Introdução à leitura de "2666", de Roberto Bolaño

Sim, eu não suportei a angústia. Quando fui a Montevideo, ele estava bem na entrada da Puro Verso. Abri o livro de 1125 páginas, vi que era de leitura confortável, com pontos de parada a cada duas ou três páginas; pensei que um livro daquele tamanho poderia ser mais um problema ortopédico do que literário para o leitor, mas que se repetiria na tradução brasileira. Ademais, para que serve o espanhol que conheço se recuasse ante o original de um escritor que amo? Comprei 2666 e voltei, não sei por quê, direto para o hotel. Abri o livro na primeira página e li a epígrafe:

Um oásis de horror em meio a um deserto de tédio.

CHARLES BAUDELAIRE

Oásis de horror… E, na página seguinte, a importante Nota Explicativa que traduzo a seguir da original:

Nota de los herederos del autor

Ante la posibilidad de una muerte próxima, Roberto dejó instrucciones de que su novela 2666 se publicara dividida en cinco libros que se corresponden con las cinco partes de la novela, especificando el orden y periocidad de las publicaciones (una por año) e incluso el precio a negociar con el editor. Con esta decisión, comunicada días antes de su muerte por el propio Roberto a Jorge Herralde, creía dejar solventado el futuro económico de sus hijos.

Después de su muerte y tras la lectura y estudio de la obra y del material de trabajo dejado por Roberto que lleva a cabo Ignacio Echevarría (amigo al que indicó como persona referente para solicitar consejo sobre sus asuntos literarios), surge otra consideración de orden menos práctico: el respeto al valor literario de la obra que hace que de forma conjunta con Jorge Herralde cambiemos la decisión de Roberto y que 2666 se publique en un solo volumen, tal como él habría hecho de no haberse cumplido la peor de las posibilidades que el proceso de su enfermedad ofrecía.

ou

Nota dos herdeiros do autor

Diante da possibilidade da uma morte próxima, Roberto deixou instruções para que seu romance 2666 fosse publicado em cinco livros correspondentes às cinco partes do romance, especificando a ordem e a periodicidade das publicações (uma por ano) e até mesmo o preço para negociar com o editor. Com esta decisão, enviada dias antes de sua morte pelo próprio Roberto a Jorge Herralde, pensava deixar resolvido o futuro econômico de seus filhos.

Após sua morte e depois da leitura e estudo da obra e do material de trabalho deixado por Roberto, Ignacio Echevarría (o amigo que indicou como seu conselheiro literário) surgiu com outra consideração de ordem menos prática: o respeito ao valor literário da obra, que faz com que, em conjunto com Jorge Herralde, alteremos a decisão de Roberto e que 2666 seja publicado primeiro em um só volume, como o autor teria feito se não tivesse sido cumprida a pior das possibilidades que oferecia seu processo de doença.

(Trad. sem muita revisão feita por mim)

Então, lembrei de que estava em Montevideo e que seria interessante, além de econômico, voltar a comportar-me como um turista e não como um literato inveterado que fica lendo em seu hotel não obstante a viagem. Eu que deixasse a leitura para Porto Alegre. Retornei à 18 de julho e à Puro Verso, sabendo que o tesouro estava guardado no hotel e combinei o almoço com a Claudia no Panini`s da Travessa Bacacay, na Cidade Velha, bem perto da outra Puro Verso, a de seis andares. Neste ínterim, não fiz muita coisa que não fosse fuçar em alguns antiquários em busca do Spica perfeito.

Quando a Claudia chegou, comemos o maravilhoso almoço de sempre do Panini`s, lembro que falamos  no preço das roupas, no estado das meus blusões e, levados pelo Cabernet Sauvignon, em John Kennedy Toole. e sua mamãe. Na verdade, bebemos tanto que foi necessário um pit stop no hotel. onde ele, 2666, estava.

E agora estou lá pela página 140, faltando umas 900 para ler. Meu estado é: maravilhado. É curioso: em minha opinião, estou fazendo uma leitura fundamental para quem queira acompanhar a cena literária contemporânea, mas não há, no Brasil, meu ambiente, grande ressonância a Bolaño. Aliás, não há ressonância a nada que não seja perecível, efêmero. É nosso país. Para nossa sorte, há o Uruguai e a Argentina aqui perto. E há os blogues portugueses. Lá, faltam 9 dias, 14 horas, 39 minutos e vinte e seis segundos para 2666 ser lançado. Há um blog que acompanha o pré-lançamento e toda a reação ao livro. Ele faz uma contagem regressiva atá a data de lançamento, 26 de setembro de 2009. Há comentários por toda a blogosfera lusitana, parece haver autêntica expectativa, debate, existem tentativas talvez exageradas de arranjar-lhe um bom lugar na história da literatura, divulga-se opiniões de gente que leu (por mais amalucadas que sejam) e a cultura parece ser até assunto de conversa nas ruas. Isso em Portugal.

Para viver bem do Brasil, há que se acostumar com nossa estupidez. Quando a Cia. das Letras lançar o livro haverá matérias amadorísticas naqueles mesmos jornais, a Cultura dará desconto para quem fizer a compra antes do lançamento, vão chamá-lo de Livro do Ano, o bom Sérgio Rodrigues vai publicar uma crônica provocativa a seus leitores lançando a dúvida — Bolaño é superestimado ou não? — e será uma pequena confusão de leitores e não-leitores (a maioria) a iniciarem o enterro uma obra que, puxa, deveria ser ao menos debatida. E estamos, por incrível que pareça, na América Latina. E o livro lida com personagens e problemas muito, mas muito mesmo, latino-americanos. E com licença que vou ler mais um pouco.

Espingardas e Música Clássica, de Alexandre Pinheiro Torres

Se todos fossem ateus, o Diabo ficava sem emprego.

ALEXANDRE PINHEIRO TORRES, em Espingardas e Música Clássica

Nenhum de meus amigos conhecem este autor e acredito que a maioria de vocês nem imagina quem seja Alexandre Pinheiro Torres (1923-1999), escritor português nascido em Amarante. Mas deveriam. Romancista, poeta, importante crítico literário e professor universitário na Universidade de Cardiff, Alexandre viveu por curto período no Brasil após ser obrigado a exilar-se. O fato que o levou ao exílio está entre os gestos de que mais se orgulhava: em 1965, nomeado membro do Júri do Grande Prêmio de Ficção, atribuído pela Sociedade Portuguesa de Escritores, propôs a atribuição do prêmio ao livro Luuanda, de Luandino Vieira, que na época estava preso pela acusação de terrorismo. A atitude levou Salazar a proibi-lo de ensinar em Portugal, o que o levou primeiro ao Brasil e logo após à Cardiff, onde tornou-se catedrático de Literatura Portuguesa e Brasileira. Em 1970, fundou a primeira cadeira independente de Literatura Africana de Língua Portuguesa em universidades inglesas.

Mas esses são detalhes biográficos, vamos ao livro encontrado num balaio da Feira de Livro de Porto Alegre no ano passado ao preço de R$ 2,00. Espingardas e Música Clássica foi escrito em 1962 e só pode ser publicado após a queda de Salazar, pois seria impossível, naquela época, publicar um romance que se passava entre os dias 19 de dezembro de 1961 e 2 de janeiro de 1962. Na primeira data, a União Indiana de Nehru invadiu e ocupou em definitivo, para nenhum espanto do mundo, as possessões da chamada Índia Portuguesa (Goa, Damão e Diu). Em Goa quase não se ouviram tiros; de forma calma, inteligente e talvez pouco patriótica, os militares e marinheiros portugueses que deveriam opor-se à invasão escolheram depor as armas. A ação narrativa do romance se conclui em 2 de Janeiro de 1962, quando do assalto ao quartel de Beja.

Durante este período, a Emissora Nacional portuguesa transmitiu ao longo de todo o tempo música clássica. Sua intenção era suavizar ou esconder a verdade e aí está a explicação do estranho título que, aliás, foi o que me fez comprar o livro. Mas a curiosidade não pára aí.

Este livro altamente político tem sua história baseada no lacrimoso clássico de Camilo Castelo Branco Amor de Perdição. Mas está longe de ser um pastiche, pois a história contada supera em muito a simplicidade do modelo, seja em número de personagens, seja em visão de mundo, seja no interessante trabalho de linguagem, seja na tremenda e densa porção de sarcasmo que apresenta com elegância. A intriga não se constrói ao redor de um “amor de perdição”, mas antes de um amor de salvação ou de libertação, porque Teresa e Simão visam outros interesses. Porém, o fato de sobrepor personagens e situações se por um lado facilita a complexa trama ficcional do romance — o romance de Camilo não precisa ser lido, pois as concidências de nomes e circunstâncias são comentadas ao longo do romance pelos próprios personagens –, por outro avisa o leitor de os tempos são outros e que o final será muito diferente neste Portugal de Salazar.

O romance realiza um contraponto entre o final do período colonial nos anos 50 e 60 e a vida no interior de Portugal no mesmo período, com os agentes da Pide (Polícia Internacional e de Defesa do Estado) e da GNR (Guarda Nacional Republicana) procurando, prendendo e torturando “agitadores” e “comunistas”. Espingardas em silêncio lá fora, espingardas ativas aqui; o mundo mudando lá, o mundo silenciado aqui; Goa caindo quase sem luta para vergonha e indignação de Salazar, Angola em guerra para desespero e fuga dos jovens portugueses. Tudo isso enquanto os ingleses, por exemplo, já aceitavam a irreversibilidade da História entregando o Quênia.

Um grande livro.

Bibliografia: o próprio Espingardas e alguns sites como este.

Entre sinucas e surubas

Enquanto a Apple lançava seu iPhone 3Gs com uma bússola digital que permitirá a Douglas Ceconello saber onde está mesmo caindo de bêbado, Paulo Autuori nos mostrava que podemos sentir saudades de Jonas e Tite acertava seu time de forma absolutamente casual. Você pode comprar seu iPhone por míseros R$ 2.400,00 no Mercado Livre com a finalidade de descobrir seu lugar no mundo, mas seu time não poderá melhorar adquirindo algum dos flamantes jogadores da vitrine de agosto, pois setembro chegou e as únicas mudanças que você pode esperar são as propostas pelo procurador Paulo Schmitt e as convocações sempre oportunas ao bolso dos empresários amigos da CBF.

O iPhone 3Gs apenas mostra onde você está, mas não sabe para onde você irá. Talvez o GPS que ele contém indique para onde você deve ir e, neste caso, você pode obedecê-lo ou não. Em vez de ir para casa, por exemplo, você pode deixá-lo apitando feito um maluco enquanto dirige-se àquele endereço da Rua Olavo Bilac, 336, caso em que sua mulher, se souber, certamente apitará e mais, ficará rubra. Talvez até peça isonomia, coisa inaceitável. Dizia eu que sua mulher ficaria rubra, mais ou menos como uma sócia campeã do mundo. Foi o caso do campeão do mundo Paulo Autuori. Alguns amigos me disseram que ele não é muito chegado, mas isso realmente não me interessa, não sou homofóbico nem besta, e ele pode fazer o que quiser desde que não me inclua. O fato é que ele não conseguiu prever a cagada que seria convidar um time fraco e ruim como o Botafogo para seu campo. “Times ruins, jogando em casa no ataque” X “Times sem contra-ataque” costuma ser uma combinação fatal para o segundo. É como no boliche: você tantas vezes joga a porra daquela bola que de repente faz um strike sem explicação. O caso de Tite foi outro, ou não. Foi a sorte, a mesma do strike. Sem querer e sem brochuras, ele tirou do prelo o esquema de Abel Braga. Índio empurrou Danilo Silva ao ataque, Eller fez o mesmo com Kléber e quando o Goiás deu-se conta estava tão ou mais perdido do que um bêbado sem o iPhone da Apple pela rua.

A torcida do Inter não dá muita bola para Eller, tipico jogador do Rio. Ele chega com aquela saída de bola sem chutões — ao contrário, tem saídas cheias de argumentos convincentes — e aquela noção de antecipação do zagueiro que não querr (sotaque carioca) saberr de corrpo a corrpo. Ora, ishto não satishfash o desejo que todo o gaúcho tem de uma grossura mais do que argentina, talvez semelhante a de um time de rugby neozelandês. Os gaúchos gostariam que seus times fizessem aquela dancinha tribal para assustar os adversários (que morreriam de rir e aumentariam nossa fama nacional). É o caso também de Tcheco. É o melhor jogador do Grêmio há anos, mas os gremistas tolos o odeiam. Ele corre, desarma, faz gols, dá passes perfeitos, dribla, salva o time e nunca errou um puto pênalti. Pero look at him: ele tem cara de bebê chorão e fala com a cabeça baixa, reclamando sempre. Não é elegante, não parece um Capitão, parece um merda. E não é. Ou seja, ele é tudo aquilo que um americano nojento qualificaria como um loser, mas trata-se de um winner milionário que fez fortuna nos campos de petróleo das arábias. Queria eu ser um loser assim. Porém eu dizia, ou não, que ninguém parece saber onde está e nem para onde vai.

O iPhone 3Gs pode dizer exatamente onde o vivente está e até auxiliá-lo em seu caminho futuro, mas o trânsito pode atrapalhar. Com razão, sempre se disse que 66% de aproveitamento dariam um lugar entre os quatro primeiros e um acompanhamento próximo do líder. No Brasileiro, tal noção matemática aparece ampliadíssima. O líder tem 41 pontos; porém, se tivesse 66%, teria 44. Ou seja, a tabela de classificação está achatada, achatadíssima. Todo mundo é de todo mundo no Surubão 2009. O São Paulo queria ser o herói que trepa por sacadas e janelas e deposita um prometedor ósculo nos lábios da mais bela moça da cidade, mas ganhou 1 ponto dos últimos 6 que disputou. O Avaí também subia pelo mesmo caminho, contudo, antes de se acostumar à vidinha de G-4, foi vitimado por um centenário candidato ao rebaixamento, bem antes de dar o planejado amplexo naquele que antevia como futuro sogro.

Hoje à noite, por exemplo, o Inter quer manter-se em riste na Suruba, enquanto o Atlético só pensa em apagar a luz e jogar uma porca-espinho na festa. Eu fora! Mas vou ao jogo logo após a noite de autógrafos de minha talentosa amiga Carol Bensimon. Deixe de ser inculto e desinformado, vivente! Carol é a melhor coisa literária surgida por essas bandas nos último anos. Seu segundo livro já sai pela Cia. das Letras. Vai lá, animal.

A (pouca) utilidade das oficinas literárias, segundo Dacanal

Lá do Recife, o escritor Fernando Monteiro me pede para ler um artigo publicado em Zero Hora no último sábado. É um artigo de Carlos André Moreira sobre o livro recém lançado de José Hildebrando Dacanal, Oficinas Literárias: Fraude ou Negócio Sério? Como se depreende facilmente do título provocativo, o assunto é a duvidosa utilidade das oficinas literárias com a finalidade de servir como incubadoras ou criadouras de novos talentos…

José Hildebrando Dacanal é formado em Letras e Ciências Econômicas pela UFRGS e trabalha como jornalista, professor e ensaísta há 40 anos. Tem em seu peculiar currículo obras sobre linguagem, literatura, história, política e economia. Eu discordo radicalmente do homem político Dacanal, mas não sou idiota a ponto de fazer-lhe oposição pelo mero esporte de incomodar quem está no outro lado, ainda mais quando ele, curiosa e cada vez mais, tem escrito e defendido teses bastante claras, razoáveis e óbvias — na verdade até caindo de maduras –, tais como sobre baixa qualidade do ensino (e a necessidade dos clássicos) e agora esta sobre as tais oficinas.

Dacanal recupera-se de duas visitas ao fundo do poço ao escrever um livrinho em parceria com César Busatto (o nanico que dança com a desgovernadora ao lado) naquele longínquo ano de 1998, em que os amigos de Yeda assistiram a vitória de Olívio Dutra — casualmente um homem também formado em Letras — para o governo do Estado… Mais transtornada ainda é sua parceria seguinte: em 1999, quando o governador Olívio Dutra mal tinha chegado ao poder, emprestou sua grife ou escreveu a quatro mãos com João Hernesto Weber o livro A Nova Classe – O Governo do PT no Rio Grande do Sul. Ultimamente, anda esquecido da política. A qualidade dos governos Rigotto e Yeda empurraram o professor — antes tão contumaz em expressar suas objeções — àquilo que ele melhor faz e pensa: à literatura. Melhor assim. Apesar de que acharia divertido ver Dacanal justificar e propor soluções para a suruba do Piratini. Creio que o político voltará em 2011… Dacanal é um volante brucutu que só sabe destruir, mas não sabe o que fazer, nem para onde correr, quando está com a bola. Deste modo, fiquemos por enquanto com o brucutu das letras. E aproveitemos.

Como a Editora Soles não facilita muito essa coisa de compra de livros, vamos comentar a ideia de Dacanal, esperando que um dia possamos tocar o pequeno volume que antes chamava-se Oficinas literárias: caça-níqueis, estelionato e bordel. Lamento muito que Dacanal tenha aliviado o título e talvez seu conteúdo. Seria muito interessante a “parte bordel” das oficinas, pois estou certo de que os cursos de línguas, academias de ginástica e outras reuniões eletivas do gênero servem notavelmente ao flerte e, bem, conheço tantas histórias que é melhor nem começar.

Nunca participei de oficinas literárias e o motivo é que não acredito nelas. O escritor nasce da absoluta necessidade e pressão interna de ler e escrever. É, sim, paixão. Escrever é uma forma de abordagem à inatingível verdade deste mundo e é o futuro autor quem sabe o que é preciso ler, não o tutor. Acredito que, por exemplo, seja sempre interessante e agradável ouvir alguém como Charles Kiefer ou Fernando Monteiro — até aceitaria pagar para ouvi-los! Eles sabem o suficiente para apontar caminhos de leitura ou mandar alguém trabalhar na construção civil, mas não creio que um escritor precise muito mais do que saber que existem coisas como foco narrativo, que é bom criar eficientemente um conflito, que ter uma boa história é algo interessante, que um trabalho de linguagem pode ser necessário aqui ou ali ou em tudo, que é legal ter noções da língua, de pontuação, da música das frases, etc. E que é preciso conhecer suas afinidades e a tradição de cada estilo, pois, sempre que sentamos para escrever, estamos, de uma forma ou outra, equilibrando-nos sobre os ombros de gigantes do passado, como diria Newton.

Quanto aos melhoramentos e críticas… Há coisas de Clarice Lispector que, fora de seu contexto, parecem imbecilidades. Já imaginaram a tragédia que ocorreria com a literatura brasileira se o Assis Brasil começasse a persegui-la com a intenção de deixá-la mais próxima a seu convencionalismo? Há tantas e diferentes vozes que a sabedoria teria receio de afirmar taxativamente: isto é péssimo, isto é bom! Acredito muito mais em alguém que dissesse: você, leia isto, informe-se sobre aquilo ou abra uma padaria.

No mais, o verdadeiro fracasso é entrar numa confraria dessas e sair sem uma boa amizade. Pois no fundo, lá no fundo mesmo, é este o objetivo de quem adere a uma oficina literária.

Eu acho que o livro tem tudo para ser bom e merece ser comprado e lido. Quem souber como, me avise. Afinal, a Soles tem existência mais obscura do que alguns volantes de Celso Roth.

Terras do Sem Fim, de Jorge Amado

É estranho reler Jorge Amado depois de mais trinta anos. Não deixa de ser um retorno ao Colégio Júlio de Castilhos e a suas “leituras obrigatórias”. Nós, gaúchos meio ou menos bairristas, sempre tivemos problemas com o baiano. Naqueles anos, havia dois escritores que conseguiam viver de seus livros no Brasil: Jorge Amado e Erico Verissimo. Sendo Verissimo gaúcho de Cruz Alta — terra de minha mãe, que o conheceu –, sempre fazíamos seu elogio à custa de críticas ao baiano. Pura bobagem. Não obstante, éramos obrigados a ler dois de seus romances para o colégio: Gabriela Cravo e Canela e Dona Flor e Seus Dois Maridos. Claro, estes romances, nos anos 70, quando comparados à produção de Erico daquela época – Incidente em Antares, O Senhor Embaixador e os dois autobiográficos Solo de Clarineta, fazia com que Jorge parecesse um escritor folclórico, malemolente e brejeiro, de menor importância. Como resultado, acabávamos nos afastando dele.

Houve várias tentativas de reavaliar — sempre para melhor — a obra de Jorge Amado. A última vez foi uma Flip (2006?). Foi com este espírito que abri Terras do Sem Fim. Logo tive uma surpresa: o romance, escrito em 1943, homenageia em dedicatória Dmitri Shostakovich, “compositor e soldado de Leningrado”. Mas as surpresas ficam por aí, pois, ao iniciar a leitura deparo-me com a frase inicial: O apito do navio era como um lamento e cortou o crepúsculo que cobria a cidade. Achei a frasezinha meio sem-vergonha e vi que ou me adaptava ou passaria maus bocados, pensando em cortar frases e expressões desnecessárias ou de gosto duvidoso. Apesar de duvidar da necessidade de recuperar Amado, mudei, passando a me ater não aos detalhes mas à trama, a fim de suportar a leitura. Ainda sublinhei diversas dessas pérolas e erros, mas não vou encher o saco de vocês nem copiar mais trechos do livro.

A postura pantagruélica de comer a história contada e esquecer a linguagem revelou-se a correta. O romance funciona muito bem dessa maneira. O capítulo em que o negro Damião fraqueja é autenticamente maravilhoso, assim como a construção de alguns personagens, como a dos coronéis combatentes, a do advogado Virgílio, a do Dr. Jessé e a do jogador “capitão” João Magalhães. A única coisa de que realmente não gostei foi do atalho que Amado percorreu para desfazer o triângulo amoroso entre o Coronel Horácio, sua mulher Ester e Virgílio. Em vez de encarar o conflito, em vez de nos colocar a interessante questão sobre quem seria mais mais importante para o violento coronel, se a mulher que amava ou o competente advogado que lhe apoiava, Amado arranja uma providencial e implacável febre que mata a mulher e o conflito. Para não ficar muito chato, o romancista volta à questão num quase epílogo, fazendo com que Horácio descubra a traição postumamente. Porém, naquela altura, o trabalho do advogado não era mais fundamental, a luta acabara. É uma covardia muito utilizada e aceita pela maioria das pessoas; prova disso é que grande parte das pessoas enterneceu-se com o filme dos caubóis (Brokeback Mountain), onde também um personagem morre justo no momento em que seu amante cobra-lhe uma solução e uma continuidade para seu caso amoroso. Detesto este gênero de expediente e isto prejudica muito o romance, em minha opinião.

Sobram uma história bem contada, uma narrativa envolvente e talvez aquilo que fosse o objetivo do comunista Jorge Amado: a denúncia das condições de vida na região do cacau. Sim, não tenho dúvidas, nisto o romance é poderoso. Mas, convenhamos, poderia ser melhor. Minha dúvida é se Erico também era tão descuidado… Acho que não.

Para finalizar, tenho que dizer três coisas que julgo importante.

1. Não sofro da sacrofobia que parece ter atingido nosso leitor e comentarista Marcos Nunes, mas também não creio que seja necessário recuperar Jorge Amado.

2. Porém, se for para demonstrar que o Brasil já teve bons romancistas vendedores de livros, se for para demonstrar nossa decadência ao eleger Yed…, ops, Paulo Coelho e a atual auto-ajuda de Lya Luft como campeões de vendas, RECUPEREM AGORA O BAIANO COM TODO MEU APOIO!

3. Certas cenas de Terras do Sem Fim são pura Rede Globo. Espero que Paulo Coelho não venha futuramente influenciar nossa televisão. Aumentaria a venda de antieméticos e de suicídios no país.

Vi uma foto de Anna Akhmátova, de Fernando Monteiro

Fiquei desconcertado quando recebi, ontem, Vi uma foto de Anna Akhmátova. O livro veio num envelope branco com a caligrafia e a caneta preta inconfundíveis do grande recifense Fernando Monteiro. Meu desconcerto deveu-se ao fato de ser um poema de 85 páginas. Um poema desses editado? Coisa rara. Li quase todo o livro caminhando pela calçada da Av. Cavalhada, enquanto refazia o conhecido trecho até o correio e no ir e vir de meu calvário como trabalhador comunitário, por culpa de meu carro estar parado na frente de uma moto no ano de 2004. O resto do livro, li no “trabalho”.

Vi uma foto de Anna Akhmátova,
numa oferta de segunda mão
em livraria de terceira
fechando as portas também baratas
em liquidação de quarta despedida
dos leitores de páginas impressas
à tinta das antigas tipografias
condenadas aos museus,
setor dos tipos móveis de Gutemberg
que não mais importa.

Setembro se derramava lá fora,
estação de sol sobre a fonte
de águas espargidas em torno da lua
de Vênus nativa molhando a ponta
tímida de dedos de mármore.
Pensei naqueles de Clarice criança,
subindo e descendo escadas
da casa entre movelarias e sebos,
vinda da Ucrânia para o coração
deste bairro de esquecidos
textos em hebraico e iídiche
de emigrantes deslocados.

Logo que cheguei ao trabalho — normalmente eu vou lá para trabalhar de verdade! –, após cumprimentar as freiras do colégio de meu descontentamento, voltei a ler o pequeno grande volume, ouvindo os sons das rezas de uma missa, aquele lastimável lenga-lenga da crendice que evidentemente grassa na instituição onde presto serviços. A mim, parece uma melopéia árabe. Mas gosto de lá, sou muito bem tratado. Aquele som acompanhava adequadamente a tristeza e absurdo da vida de Anna e formava um curioso painel de sonoro quando da entrada dos poetas brasileiros.

Nossos épicos sem dentes, nossos líricos
sem lenços, nossos Valérys de cemitérios,
nossos engenheiros de versos, juízes
e usineiros sonetistas de paraquedas,
nossos cantores das palmeiras e da pedra
no caminho de quem ia cantar palmas
mais altas do que as primeiras,
os vates caindo no rio de penas
dos cães banguelas, os nossos poetas
emplumados no lugar daqueles,
são imortalizados precocemente,
antes da colheita do tempo.

Nossos trovadores, menestréis, poetinhas
e poetões se dedicam ao vício secreto
de deslustrar poemas dos concorrentes
ao posto de Príncipe dos Poetas brasileiros.

Nossos parnasianos, condoreiros, simbolistas,
modernistas, praxistas e taxidermistas
da poesia do pantanal depois da lama seca
descobrem de novo o Brasil de Cabral,
trabalham para Capanema e não faz mal,
tomam remédio para dor de cabeça
e vão dormir em Pasárgada,
onde são mais que amigos do rei
de espadas dos jogos de cartas
marcadas da carreira literária
do acadêmico Getúlio Vargas

Os poetas brasileiros não morrem em revoluções.
Quando elas acontecem, os bardos nacionais
preferem segurar os empregos.
Na Revolução de 30 não morreu um só Dante
de Cascadura para contar como é descer ao inferno.
Todos eles aspiram ao céu de palmas abertas
soltando as batatas quentes na corrida
dos mil metros para ocupar ministérios,
secretarias da cultura e bibliotecas nacionais
reservadas para os insistentes em Poesia Sempre
(palmas para eles com uma só mão no ar rarefeito
da imortalidade a cacete, chá e simpatia
de casca dos bóias-quentes).

E Fernando vai um pouco mais adiante neste filme:

Não, Fernando não é alguém indulgente nesta terra de mesuras gentis entre escritores e governantes.

Nenhuma Revolução pode ser gentil
quando começa ou termina
por cortar cabeças à nacional
maneira de Ivan, o Terrível

A cantoria das freiras recrudece e eu posso ler mais um pouco. Em minha mente, como pano de fundo, há a comparação de múltiplos exemplos entre a pouca combatividade de nossos escritores e a dos russos. Anna Akhmátova (1889-1966) tinha a extraordinária poesia íntima, grande patriotismo e combatividade — poderia utilizar também a gasta palavra feminismo, mas não, direi em seu lugar que ela nunca deixou de ver o mundo atráves de uma posição inteiramente feminina, sendo tal fato apenas um viés de sua originalidade.

Vi essa mulher, com meus olhos cegos.
Vi sua vontade de morrer,
um lenço diáfano de gaze
sobrevoando as pombas cansadas

Há a introdução de um violão na missa. As freiras ficam animadas. O poema de Fernando começa a me entusiasmar.

Você já viu a neve?
E o que vem a ser essa interrupção da carícia
em progressão indecente no ventre
de uma russa morta?

O poema me toma por completo e o trabalho fica esquecido num canto. Jogo o corpo para trás em postura de 100% não-trabalho. A freira do violão erra lastimavelmente… Depois dizem que o legislador, autor da punição, é sábio. Aposto que ele não previu tortura musical. Tenho sorte de consolar-me com o livro.

Ela não tem medo,
a mulher da foto do volume
que eu levo debaixo do braço
e da chuva para longe do cais,
rumo aos subúrbios do esquecimento
onde se pode dormir e, talvez,
sonhar, ó príncipe sem consolo!

Ela lê Shakespeare em russo,
Ofélia armada de audácia misturada
à suportação de indizíveis sofrimentos:
já deixou que um comissário do povo
a sodomizasse, e agora tenta se preparar
para não vomitar quando chegar a hora
de chupar o oficial de plantão.

Vi tudo isso na foto.

Como estarei de aniversário amanhã (ou hoje, 19 de agosto), penso em como seria bom se ganhasse a biografia de Anna ou mais de seus poemas, mas ninguém irá adivinhar isso. Volto ao poema e leio estes versos aterradores de Anna, citados por Fernando já na página 43.

“Há dezessete meses que eu grito
chamando-te para casa.
És meu filho e meu terror”.

Reflito que não saberei a avaliar a real grandeza do que estou lendo, que não saberei escrever um post a respeito. Penso sobre minha incapacidade poética e em como, paradoxalmente, estou apaixonado, grudado, dentro do poema. Penso que raras tive tanto prazer e curiosidade com um livro aberto à minha frente.

Ela me contou tantas histórias
de transgressores, de ladrões das estepes!
Penso que seu seio, então, já arfava
ao alcance da minha mão.
Penso no banho.
Penso na água aquecida, nos sais,
nas lavandas francesas da Rússia
voltada para o Ocidente da língua
na qual Pais e Filhos está escrito
tão elegantemente:
somos nós?

Mês passado, uma freira apareceu para falar comigo vestindo as roupas de sempre, mas com chinelinhos vermelhos adornados por distintivos do Inter. Eu garanti a ela que aquilo a fazia superior espiritualmente a qualquer outra irmã. Ela riu muito. Aliás, ri sempre que me vê. Esta é a parte boa, porém o sofrimento de Anna, da Rússia, das mulheres e da cultura ocidental me parece agora incompatível com aquele desafinado Deus pra lá, Jesus pra cá. Céus, que cantoria diabólica!

Não, não somos nós, Mãezinha
Rússia, que mais próxima está do Fiodor jogador,
do estuprador da criança de Moscou,
aquele mendigo santo que foi procurar
o pior castigo, a suprema humilhação,
a confissão do seu crime
a ninguém menos que o belo, o rico,
o aclamado Ivan Sergueivitch,
nascido no seio de uma família de alta classe de Oröl
e falecido em Bougival, nas proximidades da cidade iluminada…

Penso na liberdade do autor em buscar, viver e amar Anna Akhmátova. Volto sobre suas páginas e começo a procurar todos os versos que começam por “Vi uma foto…”. São muitos e o ritmo deles passa a sobrepujar por completo a música da missa. Sigo lendo. Acaba meu horário, bato meu ponto e volto para casa como vim, a pé. Lembro que uma vez, lendo um jornal na rua, dei de cabeça num poste. Mais exatamente num parafuso que saia do poste. Tinha uns vinte anos. Trinta e dois anos depois, lembro do inesperado sangue que pingou sobre a folha de jornal. Isto sou eu?

Vi uma foto de Anna Akhmátova…
e não a prova de que o céu a perdoou.

Fernando resolveu ter um caso com Anna. Na verdade, desde o momento em que, naquela livraria de setembro, vira sua foto, apaixonara-se por seu olhar e decidira seu Réquiem paralelo. Saiu-lhe belíssimo. Como não se apaixonar por ela, ainda mais que sei o que daquele sujeito e que não está no poema de Fernando:

Ele gostava de três coisas neste mundo:
o coro das vésperas, pavões brancos
e mapas da América já bem gastos.
Não gostava de crianças chorando,
nem de chá com geléia de framboesa
e nem de mulheres histéricas
…e eu era a mulher dele.

Dona de uma poesia simples na aparência e sem o peso de palavras desnecessárias, Anna é uma narradora que tem em Fernando um equivalente masculino. É curioso notar o quanto Anna é feminina e pessoal, ao passo que Fernando é masculino e dedicado a ela. Também está cioso de ser simples e de encontrar as imagens inusitadas e significantes que habitam a poesia de Anna.

Quando Anna começou a usar
o verbo assim corroendo
o que antes fora belo,
triste e selvagem (um passo de afronta
envolto em delicadeza),
e havia sido lícito para nós;
quando tudo foi sendo minado
no cerne da carne que se permite
um instante de incerteza,
uma quebra da quebra da interdição
posta de lado como se abandona
um pente sobre uma penteadeira;
quando isso se anunciou
na forma do pretérito,
na hesitação tardia demais,
eu me desesperei contra ela,
não podia suportar a agulha no fogo,
o gelo na cama, a mudança do tanto
que já havia mudado no nosso amor
desviado para mais do que “sensualidade”,
“luxúria”, “emoções sem freio”,
suas palavras contaminadas do veto,
desconfiadas da nossa conjunção
condenada do modo mais severo,
enquanto tudo era leve na forma
de voltarmos a ser árvore e fruto
das noites geladas de dezembro.

Chego em casa e finalizo a leitura.

Eu já estou morto e este poema é a minha alma
profana vagando em busca da amada Mãe
amante de todas as Rússias que em todos os lugares
caminham para o esquecimento nos verdes túmulos
que há muito deixaram de ser verdes
como verdes eram as aves
pelas quais pergunta o poema:
todos os pássaros cujo piar nublado
eu escutei nascendo na dobra
de uma manhã do passado,
estarão mortos?

Adrem Atup e os fins da razão

Adrem Atup nasceu na Finlândia em 1958. Seu pai, Neila Atup, era um simpático hippie, um andarilho que se apaixonou pela paisagem de Parati do final dos anos 60 e lá decidiu permanecer. Sua mãe? Neila dizia que era uma holandesa, de nome Stella, que desaparecera. Em seus documentos só havia o nome do pai. Adrem aprendeu no Brasil o quarto idioma de sua vida nômade e então começou finalmente sua formação regular. Nunca antes tinha frequentado salas de aulas e, apesar de interessar-se muito mais pela educação cabal que recebia de seu pai e amigos, foi excelente aluno.

Nem ele nem papai Neila tinham vivências anteriores sob ditaduras militares, mas, mesmo naquela época, não era muito difícil viver para os obscuros pintores, artesãos, bichos-grilos e assemelhados da cidade histórica. A dupla finlandesa logo confirmou a suspeita de que todas as pessoas decentes eram contra aquilo. Conviviam com artistas de esquerda e comunistas que combatiam os militares discutindo política enquanto fumavam maconha, bebiam as maravilhosas cachaças da cidade e pintavam quadros rústicos. Estaria enganado quem imaginasse um bloco monolítico de oposição aos militares, pois eles dividiam-se em infinitesimais tendências, todas com princípios muito claros e impermeáveis a quaisquer influências que as pudessem macular. A inteligência de Adrem, tal como a de seu pai, nunca serviu para o entendimento da política; eram antes dois sonhadores que passavam o tempo conversando e repetindo quadros para os rarefeitos turistas que vinham à cidade naqueles anos. Um dia, Neila comprou a preço de banana uma casa caindo aos pedaços no atual Centro Histórico de Parati; ali, vendiam sua produção e a de outros artistas e artesãos, principalmente aquarelas representando a antiga igreja da cidade vista do litoral e pequenos quadros, cartões e broches revolucionários que ostentavam, o mais das vezes, a figura de Che Guevara.

Quando terminou o secundário num colégio público de Parati, Adrem prestou vestibular e passou facilmente em Artes Plásticas na USP. Lá, entranhou-se-lhe ainda mais a certeza de que todas as pessoas confiáveis eram de esquerda e, mais, atéias. Atéias como Sílvia, uma colega de seios fartos, pela qual se apaixonara enquanto a ouvia falar das milhares de reticências coloridas contidas em cada tela de Seurat e que o aconselhara a largar o mundo de mão, pois a apreensão possível a eles era a ontológica, não a sociológica. Adrem riu como se tivesse ouvido uma piada. Não sabia o que era ontológico, mas imaginava alguma relação com o câncer. Seguia observando vagamente a cena militar e política, o que lhe parecia ser a mesma coisa. Via os eventos e ações governamentais e registrava a presença, lado a lado, de autoridades militares e religiosas dando seu apoio ao governo. Sabia, pois, que aquelas instituições estavam juntas e continuava a ver o mundo como você lê estas palavras, da esquerda para a direita. Aliás, quem não era de esquerda tornava-se instantaneamente deplorável. O mundo, então, era de fácil interpretação, tão fácil quanto desenhar os seios arredondados de Sílvia e alguns faroestes: the good and the evil, os bons e os maus, os cronópios e os famas, os legais e os caretas, os da esquerda e os da direita, os intelectuais e os militares, a cultura e a religião, a luz e as trevas.

Então, nos anos 80, o mundo tornou-se mais complexo para o quase-apolítico Adrem. Foi uma enorme euforia e os dois grupos da época de ditadura espraiaram-se num complicado “espectro político”. A esquerda foi invadida pelos cristãos, alguns intelectuais foram para a direita e o mundo começou a dividir-se, segundo Adrem interpretou, em reformistas e continuístas. Tentou analisar o mundo da direita para a esquerda e via algo muito parecido. Apesar disso, permaneceu entrincheirado na sua vaga esquerda artística, humanista e solidária. A nova mania de ver o mundo sob outra ordem, deixou-o viciado em palíndromos, tendo composto alguns muito interessantes, tais como “Ame o Poema”, “Ata-nos, sonata” e “Metáfora, farofa tem”.

Como sói acontecer, o mundo seguiu dando seus giros e Adrem fez-se um respeitado artista gráfico trabalhando em uma agência de publicidade paulista. Casou-se com uma ex-militante comunista, dona de um sobrenome cheio de flores. Tiveram dois filhos. Então, um cristão, amigo seu, tomou a si a missão de convertê-lo. Como consequência, ocorreu algo muito natural: mesmo sendo Adrem um ocupado e bem pago artista gráfico, mesmo e apesar disso, ele passou a reservar parte de seu tempo para trabalhar voluntariamente junto a uma associação de caridade que, como sói acontecer, repito, era ligada a uma instituição religiosa. Dava aulas de matemática para alunos de cursos profissionalizantes. Aquela atividade sem objetivos de lucro tornou-se uma necessidade para ele. Tinha, deste modo, contatos semanais com pessoas que achavam incompreensível que alguém tão ético, humano e solidário não fosse cristão, e que falavam a palavra “ateu” como se pronunciassem uma palavra feia, daquelas que as crianças evitam usar perto dos pais. Ele achava engraçado e não pensava muito no assunto. Um dia, bebendo com o amigo crente após as aulas, este brincou que lhe pediria uma oração no próximo almoço com os padres da escola. Adrem imediatamente ergueu-se e disse:

— Ó Pai, que estás nos céus, colocado lá pela fraqueza, medo, culpa e imaginação de alguns, feito à nossa imagem e portador de nossos defeitos, olha por nós, pobres pecadores, que não usamos teu nome para nada e que vivemos pelo mundo como cães sem dono. Permite que os cães com dono não nos mordam – aqui olhou para o amigo — e que as boas intenções e desespero enviados diariamente por eles a ti, retornem na forma de grandes chuvas de bênçãos e não como tens feito ultimamente. Que a beleza da tua figura, formada em cada poro e célula por nosso afeto a nós mesmos e nosso horror ao vazio, possa espalhar-se pelo mundo e transformar-se em vales de onde jorrarão o leite e o mel necessários a nutrir teu povo…

Ele seguiu dando aulas e ouvindo Chico Buarque; o amigo desistiu da conversão. Comentou sobre isso com sua mulher que, sendo uma intelectual muito culta politicamente, citou-lhe um monte de autores, com a finalidade de explicar-lhe o que estava acontecendo com o mundo — coisas que ouvia desatento.

Numa bela manhã de novembro, ela pediu a separação. Deprimido, Adrem despojou-se de todo seu pequeno patrimônio. Surpreendeu-se com a voracidade que a ex-comunista revelou ao procurar assenhorar-se de tudo o que fosse possível, no que ele cedeu. Com a mesma sem-cerimônia com que aplicava botox, ela procurava cristalizar para si tudo o que pudesse passar perto de ter algum valor monetário. Em contrapartida, o desinteresse de Adrem sobre seu futuro era completo. Após a separação, ela passou a provocar contatos mais longos somente se quisesse examinar mais de perto a possibilidade de ele pagar um pouco mais para ela e os filhos.

O amigo cristão procurava não intervir, apenas contava-lhe histórias sobre São Francisco de Assis… Sem dúvida, o mundo ficara ainda mais complexo. Havia cristãos amigos procurando salvar-lhe a alma, falando-lhe em conversão e emocionando-o com histórias de despojamento e perdão de São Francisco de Assis – mesmo que Adrem dissesse que não havia perdão nenhum envolvido em sua separação; havia ex-comunistas que podiam ministrar cursos de como ser pragmático, focado e açambarcante num cesto de ofídios; havia um governo de esquerda em quase tudo semelhante ao anterior e havia alguém que girava a uma velocidade inferior à do mundo e que permanecia quieto, observando tudo passivamente, não aderindo a nada e com um pouco de medo.

Nessa época, Adrem voltou a Parati para ver Neila. Passaria o fim de semana com o pai. O sotaque e a cara de estrangeiro ficavam bem a um dono de pousada; o inadequado era o empréstimo que seu pai tirara para tornar seu antigo casarão suficientemente confortável aos turistas. Afinal, nem todo mundo odeia TV, nem todo mundo gosta de austeridade e sujeira, muito menos o banco, que prefere ver seus clientes devolverem seus empréstimos de forma copiosa a cada mês. Adrem apenas conseguiu retornar a São Paulo na quarta-feira. Conversou com o banco, refinanciou os débitos, pagou alguma coisa. Um mês depois, voltou para conferir se tudo estava direito; estava; mais duas semanas e ele regressou interferindo na forma de atendimento da pousada, na organização de tudo, o diabo; cada vez vinha mais frequentemente a Parati. O pai concordava com tudo, era como se estivesse passando toda a responsabilidade ao filho, desde a compra das coisas para o café da manhã dos hóspedes até as questões financeiras.

E estava. Um dia, Adrem veio de mudança. Pai e filho seguiram como sempre conversando muito, agora fazendo planos de abrir um alambique. O nome da cachaça deveria derivar do nome do filho, imagina se não.

Obs. 1: Este é um conto antigo e algo raivoso que fora publicado no blog anterior.
Obs. 2: Os palíndromos são de autoria de César Miranda.
Obs. 3: Vi que tem muitos comentários e que já tinha sido publicado no OPS. Por que então estava como “Pending Review”? Sei lá.

Reflexões discretamente alcoolizadas sobre o Fausto de Mann

A Augusto Maurer e Ricardo Branco

A obra literária que mais me satisfez até hoje foi Doutor Fausto, de Thomas Mann. Não o defenderia como “o maior romance de todos os tempos”, é apenas o meu maior. Ele tem o formato e as qualidades dos romances do século XIX, mas é o conteúdo é moderno; ele começa como uma serena farsa, mas acaba sendo uma amostra do que se veria num inimigo intransitivo de Thomas Mann: Thomas Bernhard.

Esses dois autores têm em comum o interesse extremo pela música e, mesmo que Bernhard diga que sente desprezo por seu xará, creio que eu e vários leitores apaixonados pela música podem fazer o terceiro vértice entre eles. São estupidamente numerosos os grandes escritores que tinham — e têm — profundo amor à música erudita (bom assunto, Milton, bom assunto, anote aí), porém poucos conseguiram fazer dela personagem ou uma obsessão tão arrebatadora que as lembranças de seus livros chegam ao ponto de “ter som”. Doutor Fausto e O Náufrago. Herbert Caro, em nossos saudosos encontros informais de sábado pela manhã na King`s Discos, entusiasmava-se demais com Auto-de-Fé e Doutor Fausto, parecia conformado com sua elogiada tradução de A Montanha Mágica, e voltava a falar de Fausto e Canetti. E de música. Imagino sem medo de errar que o tradutor preferia Doutor Fausto a qualquer outra obra de Mann.

Leio Doutor Fausto como quem lê uma novela curta. Não noto nada ali que não contribua para compor a narrativa, nada me parece estéril, da primeira a última linha. As interpretações são livres, ou nem tanto. Tenho convicção de que o nazismo é um viés à narrativa. Seu assunto, e Caro falava nisso, é sobre aquilo que Mann chamava de “a crise da arte ocidental”, tanto que quem irritou-se com o livro foi a Segunda Escola de Viena, na pessoa de Arnold Schoenberg, pois o serialismo torna-se coisa do diabo… (Adrian Leverkühn NÃO se orgulharia, pois sua obra inexistente foi maior que a de Schoenberg). Lembram da nota que Thomas Mann teve que acrescentar ao final do livro, atribundo as teorias dodecafônicas ao Harmonielehre de Schoenberg, e dizendo que associou tais teorias apenas a seu personagem fictício em contexto ideacional, etc.?

Leio o livro como algo muito direto e até visceral… É um Mann raivoso e nunca repetido, nem antes, nem depois. Mann, um homem que gostaria de ter sido um compositor como Cesar Frank — palavras suas —, investe contra aquilo que estava sendo criado por sua geração. O romance é um canto de cisne bastante distorcido de toda uma música e literatura (foi mesmo?) que estava sendo abandonada e que serve ao admiravelmente ao narrador Serenus Zeitblom.

Meu respeito e, quem sabe, compreensão do livro de Thomas Mann faz com que eu releia sempre e saiba quase de cor toda a explicação do professor Kretzschmar para a Sonata Op. 111 de Beethoven, o capítulo VIII do livro. Muito mais conhecido é o diálogo com o Demônio (Cap. XXV), onde Adrian Leverkühn faz “alguns pequenos acertos” com o homem. São páginas arrepiantes e é curioso que, a partir da leitura do livro – lido quando tinha… de que ano é a tradução de Caro? … 1984? Então tinha 27 anos — passei a relacionar o diabo como algo que exala frio e não calor. Ah, as “impressões equivocadas” dos católicos… Não, nada de fogo, nada de diabinho infantil, estamos falando de um diabo real, enregelante, meus amigos!

Doutor Fausto é uma história íntima, pessoal, ontológica e só fala ao sociológico a partir desta perspectiva. Aquelas chatas argumentações que veem o livro como político — seria uma metáfora do Nazismo e da Europa pré e pós-guerra — servem para A Montanha Mágica e o pré-guerra. Acho tão complicado reduzir o Fausto a tal modelo que bocejo só de pensar no esforço que alguns comentaristas fizeram para estreitar um romance cujo assunto principal é a mortalidade a uma alegoria política. Como já disse, Doutor Fausto é profundamente ontológico, nada sociológico e, aos que ainda torcerem o nariz, gostaria de perguntar onde o serialismo tem mais a ver com a política do que com a evolução de uma arte que há anos estava passando por rápidas transformações com Wagner, Mahler, etc. e que parecia ter chegado a um estágio onde só especialistas a poderiam fruir.

Deveria seguir mais um pouco, porém, meus caríssimos sete leitores, já é meio tarde, sabem?

Lendo Tchékov, de Janet Malcolm e Contos, de Anton Tchékov

Livro curioso que minha filha me deu de Dia dos Pais de 2005. É um calhamaço de 464 páginas com um ensaio de Janet Malcolm nas primeiras 176, seguidos de 37 contos do autor russo, traduzidos por Tatiana Belinky. É um excelente e bem bolado livro.

Já o ensaio de Janet Malcolm é mais bem bolado do que bem realizado. É uma grande idéia. A autora realiza uma viagem à vida do autor, isto é, visita as casas, os hotéis e os sanatórios onde viveu. Faltou a fundamental viagem à Sacalina – quase uma autopunição — e alguns locais citados pela autora. E o problema do livro está aí. Janet é uma tia que, ao lado de observações muito interessantes, traz-nos um certo ranço de irritante senso comum. Tudo o que ela vê e conta é interessante, até a pequena biografia de seus guias é interessante, mas a autora insiste em se colocar na narrativa e ela não é interessante, é apenas uma nova-iorquina um tantinho tola. Ao lado de explicações sobre como Tchekov vivia, ao lado do belo relato que faz das várias versões para as mortes do autor, há alguém que fica colocando pequenas críticas aos russos atuais, soviéticos e czaristas. Ora, é meio bobo tecer reparos a contextos tão diversos, sem procurar minimamente entender que aquela é outra cultura a que talvez seu país não seja exatamente um modelo de perfeição. O problema de Janet Malcolm é que ela teve acesso a um grande tesouro, mas parece descrevê-lo para um grupo de senhoras em torno de uma mesa de chá. O retrato de Olga Knipper, por exemplo, é decididamente fraco, porém logo depois a autora nos surpreende ao fazer a ligação entre um ambiente e seus contos correspondentes e o livro fica como deveria ser sempre. Um dia, espero receber uma bolsa para viajar refazendo a existência de um autor… Pode ser muito turístico e instrutivo, não acham? Pensei em várias possibilidades agora, mas acho que ganharia a de Jack London, só para passar bastante frio. Machado não teria muito movimento, já Guimarães Rosa e João Cabral poderiam ser legais, né? Hum… fantasio inutilmente. Adiante!

Os 37 contos que acompanham o ensaio são brilhantemente traduzidos do russo por Tatiana Belinky, uma russa que vive há décadas no Brasil e é excelente autora de livros infantis, são infinitamente maiores, claro. Tatiana… Li muitos de seus livros para meus filhos e, puxa, ela seria a pessoa perfeita para substituir Janet na tarefa de fazer a viagem à Rússia tchekovniana. É uma pessoa cheia de vida e humor. Sinto-a como alguém que me seria extremamente agradável. Seu afeto seria adequado a Tchekov, mas, enfim, vocês sabem: como dizia ontem, nossas oportunidades e nossa cultura vê-se privada por falta de idéias, interesse, dinheiro, cultura, etc. Alguns contos me trouxeram surpresas, claro. Não lembrava de dois contos especialmente raivosos: A Duquesa e A Aposta, ambos boníssimos, assim como do belo Do Amor. A Corista e Angústia – de desamparo verdadeiramente acabrunhante — foram magnificamente traduzidos e Amorzinho (também conhecido como O Coração de Olenka, Meu Docinho, Doçura e em Portugal por Dô-Doce) parece-me imbatível e, mesmo conhecendo a história de trás para a frente, o conto voltou a me emocionar como quando o li pela primeira vez.

No final das contas, um bom livro.

Com o dedo na ferida (e comprazendo-se em mexê-lo)

A última Rascunho toca fundo em problemas da cultura brasileira. Fala sem rodeios sobre a ruindade e o comodismo da produção literária brasileira atual. Os dois articulistas — Nelson de Oliveira e Fernando Monteiro — agem diferentemente. Nelson parece não desejar muita confusão com a nova geração e a exime ao final do artigo, enquanto Fernando não recua ao habitual compadrio que rege as relações entre os escritores, aquele desagradável “eu te elogio e tu me elogias”. Trata-se de dois artigos longos onde, apesar da articulação de ambos, a melhor analogia é a linha reta que vai direto ao ponto, passando por cima de quem está no caminho. Ou uma patrola. Só que Nelson opta por uma curva no último momento. Tal pauta apenas demonstra que a Rascunho não tem o objetivo de fazer coro às bem-humoradas e sorridentes vozes de nossa literatura, quer a dissonância e, puxa, algum desconforto e novidade.

Menos amplo e mais benigno, Nelson de Oliveira escolhe um belo ponto de partida ao dizer que a história da literatura brasileira sempre mostrou conflitos entre o velho e o novo que o substituiria. Segundo ele, tal enfrentamento apenas retornou recentemente. De certa forma, Nelson é otimista, porém não creio que ele se arriscasse deste modo num meio menos efêmero que o da revista ou jornal. Ele recua até os anos 20 e de lá vem, comprovando facilmente sua tese. Fala no conforto e na cautela de nosso tempo, mas acaba por dizer que nunca houve tantas boas estreias como no século XXI. Os anos 90, iniciados por Fernando Collor, teriam sido os mais podres de todos os tempos no Brasil. Não vou entrar em cada argumento e exemplo que Nelson utiliza, mas discordo de alguns “bons autores” citados por ele. Nelson não chega ao absurdo de elogiar Marcelino Freire, por exemplo, ficando em nomes mais aceitáveis, mas escorrega e cai feio ao dizer que tais escritores escrevem para uma elite intelectual da qual fariam parte ele, eu e você, querido leitor. Acho, inclusive, que o termo “elite intelectual” é muito discutível. Estranhamente, o título do artigo é “Entre o perigo e o conforto”.

Entre os autores elogiados por Nelson estão alguns de que gosto, mas que também não são all that literature: Michel Melamed, João Paulo Cuenca, Veronica Stigger, Wir Caetano e Daniel Galera.

Já Fernando Monteiro comemora seus 60 anos no ataque. Seu artigo Acho justo que essa sociedade tenha a arte que merece me parece bem mais realista. Fernando também inicia seu artigo em ritmo adagio, falando sobre poesia e elogiando, entre outros, o site de poesia Sibila, publicações que efetivamente estão à margem, despreocupadas com um mercado que lhe virou as costas há muito tempo. A mim, interessa mais a análise da produção em prosa e aqui Fernando anuncia que perderá a finesse. E perde mesmo, apesar da nobreza do motivo. Porque a prosa está verdadeiramente regida pelo mercado e por seus escritores performáticos. Fernando critica acidamente 4 escritores que, em minha opinião, poderiam ser divididos assim: o performático Marcelino Freire, o neoperformático Fabrício Carpinejar (talvez um desistente da qualidade), o fraquíssimo Xico Sá — autor de uma nova linguagem de rua que é apenas uma boa ideia, não encontrando nenhuma literatura em seus becos sem saída — e, bem, Chico Buarque e seus treinamentos públicos.

Os dois artigos, na minha opinião, tocam fundo na questão primordial que causa todo este marasmo: as editoras e sua insistência na criação do sucesso imediato. Os mecanismos de promoção tornaram o ato público — a entrevista, a postura, a imagem, a maluquice-beleza, a excentricidade — mais importantes do que a redação, a concordância e as boas histórias. São escritores que repetem os modelos do passado. Não há sinais de um Juan José Saer — argentino, renomado professor universário radicado em Paris, um conhecedor de sua arte e da de outros –, de um Roberto Bolaño — chileno que literalmente morreu escrevendo, não que eu queira que alguém morra pela arte, por favor… –, de um Tomás Eloy Martínez!, para ficar apenas nos exemplos latino-americanos de Monteiro. Por favor, basta ver a história destes homens para se pensar que, talvez, gente séria NÃO ESCREVA no Brasil, salvo raras exceções.

E o pior é achar que eles têm razão.

Atualização das 14h15. Como o Marcos Nunes fez um comentário melhor do que o post, aqui está ele:

Volto então a Nelson Rodrigues: acho isso tudo um puta complexo de vira latas, uma herança autodepreciativa lusitana, que gerou a patetice do sebastianismo e, no brasileiro, a certeza de que, como não voltará redivivo Sebastião nenhum, e mesmo se voltasse, só faria arrebentar de vez com o que sobrou do Brasil depois de extintos diamantes e pau brasil, nós estamos fodidos e para sempre, aqui não há arte, sequer algum talento (à parte os que seguem o dito “com engano e arte vivo metade do ano, com engano e arte vivo a outra parte”, sendo a arte só a do engano, sendo o engano nosso estatuto de arte); para comprovar a tese, citamos alguns luminares vizinhos e, principalmente, os menos vizinhos, desancamos nossas editoras, o mercado e, por último e não menos importante, nosso povinho bunda, analfabeto, etc. e tal.

Enfim, todo povo tem a literatura que merece; a que temos tá de bom tamanho.

Conversa fiada.

Além disso, tenho plena certeza que a maioria dos bons autores do país são desconhecidos e até não publicados. Se devemos creditar a alguém nossa carência de bons autores, a princípio é ao “mercado”, esses administradores da indústria cultural, a mídia, que, em tudo que toca, atua como um Midas ao contrário: transforma em merda. Enfim, todo um processo de geração de valores que não deve se opor às ordens constituídas, patrimônios, famas e poderes subtraídos na forma de extração de mais-valia, a tudo transformando em menos-valia, vale-nada, inutilidades confortáveis, vagidos de metafísicos interiores girando em torno de umbigos de gênios da raça.

Não levo a mínima confiança nos “grandes autores” pelo mundo afora; este é um mundo de mediocridades fulgurantes, dependendo do arcabouço publicitário que tá atrás de ti. É como acontece todo ano com o Beaujolais (vinho?), uma bosta de bebida mas que a França exporta para o mundo inteiro como um must, sendo uma fraude. Recebemos aqui umas fraudes e abaixamos nossas cabeças, à vista dos pareceres dos grandes acadêmicos e da crítica mais balizada. O mundo nos chama de periferia, nós acreditamos e nos comportamos como tal, continuando a importar frivolidades e mandar para eles o que é mais substancial, menos nossa literatura, tida por subproduto de uma subcultura. A velha estratégia do mercantilismo se desdobra e se verticaliza: nosso lugar é lá embaixo, e pronto.

Mesmo com todo descaso das editoras, semanalmente são publicados autores brasileiros, não resenhados, não lidos, previamente esquecidos. Nunca saberemos se são bons, razoáveis ou bostejadores. Não os lemos. Eu mesmo não os leio. Tenho uma biblioteca à frente: de 100 livros para ler, uns seis de autores brasileiros. Nada demais, uma vez que o Brasil é só um país, e existem dezenas de outros com seus escritores, suas histórias, suas palavras, a merecer igualmente leitura. Mas a globalização persevera assim: de lá pra cá, muito, no sentido inverso, pouco ou nada.

Aqueles que merecem alguma consideração fazem parte de patotas de nosso mundo corporativo: egressos das mídias, do mundinho acadêmico, compadres, todos circulando no mesmo meio, fazendo fama e deitando na cama uns dos outros. Somos como que obrigados a ler Chico Buarque, por exemplo. De vingança, não lemos mais nada e metemos o pau em todos os outros mesmo assim.

Nas escolas, fingimos formar alunos, mas a má educação que eles recebem, além disso, é direcionada somente para o exercício de uma profissão, mal ou bem remunerada que seja. Com isso, suas leituras não vão além da autoajuda, dos manuais de conduta corporativa, das idéias voltadas para comprar e vender.

Todo esse lamento, no final das contas, é nada indo a lugar nenhum. A literatura no país será melhor produzida e lida quando alcançarmos um nível ao menos médio de desenvolvimento. Somos meia dúzia de pessoas supostamente cultas exigindo dos outros o que não fazemos nós mesmos: boa literatura, boas relações sociais, boa política.

Mesmo assim, insisto: gente, há, o que não há é oportunidade e contingente de leitores que suporte a ascensão de uma produção nacional praticamente submersa. No momento, os poucos que leem o fazem uns para os outros: o resto é o resto, uma maioria cinzenta, indistinta, congestionada pelo subdesenvolvimento, alheia a tudo que não seja a garantia de sobrevivência imediata. Nós os desconhecemos, eles nos desconhecem. É a tônica, uma dicotomia que nos faz utilizar categorias como elite versus povo, nós elite, eles povo, nós não povo, eles não elites.

Nos condenamos, assim, a uma discussão estéril, um método comparativo preparado para nos reduzir a pó, à submissão a critérios tão inconsistentes quanto os nossos, mas de matriz estrangeira, logo superior. O negócio é parar de colocar o rabo entre as pernas, jogar a responsabilidade alhures e sonhar que habitamos um mundo que não nos compreende. Nesse universo, estamos a fazer o papel de manés, mas pagamos por isso e batemos palminha no final, enquanto, reunidos, vaiamos uns aos outros, fazemos alianças efêmeras e ganhamos nosso dia, um depois do outro.

A merda toda é como pular fora da mera constatação. Não refletir só o olhar do outro sobre nós fingindo que é nosso olhar sobre nós mesmos. Vai ver que só com isso já dava para começar alguma coisa.

Afirmações radicais e caso notável

1. Elisabeth Bennet e Fitzwilliam Darcy são o maior casal da literatura e os diálogos de Jane Austen são tão perfeitos e significativos quanto os de Tchékhov.

2. Carro Clonado. Resolvo dar uma olhada em nossas multas de trânsito e descubro que estou limpo, limpo até demais. O site do DETRAN do Rio Grande do Sul diz que meu carro está em um depósito da cidade de Esteio (RS), vítima de um acidente. Olho pela janela e vejo o carro inteirinho ali embaixo, quieto, passivo, aguardando minhas ordens. Ligo para a cidade de Esteio e relato-lhes o fato. A resposta do atendente é simples: seu carro foi clonado, isto é, roubaram um carro com as mesmas características do seu e colocaram uma placa igual à sua nele. Para completar, o ladrão envolveu-se em um acidente. Pergunto-lhe sobre o que devo fazer e ele me diz que é para eu registrar uma ocorrência. Enquanto isto, fico andando por aí com um carro que está teoricamente detido em poder de perigosos meliantes. Eu, no caso. Interessante. Se eu for preso, mostrem este blog para os carcereiros, tá?

3. Sou um chocólatra incondicional. Como um lobo em relação a suas vítimas, posso sentir o cheiro de chocolate há quilômetros de distância. Tal percepção só aumenta quando sei que estou um pouco acima do peso ideal. E a Bárbara fica passando na minha frente com… Peraí, vou chamá-la.

4. Gozado, vi num sebo um livro do grandíssimo escritor alemão Heinrich Böll, O Anjo Silencioso. Não conhecia este. Casa Sem Dono e Opiniões de um Palhaço, ambos lidos em edições espanholas, funcionam como grandes clássicos dentro de minha tantas vezes equivocada cabeça. Nem é Páscoa e vejo Böll ser acometido de ressurreição. Folheio uns livros de Graham Greene: um enorme narrador e cronista do século passado. Houve tempo em que havia católicos relevantes. E Greene era popular. O preconceito de alguns gosta de colocar quaisquer escritores muito lidos como menores. Greene não cabe neste modelo. Dia virá em que todos elogiarão as maravilhosas novelas “sem-Maigret” de Georges Simenon, outro escritor excessivamente lido… O gato, Sangue na neve, O homem que via o trem passar… O Charlles Campos — comentarista habitual deste blog — citou-os como obras-primas. É uma afirmação radical e totalmente verdadeira.

5. Não, hoje eu não estou moderado. Cadê o chocolate que tava aqui, caralho?

A Máquina de Ser, de João Gilberto Noll

Eu teria tudo para gostar de João Gilberto Noll. Ele escreve indiscutivelmente muito bem, tem uma voz pessoal, distinta e acho-o muito inteligente nas entrevistas — cheguei a fazer anotações durante algumas para não esquecer de respostas especialmente brilhantes. Como se não bastasse, ele é portoalegrense como eu e, como eu, ainda vive na cidade. Mais: com surpreendente freqüência, vejo-o entrar nas mesmas sessões de cinema que eu e, na penúltima, ainda na fila do ingresso, pude observá-lo abrir a bolsa para pegar A Máquina de Ser com uma cara que interpretei de como de desaprovação. Ele lia a página 114… Mas Noll é uma pessoa reservada; ou seja, nossa “relação” nunca irá evoluir para o diálogo.

Comecei dizendo que teria tudo para gostar de seus livros e sigo confessando estar cansado de seu narrador, sempre na primeira pessoa do singular. “Há pouco tempo descobri que o meu protagonista é sempre o mesmo”, disse ele à Entrelivros. Puxa, ele descobriu isto só há pouco tempo?

Este narrador é alguém que observa-se na solidão e daí parte. Nesta coletânea de 24 contos, houve momentos de entusiasmo e de decepção e não é casual que os momentos mais satisfatórios foram aqueles em que Noll conseguiu afastar-se do protagonista que conta a história.

O que me incomoda é que tal narrador solitário leva a história a situações previsíveis, ao menos para mim, que conheço quase toda a obra do gaúcho. Imaginem que quando ele parte de sua solidão para um situação maior, consigo prever até a linguagem que ele vai utilizar para se encalacrar lá. Fica chato e nem a prosa inventiva do autor me salva do enfado.

Li algumas outras opiniões e ninguém parece ter restrições a este narrador e nem dizem que os contos são bastante desiguais. Deve ser um problema meu. Belos contos que demorarei a esquecer são O berço, Alma naval, Noturnas doutrinas, Rudes romeiros, Biombos, Na divisa, A máquina de ser e Na correnteza. Como disse acima, são contos onde o eterno narrador de Noll ou está excepcionalmente de folga – caso de O berço – ou está em conflito com outros personagens. Porém, ao menos minha relação de melhores contos de A Máquina de Ser está de acordo com quase todas as outras listas, o que me faz pensar se não está todo mundo enjoado do tal narrador.

Num livro tão bem escrito por Noll e bem cuidado pela Nova Fronteira, acho inconcebível que a segunda metade da “orelha”, escrita por Paulo Scott, não tenha sido censurada. É inútil ler aquele amontoado de adjetivos e analogias que só serve para dar a impressão de que trata-se de um ajuntamento mal costurado de histórias sobre todos os temas do mundo, o que não é absolutamente verdade.

O Crime e Castigo da Lya que leu mas não entendeu

O leitor André Luiz Zambom resolveu me dar uma alegria: pediu que eu lesse a última crônica de Lya Luft na Veja. Eu sou um cara obediente e logo fui à banca comprar a coisa. O título da crônica é Crime e Castigo e este fato indignou o André. Pus-me a caminhar pela rua enquanto lia Lya. Nossa, que falta de horizontes e informação, que bisonhice. Lya fala da forma mais simples que se possa imaginar sobre “nossa sociedade enferma”. Atira para todos os lados sem fixar-se em nenhum: nossas crianças não recebem educação de boa qualidade, formamos criminosos ou inúteis, os pais não lhes dão limites e são dominados pelos primeiros, os professores são cheios de falsas teorias e parecem existir apenas para enfiar ideologias nas cabeças dos pobrezinhos dos alunos, as ruas são locais de descontrolada criminalidade e há que mudar tantas leis quanto possível, precisamos de autoridade e de punições justas.

Em um momento, a autora perde aquele tom messiânico que a auto-ajuda lhe deu e parece gritar com o leitor: “Antes de mais nada, é dever mudar as leis — e não é possível que não se possa mudar uma lei, duas leis, muitas leis. Hoje, logo, agora!”. Ela tem objeções que não acabam mais, só não consegue propor nada.

É um texto indigente demais para merecer uma das melhores grifes de São Petersburgo, trata-se de uma mera exposição de lugares-comuns, é de chorar de ruim. Pretendo chegar à Raskólnikov, mas primeiro seria adequado dar uns raquetaços nos argumentos da Lya que lia e até se informava, uma dia. Lya, tu que carregas o nome do grande Celso Pedro Luft devias saber isto: aquilo que reprime o crime não é o tamanho da punição, mas a INFABILIDADE da pena, ou seja, uma justiça de braço longo e correto. A atividade criminal é tão apreciada em nosso país não pela inexistência de leis, mas pela forma obtusa, eletiva e errática com que são aplicadas. Quanto aos professores e pais: será que antes — quando os alunos eram punidos, ameaçados e até apanhavam — era melhor? Sobre a sociedade enferma: houve acaso alguma época em que ela foi considerada sã? “Sociedade enferma” é um daqueles truísmos que querem silenciar o debate. Ora, essas expressões são tão úteis quanto dizer que o governo X “não fez nada” (assim como o Y e Z), que os todos os governantes estão lá para se locupletar, que os negros agridem e roubam, que os judeus só roubam, etc. São coisas do mais baixo senso comum, ficam ridículas num texto.

Eu ainda acho que uma revista de circulação nacional devia se preocupar com a qualidade do conteúdo e chamar à razão os articulistas que espalhassem — “avalizassem” talvez fosse um verbo melhor — as tolices do senso comum. Mas, sei, é pedir demais para a Veja, cujo maior produto de venda é a confirmação das impressões que assaltam as mentes dos brasileiros médios, principalmente as paranóicas.

Crime e Castigo… Todos os alentados volumes de Dostoievski deveriam se revoltar e cair na cabeça da Lya sem ley. O que tem a ver uma das mais belas histórias inventadas por um ser humano com o lastimável texto de Lya Auto-Ajuda? Vejamos. O livro trata do estudante Rodion Raskólnikov. Ele é paupérrimo como o texto de Lya e, tal como ela, tem a certeza de que é um ser extraordinário. Acontece com muitos, só que Raskonikov age. Cheio de teorias confusas sobre a superioridade de uns sobre os outros, acha-se no direito de utilizar quaisquer meios para cumprir seu destino de grande homem. Tem sempre em mente o nome de Napoleão, cuja biografia seria a comprovação de que é preciso agachar-se, chafurdar na lama e mesmo matar com a finalidade de tomar o poder — o dinheiro, no caso de Raskolnikov. E ele resolve tomá-lo de uma agiota, uma velhinha que além de inútil ainda era um câncer social. Para fazer este trabalho de corrigir Deus, faz-lhe uma visita acompanhado de um machado, porém a coisa começou a se complicar quando a sobrinha Lisavieta chegou repentinamente e viu a tia caída num mar de sangue enquanto Raskolnikov pegava a grana. O que fazer senão matar também Lisavieta? E pimba nela também!

As motivações de Raskólnikov nada têm a ver com aquelas explicadas por Lya, mas e o Castigo do título? O Castigo é o mais curioso. O investigador Porfiri Pietróvitch tem diversas entrevistas com Rodion, que se compromete a cada conversa. Porfiri sabe perfeitamente que Rodion é o assassino, mas nega-se a prendê-lo. Na verdade, ele passa a admirar o pobre estudante e faz questão que ele se entregue. Diz-lhe várias vezes: “Estou esperando você na delegacia com a confissão dos assassinatos; não me faça prejudicá-lo. Sua pena será MENOR se você se entregar”. Bem, aqui a analogia da Lya Louca Por Punições se desmancha inteiramente. Assim como os professores e pais tentam compreender seus filhos, Porfiri vai com consideração e — por que não dizer? — amor à humanidade deste rapaz inteligente e cheio de febres e confusão. A pena é inevitável, o erro é irreparável e Raskolnikov irá para a Sibéria, mas o que Porfiri quer e aposta é em dobrar o estudante, dando-lhe de presente uma pena do tamanho que um ser humano pode suportar e não um castigo perpétuo. Há no livro tudo o que falta à crônica de Lya: compreensão, amor e respeito pelo ser humano. Piedade. Fica claro que o Castigo que Porfiri impõe a Raskolnikov é o de dobrar-se e admitir o erro, saindo do episódio como um homem melhor, sem as teorias alucinadas que justificaram o ato de matar (“Se não há Deus, tudo é permitido”). Tudo isso ocorre em diversos diálogos de fantástica qualidade e ironia. Eles são de compreensão bastante simples para qualquer leitor, apesar do subtexto.

(Estou passando por cima de personagens importantes como Sônia, Svidrigáilov, Lújin e outros para ficar só com o cerne da história).

Agora, eu pergunto: será que Lya Luft — a que diz “que só tudo piora” (não que eu ache que “tudo só melhora”) — não prejudica e confunde ao exigir Autoridade, Punições e Leis mais fortes, atribuindo a seu texto a grife de um marco de nossa cultura? Será que o castigo inteligente e interessado de Porfiri Pietróvitch serviria para a Valquíria da Vingança? Claro que não! O que há naquela crônica é um pensamento superficial acompanhado de um substrato de profunda ignorância. Pobre do Brasil que tem Lya Luft escrevendo para milhares, talvez milhões, de leitores. É de chorar.

..oOo..

A Valquíria Punitiva finaliza seu texto assim…

Muito crime, pouco castigo, castigo excessivo ou brando demais, leis antiquadas ou insuficientes, e chegamos aonde chegamos: os cidadãos reféns dentro de casa ou ratos assustados na rua, a bandidagem no controle; pais com medos dos filhos… usw.

… e tira fotos assim:

Quando o discípulo revela o mestre

A meu amigo Luiz Blasi, que adora David Oistrakh

Otto Maria Carpeaux foi um intelectual muito importante na vida cultural brasileira do século passado. Foi respeitadíssimo e com merecimento. Não apenas foi o autor de uma imensa História da Literatura Ocidental em 8 volumes, como foi importante crítico literário. Escreveu também livros de crônicas, foi colunista em revistas, enfim, teve a popularidade possível a quem de dedica seriamente à cultura; ou seja, quase nenhuma. Carpeaux tinha algo de incomum: uma infalível sensibilidade para identificar já na estreia quem se tornaria destaque literário em nosso país. Mas tantos méritos lhe davam crédito para cometer erros imensos e raros em outros lugares, principalmente na tal História da Literatura. A forma como descartou alguns escritores — como, por exemplo, Laurence Sterne — certamente lhe causa problemas póstumos.

Lá pelo final dos anos 50, Carpeaux escreveu uma Nova História da Música. É um livro utilíssimo para quem está começando a gostar de música erudita, pois traz um vasto painel cronológico da evolução da música desde a época medieval, mas é curioso como as pessoas que avançam no conhecimento do assunto, passam a rejeitar o livro como se fosse um mero Eu e a Música. E com razão. Em sua história da música, ele foi bastante agressivo com alguns compositores que detestava e muito indulgente com quem adorava. (Neste minuto, penso que minha devoção à Bach e Bartók deve-se em boa parte a ele). Sua avaliação de Tchaikovski é simples. Em mais ou menos duas páginas, Carpeaux detona o famoso russo. Tchaikovski era mau orquestrador, desrespeitava algumas convenções, “jogava fora” temas de uma forma meio incompreensível — por que Tchai não retoma o motivo das quatro notas iniciais de seu Concerto Nº 1 para Piano e Orquestra?, aquilo é um achado!

E nos anos 70 eu era um adolescente e lia Carpeaux. Por inexperiência, assumia todos os seus gostos. Como Carpeaux escrevia maravilhosamente e era inteligente, sedutor, radical na medida certa e sofisticado para a época, a leitura da Nova História parecia uma forma de criar uma ponte sobre minha vasta insegurança. Obviamente, assumi seu desprezo por Tchaikovski.

Muitas águas passaram e, anos depois, me apaixonei pela música de Shostakovich. Quem acompanha meu blog talvez lembre da série que escrevi em 2006, ano do centenário de Shosta. (A propósito, um dia juntei tudo aquilo, deu 36 folhas A4…).  Bem, mas digo isso apenas para deixar claro que eu tenho suficiente vivência com a obra de Shosta para reouvir com atenção algumas obras de Tchaikovski e cair do cavalo.

Pois hoje sei que o compositor Dmitri Shostakovich, tal como o conhecemos, não existiria sem Piotr Tchaikovski. Pois as ideias que aparecem prontas em Shosta nasceram em Tchai. Pois Shosta só pode ser tão, mas tão emocional, colorido e maluco porque Tchai fez quase o mesmo antes. Pois Tchai era o aval para Shosta ser tão expressivo e exagerado, principalmente nas Sinfonias.

Relendo muitas entrevistas de Shostakovich, li o que antes pensara ser mera manifestação de ufanismo: ele conhecia minuciosamente a obra de Tchaikovski. Grande parte daquilo que Shosta desenvolveu em suas sinfonias estão em Tchai, nas sinfonias e Abertura de Romeu e Julieta. Há ali todo um Shostakovich a ser amadurecido, ali está a alma russa e as melodias russas segundo Shostakovich. Resultado: não falo mais mal de Tchaikovski. Passou a ser, da noite para o dia, um compositor fundamental… Confiram! Ouçam a Abertura Romeu e Julieta e digam-me se não há nela um Shosta mais meloso, mais delicado. Hein? Hein? Nunca o amor de Shosta por Tchai foi tão tangível para mim antes de ouvir a citada Abertura. É um tapa na cara, é estupefaciente.

Abaixo, mostro um dos melhores vídeos de todo o YouTube. Trata-se de uma gravação do Concerto Nº 1 para Violino e Orquestra de Shostakovich. O violinista é David Oistrakh, a quem o concerto é dedicado. Há várias versões no YouTube. A que escolhi está completa, mas o que me interessa mostrar começa aos 4 minutos do vídeo abaixo (o 3º de cinco). É o terceiro movimento do concerto e seu segundo movimento lento. Começa altamente dramático e, aos seis minutos, torna-se perfeitamente tchaikovskiano,

e abaixo (1min50) começará a longa cadenza do mesmo movimento, notem a inversão em relação ao habitual: o movimento que começa arrebatado termina tristíssimo. Puro Shostakovich em continuidade a Tchai.

E aqui começa o típico finale de Shostakovich. Espetacular e emocionado como aquele Capricho Italiano.

Este concerto, como já disse, foi dedicado a David Oistrakh, o violinista desta gravação que vocês viram, se viram. Existe o registro do telefonema que Oistrakh fez para Shosta logo após a estreia. O tom da conversa é de amizade formal, respeitosa. O compositor diz que o concerto foi melhorado. David começa a se desculpar por ter acelerado aqui e ali, faz algumas perguntas, nota-se que está constrangido, que entendeu a resposta de Shostakovich como uma ironia e que aceitará a reprimenda. Ouve Shosta dizer:

— O concerto é teu, estava tudo certo, cada andamento. Eu não sabia que era tão bom, sabe? Você iluminou a partitura, ouvi coisas que não imaginara.
— Mas não incluí nada, Dmitri…
— Claro que não, David. Eu fiquei muito feliz, você entendeu a música melhor do que eu.

E deve ser verdade. Shostakovich foi um tremendo compositor, mas sabemos que o um grande executante pode fazer por uma música. Quem ouviu o vídeo pode comprovar.

(A gravação desta conversa — que transcrevi de memória sujeita a chuvas e trovoadas — é o último som que se ouve no filme de Alesandr Sokurov, dedicado a Shostakovich, Sonata para Viola).

Então, o título do post se manteve: Shosta revelou Tchai para mim e talvez para outros e Oistrakh revelou o Concerto para Violino e Orquestra a Shostakovich. Não, eu não revelei nada de Carpeaux.

A cabeça do futebol, vários autores

Ganhei de presente este livro de um de seus autores, o escritor Fernando Monteiro. Trata-se de uma coletânea de crônicas futebolísticas organizada por Gustavo de Castro, Samarone Lima e Carlos Magno Araújo. O time contratado é cheio de estrelas, algumas habituais na crônica esportiva, outras bem menos. Como em qualquer grupo de atletas, tivemos bons e maus desempenhos, porém o trio dirigente manteve o comando do vestiário e o time saiu amplamente vencedor, apesar de algumas derrotas que revoltaram a torcida, a qual pediu insistentemente a cabeça do técnico, pretendendo jogá-la no fundo do entulho. Porém, a Casa das Musas manteve-se firme, declarando que não pagaria multas rescisórias à preguiçosos. O treinador permaneceu e o time mudou sem mudar.

Livros assim são um perigo, pois não adianta só saber escrever, há que saber ver o futebol. Conheço torcedores apaixonados para os quais tanto faria estar dentro de um estádio ou num hipódromo. Eles querem é torcer, não se preocupam em entender o que acontece em campo; suas sugestões são tolas, equivocadas, “irritam ao erudito”… Amam absolutamente o futebol, mas eu sei que, para entendê-lo a ponto de penetrar na cabeça de alguns técnicos, para adivinhar-lhes as reações, posturas e substituições, há que ter um gênero de observação especial que, curiosamente, não grassa por aí.

O livro abre com um bom relato de um caso uruguaio a cargo do espanhol Enrique Vila-Matas. Depois, o time chega cansado de Barcelona, sofrendo uma fragorosa derrota em São Leopoldo, a cargo de Fabrício Carpinejar — um conhecedor de futebol que veio com uma poesia banal, obra do cansaço da viagem, certamente. Fabrício, inclusive, acabou expulso de campo pelo árbitro. Na Vila Belmiro, José Roberto Torero, cronista habitual da área, assinou o mais emocionante e talvez melhor texto de todos, passando a bola a Juca Kfouri que, direto dos porões paulistanos da ditadura militar, fez excelente lançamento a Samarone (com um nome desses, o que seria de se esperar?) Lima que venceu o Velez e o Boca com tranquilidade em Buenos Aires. Após algumas derrotas surpreendentes, como a de Xico Sá, que marcou até gol contra, o time retornou à senda de vitórias com a extraordinária Selma Oliveira, que nos recomprovou que o olhar feminino sobre o futebol veio para ficar. Ela deu um passe a Abel Menezes, que pisou na bola. Sorte que o rebote caiu nos pés de Juremir Machado da Silva, o qual redimiu os gaúchos com um belo gol. Bola no centro. Então, a redonda ficou com Fernando Monteiro que, com o auxílio de Camilo José Cela, obteve inédita vitória com o Íbis. Daniel Piza escreveu uma crônica cujo tamanho só pode ser explicado pelas longas concentrações. Parece que ele resolveu deitar num texto tudo o que sabe de futebol. Sabe bastante, OK, mas a maratona gerou tal série de lesões e cartões amarelos que causou uma queda de rendimento com muitos empates verdadeiramente letárgicos. O time voltou ao bom caminho nas mãos competentes de Carlos Magno Araújo (CEUB?), Hilário Franco Junior (talvez um tanto erudito demais), Sérgio Xavier Filho (bonito relato sobre o futebol praticado pelos cegos), José Castello (O Fluminense está com Amok!) e Moacy Cirne (que me enganou até o final). Surpreendente mesmo foi a goleada sofrida por Humberto Werneck, um craque fora das quatro linhas. Tal derrota fez com que nossos dirigentes deixassem seus cargos à disposição. Sorte que a Casa das Musas não aceitou e mandou-lhes voltar ao trabalho, após tacar-lhes uma multa de 60% de seus vencimentos.

Vale a pena ler!

Organizadores: Gustavo de Castro, Samarone Lima e Carlos Magno Araújo.

Com Fabrício Carpinejar, José Roberto Torero, Juca Kfouri, Raimundo Carrero, Juremir Machado da Silva, Fernando Monteiro, Daniel Piza, Vladir de Sá Lemos, Inácio França, Luiz Zanin Oricchio, Luiz Martins da Silva, Klecius Henrique, Selma Oliveira, Josmar Jozino, Hilário Franco Jr., Humberto Werneck, Sérgio Xavier Filho, Abel Menezes, Moacy Cirne, José Castello, Rubens Lemos Filho, Elianne Diz de Abreu, Edmundo Barreiros, Xico Sá e o espanhol Enrique Vila-Matas.

Tô nervoso, porra

Vocês sabem como é, né? Não, vocês não sabem. O fato é que eu estou aqui aguardando a audiência e deveria estar na concentração para o jogo contra o Corinthians. O professor Tite me olhou no olho e me liberou meio que no bom coração. Mas me mandou voltar logo. Já está na hora, passou das 14h e o juiz não chamou. Tudo por causa daquele maldito processo de reconhecimento de paternidade que o gordo ali quis fazer quando todos sabem que a Nanda é minha filha.

Indagorinha mesmo, um débil mental me reconheceu e veio falar comigo. Queria saber se eu ia jogar, o que estava fazendo no Fórum, etc. Me deu vontade de responder que tinha vindo comprar pão. As pessoas acham que mandam na vida da gente. Todos acham isso. Ele me disse que era advogado, sócio do Inter, e, depois de me perguntar e reperguntar se eu estava bem para o jogo, me contou que o nome Corinthians veio da tradução inglesa do título de uma das epístolas (ou algo parecido) do apóstolo Paulo, que assim chamava os habitantes da cidade de Corinto, na Grécia, onde joga o Rivaldo. Ele terminou falando que Corinthians era como Maicosuel ou Uélinton — essa parte eu não entendi. Eu — bah! — estava interessadíssimo, só pensando se o Ronaldinho sabia que o nome de seu time era meio grego e ridículo… Com a graça de Deus o advogado chato sumiu e pude observar meus adversários.

Caralho, por que a Lúcia era tão puta? O primeiro que apareceu depois de mim era um magrão que eu não conhecia. Tinha cara de bom moço endinheirado. Vinha do shopping saber se tinha uma filha ou não. Calça de brim novíssima, tênis de atleta olímpico de alto rendimento, um blusão branco com o nome da loja estampado enorme e uns óculos caros e ridículos. Não era muito másculo, mas impressionava pelo investimento no visual, muito parecido com o da maioria dos jogadores. Acho que só pegaria a Lúcia se a bolinha viesse picando. Ah, Lúcia, meu amor, tão vadia. Abri o processo para descobrir o nome da figura: Juliano Martins. Esse não queria a Nanda, dizia desde o começo que teve “sexo casual” com minha mulher. Ela confirmou, mas fiquei na dúvida quando uma mulher mais velha, certamente sua mãe, chegou ao lado dele olhou para todos os lados e falou meio alto:

– Ué, a Lúcia não veio?

Melhor deixar para lá. O problema é o gordo, chamado Luís Fernando Antunes. Ele diz que a Nandinha é a cara dele e quer a guarda compartilhada. Na boa, é um cara muito mal-humorado e está puto com a situação. Na ação, disse que pagou a prótese de silicone da Lúcia, uma lipoescultura e alguns acertos no nariz que me fazem pensar em acertar o dele. Parece que tem testemunhas. Eu queria era levantar o beiço dele e bater só na gengiva. Ele é tão parecido com a Nanda quanto o Michael Jackson de qualquer fase. Se financiou as loucuras de Lúcia, se a deixou mais tesuda ainda, que fique sabendo que quem come a mulher e cria a filha sou eu. Nosso advogado me explicou a coisa assim: o gordinho seria uma espécie de “corno duplo”. É um fodido mesmo.

E eu estou aqui, nervoso. Amo a Nanda tanto quanto a Lu, vocês não imaginam. Tudo o que eu faço é para elas. Quando vim para o Inter, só pensava no carro absurdo que ia comprar. A primeira coisa que me preocupou no clube foi aquela lombada que tinha lá na Av. Beira-Rio. Como é que eu ia sair de lá na minha nave a toda a velocidade com aquela porra logo ali na saída? Desisti do carro esporte e comprei uma caminhonete que nem a do Guiñazu e mandei um troco para a família. Não sabia ainda o que me rondava.

Vi a Lúcia numa praça de alimentação. Ela estava com uma amiga. Estava linda num vestido rosa decotado. Achei que tinha direito àquilo. A sacana me sorriu de longe e eu, olha, eu nem sorri, acho que gargalhei, tal era o monumento que me dava bola. Para chegar foi fácil, a amiga dela sumiu e ela ficou me esperando. Enrolei uns dois minutos e levantei. Ela logo foi me dando lugar. A primeira coisa que me deixou maluco era que a beldade loira sabia tudo de futebol e era colorada. Tudo a ver comigo. É simplesmente inacreditável que ela tenha dado trela praquele gordo. O magrão, tudo bem, anda na moda, é bonitinho, coisa e tal, mas aquele balofo não tem nada a ver. Deixa eu ver aqui no processo: É “empresário”, o magrão é “estudante”. Vão se foder!

Aí começaram as viagens e eu acho que virei titular só pensando no que estaria fazendo a Lúcia. Nunca paro de ter ciúmes dela. Depois que a conheci, passei a treinar como o Guiña, só de ódio, pensando no que a Lu não aprontaria enquanto eu estivesse quarando na concentração. Ela gosta muito da coisa; se um dia ela enfiasse a língua numa tomada lá de casa, estouraria a rede elétrica do condomínio inteiro; se põe os olhos em alguém, é pau duro na hora. Tem que ter preparo para ela. E me aparece aquela figura roliça para me encher o saco… Como é que ela não desmontou ele? Pois montar é com ela mesmo, e aí a gente fica olhando aquela coisa perfeita em cima da gente e é uma desgraça. E, nos outros momentos, tem a Nanda, a minha queridinha. Ela é quem faz questão de ir aos jogos me ver. Ela é que se apavora quando eu caio. Ela foi a homenageada quando fiz meu primeiro gol depois de mais de trinta partidas como titular. Minha função não é a de fazer gols, mas me pifaram, fiz um e apontei para ela nas cadeiras. Sei onde elas sentam.

Até o mês passado, tudo era maravilhoso. Ganhávamos de todo mundo, aí o professor inventou de “poupar” jogadores. Eu não quero nem saber, gosto e preciso de dinheiro e por mim jogava todas. Mas o negócio de treinar mais e jogar menos acabou desentrosando o time, que hoje perde para todo mundo. Ganhamos domingo, mas eu não estava jogando. Olha, nem sei se a Lu e a Nanda devem ir amanhã. O jogo tem tudo para ser arrastado, com os corintianos fazendo o tempo passar e com a merda do Ronaldinho só esperando uma chance. Tô nervoso com o jogo, claro, e tô nervoso com o processo. Aliás, já pensou se amanhã a Nanda fosse ao jogo com o roliço? Ah, eu dava um soco naquele Elias. E se o cara for gremista e ficasse se empanturrando com ela na frente da TV, dando risada da nossa cara? E a Nanda? Não vai ser ouvida só porque tem 3 anos, caralho? Ela me adora e eu adoro ela!

Putz, eu tenho que voltar para a concentração. O professor vai me matar. Ainda bem que ele viu que isso é importante e sabe como eu sou com a Nandinha. O que a Lu viu naquele saco de gordura? A conta bancária? E a Nanda, o que acharia dele? Criança é volúvel e ela é filha da Lúcia, que parece gostar de todo mundo. Naquele dia do shopping, ela deixou o carro dela no estacionamento e fomos na minha caminhonete para o motel. Ela é louca mesmo. Vi que tinha ficado impressionada com minha BMW preta. Foi uma tarde e tanto. Vi estrelas naquela cama e mais ainda na banheira de hidromassagem. Numa hora, Lúcia ficou em pé para sair e vi seu corpo perfeito e molhado, com todas as curvas aumentadas e refletidas pela luz do quarto. Uma corpo daqueles escraviza o homem. Será que não vão considerar que amo a Nanda e sou tão ciumento dela quanto da mãe? Daria tudo para que ela fosse filha do magrão babaca, o filhinho da mamãe.

Era o destino, já no primeiro dia enquanto a via sair da banheira de hidromassagem, notei uma pequena barriguinha. A Nandinha já estava ali, com os choros e risadas que conheci depois. Conheci as duas juntas no mesmo dia, entende? Ela simplesmente não tem nada a ver com aquele babaca gordo tipo Ronaldinho.

Mas estão nos chamando para dar o resultado do exame.

Vidas de Santos: São Pedro Claver de Cartagena das Índias

Para A.B.C. e adega de H.O.

São Pedro Claver (1580-1654), nascido na Catalunha, é um grande exemplo para a humanidade. Ele entrou na Companhia de Jesus aos 21 anos a partir da enorme influência que sofreu de Alfonso Rodriguez, porteiro do Colégio de Mallorca. Ordenado sacerdote em 1616, quando já em missão na Colômbia, exerceu até a morte um difícil apostolado entre os escravos negros de Cartagena, importante porto daquele país. Converteu e batizou mais de 300.000 escravos.

Quando os negros chegavam da África nos fétidos porões dos navios negreiros e eram loteados entre os compradores, sempre sobravam alguns que não serviam para nada, na opinião dos clientes. “Muito fraco!”, “Doente!”, “Maus dentes!”, “Gangrenado!”, “Mutilado!”, “Inútil!”, gritavam os senhores adquirentes para os pobres africanos que não os entendiam. Mas São Pedro Claver pensava diferente. Os doentes, os magérrimos e os enlouquecidos pelo sofrimento eram aqueles sobre quem o santo trabalharia para mostrar a grandeza do Deus romano àqueles bárbaros incultos. Eles eram recolhidos pelo dedicado Pedro pelas ruas úmidas de Cartagena. Outros, mesmo lazarentos e magros, eram comprados a baixo custo pelo olho clínico do santo, que lhes antevia um longo porvir.

Primeiramente, Pedro tentava recuperá-los para o trabalho. Muitos, apesar das novidades — alimentação, local seco para dormir e tratamento vip –, morriam e eram lamentados rapidamente em latim antes de irem para a vala comum. Outros, para a felicidade dos missionários e grandeza de Deus, recuperavam-se e podiam voltar a trabalhar. Porém, sobre todos ele, sem exceção, Pedro fazia seu trabalho de evangelização, ensinando-lhes latim e mostrando-lhes os ensinamentos e os caminhos de Cristo. Muitas vezes, ao observar o estranho rebanho de negros agradecidos — muitos seminovos em perfeito estado, alguns mancos e outros com seqüelas piores –, o coração de Pedro Claver confrangia-se.

Havia os que recuperavam inteiramente suas forças. A estes, era imediatamente concedida a graça do retorno ao mercado de trabalho. Ficavam ativos com a finalidade de demonstrar suas qualificações aos compradores potenciais. Orientados pelos padres, trabalhavam na construção de mais Casas do Senhor, pois, na inculta região onde estavam, não havia ainda igrejas belas e ricas através das quais podia-se sentir com maior plenitude a Glória do Deus de Roma. Aquilo funcionava como um grande show-room: os negociantes viam os negros na labuta, examinavam o resultado de seu trabalho conjunto, davam uma rezadinha básica e fechavam ou não a compra. Aquelas transações tinham o claro sentido de aumentar o capital da igreja para a Glória de Deus. Aos outros, mutilados, incapazes ou fracos, eram ministrados maiores latinórios e permaneciam com os missionários. Serviam para muitas tarefas. Alguns, de constituição delicada, serviam a Deus como faxineiros, trabalhavam nos jardins ou tornavam-se assessores pessoais dos padres.

Claro que as maledicências não tardaram. Um português dono de uma pequena frota de navios negreiros, chamado Beonardo Bofe, ficou muito enfurecido com a venda de material recondicionado (que considerava em parte seu) e quis acabar com aquilo denunciando as ações do santo. O único resultado que obteve foi o de ser silenciado pelo fogo santo dos representantes de Roma. Como ganho secundário, viu — aqui, o verbo ver é utilizado de forma severamente metaforica pelo autor destas linhas — o nome de seu opúsculo figurar no Index Librorum Prohibitorum.

Porém, as ruas quentes de Cartagena eram mais difíceis de controlar e irrefreáveis comentários passaram a dar conta de que São Pedro Claver costumava utilizar os negrinhos mais delicados e coleantes numa espécie de harém sem mulheres montado às margens do Caribe. Também as más línguas de Cartagena acusaram os padres de fazerem entrar no recinto “dominado pelo Diabo” — e certamente imaginário, pois gente inculta, ignorante, má e faladora encontra-se em todos os cantos desse mundo dominado por Deus -– os filhos mais bonitinhos dos escravos. Os comentários maldosos diziam que os negrinhos despiam-se para os padres, mas creio seja absolutamente natural o fato de que religiosos analisem detidamente a perfeição da maior criação divina, o homem, representada por seus mais belos espécimes. Estou aqui com toda a documentação necessária para rebater as acusações que se fizerem ao santo. Há registros fidedignos de aulas e mais aulas de religião e latim que os pequenos efebos recebiam. Tenho comprovações de que eles, quando cresciam e terminavam sua formação religiosa, diziam frases em latim, divertindo-se pelas ruas. Anotações autênticas daquele período demonstram que os meninos recitavam ladainhas como Vox Copuli e Pubis Pro Nobis e acabavam trabalhando em casas de reuniões noturnas freqüentadas por navegadores e negociantes daquele mar. Serviam, na verdade, como intérpretes da babel de línguas que aquelas casas recebiam. A apreciável técnica da tradução por chuchotagem principiou naquela época, em plena Colômbia caribenha. Tudo isto é atestado por farta documentação que não mostro aqui por falta de espaço.

A prova maior era que na Casa dos Negrinhos não entravam prostitutas. É óbvio que aqueles bem formados e torneados jovens africanos não tolerariam a presença do pecado morando ao lado.

É, portanto, notável a contribuição de São Pedro Claver no desenvolvimento da região de Cartagena, conforme podemos conferir a seguir através de suas principais realizações, que esquematizo para que nossas crianças possam abordar com maior facilidade a vida deste grande santo:

1. Recuperou milhares de negros doentes e mutilados.
2. Construiu grandes obras que aumentaram o patrimônio da Igreja Católica.
3. Aqueceu a economia local com negros recondicionados.
4. Salvou negros que morreriam por falta de um responsável.
5. Formou como tradutores-intérpretes os negros jovens mais agradáveis que chegavam machucados à Cartagena. Especialidade: a difícil arte da chuchotagem.
6. Converteu e batizou 300.000 escravos.
7. Inventou a sauna.

Bloomsday

Sim, claro, eu sei que o Bloomsday já passou há exatamente uma semana. Eu tinha reservado as duas fotos abaixo para publicar no dia 16 de junho, mas me esqueci… Hoje, já que não consegui preparar um post devido às arrumações no blog, publico as duas fotos de Marilyn Monroe lendo Ulysses. Para minha pouca surpresa, vários blogs ingleses fizeram isto na última terça-feira. Até parece que as fotos de Eve Arnold são recentes…

O estranho é que muitos duvidam que Marilyn tenha lido Ulisses. Mais estranho ainda é que Ulisses permaneça com a aura de livro impenetrável, difícil. Há enigmas no romance? Sim, e como! Dizem que leva-se em média 100 anos para compreendê-lo inteiramente… Mas, como escreveu o Idelber:

Não se deixe levar pela fama de “difícil” do livro: poucas vezes escreveu-se coisa tão engraçada, escandalosa, divertida e sexual como Ulisses. Em cada diálogo, cada cena, cada capítulo, mil sentidos. O treco não acaba nunca.

Além do mais, a foto, de 1955, é do ano anterior em que ela casou com o dramaturgo Arthur Miller. Eles já estavam “dating”. Com ou sem Miller, Marilyn poderia ler Ulisses. Porém, como suponho que o casal falasse também de arte, fantasio que Miller tenha sugerido o livro a Marilyn. E depois sou eu o preconceituoso…

O Jardim das Cerejeiras, de Anton Tchékhov / O irmão de Sergio

E então nós íamos conhecer o tal do monte da cidade mais plana que conheço, Montevidéo. Estávamos no carro de nossos amigos uruguaios Roberto Markarian e de sua mulher, Ana Ferrari. Foi quando eu disse que, na noite anterior, eu tinha assistido à peça que nos fora indicada por eles. Markarian virou-se, perguntando o que tínhamos achado. Estávamos entusiasmados com a montagem uruguaia e eu disse que lembrava de O Jardim das Cerejeiras como uma história de confronto aberto entre o ex-mujique — agora endinheirado — e a velha e decadente aristocracia. Roberto respondeu:

— Não, é tudo muito sutil, Milton. Porém, o conteúdo ideológico da peça é dos mais claros.

Ana concordou. Não havia muito a dizer sobre o grande texto de Tchékhov.

Conheço Roberto Markarian há mais de vinte anos. Ele morou na casa de um casal de amigos meus durante um bom período, nos anos 80, enquanto escrevia sua tese de doutorado na UFRGS. É um sujeito engraçado, inteligentíssimo e que parece conhecer tudo. Matemático conhecido no mundo inteiro (pelos matemáticos), teve sua carreira interrompida pela ditadura militar uruguaia, que preferiu vê-lo preso. Aos 36 anos, em 1983, ele apareceu em Porto Alegre a fim de recomeçar as atividades em sua área, após 10 anos de inatividade. É daquelas pessoas que qualquer um gostaria de ter como amiga. Sempre sorrindo e contando coisas com graça, Markarian é gentil até para discutir. Lembro que uma vez ele defendeu a tese, para mim indiscutível, da superioridade da literatura em língua espanhola sobre a de língua portuguesa. Contra bobos protestos nacionalistas, permaneceu tranqüilo, rebatendo facilmente os contra-ataques. Com a convivência soube também de sua família. Surpreendi-me com a profissão de seu irmão: técnico de futebol.

Sim, meu amigo Roberto (acima) é irmão de Sergio Markarian. Então aquele matemático que se vestia como um alguém muito pobre — sempre usando uma estranha combinação de chinelos de dedos, bermudas e camisas de manga curta, mesmo para sair à noite; aquela figura latinoamericana para quem os outros sempre faziam o movimento de pagar seu ingresso, seu restaurante, seu deslocamento, fato que, na verdade, nunca o vi permitir ocorrer (não por orgulho idiota, mas porque não precisava); aquele armênio hispano hablante que não se interessava de modo nenhum por esportes, era irmão de um técnico de futebol de sucesso? Estranho.

Pois é. Sergio Markarian (ou Sergio Apraham Markarian Abrahamian), assim como o hoje mundialmente famoso matemático Roberto -– não, repito, não é exagero –, sempre obteve sucesso como entrenador. Foi técnico do Olímpia entre 1983 e 1986, do Cerro Porteño entre 1990 e 1991, da Seleção Paraguaia na Copa de 1992 e novamente entre 1999 e 2002, do Panathinaikos que chegou às quartas de final da Liga dos Campeões em 2004 e da Copa da UEFA em 2003, esteve no Libertad eliminado pelo Inter na Libertadores de 2006 e agora está no Universidad do Chile, La U. Sem dúvida, uma tremenda carreira.

Lembro da figura do irmão de Roberto ao lado do campo enquanto sofríamos para vencer o Libertad de Guiñazu. Ele ficava tranqüilo enquanto Abel esbravejava. Eu pensava que, se Sergio fosse como o irmão — que estudava a Teoria do Caos –, poderia repentinamente fazer qualquer coisa para embolar nosso meio de campo como bolas de bilhar movimentando-se sem atrito. Mas quem realizou a mágica foi Alex, num tiro comprido e enganador. Sergio reagiu balançando a cabeça como quem diz tsc, tsc, tsc. É, Roberto é melhor.

Nunca falei com Sergio, mas cito sempre seu nome quando penso em substitutos para os técnicos do Inter. Seria uma questão de simetria receber outro Markarian.

Porém, quando comecei a divagar, estavávamos no carro indo para o monte que deu nome à cidade. Roberto já contava que, na noite anterior, eles tinham ficado até às 4 da manhã numa festa em que a atriz que fazia Duniacha na peça, a criada de quarto, chegara logo depois da montagem que víramos. Soubemos que o casal Markarian dançara bastante ou, como literalmente dissera Roberto, tentara movimentar seus corpos de acordo com o que ouviam.

Porém, antes eu falava de Tchékhov. Lembram que eu, na semana passada, lera e “resenhara” A Gaivota e que o livrinho português continha outra peça, exatamente O Jardim das Cerejeiras? Pois é, eu tive o privilégio de relê-la logo após a peça e digo a vocês que é perfeita e sutil, sutil e sutil. E ideológica, ideológica e ideológica. A cara de espanto dos nobres que se negam a acreditar que sua familiar e tradicional propriedade foi para as mãos de um mujique é a cara de um mundo que absolutamente não deseja compreender e aceitar o futuro. E o trabalho que ele dará.

Ah, Tchékhov. Tudo isso em apenas 44 anos?

P.S.- Ana e Roberto, obrigado pelos encontros, pelos vinhos, pela compra dos ingressos, por tudo. E desculpem nossa demora em telefonar. Somos assim imprevisíveis, como Chaotic Billiards.