos rápidos e lentos, sendo tais contrastes ampliados pelo fato de o nono e o décimo primeiro serem compostos por movimentos executados sem interrupções. O décimo ainda separa os primeiros movimentos, porém o Alegretto final surge de dentro de um Adágio. A postura de fazer com que surjam movimentos antagônicos um de dentro do outro é uma particularidade que torna estes quartetos ainda mais interessantes, sendo que o décimo primeiro é um inusitado quarteto de 17 minutos com sete movimentos; isto é, Shostakovich brinca com a apresentação de temas que fazem surgir de si outros muito diversos em estilo, como se o compositor estivesse sofrendo de uma incontrolável superfetação (*). É, no mínimo, desafiador ao ouvinte. Melodicamente são muito ricos, e exploram com insistência incomum os ostinatos, os quais são sempre no máximo belíssimos e no mínimo curiosos. Merecem inteiramente o lugar que modernamente obtiveram no repertório dos quartetos de cordas. É curioso como é fácil confundi-los. Estou ouvindo-os enquanto escrevo e noto quando o CD passa de um para outro, pois têm personalidades muito próprias, mas nunca sei se o que estou ouvindo é o nono ou o décimo. Certamente é uma limitação minha! Já no décimo primeiro, o paroxismo da criação de melodias chega a tal ponto, seus ostinatos são tão alucinados, que é mais fácil reconhecê-lo.

Aliás, o décimo primeiro apresenta aqueles finais tranquilos que constituíram-se uma das assinaturas do Shostakovich final. Esqueçam o gran finale. Sem fazer grande pesquisa, sei que os finais quietos, na grandiosos, podem ser encontrados na 13ª, 14ª e 15ª sinfonias, neste quarteto e no sensacional Concerto para Violoncelo que será comentado a seguir.

(*) Palavra pouco utilizada, não? Significa a concepção que ocorre quando, no mesmo útero, já há um feto em desenvolvimento.

Concerto para Violoncelo e Orquestra Nº 2, Op. 126 (1966)

Uma obra-prima, produto da estreita colaboração entre Shostakovich e Rostropovich, a quem o concerto é dedicado. A tradição do discurso musical está aqui rompida, dando lugar a convenções próprias que são “aprendidas” pelo ouvinte no transcorrer da música. Não há nada de confessional ou declamatório neste concerto. Há arrebatadores efeitos sonoros que são logo propositadamente abandonados. A intenção é a de ser música absoluta e lúdica, mostrando-nos temas que se repetem e separam momentos convencionalmente sublimes ou decididamente burlescos. Nada mais burlesco do que a breve cadenza em que o violoncelo é interrompido pelo bombo, nada mais tradicional do que o tema que se repete por todo o terceiro movimento e que explode numa dança selvagem, acabando com o violoncelo num tema engraçadíssimo — como se fosse um baixo acústico — , para depois sustentar interminavelmente uma nota enquanto a percussão faz algo que nós, brasileiros, poderíamos chamar de batucada. Esta dança faz parte de uma longa preparação para um gran finale que novamente não chega a acontecer. Um concerto espantoso, original, capaz de fazer qualquer melômano feliz ao ver sua grande catedral clássica virada de ponta cabeça e, ainda assim, bonita.

Concerto para Violino e Orquestra Nº 2, Op. 129 (1967)

Este concerto costuma receber poucos elogios por sua qualidade musical e grandes adjetivos vagos: profunda reflexão lírica…, elegante…, pleno de momentos tocantes…, mágico…, poético… Parece que os comentaristas deste concerto contraíram aquele vírus, tão comum nos enólogos, que os faz encontrar o siroco ou o cheiro do útero materno dentro de cálices de vinho. Para mim, há apenas um problema neste concerto: não vejo grandes méritos nele. Acho-o chato e anacrônico. Paciência e adiante!

Dmitri Shostakovich (V)

Para Paulo Ricardo Brinckmann Oliveira

Seguimos nossa série iniciada aqui, continuada ali e ainda aqui e acolá.

Sinfonia Nº 13 (Babi Yar), Op. 113 (1962)

Após o equívoco da Sinfonia Nº 12 – lembrem que até Beethoven escreveu uma medonha Vitória de Wellington, curiosamente estreada na mesma noite da sublime 7ª Sinfonia, mas este é outro assunto… -, Shostakovich inauguraria sua última fase como compositor começando pela Sinfonia Nº 13, Babi Yar. Iniciava-se aqui a produção de uma sequência de obras-primas que só terminaria com sua morte, em 1975. Esta sinfonia tem seus pés firmemente apoiados na história da União Soviética durante a Segunda Guerra Mundial. É uma sinfonia cantada, quase uma cantata em seu formato, que conta com a nada desprezível colaboração do grande poeta russo Evgeny Evtuchenko (conforme alguns, como a Ed. Brasilinense, porém pode-se encontrar a grafia Ievtuchenko, Yevtuchenko ou Yevtushenko, enfim!).

O que é, afinal, Babi Yar? Babi Yar é o nome de uma pequena localidade situada perto de Kiev, na atual Ucrânia, cuja tradução poderia ser Barranco das Vovós. Ali, em 29 e 30 de setembro de 1941, teve lugar o assassinato de 34 mil judeus pelos nazistas. Eles foram mortos com tiros na cabeça e a participação comprovada de colaboradores ucranianos no massacre permanece até hoje tema de doloroso debate público naquele país. Nos dois anos seguintes, o número de mortos em Babi Yar subiu para 200 mil, em sua maioria judeus. Perto do fim da guerra, os nazistas ordenaram que os corpos fossem desenterrados e queimados, mas não conseguiram destruir todos os indícios. Ievtuchenko criticou a maneira que o governo soviético tratara o local. O monumento em homenagem aos mortos referia-se às vítimas como ucranianas e russas, o que também eram, apesar de se saber que o fato determinante de suas mortes era o de serem judeus. O motivo? Ora, Babi Yar deveria parecer mais uma prova do heroísmo e sofrimento do povo soviético e não de uma fatia dele, logo dele, que seria uma sociedade sem classes nem religiões… O jovem poeta Ievtushenko considerou isso uma hipocrisia e escreveu o poema em homenagem aos judeus mortos. O que parece ser uma crítica de importância relativa para nós, era digna de censura, na época. O poema — o qual tem extraordinários méritos literários — foi publicado na revista Literatournaia Gazetta e causou problemas a seu autor e depois, também a Shostakovich, ao qual foram pedidas alterações que nunca foram feitas na sinfonia. No Ocidente, Babi Yar foi considerado prova da violência antissemita na União Soviética, mas o próprio Ievtuchenko declara candidamente em sua Autobiografia Precoce (Ed. Brasiliense, 1987) que a tentativa de censura ao poema não teve nada a ver com este gênero de discussão e que, das trinta mil cartas que recebeu falando em Babi Yar, menos de trinta provinham de antissemitas…

O massacre de Babi Yar é tão lembrado que não serviu apenas a Ievtuchenko e a Shostakovich, tornando-se também tema de filmes e documentários recentes, assim como do romance Babi Yar de Anatoly Kuznetsov. Não é assunto morto, ainda.

O tratamento que Shostakovich dá ao poema é fortemente catalisador. Como se fosse uma cantata em cinco movimentos, os versos de Ievtuchenko são levados por um baixo solista, acompanhado de coral masculino (formado apenas por baixos) e orquestra. É música de impressionante gravidade e luto; a belíssima linha melódica ora assemelha-se a um serviço religioso, ora aum dos grandes modelos de Shostakovich, Mussorgski; mesmo assim, fiel a seu estilo, Shostakovich encontra espaço para seu habitual sarcasmo.

Tranquila crueldade: soldados alemães examinam as roupas dos mortos em Babi Yar.

“Babi Yar” é como ficou conhecida a sinfonia para coro masculino, baixo e orquestra.  A partir do texto de dura indignação de Ievgueni Evtuchenko e apesar dos problemas que ele geraria na União Soviética pós-stalinista, Shostakovich construiu um painel de extraordinária força em torno de mazelas típicas de seu tempo: o medo e a opressão, o conformismo e o carreirismo, o massacre cotidiano num Estado policial e a possibilidade de superação através do humor e da intransigência.

Em linguagem quase descritiva, combinando a severidade da orquestra com a impostação épica das vozes, “Babi Yar” tem um poder de evocação cinematográfico: raramente se ouviu música tão plástica. O realismo e a imagens dos poemas são admiravelmente apoiados pelo estilo alternadamente sombrio e agressivo da música de Shostakovich. Não obstante o grande efetivo orquestral e a tensão dos clímaxes, as texturas são rarefeitas e o coro, declamando ou murmurando, canta quase sempre em uníssono ou em oitavas — mais um elemento dessa estrutura preparada para expressar a desolação e o nervosismo.

O primeiro movimento alterna estrofes que exploram o horror e a culpa de Babi Yar com relatos de dois outros episódios — o de Anne Frank e o de um menino massacrado em Bielostok. No segundo movimento, ritmado de forma tipicamente shostakovichiana, o tom enfático das vozes falam da resistência que o “Humor” jamais deixará de oferecer à tirania. “Na loja”, o Adagio que se segue, descreve quase fisicamente as filas das humilhadas donas-de-casa numa linha sinuosa à espera de um pouco de comida. Quando chegam ao balcão, o poema diz: “Elas nos honram e nos julgam”, enquanto percussão e castanholas simulam panelas e garrafas se entrechocando. É em clima que estupefação que o movimento se encerra: “Nada está fora de seu alcance”.

A linha sinuosa torna-se reta ao prosseguir sem interrupção para o episódio seguinte, um ameaçador ‘sostenuto’ das cordas graves sob solo da tuba: é o “Medo”, componente constante da vida soviética. Contrapondo-se às sombras que até aqui dominam a sinfonia, Shostakovich a conclui com uma satírica reflexão sobre o que é seguir uma “Carreira”. Em ritmo de valsa lenta, ficamos sabendo que a verdadeira carreira não é a dos que se submetem, mas a de Galileu, Shakespeare ou Pasteur, Newton ou Tolstói: “Seguirei minha carreira de tal forma que não a esteja seguindo”, conclui o baixo, com o eco do sino que abrira pesadamente a sinfonia, agora aliviado pela celesta.

Shostakovich (esquerda), com o poeta Evgeni Ievtuchenko (direita)e o regente Kiril Kondrashin na estréia da 13ª Sinfonia.

A história da primeira execução de Babi Yar foi terrível. Houve protestos e ameaças por parte das autoridades soviéticas. Se até 1962, Shostakovich dava preferência a estrear suas obras sinfônicas com Evgeny Mravinsky (1903-1988), Babi Yar causou um surdo rompimento na parceria entre ambos. O lendário regente da Sinfônica de Leningrado amedrontou-se (teve razões para tanto) e desistiu da obra pouco antes de começarem os ensaios. Porém, como na União Soviética e a Rússia os talentos brotam por todo lado, Mravinsky foi substituído por Kiril Kondrashin (1914-1981) que teve uma performance inacreditável e cujo registro em disco é das coisas mais espetaculares que se possa ouvir.

P.S.- Por uma dessas coisas inexplicáveis, encontrei o disco soviético com o registro da estreia num sebo de Porto Alegre em 1975. Comprei, claro.

Obs.: A descrição da música foi adaptada de um texto que Clovis Marques escreveu para um concerto no Municipal do Rio de Janeiro.

Dmitri Shostakovich (IV)

A maioria de minhas sinfonias são monumentos funerários. Gente demais, entre nós, morreu não se sabe onde. E ninguém sabe onde foram enterrados. Aconteceu a uma porção de amigos meus. Onde se pode erguer um monumento a eles? Somente a música pode fazê-lo. Estou disposto a dedicar uma obra a cada uma das vítimas. Infelizmente, é impossível. Dedico-lhes, então, toda a minha música.

DMITRI SHOSTAKOVICH

Seguimos nossa série iniciada aqui, continuada ali e ainda aqui.

Sinfonia Nº 10, Op. 93 (1953)

Este monumento da arte contemporânea mistura música absoluta, intensidade trágica, humor, ódio mortal, tranquilidade bucólica e paródia. Tem, ademais, uma história bastante particular.

Em março de 1953, quando da morte de Stalin, Shostakovich estava proibido de estrear novas obras e a execução das já publicadas estava sob censura, necessitando autorizações especiais para serem apresentadas. Tais autorizações eram, normalmente, negadas. Foi o período em que Shostakovich dedicou-se à música de câmara e a maior prova disto é a distância de oito anos que separa a nona sinfonia desta décima. Esta sinfonia, provavelmente escrita durante o período de censura, além de seus méritos musicais indiscutíveis, é considerada uma vingança contra Stalin. Primeiramente, ela parece inteiramente desligada de quaisquer dogmas estabelecidos pelo realismo socialista da época. Para afastar-se ainda mais, seu segundo movimento – um estranho no ninho, em completo contraste com o restante da obra – contém exatamente as ousadias sinfônicas que deixaram Shostakovich mal com o regime stalinista. Não são poucos os comentaristas consideram ser este movimento uma descrição musical de Stálin: breve, é absolutamente violento e brutal, enfurecido mesmo, e sua oposição ao restante da obra faz-nos pensar em alguma segunda intenção do compositor. Para completar o estranhamento, o movimento seguinte é pastoral e tranquilo, contendo o maior enigma musical do mestre: a orquestra para, dando espaço para a trompa executar o famoso tema baseado nas notas DSCH (ré, mi bemol, dó e si, em notação alemã) que é assinatura musical de Dmitri SCHostakovich, em grafia alemã. Para identificá-la, ouça o tema executado a capela pela trompa. Ele é repetido quatro vezes. Ouvindo a sinfonia, chega-nos sempre a certeza de que Shostakovich está dizendo insistentemente: Stalin está morto, Shostakovich, não. O mais notável da décima é o tratamento magistral em torno de temas que se transfiguram constantemente.

Milton Ribeiro adverte: não ouça o segundo movimento previamente irritado. Você e sua companhia poderão se machucar.

Quarteto de Cordas Nº 6, Op. 101 (1956)

Talvez apenas aficionados possam gostar deste esquisito quarteto. Ele tem quatro movimentos, dos quais três são decepcionantes ou descuidados. O intrigante nesta música é o extraordinário terceiro movimento Lento, uma passacaglia barroca que é anunciada solitariamente pelo violoncelo. É de se pensar na insistência que alguns grandes compositores, em seus anos maduros, adotam formas bachianas. Os últimos quartetos e sonatas para piano de Beethoven incluem fugas, Brahms compôs motetos no final de sua vida e Shostakovich não se livrou desta tendência de voltar ao passado comum de todos. Enfim, este quarteto vale por seu terceiro movimento e, com certa boa vontade, pelo Lento – Allegretto final.

Concerto Nº 2 para Piano e Orquestra, Op. 102 (1957)

Concerto dedicado ao filho pianista Maxim Shostakovich. É um autêntico presente de pai para filho. Alegre, brilhante e cheio de brincadeiras de caráter privado como a inacreditável inclusão — no terceiro movimento e totalmente inseridos na música — de exercícios que seu filho praticava quando era estudante do instrumento… E não se surpreenda, o primeiro movimento deste concerto é conhecido entre as crianças que veem desenhos da Disney. É a música que é executada durante o episódio do Soldadinho de Chumbo em Fantasia 2000. Quando ouço esta música em casa, sempre um de meus filhos vem me dizer “olha aí a música do Soldadinho de Chumbo”. É claro que a música não tem nada a ver com esta história infantil.  Shostakovich fez um belo concerto para seu filho, de atmosfera delicada e afetuosa. O primeiro movimento (Allegro) começa com uma rápida introdução orquestral em seguida à qual entra o piano. De acordo com a prática habitual de Shostakovich, o tema inicial é um pouco mais poético do que o segundo, de entonação mais vigorosa e rítmica.

Dois movimentos vivos e felizes cercam um melancólico, tocante e melodioso segundo movimento. A inspiração óbvia para este concerto foi o Concerto em Sol Maior (1931) de Ravel. Leonard Bernstein deu-se conta disto e gravou um de seus melhores discos em 1978, acumulando as funções de pianista e regente nos dois concertos. Se este concerto não arrancar algum sorriso do ouvinte, este necessitará de urgentemente de antidepressivos.

Sinfonia Nº 11, Op. 103 – O Ano de 1905 (1957)

Esta sinfonia talvez seja a maior obra programática já composta. Há grandes exemplos de músicas descritivas tais como As Quatro Estações de Vivaldi, a Sinfonia Pastoral de Beethoven , a Abertura 1812 de Tchaikovski, Quadros de uma Exposição de Mussorgski e tantas outras, mas nenhuma delas liga-se tão completa e perfeitamente ao fato descrito do que a décima primeira sinfonia de Shostakovich.

Alguns compositores que assumiram o papel de criadores de “coisas belas”, veem sua tarefa como a produção de obras tão agradáveis quanto o possível. Camille Saint-Saëns dizia que o artista “que não se sente feliz com a elegância, com um perfeito equilíbrio de cores ou com uma bela sucessão de harmonias não entende a arte”. Outra atitude é a tomada por Shostakovich, que encara vida e arte como se fosse uma coisa só, que vê a criação artística como um ato muito mais amplo e que inclui a possibilidade do artista expressar — ou procurar expressar — a verdade tal como ele a vê. Esta abordagem foi adotada por muitos escritores, pintores e músicos russos do século XIX e, para Shostakovich, a postura realista de seu ídolo Mussorgsky foi decisiva. A décima primeira sinfonia de Shostakovich tem feições inteiramente mussorgkianas e foi estreada em 1957, ano de muitas glórias além do quadragésimo aniversário da Revolução de Outubro. Contudo, ela se refere a eventos ocorridos antes, no dia 9 de janeiro de 1905, um domingo, quando tropas czaristas massacraram um grupo de trabalhadores que viera fazer um protesto pacífico e desarmado em frente ao Palácio de Inverno do Czar, em São Petersburgo. O protesto, feito após a missa e com a presença de muitas crianças, tinha a intenção de entregar uma petição — sim, um papel — ao czar, solicitando coisas como redução do horário de trabalho para oito horas diárias, assistência médica, melhor tratamento, liberdade de religião, etc. A resposta foi dada pela artilharia, que matou mais de cem trabalhadores e feriu outros trezentos.

O primeiro movimento descreve a caminhada dos trabalhadores até o Palácio de Inverno e a atmosfera soturna da praça em frente, coberta de neve. O tema dos trabalhadores aparecerá nos movimentos seguintes, porém, aqui, a música sugere uma calma opressiva.

O segundo movimento mostra a multidão abordar o Palácio para entregar a petição ao czar, mas este encontra-se ausente e as tropas começam a atirar. Shostakovich tira o que pode da orquestra num dos mais barulhentos movimentos sinfônicos que conheço.

O terceiro movimento, de caráter fúnebre, é baseado na belíssima marcha de origem polonesa Vocês caíram como mártires (Vy zhertvoyu pali) que foi cantada por Lênin e seus companheiros no exílio, quando souberam do acontecido em 9 de janeiro.

O final – utilizando um bordão da época – é a promessa da vitória final do socialismo e um aviso de que aquilo não ficaria sem punição.

Concerto Nº 1 para Violoncelo e Orquestra, Op. 107 (1959)

Shostakovich e o grande violoncelista Mstislav Rostropovich eram amigos tendo, muitas vezes, viajado juntos fazendo recitais que incluíam entre outras obras, a Sonata para violoncelo e piano, opus 40, já comentada nesta série. Desde que se conheceram, o compositor avisara a Rostropovich que ele não deveria pedir-lhe um concerto diretamente, que o concerto sairia ao natural. Saíram dois. Quando Shostakovich enviou a partitura do primeiro, dedicada ao amigo, este compareceu quatro dias depois na casa do compositor com a partitura decorada. (Bem diferente foi o caso do segundo concerto, que foi composto praticamente a quatro mãos. Shostakovich escrevia uma parte, e ia testá-la na casa de Rostropovich; lá, mostrava-lhe as alternativas, os rascunhos ao violoncelista, que sugeria alterações e melhorias. Amizade.)

Estilisticamente, este concerto deve muito à Sinfonia Concertante de Prokofiev – também dedicada a Rostropovich – e muito admirada pelos dois amigos. É curioso notar como os eslavos têm tradição em música grandiosa para o violoncelo. Dvorak tem um notável concerto, Tchaikovski escreveu as Variações sobre um tema rococó, Kodaly tem a sua espetacular Sonata para Cello Solo e Kabalevski também tem um belo concerto dedicado a Rostropovich. O de Shostakovich é um dos de um dos maiores concertos para violoncelo de todo o repertório erudito e minha preferência vai para a imensa Cadenza de cinco minutos (3º movimento) e para o brilhante colorido orquestral do Allegro com moto final.

Quarteto de Cordas Nº 7, Op. 108 (1960)

Mais um quarteto de Shostakovich com um lindíssimo movimento lento, desta vez baseado no monólogo de Boris Godunov (ópera de Mussorgski baseada em Puchkin), e mais um finale construído em forma de fuga, utilizando temas do primeiro movimento. Uma pequena e curiosa jóia de onze minutos.

Quarteto de Cordas Nº 8, Op. 110 e Sinfonia de Câmara, Op. 110a – Arranjo de Rudolf Barshai (1960)

Na minha opinião, o melhor quarteto de cordas de Shostakovich. Não surpreende que tenha recebido versões orquestrais. Trata-se de uma obra bastante longa para os padrões shostakovichianos de quarteto; tem cinco movimentos, com a duração total ficando entre os 20 minutos (na versão para quarteto de cordas) e 26 (na versão orquestral). O quarteto abre com um comovente Largo de intenso lirismo, o qual é seguido por um agitado Allegro molto, de inspiração folclórica e que fica muito mais seco na versão para quarteto. O terceiro movimento (Allegretto) é uma surpreendente valsinha sinistra a qual é respondida por outra valsa, muito mais lenta e com um acompanhamento curiosamente desmaiado. O quarteto é finalizado por dois belos temas ; o primeiro sendo pontuado por agressivamente por um motivo curto de três notas e o segundo formado por mais uma fuga a quatro vozes utilizando temas dos movimentos anteriores.

Bibliografia: quase tudo de memória, apoiado por algumas capas de CD.

Dmitri Shostakovich (I)

Pois hoje é o Dia Mundial da Música! Então inicio uma série sobre Dmitri Shostakovich que publicarei a cada sexta-feira, OK?

A música pode ser amarga, jamais pode ser cínica.

DMITRI SHOSTAKOVICH


Muitíssimas vezes, quando ouvimos Shostakovich (1906-1975), sentimos certa estranheza, notamos intenções ou um torna-se palpável uma enorma revolta e desconforto. Percebe-se que o drama e os contrastes apresentados referem-se a acontecimentos externos, sejam de ordem pessoal ou não. Em contato com essas obras firmemente assentadas sobre os ombros de Bach, Beethoven, Mahler, Tchaikovsky e Mussorgsky, somos, de alguma forma muito particular, solicitados a conhecer mais das circunstâncias em que foram compostas e da vida pessoal do compositor. Isto já pode ser notado desde a sua Sinfonia Nro. 1, composta antes dos vinte anos e que o deixou célebre internacionalmente antes mesmo de finalizar seus estudos.

Vamos começar esta série pela parte mais difícil: as relações do músico com o poder. Aqui há três pontos importantes para a compreensão de Shostakovich. O Ocidente costuma simplificar os fatos conferindo ao autor a condição simples de mártir e dissidente do regime. Tais “enganos” datam dos tempos da guerra fria e persistem até hoje. Aqui, procurarei equilibrar as coisas através de leituras mais recentes que fiz. Procurarei expor os fatos políticos e tomarei partido apenas da obra do compositor, a qual amo apaixonadamente.

O Comunista: Shostakovich foi, certamente, um comunista sincero, não obstante suas divergências com uma doutrina oficial que nem sempre seguiu um caminho retilíneo. Sem seu engajamento nítido em favor dos princípios originais que criaram a União Soviética, seria impossível inventar o sopro lírico e épico que atravessa algumas de suas composições. Mas há o verdadeiro e o forçado, ou o espontâneo e a encomenda, ou a alegria e  o sarcasmo. A segunda de suas sinfonias (A Revolução de Outubro, de 1927), apesar de fraca, pertence às obras autênticas, já a décima-segunda (À Memória de Lênin, de 1961) parece ter sido obra de um autor amargo, sarcástico e que  estava mandando provisoriamente sua obra às favas.  No início de sua carreira de compositor, Shoatakovich tinha aquele entusiasmo que foi próprio de uma geração de criadores que — como Eisenstein e Maiakovski — , em determinado momento, acreditou ser para amanhã o paraíso terrestre, antes de renunciarem a suas esperanças, às vezes de forma trágica. Não obstante o que era dito durante a Guerra Fria, Shostakovich não estava preso à União Soviética e teve inúmeras oportunidades de fugir. Quando sua doença começou a prejudicá-lo como intérprete, ele estava fora do país, também esteve algumas vezes com Britten na Inglaterra … Ou seja, Shostakovich teve numerosas oportunidades que o compositor teve para emigrar – não o fazendo nunca. Houve declarações anti-soviéticas? Mas é claro, ele foi massacrado por Stálin e depois, mas nunca foi o dissidente típico. Seus problemas eram relativos às arbitrariedades dos dirigentes do país e não com aquilo que a imprensa ocidental desejava.

A Morte: Após a doença, Shostakovich era obcecado pela idéia da morte. Não devemos colocar toda a sua psicologia na conta do geopolítico. Ele possuía muito daqueles niilistas russos do século XIX, tão bem retratados nos romances de Dostoiévski. Há algo de Kirilov nele… Confundir isso com as torturas morais causadas pelos comissários políticos soviéticos é aplainar a grandiosa obra do compositor e é fatal para quem queira compreendê-lo. Obras como o Trio Nº. 2, Op. 67, de 1944, a Sonata para viola e piano, Op. 147, de 1975 ou a Sinfonia Nº 15, de 1974, todas com suas “Canções da Morte”, são inequívocas, assim como a Sinfonia Nº 14. As trevas sem fim que emanam destas composições e a melancolia por vezes desesperada só podem surgir de uma personalidade permeável a pensamentos macabros. Porém, até hoje, costuma-se esquecer demais da história pessoal de Shostakovich e colocar todos os seus momentos de depressão numa conta do geopolítico…

O Artista: como os verdadeiros artistas e, principalmente, os músicos, Shostakovich pensava que o estatuto particular de sua arte desobrigava-o a seguir palavras de ordem como aquelas que eram impostas aos operários, aos mineiros ou aos camponeses da União Soviética. Sob este aspecto, era ele quem enganava-se. Os sucessivos dirigentes jamais esqueceram de intervir diretamente nas orientações estéticas a serem seguidas por pintores, escritores, cineastas e… músicos. Sempre esteve fora das cogitações governamentais a existência de uma vanguarda artística na União Soviética, pelo menos depois da morte de Lênin.

Shostakovich sofreu gravemente três vezes os efeitos de restrições a seus trabalhos. 1936 pode ter sido um ano péssimo para ele, porém, em minha opinião, os detalhes jocosos da primeira proibição superam em muito o que ela tem de funesto para sua carreira. Ele havia composto sua segunda e última ópera — a primeira fora O Nariz, baseada no conto de Gógol — quando Stálin foi assisti-la. Lady Macbeth de Mtsensk — baseada na esplêndida novela de Nikolai Leskov e só encontrável em espanhol (recomendo a leitura) — conta como uma mulher se tornou assassina por amor e demonstra que, se ela foi levada a cometer crimes, a causa estava no comportamento odioso de suas vítimas, na realidade autênticos carrascos. Sim, uma distorção pero no mucho do Macbeth original. Stálin, que era um grande apreciador de óperas e ouvinte de música erudita, detestou-a. Mostrou-se chocado com o erotismo de certas cenas, com a complicada escrita vocal, com o uso brincalhão e extravagante dos instrumentos e o ritmo esbaforido da música. Chamou Lady Macbeth de “pornofonia” — termo surpreendente em qualquer época — e baniu-a de todos os teatros soviéticos. Foi preciso esperar 27 anos para retornar à cena e, ainda assim, com a supressão do episódio orquestral que descrevia uma cena de sexo… É curioso que as eructações, flatulências e gargarejos de O Nariz nunca tenham sido alvo de censuras. Talvez Gógol imponha mais respeito que Leskov…

A segunda vez que Shostakovich entrou no index ocorreu independentemente de qualquer obra. Logo após a notoriedade internacional da Sinfonia Nº 7 — que descreve com pungência inalcançável o sofrimento passado pelo povo soviético durante o cerco de Leningrado — foi baixada uma resolução do Comitê Central do Partido Comunista Soviético que depois foi conhecida por “Relatório Jdanov”. Isto ocorreu em 10 de fevereiro de 1948 e colocou no mesmo saco Prokofiev, Khatchaturian, Shostakovich e quase todos os artistas do país. Shostakovich foi o mais atingido, pois negara-se a fazer de sua Sinfonia Nº 9 um elogio a Stálin e ao Exército Vermelho, publicando em seu lugar uma piada musical, que foi recebida com alegria e aplausos no Ocidente, tendo em Leonard Bernstein seu maior divulgador. O que Bernstein só soube depois é que a nona sinfonia deixara Stálin novamente furibundo com Shostakovich, ao ver suas ordens desobedecidas. Como resultado, suas peças sumiram do repertório.

Mas ele seguiu produzindo e, quando Stalin morreu, em 1953, Shostakovich tinha as gavetas lotadas de novidades. Havia, inclusive uma vingança contra o ditador.

O terceiro e maior desentendimento aconteceu em 1962. Neste ano, aparecia a Sinfonia Nro. 13, para solo de baixo, coro masculino e orquestra. Os textos cantados vinham do poema Babi Yar, de Evgueni Ievtuchenko e, em lugar de cantar o porvir, o poema denunciava os crimes nazistas cometidos naquela cidade perto de Kiev, onde 34 mil judeus foram assassinados. Denunciar os crimes nazistas não seria problema, mas o poema de Ievtuchenko fala sobre como os soviéticos insistiam em considerar russos e ucranianos os mortos, em vez de judeus. É claro que o motivo de suas mortes era a etnia judaica e não outro. É claro, que aquele foi um episódio meio obscuro, onde há indícios de colaboração. Ele e Ievtuchenko, celebridades internacionais, foram fortemente repreendidos pelas autoridades, que exigiram a substituição completa dos textos, sob pena de a música não vir a ser executada. A Sinfonia nunca foi alterada.

Bibliografia: grande parte das informações históricas foram obtidas em incontáveis discos, CDs e outras publicações, mas foram  um pouco sistematizadas pela leitura do texto de Philippe Olivier, dentro da História da Música Ocidental, Nova Fronteira, 1997, assim como de Shostakovich – Vida, Música, Tempo, de Lauro Machado Coelho, Perpectiva, 2006.

Papéis Reencontrados

O dia 24 era um domingo e, no dia seguinte, 25 de setembro de 2006, minha filha completaria doze anos. No mesmo dia 25, o mundo musical comemoraria os cem anos de nascimento de Dmitri Shostakovich. Lá pelas tantas, naquele domingo em acontecimentos, resolvi olhar os e-mails. Havia um do escritor Fernando Monteiro.

Era um poema, uma litania que Fernando escrevera e dedicara a mim — seu geograficamente longínquo amigo — e a Bárbara. Fiquei honradíssimo com a dedicatória, li o poema para minha companheira de dedicatória e aquela Litania nos cem anos de Shostakovich acabou publicada em alguns jornais. Lembro que planejei fazer referências a estas publicações, mas nunca as fiz.

Hoje, ao procurar uns papéis, encontrei a Litania grampeada a outros dois papéis: um da imagem de uma página de 23 de fevereiro de 2007 do caderno “Anexo – Idéias” do jornal A Notícia de Joinville, onde a Litania tinha sido publicada, e outro, um e-mail de Fernando, explicando-me que as alusões “venezianas” do poema — detritos, crianças, gradis, febre, scirocco –, eram uma homenagem a Mahler que, para ele, é o que Shostakovich é para mim.

Fernando, digo-te que meu coração musicalmente promíscuo também coloca Mahler antes do amado Shostakovich…

No final, antes de escrever este post, examinei demorada e amorosamente a primeira folha, a da litania sozinha, onde há a linda e enorme letra infantil de minha filha. Bem sobre o B.R., ela escreveu Bárbara Ribeiro.

Litania nos cem anos de Shostakovich

Fernando Monteiro

Para M.R. e B.R.

O torso de beleza afastando-se
Como se afasta um afogado
Das margens da praia
Também recuada para trás
De onde o Mediterrâneo
Vinha beijar os pés das sílfides,
Debaixo do sol silencioso.

Abandonados pelas crianças,
Os brinquedos da marina
Zunem de calor no metal
Aquecido como as águas.

O planeta está mais quente
E mais enlouquecido
Entre os pios nublados
Do pássaro escondido
Em árvores molhadas
Da chuva ácida que se filtra
De um céu de tempestade.

Aviões caíram nesta manhã,
Levando passageiros
Para o fundo de uma laguna
E o nenhum lugar da selva
Remota que irá retomar
Seu espaço sobre azulejos
Encardidos e embalagens
Não-degradáveis
Num mundo que prefere o desastre.

Tudo o prenuncia, de certa forma,
E nada está perdoado
Nem foi esquecido
Com todas as coisas que já foram
E com aquelas que ainda serão
Ou que apenas dormem na tarde
À espera dos anos sem emoção.

Os humanos repousam
No sono da sombra de toldos
Estalando na Veneza insalubre
Deste lado do Atlântico
De exímios nadadores
que não viram as crianças
Se afogando.

Sim, eu prefiro estar
Por apanhar um resfriado
Antes da peste
No limite da cerca-viva
De mato e detritos do lixo
Avançando até o antigo gradil
De gladíolos brancos.

É minha a opção de não manter
A saúde, fumar e perder esperança
Na vigilância sem objeto,
Exposto ao vento da tarde,
Ao siroco da mente
Igualmente desistindo
Das perguntas a ninguém
Muito depois de Pã
Anunciado como morto
Antes da morte dos mares.

Então, não importa molhar
Os sapatos da espuma de solfejos
Rumorejando as queixas do Adriático
Como outrora o mar dos gregos
Deixava leve gosto de salgado
Entre os artelhos limpos
De náiades banhando-se
Nos oceanos mitológicos
Que hoje são de plástico
Cor de chumbo.

Alguns vídeos raros de Shostakovich e um nem tanto de Bernstein

Shosta finalizando com uma rapidez que hoje não se usa mais seu Concerto Nº 1 para Piano e Orquestra, também conhecido como Concerto para Piano, Trompete e Cordas.

Ou aqui.

Tocando ao piano sua Sinfinia Nº 7, Leningrado, em filme russo aos pedaços.

Ou aqui.

Um filme de Shosta fumando e caminhando na rua. Ao fundo, a décima sinfonia, acho eu.

Ou aqui.

Shostakovich acompanhando o ensaio de um de seus quartetos de cordas em 1975, ano de sua morte.

Ou aqui.

E, abaixo, Leonard Bernstein mata a pau no último movimento da quinta sinfonia. Copio aqui em razão de — porra! — este vídeo ter sido visto quase 500.000 vezes no YouTube.

Ou aqui.

Quando o discípulo revela o mestre

A meu amigo Luiz Blasi, que adora David Oistrakh

Otto Maria Carpeaux foi um intelectual muito importante na vida cultural brasileira do século passado. Foi respeitadíssimo e com merecimento. Não apenas foi o autor de uma imensa História da Literatura Ocidental em 8 volumes, como foi importante crítico literário. Escreveu também livros de crônicas, foi colunista em revistas, enfim, teve a popularidade possível a quem de dedica seriamente à cultura; ou seja, quase nenhuma. Carpeaux tinha algo de incomum: uma infalível sensibilidade para identificar já na estreia quem se tornaria destaque literário em nosso país. Mas tantos méritos lhe davam crédito para cometer erros imensos e raros em outros lugares, principalmente na tal História da Literatura. A forma como descartou alguns escritores — como, por exemplo, Laurence Sterne — certamente lhe causa problemas póstumos.

Lá pelo final dos anos 50, Carpeaux escreveu uma Nova História da Música. É um livro utilíssimo para quem está começando a gostar de música erudita, pois traz um vasto painel cronológico da evolução da música desde a época medieval, mas é curioso como as pessoas que avançam no conhecimento do assunto, passam a rejeitar o livro como se fosse um mero Eu e a Música. E com razão. Em sua história da música, ele foi bastante agressivo com alguns compositores que detestava e muito indulgente com quem adorava. (Neste minuto, penso que minha devoção à Bach e Bartók deve-se em boa parte a ele). Sua avaliação de Tchaikovski é simples. Em mais ou menos duas páginas, Carpeaux detona o famoso russo. Tchaikovski era mau orquestrador, desrespeitava algumas convenções, “jogava fora” temas de uma forma meio incompreensível — por que Tchai não retoma o motivo das quatro notas iniciais de seu Concerto Nº 1 para Piano e Orquestra?, aquilo é um achado!

E nos anos 70 eu era um adolescente e lia Carpeaux. Por inexperiência, assumia todos os seus gostos. Como Carpeaux escrevia maravilhosamente e era inteligente, sedutor, radical na medida certa e sofisticado para a época, a leitura da Nova História parecia uma forma de criar uma ponte sobre minha vasta insegurança. Obviamente, assumi seu desprezo por Tchaikovski.

Muitas águas passaram e, anos depois, me apaixonei pela música de Shostakovich. Quem acompanha meu blog talvez lembre da série que escrevi em 2006, ano do centenário de Shosta. (A propósito, um dia juntei tudo aquilo, deu 36 folhas A4…).  Bem, mas digo isso apenas para deixar claro que eu tenho suficiente vivência com a obra de Shosta para reouvir com atenção algumas obras de Tchaikovski e cair do cavalo.

Pois hoje sei que o compositor Dmitri Shostakovich, tal como o conhecemos, não existiria sem Piotr Tchaikovski. Pois as ideias que aparecem prontas em Shosta nasceram em Tchai. Pois Shosta só pode ser tão, mas tão emocional, colorido e maluco porque Tchai fez quase o mesmo antes. Pois Tchai era o aval para Shosta ser tão expressivo e exagerado, principalmente nas Sinfonias.

Relendo muitas entrevistas de Shostakovich, li o que antes pensara ser mera manifestação de ufanismo: ele conhecia minuciosamente a obra de Tchaikovski. Grande parte daquilo que Shosta desenvolveu em suas sinfonias estão em Tchai, nas sinfonias e Abertura de Romeu e Julieta. Há ali todo um Shostakovich a ser amadurecido, ali está a alma russa e as melodias russas segundo Shostakovich. Resultado: não falo mais mal de Tchaikovski. Passou a ser, da noite para o dia, um compositor fundamental… Confiram! Ouçam a Abertura Romeu e Julieta e digam-me se não há nela um Shosta mais meloso, mais delicado. Hein? Hein? Nunca o amor de Shosta por Tchai foi tão tangível para mim antes de ouvir a citada Abertura. É um tapa na cara, é estupefaciente.

Abaixo, mostro um dos melhores vídeos de todo o YouTube. Trata-se de uma gravação do Concerto Nº 1 para Violino e Orquestra de Shostakovich. O violinista é David Oistrakh, a quem o concerto é dedicado. Há várias versões no YouTube. A que escolhi está completa, mas o que me interessa mostrar começa aos 4 minutos do vídeo abaixo (o 3º de cinco). É o terceiro movimento do concerto e seu segundo movimento lento. Começa altamente dramático e, aos seis minutos, torna-se perfeitamente tchaikovskiano,

e abaixo (1min50) começará a longa cadenza do mesmo movimento, notem a inversão em relação ao habitual: o movimento que começa arrebatado termina tristíssimo. Puro Shostakovich em continuidade a Tchai.

E aqui começa o típico finale de Shostakovich. Espetacular e emocionado como aquele Capricho Italiano.

Este concerto, como já disse, foi dedicado a David Oistrakh, o violinista desta gravação que vocês viram, se viram. Existe o registro do telefonema que Oistrakh fez para Shosta logo após a estreia. O tom da conversa é de amizade formal, respeitosa. O compositor diz que o concerto foi melhorado. David começa a se desculpar por ter acelerado aqui e ali, faz algumas perguntas, nota-se que está constrangido, que entendeu a resposta de Shostakovich como uma ironia e que aceitará a reprimenda. Ouve Shosta dizer:

— O concerto é teu, estava tudo certo, cada andamento. Eu não sabia que era tão bom, sabe? Você iluminou a partitura, ouvi coisas que não imaginara.
— Mas não incluí nada, Dmitri…
— Claro que não, David. Eu fiquei muito feliz, você entendeu a música melhor do que eu.

E deve ser verdade. Shostakovich foi um tremendo compositor, mas sabemos que o um grande executante pode fazer por uma música. Quem ouviu o vídeo pode comprovar.

(A gravação desta conversa — que transcrevi de memória sujeita a chuvas e trovoadas — é o último som que se ouve no filme de Alesandr Sokurov, dedicado a Shostakovich, Sonata para Viola).

Então, o título do post se manteve: Shosta revelou Tchai para mim e talvez para outros e Oistrakh revelou o Concerto para Violino e Orquestra a Shostakovich. Não, eu não revelei nada de Carpeaux.

Michael Jackson é um vírus / Semelhanças

Sim, e meu antivírus já ficou todo eriçado com a possibilidade de ele penetrar em meu notebook, mesmo ele sendo um Dell púbere de mais de três anos.

Michael Jackson era um gênero de ruína moderna que nunca conseguiu me interessar. Mesmo com toda a sedução que a palavra “decadência” possui para todos os leitores, Jackson parecia estar em outro mundo, só compreendido por Liz Taylor e seus fãs. Além do embranquecimento, do nariz de múmia, das bolhas (pois ele dormiu em bolhas de vidro numa época, não?), de balançar bebês em sacadas, de comprar e perder os direitos sobre a obra dos Beatles, das acusações de pedofilia, do casamento com a filha de Elvis Presley, do seu sítio Peter Pan-like, do casamento com sua enfermeira e de um monte de loucuras, pijamas, roupas, fantasias e excentricidades, o que havia nele? Ah, também tinha sua belíssima dança e, lá atrás, bem lá atrás, talvez alguma música.

Delas só consigo lembrar de Thriller e Black or White e mesmo assim só acho legal os videoclipes. Caetano Veloso costumava cantar Billy Jean, porém, francamente, nunca entendi direito a melodia, até porque nunca ouvi o original. Sou um ET que quase só ouve eruditos — agora mesmo estou ouvindo Fasch — e jazz. Além do mais, não compreendo um negro que fica branco, alegadamente em razão do vitiligo. Aliás, toda sua figura transformada por operações, mais a roupa, o rancho e a cobertura insistente da imprensa, sempre me mostraram que Michael era um jeca enlouquecido.

O fim de Michael Jackson e o de Farrah Fawcett, aos 50 e 62 anos, não me causam nenhuma comoção, mas fico encasquetado com uma coisa: são ídolos que explodiram quando eu já tinha idade para rejeitá-los. Ou seja, são pessoas para mim muito jovens e próximas de meus 51 anos.

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Ontem, estávamos vendo As Confissões de Henry Fool e meu filho apontou semelhanças entre:

O ator James Urbaniak (figura comum nos filmes de Hal Hartley) e Dmitri Shostakovich

De novo, como contraprova:

E, em linha menos artística, Mahmoud Ahmadinejad e eu:

Para que recontar os votos, porra?

Shostakovich: Sinfonia Nº 10 (2º Mvto: Allegro, 3º Mvto: Fragmento do Allegretto )

A grande imprensa brasileira parece proibida de tecer observações elogiosas a quaisquer aspectos da Venezuela, mas tal preconceito não é de nenhuma forma seguido pelos europeus. Lá, Hugo Chávez é apenas eventualmente o outro nome de Satanás e a Orquestra Jovem Simón Bolivar da Venezuela tem recebido enorme atenção de alemães, ingleses e espanhóis. Por exemplo, a filmagem acima ocorreu no Royal Albert Hall de Londres, no exato dia em que eu completava 50 anos, em 19 de agosto de 2007.

Mas aí você me pergunta: o que é esta orquestra, quem é o rapaz que a rege? A Simón Bolivar é a orquestra líder de outras 120 orquestras de jovens venezuelanos. Trata-se de um programa chamado El Sistema, criado em 1975 pelo maestro José Antonio Abreu e que viabiliza a educação musical às crianças mais pobres do país. Ou seja, há milhares de jovens em torno dos 150 músicos da Simón Bolivar. Mais exatamente 250.000. São pessoas que nunca saberiam da música que trazem em si não fora o El Sistema apoiado pelo diabo. Atualmente, a orquestra grava para a Deutsche Grammophon e já há venezuelanos vencendo concursos na Orquestra Filarmônica de Berlim e em outros conjuntos europeus. E Gustavo Dudamel? É um espetacular talento de 27 anos que Claudio Abbado saúda como o novo Bernstein. Ele acaba de ser contratado como regente titular da Filarmônica de Los Angeles, mas não abandonará a Simón Bolivar.

Ontem, Zero Hora publicou um artigo em seu Caderno de Cultura, porém esqueceu-se de Chávez. É estranho, pois trata-se de um projeto importantíssimo de inclusão cultural que é inteiramente bancado pelo governo da Venezuela. Se é mais antigo que Chávez, este soube avaliá-lo e acelerá-lo. E pasmem: será copiado na Inglaterra. ZH diz que o será também no Rio Grande do Sul… Na Venezuela, ele salva crianças a um custo de 30 milhões de dólares anuais. Uma bagatela. São 120 dólares por criança ao ano, 10 ao mês. Apenas R$ 25,00 por criança.

A música. A Sinfonia Nº 10 é a primeira que Dmitri Shostakovich escreveu logo após a morte de Stálin. O Allegro acima seria um retrato da violência do grande desafeto do compositor. Shosta nunca negou. O furacão Dudamel sai-se maravilhosamente. Já o Alegretto que o sucede (tela abaixo) é gentil e apresenta pela primeira vez uma assinatura do autor. Aos 3min35, há um solo de trompa — que, se não me engano, é repetido mais três vezes — cujas notas, em notação alemã, são D-S-C-H… (em alemão, Dmitri Schostakovich). Ou seja, Stálin morreu, mas eu estou vivo. É música de primeiríssima linha, cheia de alusões e intenções, muito complexa e inteiramente inadequada a uma orquestra despreparada.

Sigam com o início do Allegretto, 3º movimento da décima de Shostakovich. É coisa de gênio. O resto pode-se encontrar no Youtube ou em mp3: aqui na versão de Kondrashin e aqui na de Mravinsky.

Obs.: Quem tiver browsers rebeldes deve clicar aqui para assistir a primeira parte e aqui para a segunda.