Acontece com todos os pianistas: aquele momento aterrorizante quando você está no palco e não consegue se lembrar do que vem a seguir. Certa vez, meu ex-professor, Jean-Paul Sévilla, estava tocando as Variações Goldberg de Bach quando, ao final da Variação 7, não conseguia se lembrar como começava a Variação 8. No momento em que ele saiu do palco para encontrar sua partitura, ele lembrou, mas sua noite já estava arruinada. Depois aconteceu de Vlado Perlemuter sair de casa para a sala de concertos, quando questionado pela esposa se tinha esquecido de alguma coisa, um amigo lhe disse brincando: “O começo do concerto!” Quando, algumas horas depois, Vlado subiu ao palco em Paris para executar o Quarto Concerto para Piano de Beethoven (que começa com um solo de piano famoso), ele não conseguiu encontrar as notas. Minha própria vez chegou quando eu tinha 50 anos, tocando o Cravo Bem Temperado de Bach (todas as quatro horas e meia dele) de memória em Stuttgart. Foi parte de uma turnê mundial na qual toquei aquela obra gigantesca 56 vezes em 26 países. Naquela noite, no entanto, entrei errado na grande fuga em Lá menor do Livro 1 e não consegui encontrar como sair… Eu tive que levantar para ir buscar a partitura. Você se sente muito envergonhado — mas somos apenas humanos e às vezes isso acontece.
No geral, fui abençoada com uma memória excelente — suponho que alguns diriam até prodigiosa, já que executei as obras solo completas para teclado de Bach (com exceção de A Arte da Fuga), as 32 sonatas de Beethoven e quem sabe quantos milhões de outras notas da memória ao longo dos anos. Sempre pensei que seria uma boa ideia medir meu cérebro antes de memorizar todo aquele Bach e depois novamente para ver como ele havia se desenvolvido e mudado. Tarde demais agora. Aos 64 anos, ele definitivamente está diminuindo, e a memorização tornou-se uma atividade muito consciente, frustrante e demorada. Mas continuo nisso porque a memória é um músculo que precisa ser constantemente usado.
Quando você é um jovem pianista, a memória vem quase sem pensar. Uma grande parte dela é memória reflexa; acrescente a isso a memória auditiva (especialmente se, como eu, você tivesse ouvido absoluto), a memória visual (alguns pianistas, como Yvonne Loriod, que era casada com Olivier Messiaen, tinha uma peça memorizada depois de olhá-la apenas uma vez) e a memória de associação, e você tem um processo relativamente rápido.
Digo que eu “tinha” afinação perfeita porque ela diminuiu com a idade. Quando criança, eu conseguia nomear instantaneamente todas as notas, mesmo nos acordes mais complicados. Agora preciso de tempo para pensar nisso. A tonalidade perfeita está relacionada à memória: se uma fica fraca, o outra também. Todo mundo de uma certa idade que já encontrou esse problema. Isso torna a memorização uma tarefa muito mais complicada.
A memória é um assunto sobre o qual não gostamos de falar – é como o sexo, o amor e as crenças religiosas – muito provavelmente porque temos medo de perdê-la. É preciso coragem para admitir até para si mesmo que sua memória está falhando. Muitas vezes, amigos ou familiares percebem primeiro. Não devemos nos sentir envergonhados, mas sim abraçar esse sinal normal de envelhecimento e fazer tudo o que pudermos para manter nosso cérebro vivo. Fico chateada quando não consigo lembrar onde coloquei meu cartão de embarque, como aconteceu esta manhã em Heathrow (apenas para encontrá-lo no compartimento externo da minha mala, onde devo tê-lo colocado cinco minutos antes), quando não me lembro se tomei minha pastilha diária de TRH (terapia de reposição hormonal) — agora há algo que ajuda mulheres mais velhas com memória! –, e quando cometo o mesmo erro repetidamente ao aprender uma nova peça.
No verão passado, fui presidente do júri da competição de Bach em Leipzig, na qual os competidores podiam escolher se tocariam de memória ou com a partitura. (Com a partitura hoje em dia significa principalmente “com um iPad” acrescentado de um pedal para virar as páginas na tela, embora um concorrente tenha usado o aplicativo que permite fazer uma careta facial para virar a página – algo que achei profundamente desconcertante). Na idade deles, eu nunca teria sonhado em usar a partitura, mesmo para complicadas peças contemporâneas. No entanto, alguns deles o fizeram. Eles não poderiam ter gasto o tempo extra necessário para memorizar a música? Sei que a tendência hoje em dia é dizer que não importa, mas sei que quando consigo realizar algo com segurança de memória, isso me dá uma sensação maravilhosa de liberdade e realização.
Uma das falhas mais comuns dos pianistas é que passamos muito tempo tocando as notas e pouco tempo pensando no que estamos fazendo. “Pense 10 vezes e depois toque uma vez” já dizia o sábio Franz Liszt, que balbuciava mais notas por minuto do que qualquer outro (e que, junto com Clara Schumann, foi o primeiro pianista a tocar de memória – ato considerado arrogante pela público da época). Na verdade, o melhor trabalho de memória é feito longe do teclado – apenas olhando a partitura, memorizando seu dedilhado, as harmonias, os lugares onde é fácil errar, os intervalos, quantas notas há em um acorde, a dinâmica, o fraseado; nada é simples ou evidente demais para passar despercebido. Você deve se visualizar tocando a peça sem estar em um teclado. Então depois vá, toque e você ficará surpreso com o progresso que você fez.
Mesmo quando você está muito concentrado, o cérebro é constantemente assaltado por pensamentos estranhos e muitas vezes tolos. Como um pianista tocando de memória, você se treina para lidar com isso. Eu chamo isso de modo de dupla concentração. Tosse da plateia (as pessoas percebem que apenas uma tosse no lugar errado pode facilmente derrubar tudo?); o inevitável celular (sigo como se nada tivesse acontecido, senão piora as coisas); até uma vez tive um besouro subindo lentamente pelo meu braço nu durante uma fuga de Bach. Você tem que ser capaz de contar com sua concentração para passar, não importa o que aconteça.
Você também deve se treinar para pensar no que vem depois na partitura ou na memória — mesmo que apenas por uma fração de segundo. À medida que o cérebro envelhece, isso se torna ainda mais difícil, mas necessário. Acho que é por isso que os pianistas mais velhos em geral (Martha Argerich sendo a exceção) tendem a tocar mais devagar do que os mais jovens, para quem a velocidade costuma parecer o objetivo final. É também por isso que, como público, ficamos mais perturbados com os andamentos rápidos à medida que envelhecemos. É demais para nossos cérebros mais lentos processarem.
Aos 20 anos, morei no estúdio de um artista acima de uma filial do Banque Nationale de Paris por dois anos. O pessoal do banco sabia que eu era a única tocando no andar de cima, praticando, e eles afirmaram não se importar, exceto quando eu “tocava a mesma coisa repetidamente”. Para roubar uma observação do ator Roger Allam, a palavra francesa para ensaio é “répétition”, e é isso que você precisa fazer. Arranje um piano silencioso se isso deixar sua família ou vizinhos loucos; Costumo ter um em quartos de hotel quando estou em turnê.
Outra coisa que você pode fazer para treinar o cérebro é pensar em várias coisas ao mesmo tempo. Você pode praticar isso estando em um restaurante lotado e ouvindo duas ou mais conversas simultaneamente. Você precisará disso se estiver tocando uma fuga de Bach, que pode ter até cinco vozes, cada uma tão importante quanto a outra. Quando subo no palco, lembro-me de “cantar” cada nota; na verdade, quando pratico, estou constantemente cantando, tentando imitar a voz humana em um instrumento cujos sons são produzidos por martelos batendo nas cordas. Ao cantar, envolvo minha concentração e minhas emoções, assim como minha memória. Ao contrário do meu compatriota Glenn Gould, quando estou no palco ou em um estúdio de gravação, faço isso silenciosamente.
Se tudo isso soa muito cansativo então, acredite, é mesmo. Faça pausas quando sentir que seu cérebro está cansado e certifique-se de que ele receba todos os nutrientes de que precisa. Álcool e pílulas para dormir não ajudam – e é por isso que evito o primeiro e me recuso a usar o segundo. Nos bastidores das salas de concerto, tenho os alimentos para o cérebro prontos: sardinhas enlatadas, abacates, manteiga de amendoim, biscoitos de centeio, mirtilos, bananas e muita água.
Muitas vezes ouço as pessoas dizerem que não conseguem mais memorizar nada. Sim, mas você realmente tentou? Se você não é músico, pegue um poema, uma receita ou o telefone dos seus melhores amigos. Acima de tudo, não desista. Conheça o seu cérebro e trabalhe nele.
Sempre digo que não conseguiria decorar as obras completas de Bach e ter quatro filhos. Isso teria sido impossível. Eu não tenho nenhum. Mas tive uma vida maravilhosa na companhia de algumas das maiores mentes que já existiram, e para eles, e para meus pais músicos que me colocaram na frente de um piano de brinquedo aos dois anos de idade, eu sou para sempre grata.
Quando Maurizio Pollini venceu o Concurso Chopin de Varsóvia em 1960, fê-lo com uma maturidade musical que surpreendeu o júri. “Esse garoto toca melhor do que qualquer um de nós”, comentou Arthur Rubinstein na época. O controle técnico e intelectual que esse jovem pianista de 18 anos exibia em cada canto da partitura revelava uma capacidade de análise muito superior não apenas à média de seus contemporâneos, mas à de muitos talentosos intérpretes. Pollini aprofundou-se na essência do texto musical para revelar a lógica de sua construção, a coerência de sua estrutura e a precisão de seu ditado. Ainda assim, a música não era para ele um terreno governado pelas leis do determinismo impassível. Suas versões transmitiam um vigor na expressão de frases e ritmos que despertavam o entusiasmo do ouvinte.
Há algo de didático no estilo pianístico de Pollini no mais alto sentido da palavra. Interpretar, para o pianista italiano, implica ao mesmo tempo em esclarecer, explicar, fornecer ao público um fio condutor que lhe permite compreender os motivos pelos quais a música flui de uma determinada forma. O componente emocional, sempre essencial, deve vir acompanhado do elemento analítico e racional para alcançar a plenitude da mensagem na consciência auditiva.
Uma das marcas de Pollini é sua maneira de estabelecer seus programas de recitais. Neles, o pianista italiano tem-se caracterizado por misturar frequentemente peças do repertório clássico e romântico com obras do século XX (ou seja, de todo o século XX, não apenas das primeiras décadas). Para Pollini, a criação musical é um continuum que não conhece fraturas, uma forma de pensar os sons e, portanto, é errado isolar certas linguagens como se fossem compartimentos estanques. Seus esforços foram na direção oposta: mostrar o que é clássico nas páginas contemporâneas e o que é contemporâneo no repertório clássico. Assim surgem os chamados “Projetos Pollini”, nos quais o diálogo entre o passado e o presente ocorre da forma mais natural. Pode acontecer, por exemplo, que o público tenha ouvido na mesma noite o Hammerklavier de Beethoven e a Sonata para piano nº 2 de Boulez (uma obra que Pollini tocava de cor em sua época de ouro).
Precisamente o Hammerklavier, gravado em 1976, é uma amostra ideal das abordagens de Pollini. Principalmente a fuga final, que talvez seja o momento culminante de sua versão. Para além do espantoso controle técnico, à disposição de poucos pianistas, Pollini conduz o ouvinte pelos meandros do contraponto e revela toda a modernidade do pensamento beethoveniano, a forma revolucionária como o compositor molda os materiais (sublinhando, por exemplo, o carácter quase estrutural dos trinados) e seu revolucionário conceito sonoro, onde o discurso musical parece às vezes transfigurado em termos de pura energia.
Aprovo totalmente esse movimento de grandes violinistas no sentido de formarem grupos de câmara regulares. A Mutter iniciou com certa hesitação, já Ehnes, Ibragimova e Jansen se atiraram.
James Ehnes já gravou 3 CDs com o Ehnes Quartet, Alina Ibragimova tem o seu Chiaroscuro Quartet e Jansen tem seu Janine Jansen and Friends.
O repertório para os principais solistas tocarem com orquestras é limitado. A plateia gosta daqueles poucos e conhecidos concertos. Se eu já enchi deles, imagina os solistas!
São eles o Concerto de Beethoven, o de Brahms, o de Tchaikovski, o de Sibelius, os de Mendelssohn, Shostakovich, Prokofiev, Bruch, talvez Bartók. Há uns concertos duplos, há os barrocos nos quais nem todos se aventuram — ainda bem! — e dá para solar Paganini e Bach. E o resto raramente é explorado pelas gravadoras e plateias.
Mas o mundo se abre para eles na música de câmara.
Algo aconteceu ontem durante a Marcha Fúnebre da Eroica (Sinfonia Nº 3), de Beethoven. Eu e mais dois amigos confessamos que derramamos umas furtivas e dignas lágrimas durante a execução do movimento pela OSPA, mas creio que o clube de lacrimejantes seja bem maior.
Minha amostragem é 0,0001 % de um DataFolha.
Ano de muitas mortes, de limitações e absurdos. Tá todo mundo frágil. Aí vem Beethoven e já viram.
Há um capítulo muito famoso, mais exatamente o oitavo, no Doutor Fausto de Thomas Mann, em que o imaginário professor Kretzschmar dá uma aula sobre o tema “Porque Beethoven não escreveu o terceiro movimento da Sonata Op. 111“.
Talvez não haja verdades absolutas sobre algo tão aberto, criado numa arte que é intangível ar sonoro, mas o resultado é que, relendo o espetacular capítulo, resolvi pensar um pouco sobre uma questão que, se é significativa no romance de Mann, é apenas curiosa fora dele. Houve um corajoso Schindler (jornalista ou músico) que perguntou a Beethoven sobre a razão da inexistência do terceiro movimento. A resposta do compositor foi típica de seu mau humor: “Não tive tempo de escrever um!”. Mann explorou habilmente a história e só quem leu o Dr. Fausto sabe da profunda impressão que a aula de Kretzschmar causou a Adrian Leverkühn, o personagem principal do livro.
Pois o incrível é que li que havia a intenção de um terceiro movimento para esta sonata e que Beethoven parece ter desistido dele. Inclusive no manuscrito onde está o primeiro movimento há uma anotação: segundo movimento – Arietta; terceiro movimento – Presto. Também não encontrei referências de que a Arietta (segundo movimento) fosse algum tipo de adeus, conforme disse o Kretzschmar de Mann. Claro que a invenção dessa despedida foi uma das muitas liberdades poéticas tomadas pelo ultra entusiasmado professor. Está bem, foi a última sonata para piano de Beethoven, porém ao Op. 111 seguiram-se obras até o Op. 137 e dentre estas há todos os últimos quartetos, a Nona Sinfonia (Op. 125), as Variações Diabelli (Op.120) , as Bagatelas (Op. 126), a Missa Solemnis (Op. 123), etc. Ou seja, quando Beethoven escreveu o Op. 111, ele era um compositor em plena atividade e com vários projetos diferentes a desenvolver, não obstante a doença.
Porém, o mais interessante é tentar explicar porque esta obra provoca tanto e a tantas pessoas. A linguagem altamente abstrata que Beethoven alcançou em suas últimas obras nos perturba tanto aqui como nos últimos quartetos. A imaginação de quem criou a Arietta é arrebatadora. O professor Kretzschmar tem toda a razão ao proclamar que tudo aquilo vem de um simples dim-dada, ou seja, de três notas que não despertariam a atenção de nenhum artista comum, e é sobre este quase nada que Beethoven cria uma imensa construção, onde há lugar para a delicadeza, a simplicidade, o sublime e até para a explosão de uma desenfreada dança semelhante ao jazz que os negros inventariam 100 anos depois. Ele sempre foi dado à utilização de temas curtos e afirmativos, mas convenhamos, aquele dim-dada está mais para um balbucio de criança… Não seria isto o que nos surpreende tanto? A música se inicia como um balbucio, depois cresce mui modernamente, quase que por livre associação e depois retorna ao início. Será esta a despedida a que Kretzschmar se refere? Nascimento, vida e morte?
Não reli a aula de Kretzschmar antes de escrever este post. Fazendo rápida e severa autoanálise penso que talvez tenha entrado neste assunto apenas como pretexto para pensar em músicas que não são somente belas, mas demonstrativas de inteligência e engenhosidade. Outras do mesmo gênero seriam os quartetos de Béla Bártok, alguns dos últimos quartetos de Beethoven (principalmente o Op. 132), as Variações Goldberg, a Oferenda Musical de J.S. Bach e outras raríssimas. Não sei se me faço entender, mas acredito que o espírito mozartiano — que adentra muito no campo emocional — não poderia entrar aqui. São obras por demais cerebrais. São as minhas preferidas.
Eu vou dizer pra vocês uma coisa muito séria. A culpa de 2020 estar sendo esta coisa que está sendo é de Beethoven. Sim, do cara das beterrabas e da Nona.
O cara faz 250 anos de nascimento este ano e todo mundo ia comemorar o ano de forma muy contenta. Estava tudo programado e alinhavado, mas estavam fazendo festa para festejar a existência de um músico surdo que seguiu compondo, que escreveu seu maior quarteto após quase morrer de um mal que não entrarei em detalhes devido à fedentina, que era alcoolista mas gostava de um vinho húngaro que vinha com mercúrio e que talvez o tenha matado, que era feio de doer, que era revolucionário e todos sabem o destino desses caras… Ô, desglória!
Bem, pensando melhor, era pra comemorar mesmo. Vem, vacina russa. Chega logo, porra, o ano tá acabando e o níver dele é dia 17 de dezembro!
É incrível o número de bons combositores cuja primeira letra do sobrenome é B. Estava bebendo vinho agora e falando pra Elena: Bach, Beethoven, Bartók, Brahms, Bruckner, Biber, Buxtehude, Britten, Borodin, Bowie, BacCartney, Barber, Boulez, Bizet, Brokofiev, Bernstein, Beatles, Berlioz, Bahler, Bozart, Berg, Bussorgsky, Bellini, Bley, Bottesini, Bendelssohn, Joe Bean — autor de Garota de Ibanema –, enfim, são muitos.
Texto publicado no Caderno de Sábado do Correio do Povo de hoje
Ouvir uma obra da juventude de Beethoven e logo depois outra da maturidade é um choque. Poucos compositores evoluíram tão espetacularmente. Mozart vinha fazendo o mesmo, mas viveu 21 a menos e não alcançou o romantismo. Beethoven alterou sua linguagem de tal forma que acabou por tornar-se a própria transição da música do período clássico para o romântico. Isto deu-se certamente por uma necessidade interna, mas fatores externos também o influenciaram.
A vida de Ludwig van Beethoven (1770-1827) mostrou-se tão adequada a romances e filmes que as lendas em torno de sua figura foram se criando de forma indiscriminada, às vezes criando paradoxos. Sua surdez, por exemplo, contribuiu muito para popularizá-lo e para que fosse lamentado. Victor Hugo dizia que sua música era a de “um deus cego que criava o Sol”, mas quem o conhecesse talvez reduzisse o tom de piedade. Beethoven era uma pessoa absolutamente segura de seu talento – não mentiríamos se o chamássemos de arrogante – e tinha perfeita noção de quem era e do que representaria.
Também não foi uma pessoa fácil. Em seus anos de aluno, Beethoven utilizava harmonias que eram consideradas inadmissíveis. Quando lhe diziam que eram estranhas, perguntava: “Quem as proibiu?”. Há um fato muito curioso em sua formação. Desde cedo o compositor teve uma noção muito clara daquilo que lhe faltava: conhecer literatura. Ele sabia que seu talento poderia naufragar sem um arcabouço cultural. Com entusiasmo, ele atirou-se à leitura de Homero, Shakespeare, Goethe e Schiller. Pensava que só assim – e tendo bons professores de composição – poderia ser o que tinha planejado para si: tornar-se o Tondichter da Alemanha, o poeta dos sons de seu país.
As obras escritas antes de seus 30 anos obedeciam e traíam seus mestres. Apesar de respeitar as estruturas aprendidas, já são claros os procedimentos expressivos que utilizaria nas fases seguintes – os temas curtos e afirmativos, os súbitos silêncios, o uso simultâneo de graves e agudos do teclado, a primazia do ritmo. O seu “classicismo vienense” era muito pessoal. É tradicionalmente aceito dividir a vida artística de Beethoven em três fases, mas prefiro dividi-la em quatro. A primeira começa com a mudança para Viena, em 1792. Uma fase leve e ousada como Mozart.
Nove anos depois, em 1801, Beethoven afirmou não estar satisfeito com o que compusera até então, decidindo tomar um “novo caminho”. Tudo parecia levá-lo ao épico e, em 1803, surge o primeiro grande fruto: a Sinfonia Nº 3, Eroica. A obra seria dedicada a Napoleão Bonaparte — Beethoven tinha admiração por ele e pelos ideais da Revolução Francesa. Porém, quando o corso autoproclamou-se imperador da França em maio de 1804, Beethoven foi até a mesa onde estava a sinfonia já pronta, pegou a primeira página e riscou o nome de Napoleão com tanta força que ficou um buraco no papel. Perdeu Napoleão.
O ciclo épico iniciado pela Eroica seguiu com obras verdadeiramente espantosas e originais, que cantavam a força da humanidade, a paixão pela liberdade e a vitória do espírito humano. Vieram a Sinfonia Nº 5, a Nº 6, Pastoral, as sonatas Waldstein e Appassionata, assim como o Concerto para Piano Nº 5, chamado Imperador. Eram músicas intensas, triunfantes e românticas.
Ao final da primeira década do século XIX, começa a terceira fase. Ele já era reconhecido como o maior compositor de sua época, e cometeu algumas, digamos, obras polêmicas. Entre 1813 e 17, passou por uma crise criativa, levado talvez pela progressiva surdez — ele começara a se comunicar com as pessoas por gestos ou por escrito — ou pela perda das esperanças matrimoniais. Mas seguiu compondo: escreveu a pior das músicas em A Vitória de Wellington. “É uma estupidez”, admitiu, mas o público saudou o triunfalismo da obra. Era o músico nacional e tudo o que fizesse era adorado.
Sua sorte foi ter conhecido a Condessa Maria Erdödy, grande e inspiradora amiga que conseguiu retirá-lo da letargia. Ele recomeçou, em 1818, a compor lentamente as que seriam, talvez, suas maiores obras. À Condessa foram dedicadas as duas esplêndidas Sonatas para Violoncelo e Piano Op. 102.
E começou a quarta fase, a mais vanguardista. Há obras muito populares neste período — dentre elas a Sinfonia Nº 9 —, mas há também aquelas que, de tão perfeitas, serviram de base para muitos compositores que vieram depois. A irrepetível sequência perfeita e revolucionária começou com a Sonata para Piano, Op. 106, Hammerklavier. Beethoven teve que prestar explicações a seus contemporâneos, que não a entenderam, o que gerou mais algumas de suas deliciosas respostas mal humoradas. “Não pensei no pianista quando a escrevi”. “Não gostam agora? Gostarão mais tarde. Não escrevo para vocês, escrevo para o futuro.”
As sonatas seguintes, de Op. 109, 110 e 111, são inacreditáveis, considerando-se a época em que foram compostas. A Sonata Op. 111 gerou um dos mais belos momentos da literatura de todos os tempos: a aula do Prof. Kretzschmar em Doutor Fausto, de Thomas Mann. O imaginário professor Kretzschmar dá uma aula sobre o tema “Por que Beethoven não escreveu o terceiro movimento da Sonata Op. 111”. A ideia de Mann nasceu quando um descuidado pianista contemporâneo de Beethoven perguntou sobre o motivo da inexistência do mesmo. A resposta do compositor foi típica: “Não tive tempo de escrever um!”.
O futuro lhe abriria as portas como fez para poucos. No início do século XX, o escritor Romain Rolland acreditava ser o último beethoveniano. Não poderia estar mais enganado. Bartók, Xenakis, Varèse, Shostakovich e Schnittke foram decisivamente influenciados. Além disso, Beethoven tornou-se o mais popular dos compositores, o elo perfeito para aqueles que raramente ouvem a música erudita pudessem adentrar em um novo mundo.
Em 1824, surge a Sinfonia nº 9, Op.125, para muitos sua obra-prima. Pela primeira vez na história da música é inserida a voz humana em uma sinfonia. Os anos finais de Beethoven foram dedicados quase que exclusivamente à composição de quartetos de cordas. Os últimos quartetos são talvez suas obras mais profundas e visionárias. Elas foram encomendados pelo príncipe Galitzin, que pagou 50 ducados por cada. Pagou mesmo? Beethoven recebeu o pagamento apenas do primeiro. Embora o príncipe russo não negasse a dívida, os quartetos restantes só foram pagos aos herdeiros de Beethoven em 1852, 25 anos após sua morte.
Na opinião de Beethoven, o quarteto — que fora inventado por Haydn — era a manifestação mais alta da arte musical e ele utilizou-o como veículo de expressão daquilo que parecia ser um projeto de renovação de sua música.
O Quarteto Op. 132 é absolutamente pessoal, como se vê nas anotações na partitura. Beethoven passara um inverno sem complicações de saúde, mas a primavera trouxera-lhe moléstias pulmonares, digestivas e intestinais que o debilitaram muito, a ponto de deixá-lo de cama por vários dias. Sua situação foi comentada musicalmente na obra. Na partitura, há anotações como “ação de graças de um convalescente”, “sentindo novas forças” ou “Tu (referindo-se a Deus) me devolveste a vontade de viver”. Trata-se de um caso único: um compositor comentar problemas tão terrenos em música. Normalmente, quando se fala na dor que uma música representa, em geral são dores da alma, dificilmente sofrimentos físicos.
Assim, a vida de Beethoven foi finalizada por obras de um tipo nunca ouvido antes. Seus contemporâneos tinham dificuldades de entender aqueles enormes quartetos, às vezes com sete movimentos.
Beethoven foi o primeiro romântico que fez questão de ter liberdade de expressão. Se foi condicionado por algo, foi pelo equilíbrio, pelo amor à natureza e pelos grandes ideais humanistas. Inaugurou a tradição do compositor que escreve música para si, não seguindo os desejos de um mecenas ou a moda. Em uma época em que tanta gente é chamada de gênio, convém conhecer um que verdadeiramente merece ser chamado assim. Beethoven é do tamanho de Shakespeare, Cervantes, Bach, Homero, Dante e de outros poucos, bem poucos.
Andris Nelsons (1978) é um jovem maestro letão. Atualmente, ele é o diretor musical da Orquestra Sinfônica de Boston e da Gewandhaus Orchestra de Leipzig. Também já foi chefe da respeitada City of Birmingham Symphony Orchestra (CBSO). É uma estrela em plena ascensão e a Deutsche Grammophon já o contratou para gravar integrais das Sinfonias de Bruckner (Gewandhaus), de Shostakovich (Boston) e de Beethoven (com a Filarmônica de Viena). As duas primeiras séries ainda estão sendo gravadas, mas a de Beethoven foi lançada neste mês.
E que esplêndido trabalho Nelsons fez com os filarmônicos de Viena! Um Beethoven forte e redondo, escandaloso e alegre, porém jamais, mas jamais mesmo, grosso. Certo pessoal do século XX achava que para tocar Beethoven, em certos trechos mais agitados, era só dar ênfase e berrar que estava bom. Era tudo muito emocional. Isso é ignorar a cultura. Beethoven foi um enorme artista de transição do classicismo para o romantismo. Se este é um dos fatores que o torna tão grande, também nos obriga a abordá-lo com conhecimento.
E Nelsons, com fraseados muito trabalhados, vai pelo outro lado e mata a questão com classe. E a Filarmônica de Viena fala beethoveniano, respira Beethoven. Creio que Nelsons deva ter ouvido muito os músicos da orquestra. Sei que se trata de um homem profundamente sensível e inteligente, conheço músicos que trabalham com ele. Sei das surpresas que apronta e que costuma dialogar.
O desenho do primeiro movimento da Eroica é quase erótico com a mágica das passagens da melodia de um instrumento para outro. Isso se repete a cada sinfonia, sublinhando a qualidade da orquestração. Raramente ouvi coisa mais natural, fluida e perfeita. E a sonoridade nem se fala.
Bem, ouvi as 4 primeiras sinfonias de Beethoven com Nelsons de enfiada. As duas primeiras — que jamais chamaram minha atenção — cresceram muito. A Eroica está sensacional, apesar de certas alegres liberdades tomadas na Marcha Fúnebre. A 4ª nem se fala. Mas logo voltei à Eroica (3ª), que está anormal de tão boa. Depois fui para uma excelente 5ª, cheia de sinuosidades e plena de tradição no terceiro movimento. Mas parece que Nelsons se dá melhor na delicadeza, pois sua 6ª é um primor, uma campeã.
Não, me enganei, sua sétima — com a sucessão fantástica de danças e o rock pauleira do último movimento — é um primor.
(Comecei a frequentar os concertos de música erudita com a idade de 4 ou 5 anos. Meu pai me levava. Ele disse que, por uns 5 anos, eu sistematicamente dormia após dez minutos. Ele queria saber quando eu pararia com aquilo, ainda mais porque eu dizia que gostava de ir… Certamente gostava era da companhia dele, claro.
Mas houve um dia em que eu passei a não mais dormir. Foi quando assisti uma 7ª Sinfonia de Beethoven regida por Pablo Kómlos. Aquilo era enlouquecedor. Uma sucessão de agitadas danças com aquele Alegretto (uma Pavana) no meio.
Ouvi hoje a 7ª e, pela enésima vez… Toda aquela primeira impressão permanece viva. Eu sou o mesmo, de certa forma. De certa forma bem distorcida.)
A oitava está menos haydniana do que o costume e mais parruda. A nona se vem dentro do padrão de alta qualidade do restante. Adorei.
A DG rouba sempre a cena quando o assunto é Beethoven, né?
E Nelsons, contrariamente àquela outra grande estrela da DG no século XX, está mais pela música do que pelo negócio. Isto é muito claro.
E, para deixar claro, QUE NOTÁVEL ORQUESTRA É A FILARMÔNICA DE VIENA. Não creio que possa haver algo melhor atualmente!
Fui um adolescente tarado por música. Aliás, até hoje sou assim. É claro que ouvia muito Milton, Chico, Caetano, Edu Lobo e outros, mas minha preferência era pelo rock inglês. Grosso modo, meu mundo artístico girava em torno de Beatles, Led Zeppelin, Stones, The Who, Pink Floyd e Deep Purple.
Mas, entre 1973 e 74, entre os 16 e 17 anos, deixei rapidamente o rock de lado e me apaixonei pelos meninos J. S. Bach, Beethoven e Bartók. Eles pareciam ser fontes inesgotáveis, com os quais poderia viver minha vida até o final. Apesar de ouvir — sem exagero — mais uns 400 compositores eruditos, mantenho aquela impressão até hoje. Poderia ficar só com aquele trio. Afinal, há algo melhor do que Bach ou do que os últimos Quartetos de Beethoven e os 6 de Bartók? Não, não há.
Mas derivo. O que desejava dizer é que conheço e sei tudo de rock até 1973. Tenho os vinis da época em bom estado e a Elena, por exemplo, gosta muito de ver rodar meus discos dos Beatles no toca-discos que ainda mantenho. Mas não sei de mais nada do que aconteceu depois de 1974.
Então, neste domingo, a Ospa vai fazer um de seus concertos populares tocando Pink Floyd. Olhei a relação das canções e nada, não conheço porra nenhuma. Só o medley de The Dark Side of the Moon, claro, disco que conheço de verso e reverso. Do resto, nada.
Este foi um corte muito estranho. Após comprar o álbum duplo dos Concertos de Brandenburgo com o Collegium Aureum, tudo mudou e, olha, só segui comprando os discos do Chico (todos), da Mônica Salmaso (todos) um do Queen, um do Prince e outro do Beck.
E sei lá porque estou contando isso procês. Ah, por causa da Ospa.
Raramente um livro é tão prazeroso para mim quanto foi este. Fui amigo do Dr. Herbert Caro. Durante anos, aos sábados pela manhã, eu e um pequeno grupo de jovens íamos até o porão da King`s Discos, na Galeria Chaves, onde se vendiam discos de música erudita, menos para comprar discos e mais para ouvi-lo falar. As palestras eram sobre quase qualquer coisa, pois ele parecia dominar todos os assuntos relativos à música, literatura e artes plásticas. E havia os dias mais maravilhosos, onde um tema principal não se estabelecia e podíamos falar de Bach, Vermeer, Beethoven, Bosch, Mozart, Canetti, Thomas Mann, Hördelin e da literatura brasileira, tudo misturado. Não eram bem palestras, eram conversas, mas que conversas!
O Dr. Caro tinha algo de muito peculiar. Ele se expressava bem, tinha muito humor e, mesmo sabendo infinitamente mais do que nós, deixava-se interromper a cada momento. Ou seja, ele nos ouvia. Uma vez, brinquei que encontrara um problema em sua tradução de A Montanha Mágica. Ele se voltou para mim com simplicidade e disse que depois eu deveria lhe mostrar onde estava o equívoco. Todos riram, mas ele não. Ele achara natural que eu o corrigisse.
Ganhei este volume de presente de uma amiga da Bamboletras que sabia de minha relação com o Dr. Caro. É uma verdadeira relíquia e estou muito agradecido. Afinal, todos sabem que o Dr. Caro escrevia ainda melhor do que falava, vide suas inigualáveis traduções e notáveis crônicas. E ele tinha um uso peculiar do idioma, talvez apenas explicado pelo fato de conhecer as raízes dos vocábulos.
Bem, vamos contextualizar. O tradutor, crítico musical e erudito Herbert Caro foi um dos grandes alemães que aqui aportaram fugindo da perseguição aos judeus na Alemanha. Chegou em 1935. Antes de viajar, teve aulas de português — sim, ainda na Alemanha, aprendeu suas três mil primeiras palavras na língua de Camões e nossa gramática. Veio para Porto Alegre e, entre outros trabalhos, foi balconista de uma extinta livraria da Rua da Praia, a Americana. Na verdade, além de balconista, era gerente da seção de livros importados da livraria. Lá permaneceu por 5 anos. Enquanto trabalhava, publicava suas crônicas de livreiro no Correio do Povo. A coluna chamava-se Balcão de Livraria. Ele deixou a Americana antes de 1960.
Em razão da alta qualidade dos textos, as crônicas eram reproduzidas por jornais do centro do país. Caro costumava antes mostrá-las a Erico Verissimo, que as revisava, mas a voz é de Caro. (Conheço-a bem por ter lido durante anos, semanalmente, suas críticas sobre música erudita, também publicadas no Correio).
O livro Balcão de Livraria é de 1960 e traz 17 crônicas selecionadas. Os textos são deliciosos, o humor está sempre presente e é refinadíssimo. A forma como Caro dominava o português é algo absurdamente perfeito. Os temas tratam desde de pedidos errados ou amalucados de clientes, como propostas educacionais para promoção da leitura no Brasil dos anos 50-60, reclamações de que não há no Brasil publicações para livreiros e editores que tragam os lançamentos mensais de uma forma organizada e reflexões gerais sobre o ofício e a vida brasileira.
Garanto-lhes, o livro é de qualidade espantosa.
Leia um trecho do que ele diz sobre vender livros na época do Natal:
“Cabe ao livreiro envidar esforços para impedir os erros. Ele, que tem a obrigação de saber alguma coisa sobre o conteúdo de cada uma das obras expostas, pode servir de casamenteiro entre o presente e o destinatário. Como na maioria das vezes desconhecerá o segundo, deverá indagar do tipo de pessoa que este representa, dos assuntos que lhe interessam e, melhor ainda, dos livros que nos últimos tempos tenha lido com agrado. Embora na época do Natal haja muito movimento, sempre sobrará o tempo necessário para fazer algumas perguntas rápidas neste sentido. No começo, alguns fregueses estranham o pequeno interrogatório ao qual os submete o livreiro, mas depois de pouco tempo notam que desta forma se facilita a escolha. Em última análise ficam bem impressionados e retornam à livraria”.
Há uma canção de Chico Buarque, Sentimental, onde uma menina de 16 anos que acredita em astrologia afirma simplesmente que “o destino não quis”. Em outro gênero, realmente digno de uma Sherazade, a escritora dinamarquesa Karen Blixen escreveu 5 surpreendentes contos sob o título Anedotas do Destino. Também há uma frase atribuída a Woody Allen: “Se você quer fazer Deus rir, conte a ele seus planos”.
Tudo conspirava para que o jovem Antônio Télvio de Oliveira tivesse uma carreira internacional como tenor. Começou a carreira de maneira fulminante solando a 9ª Sinfonia de Beethoven com a Ospa sob a regência de Pablo Komlós, aos 22 anos. Depois, foi para fora do país, obteve bolsas e mais bolsas de estudo, só que o destino lhe preparou das suas. O mundo deu muitas voltas e Télvio se safou por ter também os talentos de desenhista e técnico em eletrônica. Mas sempre poderá dizer que cantou com Montserrat Caballé antes de ela cantar com Freddie Mercury.
Conversamos com Antônio Télvio em seu apartamento no bairro Petrópolis em Porto Alegre. Vamos à história.
Abaixo, um registro de 1966 onde você poderá ouvir sua voz de tenor. Esta gravação foi realizada na Capela do Colégio Rosário com o organista Camilo Vergara, o Coro de Meninos do Colégio Roque Gonzales e regência de Aloísio Staub.
Guia21: Teu nome completo é?
Télvio: Eu nasci no dia de Santo Antônio, por isso me botaram o nome de Antônio. Antônio Télvio Azambuja de Oliveira, mas eu nunca usei todo meu nome, às vezes uns jornais botavam Antônio Oliveira, outros botavam Antônio Télvio. Na Espanha, me chamavam de “Azambuia”.
Guia21: Como e quando começou o seu interesse pela música?
Télvio: A minha mãe era musicista amadora. Tocava piano de ouvido. A minha vó também tocava piano. A minha casa era muito musical.
Guia21: Faziam saraus na tua casa?
Télvio: Sim. Inclusive minha mãe tinha uma gaitinha de boca que era um chaveiro, ela tocava o Boi Barroso num chaveiro! Era uma musicista nata. Não tenho essa musicalidade.
Guia21: E então, como tudo começou?
Télvio: Bom, quando eu estava no ginásio, havia uns festivais de música, coisa do interior. Minha família era muito social e eu cantava de vez em quando. Então começaram a solicitar que eu cantasse. Eu alcançava uns agudos que nem sei como… Uma vez, nós fizemos uma excursão até Santa Maria para jogar futebol ou basquete. E, à noite, fomos a uma boate chamada Casbah. O local tinha uma decoração de casa de sultão. Aí eu, com meus colegas todos, todos de 18, 19 anos, ouvi alguém gritar: “Esse canta, esse aqui canta!”. E eu tive que cantar no meio de uma boate de estilo Oriente Médio.
Guia21: Sem acompanhamento?
Télvio: Na base da porrada, a cappella mesmo! Cantei umas canções napolitanas naqueles tapetes. Foi um aplauso danado. O cara da boate quis me contratar. Os meus amigos disseram pra ele: “Vai falar com o pai dele, que tu vai levar um corridão”. Meu pai não era muito desses negócios, era o tipo de cara que se escutasse uma buzina de automóvel ou uma canção, era a mesma coisa. E aquilo morreu por ali… Só que eu fiquei com aquilo na cabeça. Aquela música… Eu a cantava em casa. Depois começaram aquelas Ave Marias que eu era chamado para interpretar em casamentos de vez em quando. E eu pensei “Pô, vou estudar canto”.
Guia21: Nisso tu tinhas 16 anos, mais ou menos?
Télvio: Sim, 16, 17, por aí. Naquele tempo eu era meio vagabundo, terminei o ginásio só com 17, não gostava de estudar. Aí vim para o Colégio Rosário em Porto Alegre — vim para fazer o científico, atual segundo grau — e ao mesmo tempo me matriculei no curso preparatório de canto no IBA (Instituto de Belas Artes da Ufrgs) e comecei a estudar. Vamos abrir um parêntese? Minha família costumava veranear em Iraí, naquela estação de águas. Hoje não se fala mais nas águas termais de Iraí, mas naquela época Iraí era um lugar onde ia muita gente no verão… E, certa vez, estava lá dona Eni Camargo. Ela foi uma personalidade muito interessante aqui de Porto Alegre. Ela era cantora e professora na Ufrgs. No hotel onde ficávamos havia saraus de música em que ela cantava e tocava piano. Era uma veranista em Iraí, como nós. Então, em Porto Alegre, antes de começarem as aulas, eu a visitei. Fui lá, me apresentei e a Eni Camargo quis escutar alguma coisa. Eu lembro que cantei Torna a Sorrento. Aí ela olhou pro marido dela, o Osvaldo Camargo, e disse assim: “Olha aí, Osvaldo. Esse cara tem uma voz que parece a do Mario del Monaco. Eu nem sabia quem era Mario… Aí ela me aconselhou a estudar no Belas Artes com a professora Olga Pereira. Eu saí de lá e passei numa loja de discos para ver quem era esse Mario del Monaco, mas a minha voz não era parecida com a dele, nunca foi.
Guia21: E tu entraste no Belas Artes.
Télvio: Comecei a estudar lá em 1959. O canto é um negócio complicado, tu demoras para fazer alguma coisa que preste. Um ano antes de concluir o curso, eu fiz vestibular para Filosofia, que achei que seria fácil de passar. Passei. Entrei na Filosofia por causa do meu pai. Achava que tinha que dar satisfação pro velho, né? Ele queria Direito ou Engenharia. Ele pensava que o Canto não era sério — meu pai ficava estranho comigo quando o assunto era Canto, como se eu fosse viado, sabe como é. O curioso é que eu estudava Filosofia, Canto e gostava muito de eletrônica, vivia criando verdadeiras parafernálias, equipamentos.
Guia21: Tu sempre tiveste duas tendências então, da música e da eletrônica?
Télvio: Desenhava também, mas isso desenvolvi depois.
Guia21: Foi nessa época que tu cantaste a Nona de Beethoven com Pablo Komlós e a Ospa?
Télvio: Aconteceu o seguinte: com o advento do coral da Ufrgs, ficava mais fácil de fazer a Nona. Eu não lembro direito, mas tenho a impressão de que foi a própria Eni Camargo que me apresentou ao fundador do coral propondo que eu solasse a 9ª Sinfonia como tenor. Fui fazer um teste com o Komlós e ele gostou. O Komlós chegou e me disse “depois você vai fazer um dos personagens secundários da ópera Carmen”. Eu respondi que não ia fazer. Ele deve ter me achado o fim da picada, porque eu disse que ele, um dia, ia me convidar para fazer o papel principal. O Komlós me olhou como quem dissesse “que metido!”. (risos)
Guia21: Como era a Ospa naquela época?
Télvio: Naquela época, não havia Ospa como fundação, mas sim como sociedade. Quem sustentava a Ospa era a colônia judaica, que fazia chás e não sei mais o que a fim de sustentar a orquestra. Não era ainda um esquema profissional. Além da sociedade judaica, os descendentes de alemães também ajudaram muito a música de Porto Alegre, eles tinham o Clube Haydn na Sogipa. Então, havia duas orquestras sinfônicas aqui. Para a 9ª, veio para cantar junto comigo o Lourival Braga, do Rio. Uma voz extraordinária, um barítono precioso. Foi uma loucura aquilo! Aí cantamos a 9ª Sinfonia de Beethoven, uma beleza!
Guia21: Onde foi?
Télvio: Foi no Salão de Atos da UFRGS, antes da reforma, claro (foto acima).
Guia21: E o medo do palco? Tu tinhas 21, 22 anos.
Télvio: Eu estava nervoso, é óbvio. Tem aquela história da famosa atriz francesa Sarah Bernhardt. Sarah tinha uma escola de teatro e costumava perguntar para os alunos se eles ficavam nervosos no palco. Um dizia “eu fico bastante nervoso, sim”, outro dizia “eu não fico nada nervoso, entro no palco sem medo” e ela respondia para estes, “é… o nervosismo vem com o talento”.
Guia21: Se o artista não está nem um pouco nervoso, não está mobilizado.
Télvio: Eu sempre fiquei muito nervoso antes de entrar no palco. Me borrando mesmo. Mas, no momento em que dava a primeira nota, eu começava a me sentir poderoso. Acho que com todo músico é assim, apesar de que a música que tu estás sentindo dentro de ti é diferente da que o outro está escutando. Ou seja, tu podes estar te achando o máximo e o resultado não ser o esperado. Quando terminou esse concerto, o presidente da Sociedade de Cultura Artística do Rio de Janeiro me disse que tinha uma bolsa de estudos para dar. Ele me escutou novamente no Belas Artes e me disse que ia me dar a tal bolsa. Eu fiquei num estado de animação total e comecei a contar para todo mundo que tinha ganhado a bolsa, mas não veio nada… Fui trouxa.
Guia21: E seguiste cantando.
Télvio: Depois da Nona, o Pablo Komlós me convidou para cantar O Rei Davi, de Honegger. Eu ensaiei esta ópera como um louco. Até hoje sei tudo de cor, sonho com aquela música. Eu estudei e ensaiei com unhas e dentes aquela música complicada acompanhado pelo pianista Hubertus Hoffmann. Um dia, o Hoffmann me diz que eu não iria cantar O Rei Davi… Que quem ia cantar era a Ida Weisfeld. Eu ri e respondi: “Isso é para tenor, não é para mezzo soprano”. E nem falei com o Komlós, pensei que fosse uma invenção dele. Só que o Komlós realmente fez aquele absurdo e eu ainda assisti. Ela cantou a parte do tenor, acredita? Depois, soube de duas informações contraditórias: a primeira era a de que eu fora considerado muito jovem para o papel, a segunda era a de que eu não tinha aparecido num ensaio geral — o que é uma mentira, eu não tinha sido era avisado. Então, neste ensaio, quando estavam todos me esperando, o Komlós perguntou se alguém podia fazer a minha parte e a Ida apareceu. Deu uma passadinha na partitura com o pianista Roberto Szidon — também ele cantava no coral — e ficou prontinha. É óbvio que aquilo foi uma armação deles, porque ninguém canta O Rei Davi sem muito ensaio, ninguém no mundo canta aquilo à primeira vista. Ela já viera preparada. Assim era a Ospa, um saco de gatos, uma coisa bagunçada, suja. O Komlós criava situações horríveis. Marcava três récitas, convidava a gente para a terceira e ela não saía. Só para fazer a gente ensaiar. Uma vez o Paulo Melo, outro cantor, disse que ia processá-lo se não saíssem todas as récitas. Aí saíram, claro. A Ospa tinha uma aura de sacanagem, de psicopatia.
Guia21: Mas tu acabaste viajando.
Télvio: Sim, com essa mesma 9ª Sinfonia, surgiu uma pequena possibilidade de um curso em Santiago de Compostela. Era um curso de três meses, mas não dava passagem de ida nem de volta. Fui falar com o maestro Komlós e falei pra ele “olha, o Belas Artes me deu uma carta de recomendação para o consulado espanhol”. Então ele escreveu outra, também me recomendando. Eu levei tudo ao consulado e a bolsa surgiu. Tinha um voo da Panair que saía do Rio com desconto só para portugueses e brasileiros. Meu pai fez uma vaquinha para me ajudar. Peguei um ônibus aqui, fui até o Rio e viajei. Passei três meses em Compostela. Só tinha cem dólares, menti para o meu pai que eles iam pagar a viagem de volta. A juventude é assim, né? Não sabia o que eu ia encontrar lá, eu não sabia nada! Parecia que as coisas de lá eram melhores do que tudo aqui, mas não era tanto assim. Na Espanha, cantei em várias audições e recitais, mas quando terminou o curso, bom, e agora José?
Guia21: Teus professores lá eram gente conhecida?
Télvio: Sim. Um monte de lendas: Andrés Segovia, Montserrat Caballé, cantei com ela (foto acima). Estava cheio de artistas internacionais ali. Eu estava apaixonado por uma das cantoras, que era de Barcelona. Outros alunos já estavam se juntando para prestar um concurso em Barcelona e eu pensei “tenho que ir também”. Mas os meus cem dólares não davam cria, pelo contrário! Com recomendações, consegui uma bolsa de 6 meses junto ao Instituto de Cultura Hispânica. Me senti garantido. Me davam cem dólares por mês. Era o suficiente para uma vida bem modesta, então comecei a fazer outros trabalhos, eu sempre desenhei. Lá pelas tantas consegui trabalho. Passaram-se mais 6 meses e renovaram a bolsa. No final deste segundo período, minha professora me perguntou se eu queria retornar para Santiago de Compostela e fazer o curso de lá novamente, tinha todo ano. Eu disse que não, mas me deu medo de ficar sem dinheiro e no fim retornei para Santiago de Compostela, para ganhar por mais três meses. Lá em Compostela foi fantástico. Por exemplo, estreamos uma Cantata do argentino Isidro Maiztegui e eu fiz a parte do tenor.
Guia21: E a paixão?
Télvio: Todas estas andanças pela Europa foram crivadas de paixões por mulheres maravilhosas, muitas delas artistas. E o abandono daquilo lá me deixou muito amargurado. O Sérgio Faraco, que estudou na União Soviética, diz o mesmo. Aquelas mulheres… Entre as cantoras que eu conheci lá há uma que ficou muito famosa e com a qual eu não tive nenhum caso amoroso… Era a Montserrat Caballé. Uma tremenda cantora e um péssimo ser humano. Por exemplo, houve um momento em Compostela que uns cantores argentinos quiseram organizar um recital. E a Montserrat deu apoio, estava auxiliando em tudo. Só que numa aula, ela, com menosprezo, chamou algumas cantoras argentinas de índias. Bem, as argentinas se irritaram, claro. Os brasileiros se uniram a elas e ninguém cantou. Depois, ela foi convidada para cantar no Rio e São Paulo e teve seu visto negado por alguém que sabia daquelas ofensas. Deu a maior confusão e ela só pode vir em outra data. Cantou depois até em Pelotas. Era mais do que temperamental, era uma pessoa deselegante.
Guia21: Cantaste muito na Espanha?
Télvio: Sim, fiz algumas gravações em Barcelona e Madrid. Era estranho porque as pessoas diziam para eu cantar Mozart, mas eu preferia coisas mais pesadas.
Guia21: E no final desta sequência de cursos e bolsas de estudo?
Télvio: Eu falei com Hans von Benda, que se encontrava em Compostela, e ele me sugeriu estudar na Alemanha. Recebi dele uma carta de recomendação para eu levar na Embaixada Alemã. Fui na Embaixada em Madrid. Lá, é claro, me avisaram que eu, como brasileiro, deveria me dirigir à Embaixada da Alemanha no Brasil e não na Espanha. Então eu recebi uma carta que foi decisiva na minha vida. Era uma carta seca, escrita por meu pai, pedindo que eu retornasse imediatamente porque minha mãe estava muito doente, estava mal, seria internada, etc. Houve uma espécie de chantagem emocional, como tu verás. Antes de viajar, eu ainda cantei em Madrid. Lá, entre outras obras europeias, quase todas de câmara, eles sempre pediam para eu cantar brasileiros como Carlos Gomes, Alberto Nepomuceno, etc.
Guia21: E voltaste…
Télvio: Sim, peguei os últimos dólares que tinha, comprei uma passagem de navio e voltei. 15 dias de viagem. Quando cheguei ao Rio, fui à Embaixada da Alemanha – era no Rio na época – e entreguei a carta para estudar lá.
Guia21: E foste ver a família.
Télvio: Bem, a situação familiar em Santiago não era nada trágica. Eles só queriam que eu voltasse. Quando encontrei minha mãe, ela estava bem e disse que quem estava doente era o meu pai. Enfim, era algo confuso. Ninguém estava doente, parecia. Vim para Porto Alegre e, passado um tempo, recebi a resposta dos alemães dizendo que eu tinha que me apresentar em Köln em determinado dia. Voltei a Santiago para me despedir e, talvez, conseguir algum dinheiro com o velho. Então, um tio meu, médico, me disse que meu pai tinha uma bomba no bolso, ou seja, que havia perigo de um enfarto. Me pediu para adiar a viagem em um ano. Concordei em ficar.
Guia21: Perigo.
Télvio: Pois é. Escrevi para a Alemanha solicitando adiamento e os alemães disseram que o adiamento dependeria do orçamento para o ano seguinte. E nunca mais. Eu perdi a oportunidade. Só isso.
Guia21: E o que fizeste?
Télvio: Enquanto eu esperava a tal chamada da Alemanha, voltei a trabalhar com desenho em Porto Alegre. Comecei a me desligar da música. Ainda cantei muito, mas aquilo marcou o início de meu afastamento. Neste período, o Komlós me convidou para cantar I Pagliacci. Eram duas récitas, numa eu ia cantar Canio e em outra o Arlequim. Naquele tempo, era no Araújo Vianna. Tinha um cara que tinha uma carroça puxada por um cavalo, que vendia lanches fora do auditório. E tu sabe que os palhaços tinham uma espécie de carroça onde ficava seu palco.
Guia21: Normal, em O Sétimo Selo, de Ingmar Bergman, os atores têm uma carroça. Eles abriam uma cortina e virava um palquinho…
Télvio: Isso! Exatamente isso! E naquele espetáculo, nós entrávamos, os cantores, os atores, dentro daquela carroça de lanches. O Araújo Vianna é redondo, tem portas largas e o carro entrava no palco conosco dentro cantando, com o cavalo puxando. E começava a história. De noite, o cavalo pastava no gramado ao lado do Araújo Viana. Nunca fugiu. Na segunda récita, veio a maior chuva, foi aquela correria de músicos, com os violinos, tudo. E a ópera não aconteceu mais.
Guia21: O Araújo não tinha cobertura na época.
Télvio: Sim, molhava tudo.
Guia21: E a carreira?
Télvio: Na verdade, eu poderia seguir a carreira de músico fazendo o que a maioria dos cantores fazem: dando aulas. Só que eu detesto dar aulas. Nesta volta, ainda fiz algumas gravações, mas já estava desistindo da carreira. Passado algum tempo, só desenhava e trabalhava com eletrônica. Abri mão de tudo, passei mais de dez anos sem cantar nada, sem dar uma nota. Então, com quase 40 anos, voltei a cantar óperas e cantatas de Bach e Buxtehude. Com a Ospa novamente, ali na Igreja Santa Cecília. A Ospa com suas fofocas e futricos… Bá, eu tinha uma raiva daquilo! Cantei Britten também naquela época.
Guia21: Sobre a tua desistência. Foi uma coisa do ambiente? Não tinha perspectiva?
Télvio: Se eu tivesse ficado na Europa, faria uma carreira musical. Aqui eu não tinha perspectiva. Ninguém tem como seguir só cantando. E eu não queria dar aula.
Guia21: Sim, os cantores dão aula. Quase todos eles dão aula, acho.
Télvio: Eu não gostava e tinha outras maneiras de ganhar dinheiro. Eu publicava revistas de quadrinhos, fazia desenhos para jornais. Cheguei a chefe do departamento de eletrônica da Narcosul Aparelhos Científicos, uma empresa que fabricava aparelhos eletrônicos voltados para a área médica.
Guia21: Sim. Tu te sustentavas, evidentemente. E o que tu publicavas em jornais?
Télvio: Eu criava desenhos para ilustrar matérias, cadernos, tudo. Tenho guardados vários trabalhos meus para o Jornal do Comércio.
Télvio: Já na Narcosul eu fiquei muitos anos. Trabalhei também na Parks com equipamentos para comunicação digital.
Guia21: Mas tu és formado em…
Télvio: Em nada. Fiz um ano de Filosofia só e larguei.
Guia21: Mas e a eletrônica? Como aprendeste, como ela entrou na tua vida?
Télvio: Eu sempre estudei eletrônica. Desde guri, só por diletantismo. Posso mostrar os equipamentos que eu fiz, tu não vai acreditar. Eu até hoje não acredito! No dia em que eu comecei a estudar computadores, a primeira coisa que fiz foi montar um. Fiz ligação por ligação. E funcionava!
Guia21: Mas disseste que voltaste a cantar lá pelo 40 anos.
Télvio: Eu cantava aqui e ali, em concertos e recitais. Com a Ospa, cantei uma operazinha regida pelo Túlio Belardi, mas já me considerava um diletante. Não ganhei dinheiro nenhum com aquilo, nem queria. Aí houve outro fato que aí sim, aí eu disse “não vou fazer mais porcaria nenhuma”. Iam fazer uma ópera sobre os Farrapos e outra sobre as Missões. O autor era Roberto Eggers, que foi o primeiro regente de orquestra aqui em Porto Alegre. Ele escreveu duas óperas: Missões e Farrapos. Dizem que neste fim de semana vão estrear a primeira obra musical que foi escrita sobre a Revolução Farroupilha, uma ópera rock… Não sabem de nada. Um dia, o Emílio Baldini, que era colega meu, professor, me levou até o Eggers para ele me escutar, para a gente fazer a ópera sobre Missões. Aprendi toda a Missões. No dia em que era para começar os ensaios…
Guia21: Isso foi depois do Belardi e as Cantatas?
Télvio: Sim, pós Belardi. Com a Ospa de novo… Confusão daqui, confusão dali, mudaram todo o elenco. O Eggers disse que não ia deixá-los fazer sua ópera. Eu respondi “não, não faz uma coisa dessas. Sou um amador, não vou ganhar dinheiro com isso. Tu não. Não seja bobo. Fica quieto”. Aí, disse para mim mesmo “Bom, encerro. Não quero mais saber desse troço. Enchi o saco”.
Guia21: Tu já estava na Narcosul nessa época.
Télvio: Sim.
Guia21: Na Narcosul tu eras o chefe da eletrônica, certo? E, no desenho, que que tu fizeste?
Télvio: Desenhava para propaganda, desenhava charges, ilustrava matérias, fazia figuras de pessoas. Todo o dia o Jornal do Comércio tinha um desenho meu. Eu guardei algumas coisas, devia ter guardado mais, mas, na época, não dava valor para aquilo.
Guia21: E aí tu te tornaste um ouvinte do PQP Bach.
Télvio: Um grande ouvinte do PQP Bach. Tenho muita coisa de lá.
Guia21: E que papel tem a música hoje na tua vida?
Télvio: Olha, cara, hoje eu estou aposentado, fico no meu canto, mas ouço muita música, sim.
Guia21: Tu passa os dias escutando música?
Télvio: Não. Nunca pensei quanto tempo eu escuto música, mas é bastante. Eu ouço bastante. Só que certamente não ouço mais do que tu.
Guia21: Ouço mais ou menos uma hora por dia.
Télvio: Eu até ouço mais, às vezes.
Guia21: Tu cantarolas por aí?
Télvio: Não. Nada.
Guia21: Nada?
Télvio: Nada.
Guia21: Se tu te entusiasma por alguma coisa, tu não canta?
Télvio: Não canto. Há umas gravações minhas por aí, nem ouço mais. Também fiz várias edições extraordinárias em jornais onde eu desenhava tudo de cabo a rabo, mas não fico olhando.
Guia21: E tu frequentas concertos?
Télvio: Pouco. Esses dias fui ver o ensaio de uma ópera de Mozart. Não cantaram duas árias porque o tenor estava doente. Ele cantou outras, mais fáceis. Não tinha substituto! Isso é inconcebível num lugar sério. Aliás, as substituições são muito comuns, inclusive. Acontece de bons cantores substitutos se aproveitarem dessas oportunidades e roubarem a cena. Isto é, pelo visto a coisa não mudou tanto assim em todos esses anos. Olha, quando tu tens apenas uma opção de vida, “só posso ser cantor”, tu tenta de novo, tu insistes. Quando tu tem várias — eu tinha a eletrônica e o desenho que também me satisfaziam internamente –, tu buscas outra saída.
Guia21: Tu não ficaste frustrado?
Télvio: Eu sempre seria frustrado, porque é impossível abraçar tudo.
Guia21: Porque hoje tu tens 77 anos e a gente ouve que tu ainda tens equipamento, uma voz muito bonita e forte.
Télvio: É, sempre tive uma voz forte, dizem que boa…
Guia21: Isso eu estou ouvindo.
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Com decupagem de Nikolay Romanov e revisão de Elena Romanov.
Talvez não tenha existido um artista mais representativo do que o foi o Século XX, com todos os seus paradoxos, vanguardismos, violências, guerras e desvios, do que Dmitri Shostakovich (1906-1975). Ele foi exaltado e massacrado pelo poder, censurado e novamente elogiado. Foi presidente da Associação dos Compositores da URSS e depois não podia mais ver executada sua música no país. Talentosíssimo, foi moderno, adequou-se ao realismo socialista e voltou a ser moderno. Escreveu coisas da mais completa alegria, do mais completo sarcasmo, da mais acabada grandiosidade dramática e refletiu a morte e a depressão como poucos artistas.
E foi um herói para muita gente. Por ter sido covarde quando não havia como ser diferente e por ter sido (muito) ousado quando lhe deram frestas. Como escreveu o romancista inglês Julian Barnes, “Shostakovich pagou a César o que lhe era devido — e César era muito exigente naqueles dias –, protegeu a sua família, esperou por dias melhores e desesperou-se enquanto produzia uma obra verdadeiramente sofrida e brilhante. Há mais formas de heroísmo do que as óbvias”.
Sua vida já começou complicada. Exemplo? Bem, ele era considerado o primeiro grande artista revelado pela Revolução. Era saudado pelo poder. Criou sua Primeira Sinfonia em 1926. Tinha 19 anos e estava entusiasmado com o ambiente russo. A Sinfonia obteve repercussão mundial. Tudo era sucesso, mas três anos depois, a pessoa a quem a obra era dedicada foi presa e fuzilada.
Muitíssimas vezes, quando ouvimos a música de Shostakovich, sentimos certa estranheza, notamos intenções, torna-se palpável a ironia, a revolta e o desconforto do autor. Outras vezes, fica claro seu enorme sarcasmo. O poder que as notas escritas por ele têm de comunicar é miraculoso. Percebe-se claramente o drama e os contrastes vividos pelo compositor, sejam eles de ordem pessoal ou não. Em contato com essas obras firmemente assentadas sobre os ombros de Bach, Beethoven, Mahler, Tchaikovsky e Mussorgsky, somos, de alguma forma muito particular, solicitados a conhecer mais das circunstâncias em que foram compostas.
Há três pontos importantes para a compreensão do homem que foi Shostakovich. O Ocidente costumava simplificar os fatos, conferindo ao autor uma condição simples de mártir e dissidente do regime. Tais enganos datam dos tempos da guerra fria e persistem até hoje.
O Comunista: Shostakovich foi um comunista sincero, não obstante suas divergências com uma doutrina oficial que nem sempre seguiu um caminho retilíneo. Sem seu engajamento nítido em favor dos princípios originais que criaram a União Soviética, seria impossível inventar o sopro lírico e épico que atravessa algumas de suas composições. Mas há o verdadeiro e o forçado, ou o espontâneo e a encomenda. No início de sua carreira de compositor, Shostakovich tinha aquele entusiasmo que foi próprio de uma geração de criadores que — como Eisenstein e Maiakovski — , em determinado momento, acreditou ser para amanhã o paraíso terrestre. Depois, lentamente, as coisas foram mudando e o trio renunciou a suas esperanças, às vezes de forma trágica.
Não obstante o que era dito durante a Guerra Fria, Shostakovich não esteva preso à União Soviética e teve inúmeras oportunidades de se retirar do país. Quando sua doença começou a prejudicá-lo como intérprete, ele estava fora da URSS. Também esteve algumas vezes com Britten na Inglaterra em alegres visitas. Ou seja, Shostakovich teve numerosas oportunidades para emigrar, não o fazendo nunca. Houve declarações anti-soviéticas? Mas é claro, ele foi massacrado por Stálin e depois, mas jamais foi o dissidente típico. Seus problemas sempre foram relativos às arbitrariedades dos dirigentes do país, que muitas vezes tratou de ridicularizar.
A Morte: Shostakovitch era, por natureza, um grande pessimista: as fotografias em que aparece sorrindo são raríssimas. Além do que, ele parecia obcecado — como seu ilustre predecessor Mussorgski — pela ideia da morte. Não devemos colocar toda a sua psicologia na conta do geopolítico. Ele possuía muito daqueles niilistas russos do século XIX, tão bem retratados nos romances de Dostoiévski. Há algo de Kirilov nele… Confundir isso com as torturas morais causadas pelos comissários políticos soviéticos é aplainar a grandiosa obra do compositor e é fatal para quem queira compreendê-lo. Obras como o Quarteto Nº 8, Trio Nº. 2, Sonata para viola e piano, Op. 147, de 1975 ou a Sinfonia Nº 15, de 1974, todas com suas “Canções da Morte”, são inequívocas, assim como a Sinfonia Nº 14. As trevas sem fim que emanam destas composições e sua melancolia por vezes desesperada só podem surgir de uma personalidade permeável a pensamentos macabros. Porém, até hoje, costuma-se esquecer demais da história pessoal de Shostakovich e colocar todos os seus momentos de depressão como causados pelas pressões das autoridades soviéticas.
O Artista: como os verdadeiros artistas e, principalmente, os músicos, Shostakovich pensava que o estatuto particular de sua arte desobrigava-o a seguir palavras de ordem como aquelas que eram impostas aos operários, aos mineiros ou aos camponeses da URSS. Sob este aspecto, estava muito enganado. Os sucessivos dirigentes jamais esqueceram de intervir diretamente nas orientações estéticas a serem seguidas por pintores, escritores, cineastas e músicos. Sempre esteve fora das cogitações governamentais a existência de uma vanguarda artística na União Soviética, pelo menos após a morte de Lênin.
Apesar de todo o prestígio de que gozou como compositor, nem por isso foi menos perseguido como resultado dos ditames ideológicos dos dirigentes políticos e culturais de seu país — em 1936, o próprio Stálin advertiu-o; em 1948 houve o “Relatório Jdanov”; em 1962, a Sinfonia n° 13, que se apoiava no grande poema Baby Yar de Evgueni Evtuchenko, foi executada sob oposição oficial.
1936 pode ter sido um ano péssimo para ele, porém há detalhes jocosos. Ele havia composto sua segunda e última ópera — a primeira fora O Nariz, baseada no conto de Gógol — quando Stálin foi assisti-la. Stálin achou-a um horror e chamou Lady Macbeth de Mtsensk — cujo tema foi retirado da esplêndida novela de Nikolai Leskov — de “pornofonia”. Desta forma, ela foi banida de todos os teatros soviéticos. Foi preciso esperar 27 anos para retornar à cena e, ainda assim, com a supressão do episódio orquestral que descrevia uma cena de sexo. É curioso que as eructações, flatulências e gargarejos de O Nariz nunca tenham sido alvo de censuras.
Para se recuperar, Shostakovich compôs em 1937 a Sinfonia Nº 5, clássica, grandiosa, linda e bem comportada, que este ano tem sido muito executada por completar 80 anos. E foi perdoado. Poucos anos depois, Shostakovich comporia o símbolo da resistência da União Soviética ao invasor, sua Sinfonia Nº 7, Leningrado. Depois de realizada a primeira audição na União Soviética em 5 de março de 1942, a partitura microfilmada da sinfonia atravessou as linhas de combate, chegando até Nova York, onde Toscanini a fez ouvir em julho do mesmo ano. Em agosto, a Sétima de Shostakovitch ressou na própria Leningrado, sob o cerco dos alemães e transmitida para eles pelo rádio em execução memorável, com os músicos e a população famintas.
Durante a guerra, Shostakovich foi levado para um local seguro, longe dos combates. Estava de amores com o governo e este temia que ele morresse.
Sua carreira foi gloriosa e constantemente posta em questão, repleta de honrarias oficiais e de inclusões em index não menos oficiais. Shostakovitch amargou todos os dissabores de sua condição, a ponto de por vezes ter imaginado que a melhor solução só poderia ser o suicídio. Nem por isso faltou-lhe coragem para seguir incansavelmente, com uma regularidade sem falhas. Até sua morte, em 1975, criou uma obra prolífica e amplamente regeneradora para todo o povo soviético, ao qual Shostakovitch esteve sempre ligado. “A música pode ser amarga, mas jamais pode ser cínica”, dizia o compositor.
A maioria de minhas sinfonias são monumentos funerários. Gente demais, entre nós, morreu não se sabe onde. E ninguém sabe onde os corpos foram enterrados. Mesmo os que eram mais chegados a eles não sabem. Isso aconteceu a uma porção de amigos meus. Onde se pode erguer um monumento a Meyerhold ou a Tukatchevski? Somente a música pode fazê-lo. Estou disposto a dedicar uma obra a cada uma das vítimas. Infelizmente, é impossível. Dedico-lhes, então, toda a minha música.
Em 1948 foi baixada uma resolução do Comitê Central do Partido Comunista Soviético que depois foi conhecida por “Relatório Jdanov”. Jdanov colocava no mesmo saco Prokofiev, Khatchaturian, Shostakovich e quase todos os artistas do país. Shostakovich foi o mais atingido, pois negara-se a fazer de sua Sinfonia Nº 9 um elogio a Stálin e ao Exército Vermelho, publicando em seu lugar uma piada musical, que foi recebida com alegria e aplausos no Ocidente, tendo em Leonard Bernstein seu maior divulgador. O que Bernstein só soube depois é que a nona sinfonia deixara Stálin novamente furibundo com Shostakovich, ao ver suas ordens desobedecidas. Como resultado, suas peças sumiram novamente do repertório.
Mas ele seguiu produzindo e, quando Stalin morreu, em 1953, Shostakovich tinha as gavetas lotadas de novidades. Havia, inclusive uma vingança contra o grande líder. O segundo movimento da espetacular Sinfonia Nº 10, especialmente raivoso, seria um retrato de Stálin.
(Já o terceiro movimento é uma valsa onde Shostakovich assina seu nome no ar. Em meio ao movimento, a orquestra silencia para ouvir as notas D-S-C-H (ré-mi bemol-dó-si), a partir da transliteração alemã de seu nome, D. Schostakowitsch. O motivo é ouvido de forma ostensiva também no quarto movimento. Parece dizer: “Stálin, ainda estou aqui, sobrevivi”).
O terceiro e maior desentendimento aconteceu em 1962. Neste ano, aparecia a Sinfonia Nº 13, para solo de baixo, coro masculino e orquestra. Os textos cantados vinham do poema Babi Yar, de Evgueni Ievtuchenko (1932-2017) e, em lugar de cantar o porvir, o poema denunciava os crimes nazistas cometidos naquela cidade perto de Kiev, onde 34 mil judeus foram assassinados. Denunciar crimes nazistas não seria um problema, mas o poema de Ievtuchenko fala na colaboração soviética durante o episódio. Hoje, há certeza de que houve colaboração na mortandade de judeus. Ele e Ievtuchenko, celebridades internacionais, foram fortemente repreendidos pelas autoridades, que exigiram a substituição completa dos textos, sob pena de a música não vir a ser executada. A Sinfonia nunca foi alterada e mais foi estreada na forma original sob a regência do lendário e corajoso maestro Kiril Kondráshin.
Shostakovich finalizou sua obra escrevendo prelúdios e fugas ao estilo de Bach e fazendo referências à Beethoven em sua música. Essa dupla escolha levada a efeito pelo compositor não deve ser encarada como casual, tanto mais que Shostakovich escreveu suas últimas obras no leito de morte. Os alemães não eram bem vistos no país não apenas devido à Guerra, mas desde o século XIX. As mentalidades coletivas russas e soviéticas sempre foram hostis aos alemães, que aparecem frequentemente como personagens ridículos nos romances clássicos russos. E, desde o surgimento de uma consciência musical nacional, as referências à escola germânica não eram bem aceitas.
E, mais uma vez, Shostakovitch não hesitou em enfrentar um tabu cultural. O último discurso musical que produziu, a Sonata para viola e piano, é uma saudação beethoveniana à liberdade. Ao escolher essa referência a Beethoven, ele opta pela fraternidade universal e, saudavelmente, faz abstração das querelas que dividiam o mundo em dois blocos antagonistas. Sob este aspecto, pode-se dizer que ele triunfou sobre os sucessivos dirigentes de sua pátria.
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Bibliografia: grande parte das informações históricas foram obtidas em incontáveis discos, CDs e outras publicações, mas foram um pouco sistematizadas pela leitura do texto de Philippe Olivier, dentro da História da Música Ocidental, Nova Fronteira, 1997, assim como de Shostakovich – Vida, Música, Tempo, de Lauro Machado Coelho, Perpectiva, 2006.
Em vida, Haydn foi considerado um grande revolucionário. Ele, com Mozart (de quem era amigo) e Beethoven (de quem foi professor) formam o trio mais representativo do classicismo musical. Haydn nasceu em 1732 e morreu em 31 de maio de 1809. Sua obra é enorme. Compôs 104 Sinfonias e inúmeros quartetos e outras peças. E nada é curtinho ou mal feito, muito pelo contrário. O cara era um grande talento, como hoje podemos comprovar em milhares de concertos e gravações.
A partir da data de sua morte, em 1809, seu crânio (imagem acima) seguiu por surpreendentes caminhos. Haydn foi inicialmente enterrado no cemitério de Hundstaurm, mas pouco depois o administrador da prisão local, Johann Peter, e o secretário do príncipe Esterházy, Carl Rosenbaum, subornaram um coveiro e conseguiram exumar o cadáver para remover sua cabeça. Esses dois homens acreditavam ao pé da letra na frenologia, “ciência” que dizia que todas as habilidades e sentidos, em particular o sentido da música e da harmonia, residiam no formato do crânio. Haydn era pois uma cabeça a ser conquistada e analisada detidamente. A dupla pensou que naquele crânio poderiam encontrar os segredos de uma mente tão capaz, genial para a composição musical.
E eles estudaram e estudaram o crânio de Haydn sem chegarem a nenhuma conclusão. Bem, em 1820, o príncipe Esterházy, da família que empregara Haydn por décadas, desejou enviar os restos do compositor para outro momento cemitério mais nobre. Foi quando descobriram que lhe faltava a cabeça. Os primeiros acusados foram justamente Rosenbaum e Peter, que devolveram rapidamente o crânio. Então os restos mortais de Haydn puderam ser transferidos para o cemitério de Eisenstadt, onde foram enterrados.
Só que eles devolveram um crânio qualquer, não o de Haydn. Após a morte de Rosenbaum em 1828, a cabeça autêntica foi entregue a Peter, que fez questão de estabelecer em testamento que a cabeça de Haydn deveria ser entregue, após sua morte, para a Sociedade de Amigos da Música de Viena.
E Peter morreu, claro — afinal estamos narrando coisas do século XIX em pleno século XXI. Só que, após a entrega da cabeça por parte da viúva, um certo Dr. Halle, membro desta Sociedade, vendeu o crânio ao professor de patologia Carl Von Rokitansky, que trabalhava no Instituto de Anatomia de Viena. Mais frenologia.
Com a morte de Rokitansky, seus parentes devolveram a cabeça para a Sociedade de Amigos da Música de Viena. Imaginem que a sociedade ficou com ela até 1954. Neste ano foi construído um mausoléu para o compositor e os construtores entraram em acordo com o cemitério de Eisenstadt e a Sociedade de Amigos da Música de Viena para enfim fazerem o grande reencontro entre cabeça e corpo. Estudos científicos determinaram há poucos anos que a ossada confere. Tudo ali é Haydn. Ou ao menos é tudo a mesma pessoa.
1. Nós não sabemos exatamente o dia em que ele nasceu
Não existe um registro confiável da data de nascimento de Beethoven. Seu aniversário geralmente é celebrado em 17 de dezembro, data do seu batismo católico (que sobrevive nos registros paroquiais). A maioria dos estudiosos acredita que o compositor nasceu ou 15 de dezembro ou, mais provavelmente, em 16 de dezembro de 1770. Porém, sabemos que para a História vale o que está escrito, ou seja, 17 de dezembro.
2. Seu primeiro Concerto para Piano não foi o primeiro
Embora tenha sido o primeiro Concerto que publicou, o Concerto para Piano Nº 1 de Beethoven foi, de fato, o 3º. Seu 2º fora escrito uma década antes, entre 1787 e 1789. O compositor rejeitou a peça. Ele também completou um concerto de piano, o 1º., em 1784, aos 14 anos, mas apenas parte do manuscrito para esta peça sobrevive.
3. Ele era um horror em matemática
Apesar da complexidade matemática de suas composições, Beethoven sempre lutou com os números. Ele deixou a escola aos 11 anos, depois de aprender soma e subtração, mas antes de aprender a multiplicar e dividir. Como resultado, ele tinha dificuldade de acompanhar as próprias finanças. Em uma carta de 1801, ele se descreveu como “um homem de negócios incompetente, que não sabe fazer contas”.
4. As pessoas odiaram os maravilhosos Últimos Quartetos
As obras-primas experimentais tardias de Beethoven chocaram e confundiram seus contemporâneos. O compositor Louis Spohr descreveu os quartetos de cordas como “horrores indecifráveis e não corrigidos”. No entanto, para Beethoven, foram tentativas de se conectar com o divino. No topo do manuscrito para o Op.132, ele descreveu a peça como uma “Sagrada canção de ação de graças de um convalescente para a divindade”.
5. Ele pode ter tocado uma vez para Mozart
Em 1787, Beethoven fez sua primeira visita a Viena, onde Mozart estava morando. De acordo com o biógrafo do século XIX, Otto Jahn, o nervoso jovem de 17 anos foi apresentado a Mozart e tocou para ele a seu pedido. Mozart tinha 21 anos e já era muito famoso. “Mozart, considerando a peça que ele interpretou uma obra de exibição estudada, foi frio em suas expressões de admiração”, escreve Jahn. “Beethoven, notando isso, implorou um tema para improvisação e, inspirado pela presença do mestre que ele tanto reverenciava, tocou para desta vez chamar a atenção de Mozart, que disse: “Anotem o nome dele”.
6. A surdez não foi o pior dos seus problemas
Ao longo de sua vida, Beethoven teve hepatite, icterícia, colite, várias doenças de pele, febre reumática e cirrose. Antes de morrer, em 1827, aos 56 anos, 25 quilos de água foram retirados de seu abdômen. Apesar da dor da operação sem anestesia, Beethoven manteve o senso de humor, dizem.
7. Suas últimas palavras provavelmente não foram as que a lenda conta
Muitas pessoas acreditam que as últimas palavras de Beethoven foram “Vou ouvir música no céu”, mas há poucas evidências históricas disso. Pouco depois de sua morte, a crença popular dizia que suas últimas palavras tinham sido plaudite, amici, commedia finita est (“Aplaudam, meus amigos, a comédia acabou”), frase tradicional final da commedia dell arte italiana. Mas seu amigo íntimo, Anselm Hüttenbrenner, que esteve presente na sua morte, refutou o boato. Mas o relato mais confiável diz algo também extraordinário. Ao saber que seu editor lhe enviara uma caixa de vinho tinto, ele teria dito: “Uma pena, uma pena mesmo, muito tarde”.
Ingmar Bergman, o cineasta que dedicou parte de sua obra a analisar o silêncio de Deus e a solidão do ser humano, morreu em Fårö no dia 30 de julho de 2007, na mesma data em que morria em Roma Michelangelo Antonioni, o cineasta da incomunicabilidade. Miguel de Cervantes faleceu em Madrid na data de 23 de abril de 1616, mesmo dia da morte de William Shakespeare em Stratford-upon-Avon. O fato de a morte dos dois maiores escritores da Idade Moderna ter ocorrido na mesma data apenas é deslustrado por uma verdade que destrói o mito temporal: Shakespeare faleceu sob a regência do calendário juliano, o que empurra sua morte para dez dias depois. Já Johann Sebastian Bach (1685-1750) não morreu no mesmo ano em que Antonio Vivaldi (1678-1741) faleceu, mas há muitas coincidências que ligam os dois maiores nomes da música barroca — para começar, ambos “escolheram” o 28 de julho como data de morte.
Bach e Vivaldi foram compositores totalmente diferentes. Basta uma audição de alguns segundos para que fique identificado um e outro. Eles criaram suas obras numa época especialmente complicada — são compositores do barroco tardio, ou seja, produziam no momento histórico em que se iniciava o período clássico. Eram, portanto, compositores antiquados em seu tempo. Os filhos compositores de Bach já encaravam o pai como alguém do passado e Frederico II, quando o convidou para visitar sua corte, ouviu-o sem o menor respeito, como quem ouve um animal em extinção, apesar do que dizem algumas lendas desinformadas. Já Vivaldi, il prete rosso, sem público em Veneza, vendeu grande parte de seus manuscritos para pagar uma viagem a Viena, onde Carlos VI o admirava, mas o imperador faleceu dias depois de sua chegada, frustrando os planos do italiano. A consequência é que ambos, Bach e Vivaldi, morreram pobres e fora de moda.
Se não havia relações de estilo, havia relações musicais entre ambos, ao menos no sentido de Bach ter sido um admirador do estilo italiano e de conhecer profundamente a obra de Vivaldi. Ele fez mais: transcreveu vários dos concertos de Vivaldi para o cravo e o órgão. Alguns concertos para violino do L’Estro Armonico (1712) e de outros ciclos foram transcritos por Bach e certamente interpretados por ele, seus filhos e alunos. Podemos citar também a quase inevitável religiosidade dos dois compositores numa época em que se ensinava religião por mais da metade do horário escolar. Por muito tempo, Bach foi considerado uma espécie de santo, ao menos até Emil Cioran colocar alguns empecilhos, separando Bach e Deus, com vantagem para aquele: Sem Bach, Deus seria apenas um mero coadjuvante. Sem Bach, a teologia seria desprovida de objetivo, a Criação fictícia, o nada peremptório. Se há alguém que deve tudo a Bach, é seguramente Deus. E Vivaldi? Vivaldi era padre. Il prete rosso, o padre ruivo, ou vermelho.
Apesar de sacerdote, Vivaldi teve muitos casos amorosos, um dos quais com uma de suas ex-alunas do conservatório de Ospedale della Pietà, a depois influente cantora Anna Giraud (ou Girò), com quem mantinha também relações profissionais na área da ópera veneziana. As biografias mais pudicas dizem que Anna foi a moça por quem o grande compositor se apaixonou, a inspiradora de suas óperas e a tormenta de todos os seus dias, até a morte. Ela teria muitas vezes beneficiado Vivaldi em troca de papéis adaptados a suas capacidades vocais. Tais trocas levaram outros compositores, como Benedetto Marcello, a escreverem panfletos contra Vivaldi e Giraud. Já Bach teve dois longos casamentos. O amor por suas esposas pode ser depreendido através de suas cartas e dos vinte filhos resultantes — sete com a prima Maria Bárbara e treze com Anna Magdalena, uma cantora profissional com metade de sua idade. O casamento com Maria Bárbara acabou em razão da inesperada morte da mulher e o com Anna Magdalena ocorreu em 1721. Bach tinha 36 anos; Anna, 18.
Bach escreveu mais de mil obras. Muitas são curtas, mas há mais de 200 Cantatas com duração aproximada de vinte minutos e Paixões com 3 horas de duração. Sua obra completa foi gravada numa coleção da Teldec: são 153 CDs, mais ou menos 153h ou 6 dias e 8 horas de música, sem repetições. Já Vivaldi escreveu 477 concertos — segundo o hostil Stravinsky, tratava-se de 477 concertos iguais — , mais 46 óperas e 73 sonatas. Em seu caso, ainda há muitas óperas não gravadas — porém, considerando o porte das óperas gravadas, é crível que o tamanho de sua obra seja semelhante ao de Bach.
Vivaldi parecia ter nascido pronto, seu estilo de composição variou pouco durante sua vida. Já a música de Bach, se não teve seu estilo alterado de forma radical, foi ganhando qualidade de forma inacreditável. Grosso modo, suas últimas composições foram as Variações Goldberg, A Oferenda Musical e A Arte da Fuga. Estas são monumentos, verdadeiras catedrais construídas em homenagem ao contraponto e à polifonia. No final de sua vida, Johann Sebastian Bach estava em seu auge, criando, se não suas obras mais perfeitas, aquelas que mais recebem tempo e dedicação dos especialistas.
Bach fora míope durante toda a vida e, durante a composição de A Arte da Fuga, sua visão se apagou. Porém, em fins de março de 1750, ano de sua morte, o famoso cirurgião oftalmológico John Taylor esteve de passagem em Leipzig. Ele foi levado até Bach e o operou. Taylor afirmou que em dois os três dias o paciente voltaria e enxergar. Depois de algumas semanas, como o paciente não apresentasse melhoras, houve uma nova operação, além de sangrias, ventosas e bebidas laxativas para limpá-lo. Apareceu um outro médico que brigou com Taylor. Então foi utilizado sangue de pombo nos olhos do compositor, além de açúcar moído e sal torrado. Dizem que em 18 de julho, dez dias antes de morrer, ele voltou a enxergar, mas no mesmo dia teve febre alta e caiu na inconsciência.
Não era alguém importante para a época. Nem sequer seu túmulo foi indicado. O corpo se perdeu. É um fato tristemente cômico que aquilo que está na catedral de São Tomás, em Leipzig, uma espécie de jazigo construído em sua honra em 1950 — por ocasião do bicentenário de sua morte — não sejam seus restos mortais, mas apenas o testemunho de seu esquecimento. Sua obra começou a ser recuperada por Felix Mendelssohn em meados do século XIX. Mas não é mera casualidade o fato de Mozart e Beethoven terem conhecimento de parte da obra do mestre. Eram estudiosos. Tanto que Beethoven escreveu que seu nome não deveria ser Bach (regato, ribeiro) e sim mar.
Já Vivaldi foi esquecido por muito mais tempo. Sua ressurreição começou apenas em 1939, quando o compositor italiano Alfredo Casella organizou uma exótica Semana Vivaldi. Depois veio a guerra e só em 1947 foi fundado um tímido Istituto Italiano Antonio Vivaldi com o propósito de promover a música de Vivaldi e publicar novas edições de seus trabalhos. O longo inverno vivaldiano começou logo após sua morte. Quando morreu, era um mendigo em Viena. Teria morrido de “infecção interna”. Em 28 de julho, ele foi enterrado em um túmulo simples no cemitério do hospital de Viena. Seu corpo, assim como o de Bach, foi perdido. Hoje existe apenas uma placa de homenagem na parede da Universidade de Viena registrando um dos possíveis locais do seu túmulo.
Ontem, fomos ao concerto da Ospa. Já na abertura, vinha o Concerto pra Violino de Beethoven com o solista Dmitri Berlinsky. Como diz o Augusto Maurer, um método quase infalível para saber se devemos ir ao um concerto é avaliar o que dizem os bons músicos da orquestra que dele participam. Devido ao burburinho, exagerei e fui ao ensaio da orquestra na segunda-feira à noite. O solista era realmente notável. Ouvindo-o, dava para pressentir toda a cultura que havia por trás de cada nota, nenhuma colocada por mero acaso ou vontade de correção. Beethoven, quando se deu conta de que era dono de um talento raro, disse que para ser um dos grandes necessitaria aprender também literatura e filosofia. Ele sabia que apenas vivendo a cultura poderia realizar a síntese que admiramos até hoje. É isso que nos traz Berlinsky. De uma forma misteriosa, ele arrasta consigo vasto conhecimento artístico e humano.
Não precisava ler o currículo de Berlinsky para ter certeza, mas dei uma olhada. Hoje, aos 48 anos, é professor e solista. É cheio de glórias juvenis: foi o mais jovem vencedor do Paganini International Violin Competition em Gênova. Depois, venceu a International Tchaikovsky Competition e a Queen Elizabeth Competition em Bruxelas. Ainda dá aulas e fundou uma orquestra. Mas seu currículo diz que ele quer elevar a música a um ponto mais alto que o mero entretenimento. E consegue.
Como disse brincando o Lavard Skou Larsen, outro músico de mesma grandeza, quando se toca Beethoven fica-se tão tomado, tão invadido e encharcado de música que é bom até nem tomar banho depois. Quando se ouve é a mesma coisa, Lavard. Então, logo após a interpretação de Berlinsky, com as mãos vermelhas de tanto aplaudir, pensamos que era suficiente e retiramo-nos à francesa para o Atelier das Massas. Pedimos desculpas, mas nossos dias são estressantes ao mais alto grau e era fundamental manter aquilo em nosso cérebro pelo maior tempo possível.
Falei rapidamente com Berlinsky no ensaio. Da forma mais humilde, ele perguntou se seu som não ficara melhor na segunda parte do ensaio, quando pedira para os primeiros e segundos violinos recuarem a fim de que ele ficasse mais dentro do palco. Fiquei constrangido em interferir, mas — o que fazer? — tenho o defeito da opinião. É claro que ele deve ter feito a pergunta para mais uns dez, porém, na hora do concerto, lá estava no local onde eu “sugerira”. E, anote aí, Augusto: outra forma de avaliar um ser humano — e sua possível competência — é medir seu grau de acessibilidade e concluir que a arrogância é apenas uma forma de defesa.
No dia 16 de dezembro, estive no palco do StudioClio falando sobre Ludwig van Beethoven. Houve um momento em que André Carrara tocou a Patética. Fiquei olhando de frente para um público ouvinte de música pela primeira vez na minha vida. Puro cinema. Todos voltados para mim, mas atentos ao pianista (foto ao final), que é excelente. Quando a música tinha ritmo, as pessoas balançavam a cabeça, mexiam os pés, participando silenciosamente da função. Abandonados a si mesmos, pensando que não eram observados, quase todos se movimentavam. No belo adágio, alguns fecharam os olhos, enquanto outros fizeram caras embevecidas, cada um de seu jeito. Lindo. Aquele mal-humorado do Beethoven deve ter gostado. Agradeço ao Francisco Marshall pelo convite.
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Alguns compositores parecem ter nascido prontos, outros não. No primeiro grupo, por exemplo, estão Bach e Brahms, quem sabe Haydn. Bach parece ter nascido com voz própria e definitiva e as diferenças entre suas obras mais parecem resultantes de suas funções nos diversos empregos que ocupou do que de uma evolução de estilo. Na época de Bach não havia a noção da construção de uma obra pessoal para a posteridade. Brahms já tinha esta noção, mas ele também se inclui facilmente no grupo dos “nascidos prontos”. Ouvindo-se os primeiros opus de Brahms, o grande compositor já é facilmente reconhecível. Haydn é um caso semelhante. É complicado reconhecer obras suas como “da juventude” ou “da maturidade”. Apenas suas últimas sinfonias são diferentes. Os tempos do emprego estável com os Esterházy tinham acabado e elas foram compostas em Londres para ganhar dinheiro vivo. A sombra do contrato que pairava sobre sua cabeça acrescentou tensão e aquela possibilidade de fracasso que lhe faltara antes.
Ter nascido e morrido com a mesma cara — ou, melhor dizendo, com o mesmo estilo – não representa mérito ou demérito. Muitos dos grandes compositores evoluíram profunda e espetacularmente. Mozart e Beethoven, por exemplo, foram criadores que alteraram muito suas linguagens ao longo dos anos. Mozart menos, certamente por ter vivido pouco. Beethoven alterou-se de tal forma que sua evolução acabou por ser a própria transição da música do período clássico para o romantismo. Isto deu-se certamente por uma necessidade interna, mas fatores externos também os influenciaram.
Por alguma razão, o gráfico abaixo ignora Bach, mas no restante ele nos serve.
Haydn, Mozart e Beethoven são considerados os maiores compositores do período clássico. Haydn viveu 77 anos, Mozart, 35, Beethoven, 57.
Não gosto muito das classificações por escolas, mas, grosso modo, pode-se dizer que o barroco começa em 1600 (data da invenção da ópera) e acaba em 1750, quando Bach morre. O período clássico vai daí até aproximadamente 1810 (quando inicia o segundo período da obra beethoveniana). Já o Romântico inicia no segundo período de Beethoven e vai até 1900, trocado pelo século XX.
Enquanto isso, Beethoven, que nasceu depois dos dois, começa criando obras muito semelhantes às de Mozart, mas evolui de tal modo que funda o romantismo musical. O ponto de partida do Romantismo é normalmente considerado a composição da Sinfonia Nº 3, Eroica. Talvez Mozart o tivesse acompanhado nesta aventura de transformação, mas sua morte interrompeu a jornada.
Ouçamos um trecho da Sonata Nº 1, Op. 2 de Beethoven. Notem como parece Mozart.
Beethoven foi fundamental na transição do clássico para o romântico. Notem que tal transição não se deveu a uma arbitrariedade histórica como a virada de um século nem à morte de um compositor, mas a uma alteração de estilo, ao desenvolvimento da linguagem de um criador. Claro que a posição cronológica favoreceu-o sobremaneira, mas o compositor contribuiu. Ele era um campo fertilíssimo.
Ludwig van Beethoven nasceu há 250 anos, em 17 de dezembro de 1770, na cidade de Bonn, atual Alemanha. Seu sobrenome, porém, era de origem holandesa. Consta que é derivado da aldeia de Bettenhoven (que quer dizer “horta de beterrabas”), no interior da Holanda. Apesar do sobrenome holandês, o avô paterno de Beethoven era originário de Antuérpia, na atual Bélgica. Ele era músico e emigrou para Bonn, local de nascimento de nosso biografado.
A vida de Ludwig van Beethoven (1770-1827) mostrou-se tão adequada a romances e filmes que as lendas em torno de sua figura foram se criando de forma indiscriminada, às vezes paradoxal. Sua surdez, por exemplo, contribuiu muito para popularizá-lo e para que fosse lamentado. O escritor Victor Hugo dizia que sua música era a de “Um deus cego que criava o Sol”, mas quem o conhecesse talvez reduzisse este tom de piedade.
Beethoven era uma pessoa absolutamente segura de seu talento – não mentiríamos se o chamássemos de arrogante – e tinha a perfeita noção de que estava criando um conjunto espetacular de obras musicais. Sabia-se imortal. A surdez representava uma tragédia muito mais do ponto de vista social, das relações amorosas e das de amizade, além, é claro, de prejudicar de forma definitiva sua carreira de grande pianista. Mas não era um obstáculo no plano da criação.
O problema começou a manifestar-se aos 26 anos de idade e aos 46 o compositor estava praticamente surdo. Por exemplo, ao final da primeira apresentação pública da 9ª Sinfonia, Beethoven permaneceu absorto na leitura da partitura e não percebeu que estava sendo ovacionado até que um amigo, tocando em seu braço, voltou sua atenção para o que acontecia na sala, onde a plateia o aplaudia em pé. Ou seja, aos 54 anos, época da composição da Nona, ele era totalmente surdo.
Com isso, não estou dizendo que ele não tenha sofrido com o progressivo ensurdecimento. Sofreu a ponto pensar em suicídio. Era 1802, Beethoven tinha 31 anos – idade com que Schubert morreu – e pensava em matar-se. Mas deixou a intenção apenas escrita em cartas. Ao que se sabe, nunca fez uma tentativa. Porém, se a fizesse e fosse bem-sucedido, talvez ainda assim estivéssemos falando dele.
Beethoven não era fácil. Em seus anos de aluno, ele utilizava harmonias que eram consideradas inadmissíveis. Quando lhe diziam que eram estranhas, perguntava de volta: “Quem as proibiu?”. Em 1792, quando Haydn visitou Bonn, foi apresentado a ele. Beethoven tinha 21 anos e mostrou algumas de suas obras a Haydn. Este, impressionado, propôs que o jovem se transferisse para Viena a fim de que pudesse ser seu aluno. No mesmo ano, Beethoven instalou-se em Viena, mas recebia aulas de forma irregular, pois Haydn estava no auge de sua carreira e tinha de sair frequentemente da cidade.
Beethoven logo ficou descontente devido a pouca dedicação de Haydn para com ele. Sabe-se que Haydn ensinou-lhe muito, apesar de considerá-lo um chato. Chamava-o de Sua Majestade. Assim, em 1794, Beethoven aproveitou-se de uma viagem de Haydn a Londres e procurou um novo mestre. A relação entre ele e o novo professor também não foi muito tranquila. Tanto que Albrechtsberger, depois de dispensado, proferiu uma daquelas frases que fazem a alegria dos biógrafos. Ele disse: “Não percam tempo com ele. Ele nada aprendeu e nada fará de bom”. Bem, assim é que se faz para entrar na história pela porta dos fundos…
Hoje, 250 anos depois, não temos a intenção de contar os casos em que fica comprovado que Beethoven era um brigão — procuremos ver sua postura por um lado mais indulgente: a de um sujeito orgulhoso, consciente do próprio valor e, em relação ao pobre Albrechtsberger, claramente superior.
Há um fato muito curioso na formação de Beethoven. Desde cedo ele teve uma noção muito clara daquilo que lhe faltava: faltava-lhe conhecer literatura. E ele, com entusiasmo, atirou-se à leitura de Homero, Shakespeare, Goethe e Schiller. Pensava que só assim – e tendo bons professores de composição – poderia ser o que tinha planejado para si: tornar-se o Tondichter da Alemanha, o poeta dos sons de seu país.
Ele queria ainda mais poesia do que isso…
As obras escritas antes de seus 30 anos obedeciam e também traíam seus mestres. Apesar de respeitar as estruturas aprendidas, já são claros os procedimentos expressivos que utilizaria nas fases seguintes – os temas curtos e afirmativos, os súbitos silêncios, o uso simultâneo de graves e agudos do teclado, a primazia do ritmo. O seu “classicismo vienense” era muito pessoal.
Um exemplo famoso de tema curto é o tema inicial da 5ª Sinfonia. Notem os gestos incríveis do maestro Masato Usuki. Agora, se algum de vocês puder me explicar como a orquestra entra junto depois do maestro mexer os braços daquele jeito… (Sim, sabemos, há um spalla para salvar tudo).
É tradicionalmente aceito dividir a vida artística de Beethoven em três fases. A primeira começa com a mudança para Viena, em 1792. Uma fase quase mozartiana. Nove anos depois, em 1801, Beethoven afirmou não estar satisfeito com o que compusera até então, decidindo tomar um “novo caminho”. Tudo parecia levá-lo ao épico e, dois anos depois, em 1803, surge um grande fruto desse “caminho”: a Sinfonia Nº 3, Eroica. Ela abre um verdadeiro ciclo épico. A Sinfonia era para ser dedicada a Napoleão Bonaparte, pois Beethoven admirava Napoleão e os ideais da Revolução Francesa. Porém, quando o corso autoproclamou-se Imperador da França em maio de 1804, Beethoven retirou a dedicatória de forma bastante característica… Foi até a mesa onde estava a sinfonia já pronta, pegou a primeira página e riscou o nome de Napoleão com tanta força que ficou um buraco no papel. É que ele apagara a referência ao novo Imperador com uma faca… E que música havia naquelas folhas!
O ciclo épico iniciado pela Eroica seguiu com obras verdadeiramente espantosas e originais, que cantavam a força da humanidade, a paixão pela liberdade e a vitória do espírito humano.
Vieram a Sinfonia Nº 5, a Nº 6, Pastoral, as sonatas Waldstein e Appassionata, o Concerto para Piano Nº 5, chamado Imperador, a Fantasia para piano, orquestra e coro. Eram músicas intensas, triunfantes, românticas, às vezes belicosas. Importante explicar o título Imperador do Concerto Nº 5 para piano e orquestra. O compositor jamais quis este apelido para o Concerto. Quem deu este nome foi o editor responsável pela publicação da partitura na Inglaterra. Este acreditou ser aquele um Concerto tão grandioso como nenhum outro e o chamou assim. O próprio Beethoven não gostou do apelido, mas isso de nada adiantou.
A época da morte de Haydn, em 1809, ainda dentro da primeira fase beethoveniana, foram anos de grande fertilidade criativa. As obras-primas brotavam de sua pena. Vieram também o Concerto para Piano nº 4, Op. 58; os Três Quartetos de Cordas, intitulados Razumovsky, em 1806; o Concerto para Violino, Op. 61 e a Sonata Patética.
Enquanto isso, a vida amorosa de Beethoven ia de mal a pior. Dono de uma personalidade apaixonada, sofria decepções em série. Um dos mais famosos casos foi o com Bettina Brentano, que fez uma extensa descrição do mestre em suas cartas. Resumidamente, ela o descreveu como “pequeno, moreno, marcado pela varicela, o que se chama de feio”. Porém, “tinha uma fronte nobremente modelada, parecendo ter trinta anos” – tinha quarenta – e vestia “andrajos com ar magnífico e imponente”.
Bettina apresentou-o a Goethe. Não deu nada certo. Em julho de 1812, Beethoven recebeu o convite para um encontro com o maior escritor de língua alemã. O encontro deu-se em Teplitz. Há algum tempo os dois se estudavam à distância: Goethe tinha grande admiração pela 5ª Sinfonia, “simplesmente espantosa e grandiosa” e Beethoven era interessado em literatura em geral e no mestre em especial. Em 1811, por exemplo, Beethoven tinha mandado para Goethe um exemplar da música que fizera para Egmont. Era esperado um encontro dos Titãs.
Porém, a possibilidade de uma amizade acabou muito rápido. O caso é conhecido como “O incidente de Teplitz” e ocorreu na época da composição da 7ª Sinfonia.
Os dois caminhavam de braço quando viram o Imperador do recém-fundado Império Austríaco, os duques e toda a corte caminhando em direção oposta. Bettina conta que Beethoven disse para Goethe ignorá-los, ele queria que os aristocratas abrissem caminho para eles. Goethe, discordou silenciosamente, deu um passo para o lado e tirou o chapéu para cumprimentar a família real, enquanto Beethoven passava decididamente no meio da corte, sem nem tirar o chapéu. Quando Goethe alcançou Beethoven, este lhe disse: “Eu esperei por você porque respeito seu trabalho, mas você demonstrou um apreço exagerado por estas pessoas”.
Em carta para a sua esposa, o escritor disse sobre Ludwig: “Seu talento me surpreendeu; no entanto, ele tem uma personalidade absolutamente incontrolável. Não está equivocado ao pensar no mundo como um local horrível, mas nada faz para torná-lo mais agradável para si e para os outros”. Enquanto isso, Beethoven escrevia para seu editor dizendo que “Goethe se encanta mais com a atmosfera da corte do que em ser um grande poeta”. Os dois nunca mais se encontraram. Anos depois, Beethoven mandou uma carta para Goethe. Não houve resposta.
Nesta época iniciava a segunda fase da produção de Beethoven. Ela já era reconhecido como o maior compositor de sua época. Então começou a fazer algumas bobagens. Entre 1813 e 17, passa por uma crise criativa. Talvez a progressiva surdez — ele começara a se comunicar com as pessoas por gestos ou por escrito –, ou a perda das esperanças matrimoniais, ou os problemas na tentativa de ganhar a custódia do sobrinho, fizeram com que ele sofresse uma crise criativa. Mas seguiu compondo: escreveu a pior das músicas em A Vitória de Wellington. “É uma estupidez”, admitiu, mas o público saudou o triunfalismo da obra. Era o músico nacional e tudo o que fizesse era adorado. A vaidade jogou-o em outras empreitadas mal sucedidas. Eram cantatas como Cristo no Monte das Oliveiras e a desconhecida Missa em Dó Maior, além de ciclos de canções que consistiam em músicas de circunstância que alcançavam o aplauso, mas que não permaneceram.
Agora, a tal A Vitória de Wellington. Vejam se isso parece Beethoven… Depois da introdução, parece que nasce um mau Handel romântico…
A sorte foi ele ter conhecido a Condessa Maria Erdödy, que preferia música de verdade. Foi esta grande e inspiradora amiga quem conseguiu retirá-lo da letargia e ele recomeçou, em 1818, a compor lentamente o que seriam, na minha opinião, suas maiores obras. À Condessa foram dedicadas as duas esplêndidas Sonatas para Violoncelo e Piano Op. 102.
A postura de ambos os amigos era de romantismo total. Uma das cartas da Condessa dirigidas a ele: “Nós, seres limitados de espírito ilimitado, nascemos para o sofrimento e para a alegria. Sendo que os mais destacados, como você, apropriam-se da alegria através do sofrimento”. Enquanto isso, um fato paralelo preocupava demais o compositor: a conquista de Viena por parte de Rossini. Desta época de recuperação criativa, temos o maravilhoso Trio Arquiduque, que marca o final da segunda fase beethoveniana.
E então começou a terceira fase, a mais vanguardista delas. Como dissemos, a partir de 1818, o compositor, aparentemente recuperado, passou a compor mais lentamente, mas com vigor renovado. Apesar do vanguardismo e das pessoas da época considerarem aquilo incompreensível, há obras muito populares nesta fase – não esqueçam que tal fase contém a ultra e justamente popular Sinfonia Nº 9 – , mas há também aquelas que, de tão perfeitas, serviram de base de apoio para um alto número de compositores que vieram depois. A irrepetível sequência de músicas perfeitas e revolucionárias começou com a Sonata para Piano, Op. 106, Hammerklavier. Beethoven teve que prestar explicações a seus contemporâneos, que não a entenderam, o que gerou mais um rosário de deliciosas respostas mal humoradas. “Não pensei no pianista quando a escrevi”. “Não gostam agora? Gostarão mais tarde. Não escrevo para vocês, escrevo para o futuro”.
As sonatas seguintes, de Op. 109, 110 e 111, são inacreditáveis, considerando-se a época em que foram compostas. Porém, ouvindo-as hoje, são apenas belíssimas, assim como as Variações sobre um tema de Diabelli, onde uma valsa muito simples é desenvolvida e transformada até atingir alturas prodigiosas. A Sonata Op. 111 gerou um dos mais belos momentos da literatura de todos os tempos: a aula do Prof. Kretzschmar em Doutor Fausto, de Thomas Mann. E, até a morte de Beethoven, haveria mais obras para as quais os melômanos revirariam os olhos ao falarem delas — os últimos quartetos, por exemplo. Em meio à doenças e reclamações contra Rossini e à italianização do mundo, tais composições vieram uma a uma à tona e serviram como pedra fundamental para a música do futuro. Quando soube que os últimos quartetos tinham sido pessimamente acolhidos, repetiu, mais uma vez com razão: “Não são para vós, mas para as gerações futuras”.
Pois o futuro lhe abriria as portas como fez para poucos. No início do século XX, o escritor Romain Rolland acreditava ser o último beethoveniano. Não poderia estar mais errado. Bartók, Xenakis, Varèse, Shostakovich e Schnittke foram decisivamente influenciados. Além disso, Beethoven tornou-se o mais popular dos compositores eruditos, o elo perfeito para aqueles que raramente ouvem a música erudita pudessem adentrar em um novo mundo. Ludwig van tinha a admiração, por exemplo, de Alex DeLarge, personagem de A Laranja Mecânica; é utilizado por alunos de piano nas facilidades do primeiro movimento da Sonata ao Luar; também tem a admiração das pessoas que invadem praças ou salas de concerto para ouvirem o final da Nona Sinfonia. E conta com o assombro dos entendidos.
Como dissemos, no famoso capítulo VIII do Doutor Fausto, de Thomas Mann, o imaginário professor Kretzschmar dá uma aula sobre o tema “Porque Beethoven não escreveu o terceiro movimento da Sonata Op. 111”. A ideia da aula descrita por Mann nasceu quando um descuidado pianista contemporâneo de Beethoven perguntou sobre o motivo da inexistência do mesmo. A resposta do compositor foi típica: “Não tive tempo de escrever um!”. Mann explorou habilmente a história.
Pois o incrível – e Mann aparentemente não sabia disso — é que os musicólogos descobriram que havia um terceiro movimento para esta sonata. Em alguns manuscritos originais, há anotações: segundo movimento – Arietta; terceiro movimento – Presto. O Kretzschmar de Mann diz que a Arietta (o segundo movimento) seria um adeus. Trata-se de um tema com variações que dá ao ouvinte uma sensação muito íntima. Nas três primeiras variações, o tema – que segundo Kretzschmar seria um dim-da-da que poderia ser balbuciado distraidamente por um bebê — vai sendo cada vez mais movimentado: as notas vão se multiplicando e o ritmo começa a ser quebrado e animado até culminar na famosa terceira variação, muito comparada a um boogie-woogie, 100 anos antes disso existir.
Claro que a invenção dessa despedida foi uma das muitas liberdades poéticas tomadas pelo entusiasmado professor de Mann. Está bem, foi a última sonata para piano de Beethoven, porém após o Op. 111 ainda vieram outras obras importantes para piano, como as Variações Diabelli (Op.120) e as Bagatelas (Op.126), além, é claro, de todos os últimos quartetos. Ou seja, quando Beethoven escreveu o Op. 111, era um compositor em plena atividade e com vários projetos diferentes a desenvolver.
De 1816 até 1827, ano da sua morte, conseguiu compor cerca de 44 obras musicais. Ao morrer, a 26 de Março de 1827, estava trabalhando numa nova sinfonia, assim como projetava escrever um Réquiem. Ao contrário de Mozart, que foi enterrado anonimamente em uma vala comum, 20.000 cidadãos vienenses — Viena tinha 300.000 habitantes — foram ao funeral de Beethoven.
E, com efeito, o interesse pela obra de Beethoven mudou Viena. O historiador Paul Johnson diz que “Existia uma nova fé e Beethoven era o seu profeta. Não foi por acidente que, aproximadamente na mesma época, as novas casas de espetáculo recebiam fachadas parecidas com as dos templos, exaltando o novo status moral e cultural da sinfonia e da música de câmara.”
Em 1824, surge Sinfonia nº 9, Op.125, para muitos a sua obra-prima. Pela primeira vez na história da música, é inserida a voz humana num movimento de uma sinfonia. Os solistas e o coral exaltam de forma dionisíaca a fraternidade universal, começando pela aliança entre duas artes irmãs: a poesia e a música. O texto é uma adaptação do poema de Schiller, “Ode à Alegria”, feita pelo próprio Beethoven. E, bem, todos conhecem esta grande música que precede os quartetos finais.
Agora, uma referência moderna à Nona e a Beethoven, uma das tantas presentes no filme A Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick. Há muitas mais, basta lembrar do Nostalgia de Tarkóvsky e muitos outros filmes modernos que usam a Nona.
Os anos finais de Beethoven foram dedicados quase que exclusivamente à composição de Quartetos de Cordas. Foi nesse meio que ele produziu algumas de suas mais profundas e visionárias obras: os Op. 127, 130, 131, 132, 135 e a Grande Fuga, Op. 133, todos encomendados pelo príncipe Galitzin, que pagou 50 ducados por cada um. Pagou mesmo? Beethoven recebeu o pagamento apenas do primeiro quarteto. Embora o príncipe russo jamais tivesse negado a dívida, os quartetos restantes só foram pagos aos herdeiros de Beethoven em 1852, 25 anos após a morte do compositor.
Na opinião de Beethoven, o quarteto — que fora inventado por Haydn — era a manifestação mais alta da arte musical. E o compositor utilizou-o como veículo de expressão de todo um projeto de renovação de sua música.
A obra sinfônica de Beethoven é bem mais acessível ao público, mais do que a pianística e muito mais do que os quartetos. Pode-se dizer que os quartetos de Beethoven da primeira e segunda fases fossem sinfonias reduzidas para poucos instrumentos, mas, ouvindo os da última fase, a ideia de orquestração não passa por nossa cabeça. Aqui, ele se desliga estilisticamente da sinfonia, dando lugar a um intimismo raramente alcançado e apenas possível camaristicamente.
O Quarteto Op. 132 é absolutamente pessoal, como pode ser demonstrado pelas anotações na partitura. Beethoven passara um inverno sem complicações de saúde, mas a primavera trouxera-lhe moléstias pulmonares – ele cuspia sangue –, digestivas e intestinais que o debilitaram muito, ao ponto de deixá-lo de cama por vários dias. Durante esta doença, Beethoven trabalhava no Op. 132. Sua situação foi comentada musicalmente. Na partitura, há anotações como “ação de graças de um convalescente”, “sentindo novas forças” ou “Tu (referindo-se a deus) me devolveste a vontade de viver”. Trata-se de um caso único na história da música — um compositor expor problemas tão terrenos uma cpomposoção. Normalmente, quando se fala na dor que uma música representa, em geral nos referimos a dores da alma, dificilmente a sofrimentos corporais.
Dores e recuperação: de 21`30 até 24`30.
E finaliza com uma valsa fantástica, de pura alegria: 39`01
Essa é a natureza do conflito captado pelo Op. 132.
O Op. 130 foi o último a ser escrito e também tem história curiosa. Para encerrar grandiosamente a encomenda do príncipe Galitzin, Beethoven escreveu uma Grande Fuga. Depois, ele aceitou a sugestão de seu editor de separar esta fuga do Quarteto Op. 130, tornando-a uma peça independente. Os motivos teriam sido comerciais, eles lucrariam mais dividindo o quarteto em dois. Ainda mais que o russo não pagava…
Um adjetivo acaba associado à Große Fuge Op. 133 (1826): ela seria “assustadora”. Tento explicar. Uma fuga é uma forma musical que exige grande conhecimento técnico de composição. Então imagine quando ela é escrita de maneira inesperadamente violenta e dissonante como aqui – provavelmente a obra mais moderna de Beethoven. Sua estrutura geral parece condensar, além da forma de uma fuga a quatro vozes, a estrutura de uma sinfonia em quatro movimentos – pois há quatro episódios: os internos lembram um andamento lento e um scherzo, os externos seriam a introdução e o finale.
Ouçamos o começo da Grande Fuga, quando, após a introdução, vem o susto da exposição, com notas caindo para todos os lados, os instrumentos entrando um por um onde parece não haver espaço para mais nada e um tema totalmente anguloso e dissonante.
0`45 em diante (por uns 3 minutos)
Então, a última fase de Beethoven foi finalizada por um gênero de música que nunca fora ouvida antes. As composições desta fase foram criadas sem a preocupação em respeitar regras.
Tanto que o último movimento do Quarteto Op. 135 demonstra claramente a noção que Beethoven tinha de estar em terreno jamais palmilhado. O nome que um dos movimentos recebe mais parece uma brincadeira: “A difícil decisão: Deve ser assim? Deve ser assim!”.
13) Op. 135 – 0`36 em diante por uns dois minutos
Beethoven morreu em 1827 de motivos ainda controversos. Uns falam em cirrose, porém, modernamente, análises de seus cabelos têm levado a conclusões de que o compositor teria sido acidentalmente levado à morte por envenenamento devido a doses excessivas de chumbo, a base dos tratamentos administrados por seu médico.
Considerado um poeta-músico, Beethoven foi o primeiro romântico apaixonado pelo lirismo dramático e pela liberdade de expressão. Se foi condicionado por algo, foi pelo equilíbrio, pelo amor à natureza e pelos grandes ideais humanitários. Inaugurou a tradição do compositor livre, que escreve música para si, nem sempre vinculada ao desejo de um mecenas ou do público. Hoje em dia, muitos críticos o consideram como o maior compositor do século XIX, a quem se deve a inauguração do período Romântico, e todos o distinguem como um dos poucos homens que merecem a adjetivação de “gênio”.
E agora digam que ele não escrevia para o futuro!
Fontes consultadas:
— História da Música Ocidental, de Jean e Brigitte Massin.
— O blog Euterpe, texto de Leonardo T. Oliveira
— Beethoven e o Sentido da Transformação, de José Viegas Muniz Neto
— Beethoven, de Barry Cooper
— Biografia de Beethoven
Os anos finais de Beethoven foram dedicados quase exclusivamente à composição de Quartetos de Cordas. Foi nesse meio que ele produziu algumas de suas mais profundas e visionárias obras: os Op. 127, 130, 131, 132, 135 e a Grande Fuga, Op.133, todos encomendados pelo príncipe Galitzin, que pagou 50 ducados por cada um. Pagou mesmo? Beethoven recebeu o pagamento pelo primeiro quarteto. Embora o príncipe russo jamais tivesse negado sua dívida, os quartetos restantes só foram pagos aos herdeiros de Beethoven em 1852, 25 anos após a morte do compositor.
Na opinião de Beethoven, o quarteto — que fora inventado por Haydn — era a manifestação mais alta da arte musical. E o compositor utilizou-o como veículo de expressão de todo um projeto de renovação de sua música. As seis últimas obras para quartetos de cordas são o cume da transformação de Beethoven como criador.
Sua obra sinfônica é bem mais acessível ao público, mais do que a pianística e muito mais do que os quartetos. Pode-se dizer que os quartetos de Beethoven da primeira e segunda fase fossem sinfonias reduzidas para poucos instrumentos, mas, ouvindo os da última fase, a ideia de orquestração não passa pela nossa cabeça. Aqui, ele se desliga estilisticamente da sinfonia, dando lugar a um intimismo raramente alcançado e apenas possível camaristicamente.
O Quarteto Op. 132 é absolutamente íntimo, como pode ser demonstrado pela partitura. Beethoven passara um inverno sem complicações, mas a primavera trouxera moléstias pulmonares — cuspia sangue –, digestivas e intestinais que o debilitaram muito, ao ponto de deixá-lo por vários dias de cama. Durante este episódio, Beethoven trabalhava no Op. 132 e sua situação foi revelada musicalmente. Na partitura, há anotações como “ação de graças de um convalescente”, “sentindo novas forças” e “Tu me devolveste a vontade de viver”. Trata-se de um caso único na história da música, penso, pois nunca vi um compositor expor problemas tão terrenos em sua música. Quando se fala na dor que uma música representa, em geral nos referimos a dores da alma, dificilmente a sofrimentos corporais.
https://youtu.be/LdMQas2tP9o
Dores e recuperação: de 21`30 até 24`30 E finaliza com uma valsa fantástica, de pura alegria: 39`01
Essa é a natureza do conflito captado pelo Op. 132, uma tentativa de transformar as dores físicas em sons.
O Op. 130 foi o último a ser escrito e também tem história curiosa. Como ele encerrava a encomenda feita pelo príncipe Galitzin, Beethoven finalizou-o com uma Grande Fuga. Depois, ele aceitou a sugestão de seu editor de separar a Grande Fuga do Quarteto Op. 130. Os motivos teriam sido comerciais, lucrariam mais dividindo o quarteto em dois.
Um adjetivo acaba associado à Große Fuge Op. 133 (1826): “assustadora”. Uma fuga já é uma forma musical que exige grande conhecimento técnico de composição. Então imagine quando ela é escrita de maneira inesperadamente violenta e dissonante como nessa fuga – provavelmente a obra mais moderna de Beethoven. Depois junte o hermetismo desta uma forma complexa a temas dissonantes e ao ímpeto de Beethoven. Sua estrutura geral parece condensar, além da forma de uma fuga a quatro vozes, a estrutura de uma sinfonia em quatro movimentos – pois há quatro episódios: os internos lembram um andamento lento e um scherzo, os externos são introdução e finale.
Abaixo, gostaria que o leitor separasse o começo da Grande Fuga, quando, após a introdução, vem o susto da exposição, com notas caindo pra todos os lados, os instrumentos entrando um por um onde parece não haver espaço para mais nada e um tema totalmente anguloso e dissonante.
https://youtu.be/XEZXjW_s0Qs
0`45 em diante (por uns 3 minutos)
Então, a última fase de Beethoven foi finalizada por um gênero de música que nunca fora ouvida antes. A partir dele, a música nunca mais foi a mesma. As composições desta fase foram criadas sem a preocupação em respeitar as regras que, até então, eram seguidas.
O último movimento do Quarteto Op. 135 demonstra claramente que ele estava quebrando regras. O nome que o movimento recebe mais parece uma brincadeira: “A difícil decisão: Deve ser assim? Deve ser assim!”.
Considerado um poeta-músico, ele foi o primeiro romântico apaixonado pelo lirismo dramático e pela liberdade de expressão. Se foi condicionado por algo, foi pelo equilíbrio, pelo amor à natureza e pelos grandes ideais humanitários. Inaugurou a tradição do compositor livre, que escreve música para si, nem sempre vinculada a um mecenas. Hoje em dia, muitos críticos o consideram como o maior compositor do século XIX, a quem se deve a inauguração do período Romântico, enquanto que outros o distinguem como um dos poucos homens que merecem a adjetivação de “gênio”.
E agora digam que ele não escrevia para o futuro.
Beethoven morreu em 1827 de motivos ainda controversos. Uns falam em cirrose, porém, modernamente, análises de seus cabelos têm levado a conclusões de que Beethoven foi acidentalmente levado à morte por envenenamento devido a doses excessivas de chumbo, a base dos tratamentos administrados por seu médico.
Fontes:
— História da Música Ocidental, de Jean e Brigitte Massin.
— O blog Euterpe, texto de Leonardo T. Oliveira
— Beethoven e o Sentido da Transformação, de José Viegas Muniz Neto
— Beethoven, de Barry Cooper
— Biografia de Beethoven