Durou décadas a ditadura em Portugal. A rigor, foram 48 anos entre os anos de 1926 e 1974. Só Antônio de Oliveira Salazar governou por 36 anos, entre 1932 e 1968, e a Constituição de 1933, que implantou o Estado Novo nos moldes do fascismo italiano com seu Partido Único, permaneceu até 1974, por 41 anos.
Acabou em 25 de abril de 1974 numa revolução quase sem tiros. Morreram apenas quatro pessoas pela ação da DGS (ex-PIDE). A adesão aos militares que protagonizaram o golpe na ditadura foi tão grande que as cinco mortes mais pareceram um desatino final. O nome de “Revolução dos Cravos” foi devido a um ato simbólico tomado por uma simples florista. Ela iniciou uma distribuição de cravos vermelhos a populares e estes os ofereceram aos soldados, que os colocaram nos canos das espingardas.
Tudo fora bem planejado. A ação começou em 24 de abril de forma muito musical. Um grupo militar instalou secretamente um posto no quartel da Pontinha, em Lisboa. Às 22h55 foi transmitida por uma estação de rádio a canção E depois do adeus, de Paulo de Carvalho. Este era o sinal para todos tomarem seus postos. Aos 20 minutos do dia 25, outra emissora apresentou Grândola, Vila Morena, de José Alfonso. Ao contrário da primeira canção, a qual era bastante popular, Grândola estava proibida, pois, segundo o governo, fazia clara alusão ao comunismo.
Passados 38 anos, todos reclamam em Portugal. Tendo no centro do cenário a atual crise econômica, a esquerda considera que o espírito da revolução se perdeu, assim como várias das conquistas dos primeiros anos, enquanto a direita chora as estatizações do período pós-revolucionário, afirmando que esta postura prejudicou o crescimento da economia. O ex-presidente Mário Soares afirma que tudo o que ocorreu nos últimos 38 anos pode ser discutido e reavaliado, mas que a comparação entre o passado e o que há hoje é comparar “um passado de miséria, de guerra e de ditadura” com um país onde há “respeito pela dignidade do trabalho, pelos sindicatos e pela democracia pluralista”.
A ditadura iniciou em 1926 com o decreto que nomeou interinamente o general Carmona para a presidência da República. Após a dissolução do parlamento, os militares ocuparam todas as principais posições do governo. A ditadura teve o condão de unir todos os partidos que antes disputavam entre si. Eles enviaram uma declaração conjunta às embaixadas dos EUA, Inglaterra e França, informando que não reconheciam o governo. Em resposta, a repressão policial foi acentuada e todos os que assinaram a declaração foram presos em Cabo Verde, sem julgamento.
Todas as revoltas foram sufocadas enquanto os militares se viam às voltas com uma crise econômica. Havia duas correntes: uma representada pelo ministro das finanças, o general Sinel de Cordes, que desejava recorrer a um empréstimo externo e outra, de um professor de finanças da Universidade de Coimbra, Antônio de Oliveira Salazar, que pensava não ser necessário o empréstimo externo para resolver a difícil situação financeira do país. O empréstimo não foi feito em razão de que as condições exigidas eram inaceitáveis – quase as mesmas que a “troika” exigiu e levou atualmente. O resultado final do episódio foi o pedido de demissão de Sinel de Cordes e o convite a Salazar para a pasta das finanças.
Salazar impôs austeridade e rigoroso controle de contas. Obteve o equilíbrio das contas de Portugal em 1929. Na imprensa, controlada pela censura, Salazar era chamado de “o salvador da pátria”. O prestígio ganho junto ao setor monárquico e católico, além da propaganda, consolidavam pouco a pouco a posição de Salazar, abrindo espeço para sua ascensão. Ele se tornou o esteio dos militares, que o consultavam para tudo, principalmente para as reformas ministeriais. Enquanto a oposição era dizimada, Salazar recusava o retorno ao parlamentarismo e à democracia da Primeira República, criando a União Nacional em 1930, preparando a instalação de um regime de partido único.
Em 1932, foi discutida uma nova Constituição que seria aprovada no ano seguinte. Nela, é criado o Estado Novo, uma ditadura que dizia defender “Deus, a Pátria e a Autoridade”, principalmente a terceira, que depois foi alterada para Família. A ditadura portuguesa foi muitíssimo pessoal e revelava claramente o caráter de seu chefe. Salazar era uma estranha espécie de misantropo que governava um país ao mesmo tempo que amava a solidão e posava de inacessível. Suas palavras são surpreendentes, mesmo para um ditador. “Há várias maneiras de governar e, a minha, exige isolamento… O isolamento muito me ajudou a desempenhar minha tarefa e permitiu-me, no passado como hoje, concentrar-me, ser senhor do meu tempo e dos meus sentimentos, evitar que fosse influenciado ou atingido”. Muito católico, Salazar nunca casou e vivia entre padres. O cardeal de Lisboa, D. Manuel Gonçalves, disse dele: “é um celibatário austero que não bebe, não fuma, não conhece mulheres”, mas, a fim de afastar qualquer inclinação homossexual, ressaltou: “mas ele aprecia a companhia das mulheres e a sua beleza sem, no entanto, deixar de levar uma vida de frade”.
Tal como fazia na vida privada, Salazar criou uma curiosa política e um bordão não menos. Praticava uma política de isolacionismo internacional sob o lema Orgulhosamente sós. Atuava de forma tortuosa. Apoiou Franco na Guerra Civil de 1936, mas manteve com este uma relação fria e desconfiada. Durante a Segunda Guerra Mundial, agarrou-se à neutralidade como se disto dependesse sua vida. Talvez tivesse razão. Próximo ideologicamente do fascismo italiano, Portugal não hostilizou o eixo Roma-Berlim-Tóquio, apesar de ter tornado ilegais os movimentos fascistas, prendendo seus líderes. Comprou armas, mesmo durante a Guerra, tanto na Alemanha quanto da Inglaterra, evitando o confronto e a adesão. Acendendo uma vela para cada um dos lados, Salazar aceitava dar vistos a judeus em trânsito vindos da Alemanha e da França. Também concedeu aos Aliados uma base nos Açores.
O ditador foi homenageado por Fernando Pessoa.
Antonio de Oliveira Salazar
Antonio de Oliveira Salazar.
Três nomes em sequencia regular…
Antonio é Antonio.
Oliveira é uma árvore.
Salazar é só apelido.
Até aí está bem.
O que não faz sentido
É o sentido que tudo isto tem.
Este senhor Salazar
É feito de sal e azar.
Se um dia chove,
A água dissolve
O sal,
E sob o céu
Fica só azar, é natural.
Oh, c’os diabos!
Parece que já choveu…
Coitadinho
Do tiraninho!
Não bebe vinho.
Nem sequer sozinho…
Bebe a verdade
E a liberdade,
E com tal agrado
Que já começam
A escassear no mercado.
Coitadinho
Do tiraninho!
O meu vizinho
Está na Guiné,
E o meu padrinho
No Limoeiro
Aqui ao pé,
Mas ninguém sabe porquê.
Mas, enfim, é
Certo e certeiro
Que isto consola
E nos dá fé:
Que o coitadinho
Do tiraninho
Não bebe vinho,
Nem até
Café.
Após a Segunda Guerra Mundial, manteve a política do Orgulhosamente sós, mas nem tanto assim, pois Salazar desejava permanecer orgulhosamente só, porém, com suas colônias. Desde o final da Segunda Guerra Mundial, a comunidade internacional e a ONU passaram a defender políticas de autodeterminação dos povos em regiões colonizadas. Salazar ignorou o fato, levando o país a sofrer consequências negativas tanto do ponto de vista econômico como culturais.
Internamente, a violência da democracia de fachada de Salazar não ficava nada a dever a suas congêneres latino-americanas. O Estado Novo tinha sua polícia política, a PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado), a qual era antes chamada de PVDE (Polícia de Vigilância e Defesa do Estado) e depois de DGS (Direção-Geral de Segurança). Em comum, a perseguição e morte aos opositores do regime. O regime autoritário, mas sem violência é uma fantasia que muitos católicos portugueses gostam de manter, pois a Igreja Católica sempre era citada por ele. Até hoje, alguns saudosos de Salazar misturam fascismo e catolicismo.
Em março de 1961, ocorreu uma chacina de colonos civis no norte de Angola. A resposta de Salazar foi uma Guerra Colonial chamada Para Angola rapidamente e em força. Depois, novas guerras em Guiné e Moçambique, sempre com o propósito de permanecer orgulhosamente só, mas com as províncias ultramarinas sob sua bandeira. As Guerras Coloniais tiveram como consequências milhares de vítimas e forte impacto econômico sobre o país, tendo sido uma das causas da queda do regime.
Salazar foi afastado do governo em 27 de Setembro de 1968, após uma grave queda em casa, o que lhe causou uma trombose cerebral. Seu fim foi digno de opereta: naquele 1968, o então Presidente da República, Américo Tomás, chamou Marcello Caetano para substitui-lo. O curioso é que, até morrer, em 1970, Salazar continuou a receber “visitas oficiais” como se fosse ainda o presidente do país, nunca manifestando sequer a suspeita de que já o não era, no que não foi contrariado.
O longo inferno foi finalizado pelo 25 de Abril, tal como o conhecem os portugueses. O Movimento das Forças Armadas (MFA) foi composto por oficiais intermediários da hierarquia militar, na sua maioria, eram capitães que tinham participado na Guerra Colonial e que foram apoiados por oficiais e estudantes universitários. Este movimento nasceu por volta de 1973, baseado inicialmente em reivindicações corporativistas das forças armadas envolvidas nas guerras coloniais, acabando por se estender a protestos contra a ditadura. Sem grande apoio e com a adesão em massa da população à Revolução dos Cravos, a resistência do regime foi praticamente inexistente, registrando-se apenas cinco mortos em Lisboa pelas balas da famigerada DGS.
Após o 25 de abril, foi criada a Junta de Salvação Nacional, responsável pela nomeação do presidente da República. Assim, em 15 de Maio de 1974, o general António de Spínola foi nomeado presidente.
Estabilizada a conjuntura política, prosseguiram os trabalhos da Assembleia Constituinte para a nova constituição democrática, que entrou em vigor no dia 25 de Abril de 1976, o mesmo dia das primeiras eleições legislativas da nova República.
Tanto Mar, de Chico Buarque
Sei que está em festa, pá
Fico contente
E enquanto estou ausente
Guarda um cravo para mim
Eu queria estar na festa, pá
Com a tua gente
E colher pessoalmente
Uma flor no teu jardim
Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei, também, que é preciso, pá
Navegar, navegar
Lá faz primavera, pá
Cá estou doente
Manda urgentemente
Algum cheirinho de alecrim
Foi bonita a festa, pá
Fiquei contente
Ainda guardo renitente
Um velho cravo para mim
Já murcharam tua festa, pá
Mas certamente
Esqueceram uma semente
Nalgum canto de jardim
Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei, também, quanto é preciso, pá
Navegar, navegar
Canta primavera, pá
Cá estou carente
Manda novamente
Algum cheirinho de alecrim
Já se passaram mais de três dias e eu ainda não desci. O recital de Mônica Salmasoe André Mehmari no StudioClio tirou-nos do chão de tal forma que ainda estou flutuando em perfeito conforto eufônico. Escrevo ainda com alguns centímetros a mais. Na saída do recital, ficamos conversando com Mônica e Mehmari como se não houvesse amanhã. Mônica pediu um Suco de Coruja, isto é, a cerveja Baca, da Coruja, e Mehmari disse que nunca a tinha visto com um copo daqueles na mão. Fotografou-a. Então, achamos — eu, Elena Romanov, Catia Nunes, Norberto Flach, Rovena e Francisco Marshall — que tínhamos realmente presenciado algo inédito.
Engano. Esta é a quarta vez que assisto um show de Mônica e foi sempre assim: voz linda, cheia de insuspeitados timbres, afinação perfeita, impecável senso de estilo e uma escolha de repertório de extremo bom gosto. E sempre com diferentes canções. Artista na mais gloriosa acepção do termo, ela sempre consegue criar um clima de tal eletricidade no ar que a gente sai da sala cuidadosamente para que nada estrague a sensação. Com simplicidade, ela se autodenomina uma “carola da canção”. Quando termina, nada mais natural do que aproximar-se de Mônica para garantir que não foi imaginação e que a moça que nos leva às alturas é mesmo de verdade. E conhecemos uma pessoa acessível e muito disposta a conversar — justo com a gente!
Haverá mais oportunidades para ver Mônica. Afinal, é só aqui no nosso Mercado Público que tem a rapadura preparada com melado enrolada em palha de milho que a avó dela ama.
E, para não esquecer, aí está a lista de canções do show:
Camisa Amarela (Ary Barroso)
Acaçá (Dorival Caymmi)
Tonada da Luna Llena (Simon Diaz)
Milagre (Dorival Caymmi)
Senhorinha (Guinga / Paulo C. Pinheiro)
Doce na Feira (Jair do Cavaquinho)
Pra que discutir com madame (Janet Almeida / Haroldo Barbosa)
Insensatez (Tom Jobim / Vinicius de Moraes)
Saruê (Sérgio Santos / Paulo Cesar Pinheiro)
Sinhá (Chico Buarque/João Bosco)
Pés no chão (Mario Laginha/Maria João)
Morro Velho (Milton Nascimento)
Modular Paixões (André Mehmari/Luiz Tatit)
Espelho (André Mehmari)
Tentar dormir (André Mehmari/Luiz Tatit)
Casamiento de negros (Rec. adap.Violeta Parra)
Baião de Quatro Toques(José Miguel Wisnik)
Canoeiro (Dorival Caymmi)
P.S. — O StudioClio é perfeito para este tipo de artista. Sala aconchegante e de boa acústica, a melhor de Porto Alegre.
A fluidez e elegância do texto de Chega de Saudade — referimo-nos ao livro de Ruy Castro, não à belíssima canção de Tom e Vinícius — é interrompida quando o autor fala na MPB. Subitamente, Ruy torna-se agressivo. Em sua opinião, a MPB e sua popularidade vieram destruir aquela bela mistura de samba, cool jazz e bebop chamada Bossa Nova. Até hoje, cerca de 50 anos depois, alguns amantes do gênero manifestam-se com certo ressentimento sobre o fim do movimento que deu algum protagonismo, em âmbito mundial, à música produzida no Brasil.
Em meados da década de 1960, a Bossa Nova deu sinais de uma cizânia à esquerda. Estimulados pelo Centro Popular de Cultura da UNE, novos (e grandes) artistas trouxeram uma crítica à influência do jazz norte-americano na bossa nova, propondo uma reaproximação com compositores de morro, como o sambista Zé Ketti. Eram eles Edu Lobo, Marcos Valle, Dori Caymmi, Francis Hime e outros.
Um dos pilares da Bossa Nova, Vinícius de Moraes, logo descobriu em Edu Lobo um possível parceiro e, de forma saudável, passou a circular tanto ao lado da Bossa como no outro lado. Carlos Lyra e Nara Leão, que promoveram parcerias com artistas do samba como Cartola e Nelson Cavaquinho e do baião e xote nordestinos como João do Vale, logo abraçaram a nova ideia. Foi uma fase riquíssima de nossa música. Em 1966, Vinícius estendia sua mão ao novo movimento lançando o antológico LP Os Afro-sambas, dele e Baden Powell.
Alguns dizem que a data de fundação da MPB foi o início do mês de abril de 1965, quando Arrastão venceu o 1º Festival Nacional da Musica Popular Brasileira da extinta TV Excelsior. Arrastão era uma parceria de Edu Lobo e Vinícius de Morais e realmente não tinha nenhuma feição bossanovista. Impossível cantá-la com um banquinho e violão. Elis Regina detona na interpretação não apenas em termos de potência vocal como de performance física. O coreógrafo Lennie Dale mandou que ela cortasse os cabelos e agitasse os braços. E ensinou-lhe como fazer.
“É, eu rodopiava os braços”, disse Elis, anos depois. Aquela natação um tanto ridícula valeu a ela o apelido de Eliscóptero ou de Hélice Regina. Poucos ousaram criticá-la, pois a qualidade da música de Edu era indiscutível. Um dos poucos foi Ronaldo Bôscoli, que casaria com Elis pouco tempo depois. Assim como Tom Jobim, Bôscoli achava a gaúcha meio brega. Outro foi um Caetano Veloso cuidadoso. “Aquela dança marcada me pareceu cafona, mas cheia de talento”. Depois todos eles mudaram de opinião. Os gestos exagerados de Elis tornaram-se assunto em todo o Brasil, principalmente pelo ineditismo visual: num movimento desengonçado e pouco natural, mas movido aparentemente pelo entusiasmo, os braços da cantora pareciam dois remos no ar.
Lamentavelmente, há apenas registros incompletos do eliscóptero, mas dá para ver facilmente no vídeo abaixo que Elis seguiu não apenas os conselhos de Dale como leu direitinho o bilhete de Vinícius que lhe foi passado minutos antes de entrar no palco. Este dizia: “Arrasta essa gente aí, Pimentinha”. A melodia agressiva e a letra de Vinícius (“Valha-me meu Nosso Senhor do Bonfim / Nunca, jamais, se viu tanto peixe assim”) não tinha nada a ver com a Bossa Nova.
É estranho que o sofisticado e melodioso Edu Lobo tenha ido para a história como um dos exterminadores da Bossa Nova. Mais estranha ainda é a lenda de que Vinícius escreveu a letra de Arrastão em dez minutos em sua casa, na companhia de Edu.
Porém, outros dizem que a MPB, expressão derivada de Música Popular Brasileira, teria nascido em 1966, com a também chamada segunda geração da Bossa Nova. A MPB teria nascido quando um grupo novo de artistas efetivamente tomou conta da cena musical brasileira. Gente como Geraldo Vandré, Edu Lobo, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, etc. tornaram-se rapidamente famosos e alguém que tivesse ficado sem notícias do Brasil desde 1964 e aqui desembarcasse em 1966, não entenderia nada. Os novos ídolos eram muito jovens e recentes. Eles apareciam com frequência em festivais de música popular e na TV. Sua consistência e estabelecimento como figuras públicas teria feito naufragar a Bossa Nova. E pouco tinham de Bossa Nova.
Vencedoras do II Festival de Música Popular Brasileira, realizado em São Paulo em 1966, Disparada, de Vandré, e A Banda, de Chico, podem ser consideradas marcos desta ruptura e mutação da bossa em MPB.
Na prática, não havia animosidade entre os movimentos. Assim como Vinícius, Chico Buarque trafegava em ambos. Mas o público discutia a manutenção da sofisticação musical ou a fidelidade à música de raiz brasileira. Quando a ditadura apertou, os dois movimentos se tornaram uma frente ampla cultural contra o regime militar, adotando a nova sigla MPB como uma de suas bandeiras de luta.
Zuza Homem de Melo afirma que o estilo da música dos Festivais foi o que sepultou a Bossa: “A grande transformação veio de um programa de televisão com competição de canções e participação do público torcendo abertamente. Ali, as canções da Bossa Nova não teriam êxito. Surgiu um novo formato”, conta. “O governo não percebeu que as canções poderiam se tornar uma bandeira da classe universitária contra a censura e contra a ditadura militar”, completa Zuza.
Exato. Os festivais perderiam sua força no momento em que o Governo Militar percebeu o poder de contestação que estava associado e eles, mas a MPB seguiu e segue até hoje.
Em 1967, na terceira edição do festival, já na Record, a Tropicália seria lançada, as mensagens políticas estariam mais cifradas e a MPB seria invadida por guitarras elétricas. Mas isso já é outra história.
Uma rápida lista de artistas que participam ou participaram da MPB demonstra um grande domínio qualitativo do gênero. Os críticos que votaram os 100 melhores discos brasileiros de todos os tempos da revista Rolling Stone, colocaram 52 discos de MPB na lista.
De memória e podendo cometer injustiças, listamos compositores, cantores e arranjadores ligados à MPB. Ele é impressionante: Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Edu Lobo, Jorge Ben Jor, Elis Regina, Paulinho da Viola, Vinícius de Moraes, Milton Nascimento, Gonzaguinha, Maria Bethânia, Rogério Duprat, Baden Powell, João Bosco, Gal Costa, Tom Zé, Guinga, Toquinho, Marisa Monte, Nara Leão, Cristóvão Bastos, Francis Hime, Mutantes, Mônica Salmaso, Paulo César Pinheiro, MPB-4, Carlos Lyra, Sidney Müller, Luiz Melodia, Marcos Valle, Geraldo Vandré, Belchior, Zizi Possi, Clara Nunes, Joyce, Sueli Costa, Moraes Moreira, Simone, Fagner, Lô Borges, Jards Macalé, Djavan, Lenine, Maria Rita, Sérgio Sampaio…
Quando da passagem dos 109 anos de nascimento do poeta Carlos Drummond de Andrade, em 2011, o IMS – Instituto Moreira Salles, produziu uma série de vídeos de artistas lendo poemas de Drummond. Eu descobri isso só hoje, quando vi alguns dos vídeos. Tem muitos além deste 21 que apresento abaixo.
1 – Os inocentes do Leblon, por Chico Buarque
2 – Necrológio dos desiludidos do amor, por Fernanda Torres
3 – Elegia 1938, por Caetano Veloso
4 – O amor bate na aorta, por Drica Moraes
5 – O Elefante, por Adriana Calcanhotto
6 – Amar, por Marília Pêra
7 – Destruição, por Marina Person
8 Elegia a um tucano morto, por Pedro Drummond
9 – Cantiga do Viúvo, por Elvira Bezerra
10 – Especulação em torno da palavra homem, por Sandra Corveloni
Logo nas primeiras linhas de O Irmão Alemão, Chico Buarque nos revela o centro do seu mais novo romance, a história da busca, empreendida por Francisco de Hollander, pelo paradeiro de seu irmão, nascido na Alemanha. Diz ele: “Sei que meu pai ainda solteiro morou em Berlim entre 1929 e 1930, e não custa imaginar um caso dele com alguma Fräulein por lá. Na verdade, acho que já ouvi falar de algo mais sério, acho até que há tempos ouvi em casa mencionarem um filho seu na Alemanha. Não foi discussão de pai e mãe, que uma criança não esquece, foi como um sussurro atrás da parede, uma rápida troca de palavras que eu mal poderia ter escutado, ou posso ter escutado mal.” Ou seja, mesmo que não passasse de um segredo de polichinelo, o irmão alemão, cuja existência é revelada por uma carta encontrada dentro de O ramo de ouro, obra clássica de Sir James Frazer, é o estopim para uma busca que haveria de se estender por décadas.
No dia a dia dos Holanda, falava-se do tema com maior desenvoltura. A Sergio Buarque de Holanda, não se sabe ao certo se pelos traços físicos ou se pelo domínio da língua, com certa frequência se perguntava se era filho de alemães. O historiador que, entre outras coisas, ficou conhecido por sua fina ironia, respondia de bate-pronto: filho não, sou pai de alemão. A conhecida historieta, que suponho já deva ter sido contada muitas vezes, é relembrada no belo documentário de Nelson Pereira dos Santos, Raízes do Brasil, filme que faz com que partes do livro de Chico Buarque tenham sabor de déjà vu.
Fato é que tudo o que envolve o nome de Chico Buarque ganha enormes proporções, e com O Irmão Alemão não foi diferente. Na mesma medida que os seus mergulhos em praias cariocas, seus discos ou outros livros, é digno de nota o alarido criado em torno do livro, antes mesmo de ele chegar às livrarias. Dias após o seu lançamento, O Irmão Alemão já contava com pelo menos quatro resenhas, assinadas por críticos respeitados, e com o prêmio da APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte).
Confesso que mesmo eu, que nem de longe seria lembrado como um apreciador da literatura de Chico Buarque, fui fisgado pelas iscas que foram lançadas. A promessa de contar a história do filho alemão de Sergio Buarque de Holanda, e de tecer uma trama que ligaria os horrores da escalada do nazismo na Alemanha e os anos de chumbo da Ditadura Militar no Brasil, foram o suficiente para me fazer comprar o livro assim que publicado e lê-lo em uma tacada.
Aqueles que se interessam pela trajetória de Sergio Buarque sabem que esse período foi importantíssimo em sua formação. Ele partiu como um jornalista boêmio, ligado aos modernistas de 1922 e editor de Estética, uma revista de vanguarda, efêmera como todas devem ser. Voltou determinado a se tornar um scholar, versado na sociologia de Max Weber e de Georg Simmel. Lembro aqui uma passagem do mestre Antonio Cândido, que evocou de modo preciso o transe germânico de Sergio Buarque:
Por isso a estada em Berlim foi uma oportunidade para abrir ao seu conhecimento um campo novo – o “Domínio alemão” (como diria Valéry Larbaud), que ele incorporou sofregamente aos seus territórios. Lá seguiu sem muita regularidade alguns cursos, inclusive de Meinecke. Leu Sombart, Toennies, Alfred e Max Weber; familiarizou-se com os historiadores da arte; mergulhou na obra de Rilke, de Stefan George e dos discípulos deste, como Gundolf e Bertram; pela vida afora continuou lendo Goethe nos 70 ou 80 volumes da obra completa. E no meio de tudo isso imaginou um livro de interpretação da sua terra. Tinha 28 anos e “Raízes do Brasil” começava a germinar.
Além do tour de force intelectual descrito por Antonio Candido, o que se sabe da temporada berlinense de Sergio Buarque permite acrescentar visitas aos cafés e cabarés da capital alemã. O tempo foi suficiente, ainda, para um relacionamento mais sério, com uma jovem chamada Anne Ernst ou Annemarie Ernst, namorada alemã que permanece em Berlim quando Sergio volta, às pressas, ao Brasil. Ela estava grávida de Sergio Ernst, o irmão alemão de Chico Buarque. Sergio Buarque, até onde se sabe, desconhecia o fato.
Não se trata aqui, bem sabido, de comparar o romance aos fatos. Mas esse tema será perseguido ao longo da obra, a busca de Francisco de Hollander, filho do professor Sergio de Hollander, pelo paradeiro de seu irmão alemão, que, nascido na Alemanha da década de 1930, teria visto a ascensão do nazismo ao poder. A descoberta da carta, que desencadeará todos os movimentos de Francisco para descobrir o paradeiro de seu irmão, estica um fio que liga o Brasil à Alemanha, o nazismo e a ditadura militar que já estava roçando os calcanhares do protagonista. Duas vidas marcadas pela violência.
Um tema como esse, carregado de historicidade, nas mãos de um escritor que domina as regras do ofício, nos faz pensar que seria difícil errar. Ou, se quisermos ser mais reticentes, diríamos que as chances de acerto seriam altíssimas. Finda a leitura, no entanto, a sensação é de incompletude. Ora, se é escusado dizer que Chico Buarque escreve muito bem, oferece um texto burilado, bem trabalhado, com frases bem construídas, é preciso que se diga que não foi capaz de se colocar à altura da história que escolheu contar. Não se trata, de modo algum, de um trabalho mal-acabado por imperícia. Mas, seu eu precisasse definir o livro em uma palavra, diria que ele é morno.
Gostaria de sublinhar aspectos que me parecem enfraquecer o livro. O primeiro deles é a construção dos personagens. Ao longo do livro, quando fala de Sergio de Hollander, Chico Buarque não deixa dúvidas de que fala de seu pai. Quem assistiu o já mencionado documentário sobre ele não terá qualquer dificuldade de identificá-lo nas inúmeras marcas sobre as quais o autor insiste: o cigarro entre os dedos, o hábito de ler com os óculos pendurados na testa, o escritório no segundo andar da casa. Ainda assim, o esquematismo com o qual ele apresenta a rotina de um intelectual chega a ser surpreendente. O “intelectual” descrito por Chico Buarque é, bem pesadas as palavras, caricato.
Outras personagens não têm melhor sorte. Natércia, a colega-superior-amante; o pianista que tinha informações sobre Anne Ernst; o filho do pianista… A voz do narrador, igualmente, está longe de ser empolgante. Ele se dá a ver, quase sempre, por uma lente autodepreciativa. Não é ouvido pelo pai, não é O cara da turma, inveja o irmão bonito e burro que “come todas as meninas”. Em tempo: Chico, lembrado como o poeta que cantou a alma feminina, tem passagens constrangedoras sobre as mulheres com quem o seu narrador convive.
O segundo aspecto que me incomodou com relação ao livro vem da forma mediante a qual ele tratou os dois traumas históricos que servem de baliza para a narrativa, a saber, a ascensão do nazismo, evento de consequências gigantescas, e a Ditadura Militar no Brasil, período no qual transcorre boa parte da trama. A escolha por situar e relacionar a narrativa a esses dois momentos históricos, ligados à vida do autor, não recomenda o andamento, em vários momentos frívolo, a eles imposto. Uma história de amor e de segredos que tenha como eixo traumas históricos do século XX não pode se dar ao luxo de ser amena, quase superficial, sob o risco de fazer com que nossa entrega ao olhar desse narrador sobre a época simplesmente não ocorra.
Ainda que seja sabidamente uma tolice recriminar uma laranjeira por não dar pitangas, acredito que um tema como esse mereceria uma narrativa mais intensa, que fizesse jus às tragédias que, de certo modo, atravessam a vida dos seus protagonistas. Uma vez mais, retorna a questão: por que são tão raras, entre nós brasileiros, as obras artísticas que sejam capazes de traduzir a barbárie que nos cerca? Ok, ok, Chico Buarque não é Thomas Bernhard…
(*) Éder da Silveira é professor da UFCSPA, Doutor em História pela UFRGS e Pós-doutor em História pela USP
Provavelmente, poucas pessoas conseguirão falar com Chico Buarque no dia de hoje, em que ele completa 70 anos. Ele é um sujeito muito reservado. Quando fez 60 anos, mentiu que viajaria para Paris a fim de ficar tranquilo. Porém, na tarde daquele dia, fez alongamentos e correu no Leblon. Para aqueles que o questionavam, respondia “Viajando nada!”. E ria. É que este verdadeiro patrimônio da cultura nacional, compositor, cantor e escritor, esta figura pública que não evita falar em política, que é ao mesmo tempo lírico, nostálgico e porta-voz das mulheres, é um cidadão mais afeito à tranquilidade do que a inevitável notoriedade que alcançou sua obra. Aliás, a notoriedade veio rápida, alçando-o em menos de um ano do anonimato ao posto de unanimidade nacional, concedido informalmente pelo amigo Millôr Fernandes.
Cedendo ao pecado da primeira pessoa do singular, digo que certa vez estava em Parati e, após alguns dias de contenção, resolvi gastar algum dinheiro. Fui jantar em um dos melhores restaurantes da cidade. Logo que sentamos na mesa escolhida do restaurante quase vazio, dois garçons vieram falar conosco. “Na mesa ao lado, o Chico Buarque jantará com uma de suas filhas e amigos. Ele não tolera fãs. Espero que o senhor não o incomode”. Um tanto contrariado pela observação, respondi que saberia me comportar. Minutos depois, muito sorridente, Chico chegou, fazendo questão de cumprimentar a todos antes de sentar-se com seus amigos.
Conto esta história porque o restaurante está “prenhe de razão”, como diria Julinho da Adelaide. Chico Buarque é um homem especialmente talentoso e bonito. As pessoas têm curiosidade sobre ele, principalmente as mulheres. Algumas das moças que nos acompanhavam talvez ficassem atrapalhadas ao vê-lo adentrar o restaurante com seus olhos verdes para sentar na mesa logo ao lado. Era melhor avisar mesmo.
Francisco Buarque de Holanda nasceu em 19 de junho de 1944, no Rio de Janeiro, filho do historiador Sérgio Buarque de Holanda e de Maria Amélia Cesário Alvim Buarque de Holanda. Aos dois anos, mudou-se com a família para São Paulo. A primeira vez que apareceu na imprensa foi nas páginas policiais da Última Hora em razão de um ilícito: com um amigo, ele roubara um carro para passear. Acabou preso. A foto da delegacia foi parar na capa do disco Paratodos.
Quando trocou a editoria de Polícia pela de Cultura, havia um impasse na música brasileira. De um lado, estavam os defensores do samba tradicional e, de outro, o pessoal da bossa nova,com suas harmonias mais elaboradas. Chico nunca escolheu um dos lados pelo simples motivo de que tinha os dois em seu coração. Se suas letras revelavam um jovem nostálgico — ele parece reviver seu ídolo Noel Rosa (Chico diz que a maior canção brasileira de todos os tempos é Último Desejo) –, as harmonias não são mais as de Noel. É que em 1959, quando Chico tinha 15 anos, fora lançado o LP Chega de Saudade, de João Gilberto, e ele não passara incólume. Nem os vizinhos. Chico ouvia este disco tão repetidamente que a família Buarque de Holanda era alvo de reclamações.
Música
Lançado há 49 anos, em 1965, seu primeiro compacto simples trazia duas canções: de um lado Pedro Pedreiro e do outro Sonho de um Carnaval. Pedro Pedreiro é uma canção com letra de conteúdo social, agregada a uma harmonia complexa que incorpora ao estilo tradicional o que lhe interessava da bossa nova. Chico nunca foi um revolucionário da arte, utiliza-se das formas disponíveis para elevá-las a um nível talvez inalcançável por nenhum outro artista popular. Suas combinações de letra e música deram tanto uma feição literária à MPB, como alçaram a música popular ao status de poesia.
Nos anos 60, Chico foi um estranho e talentoso jovem. Era um jovem nostálgico. Realejo e A Televisão mostram uma saudade esquisita em alguém de menos de 25 anos. Mas um de seus temas mais caros já se fazia presente: a preocupação com a condição feminina fazia-o criar personagens e ele convidava mulheres para cantar Com açúcar, com afeto e o dueto de Noite dos Mascarados. Ao lado destas, apareciam a malandragem de Noel em Logo eu? e o lirismo de Morena dos Olhos d´água, Januária e Olê Olá, por exemplo.
Quando foi lançada, A banda tornou-se um divisor de águas na carreira de Chico. Interpretada por ele e Nara Leão, dividiu o 1º lugar com Disparada, de Geraldo Vandré e Théo de Barros, no 2º Festival de Música Popular Brasileira, em 1966. Vendeu mais de 100 mil cópias em uma semana.
Por falar em 100 mil, Chico participou da passeata dos 100 mil, em 1968. Ele militou contra a ditadura militar compondo canções e peças que criticavam o regime, às vezes de forma explícita, e em outras buscando driblar a censura de maneira alegórica. Não chegou a ser preso, mas foi interrogado no Dops e no 1º Exército. Também em 1968, Chico venceu o 3º Festival Internacional da Canção, em parceria com Tom Jobim, com a canção Sabiá. O público vaiou Chico, Tom e o Quarteto em Cy. Preferia Pra não dizer que não falei de flores, de Geraldo Vandré. Em 1969, Chico recebeu convite para gravar um disco na Itália e cantar na França. Seguiu para Roma com Marieta, grávida da primeira filha. Ao saber da prisão de Gil e Caetano, decidiu não voltar. O casal passou 14 meses na Europa.
A maturidade como compositor
Na volta, Chico lançou Construção (1971), um disco absurdamente bom e completamente distinto dos anteriores. Chico se modernizara em tudo: as letras não são mais nostálgicas, as citações ao samba não estão mais em toda canção e os arranjos de Magro (MPB-4) e Rogério Duprat deram a roupagem que as canções já mereciam mas não tinham. O disco tem de tudo: sambas de exílio, canções intimistas, acalantos e a grandiosidade de Construção e Deus lhe pague. As letras estão carregadas de críticas ao regime militar e às condições sociais do país. Além da preciosidade técnica da letra de Construção — 41 versos, todos terminando com um proparoxítono de três sílabas –, a canção revela o engajamento social de seu autor. Foi uma redefinição e tanto. É seu primeiro disco adulto. Na época, ele disse que xingou o Sabiá, abandonou a Rita e empurrou a Carolina da janela para fazer esse disco.
No âmbito da canção, era a maturidade chegando aos 27 anos. Nos anos seguintes, ele abriu mais frentes. Sem açúcar, que está em Chico Buarque e Maria Bethânia ao Vivo, trazia um amargor nunca antes ouvido em seus discos. Por outro lado, a censura incomodava. “Eles me encheram o saco, mas também enchi muito o saco deles”. O compositor teve dezenas de canções proibidas ou “tesouradas”, mas algumas escapavam. As principais foram Apesar de você e Cálice. Quando se deram conta do vacilo, os censores já não podiam impedir as ruas de cantá-las. A fim de burlar a censura prévia, o compositor inventou o sambista Julinho da Adelaide, que “escreveu” a notável Acorda amor. A identidade de Julinho foi revelada em 1975, numa reportagem sobre a censura publicada no Jornal do Brasil.
Em 1974, Chico estreou na literatura com Fazenda modelo, definida por seu autor como uma “novela pecuária”. No mesmo ano, ele lançou Sinal Fechado só com canções de outros compositores, além de Acorda Amor. O disco é excelente, mas demonstra as dificuldades com a censura. Mas a fileira de discos de obras próprias aparecia lotada de obras-primas.
Meus caros amigos (1976), Chico Buarque (1978), Ópera do Malandro (1979), Vida (1980), Almanaque (1981) e Chico Buarque (1984), mais parecem antologias de melhores músicas do que discos regulares. Não há nada que seja de segunda linha, fato que obrigou a Almir Chediak, por exemplo, a lotar de canções os oito CDs de seu Songbook de Chico Buarque. (Songbook é um livro impresso com partituras, letras e CDs, de uma ou mais bandas ou músicos).
Musicalmente liberado, Chico tanto se valeu da eletrificação — Jorge Maravilha, Hino de Duran, A Voz do Dono e o Dono da voz –, quanto de ritmos estrangeiros — Fado Tropical, Tanto amar, Tango do Covil, Bancarrora Blues –, do charleston — Ai, se eles me pegam –, das marchinhas sacanas — Não existe pecado no lado debaixo do Equador e a sensacional Boi voador não pode, etc. Ele ainda explorava preferencialmente o samba e as delicadas valsas — Terezinha, Eu te amo, João e Maria — e revelava auto-ironia em Corrente — “Pra confessar que andei sambando errado / Talvez até precisa tomar na cara”) e Até o fim, além do drama nos versos de Olhos nos Olhos, Folhetim ,Mil Perdões e Bastidores.
Após 1984, a produção de Chico Buarque diminuiu em número, mas não em qualidade. Chico também desenvolveu discos em parcerias com Caetano Veloso e, principalmente com outro gênio da MPB, Edu Lobo. De Francisco (1987) a Carioca (2006) e Chico (2011), seus últimos trabalhos na música nada ficam a dever ao Chico dos anos jovens ou ao Chico maduro.
Meu tempo é curto, o tempo dela sobra / Meu cabelo é cinza, o dela é cor de abóbora, canta Chico em Essa pequena, do disco Chico, certamente referindo-se a seu envolvimento com a cantora Thaís Gulin. Seu último disco é um esplêndido trabalho de canções de amor. Talvez a melhor música seja Nina, uma bela e imaginativa valsa de sabor russo e internético. Nina diz que tem a pele cor de neve / E dois olhos negros como o breu, canta.
A discussão sobre a relação entre a música, a letra de canção e a poesia é antiga. O Chico letrista escreve com profundo conhecimento das técnicas literárias, mas nunca perdem a comunicação e são embaladas por uma musicalidade interna quase natural. Herdeiro da linguagem urbana de Noel, estas incorporam elementos da poesia modernista de Manuel Bandeira, Drummond e Vinícius. A força da poesia das canções de Chico por muito tempo obscureceu a arte do melodista. Ainda mais que, mais recentemente, suas composições foram ganhando os elementos eruditos que lhe chegaram filtradas pela arte de Tom Jobim.
Literatura
Fazenda Modelo (1974) era quase uma brincadeira com A Revolução dos Bichos, de George Orwell. Estorvo (1991) não é um bom romance, mas revela que o romancista não é somente uma extensão do cancionista. Em Benjamin (1995) já havia uma voz própria, mas tudo mudou com o extraordinário Budapeste (2003). Não obstante as críticas geralmente negativas a Estorvo e Benjamim, estes e Budapeste foram adaptados para o cinema. Seu mais recente romance é Leite derramado (2009). É o mais reconhecido deles, tendo recebido o Jabuti de melhor ficção do ano. Na época da premiação, houve grande debate pelo fato de que muitos acharam o livro inferior ao segundo colocado Se eu fechar os olhos agora, do repórter da Globo Edney Silvestre. Leite é a biografia de um homem em meio aos tormentos da memória, que simboliza a formação do país e suas feridas sociais. Seus dois últimos livros apresentam boa variação temática — a questão dos duplos, a velhice, a geopolítica brasileira — e protagonistas em que a fronteira entre a realidade e a imaginação está pouco definida, o que torna seus relatos muito pouco confiáveis.
Há 100 anos, em 19 de outubro de 1913, nascia Vinícius de Moraes. O poetinha — apelido dado por Tom Jobim — era letrista, boêmio, poeta, fumante, dramaturgo, diplomata, amante dos bons uísques, das mulheres e de tudo o que desse prazer. Casou-se nove vezes. Apesar disso, teve tempo de criar obra literária, musical e teatral. Foi parceiro de mais de uma geração de grandes músicos brasileiros, como o citado Tom, além de Chico Buarque, Toquinho, Baden Powell, Carlos Lyra, Edu Lobo, João Gilberto, João Bosco, dentre outros.
Marcus Vinícius da Cruz de Mello Moraes nasceu na Gávea, Rio de Janeiro, filho de um funcionário da prefeitura e de uma dona de casa que era também pianista amadora. Em 1930, ingressou na Faculdade de Direito do Catete, hoje integrada à UERJ. Na chamada “Faculdade do Catete”, conheceu o romancista Otávio Faria, que o incentivou a escrever. Vinícius de Moraes graduou-se em Ciências Jurídicas e Sociais em 1933, aos 20 anos. Após um período na Inglaterra, fez concurso para o Ministério das Relações Exteriores. Na primeira vez foi reprovado, mas passou na segunda tentativa, sendo enviado para Los Angeles como vice-cônsul.
Depois, Vinícius de Moraes atuou no campo diplomático em Paris e em Roma, onde costumava realizar animados encontros na casa do escritor Sérgio Buarque de Holanda. A carreira de diplomata fui subitamente interrompida pelo AI-5, através de uma aposentadoria compulsória. O motivo alegado foi a boemia. Em entrevista, o presidente João Figueiredo explicou as causas da demissão: “O Vinícius diz que muita gente do Itamaraty foi cassada por motivos políticos, por corrupção ou por pederastia. É verdade. Mas no caso dele foi vagabundagem mesmo. Eu era o chefe do Serviço Nacional de Informações, o SNI, e recebíamos constantemente informes de que ele, servindo no consulado brasileiro de Montevidéu e ganhando 6 mil dólares por mês, não aparecia por lá havia três meses. Consultamos o Ministério das Relações Exteriores, que nos confirmou a acusação. Checamos e verificamos que ele não saía dos botequins do Rio de Janeiro, tocando violão, se apresentando por aí, com um copo de uísque na mão. Nem pestanejamos. Mandamos brasa.”
Hoje, ninguém se incomoda com seu mau comportamento funcional. Afinal, o ganho cultural foi muito mais importante.
A música
Vinícius de Moraes é conhecido pelo grande público muito mais por sua música e por seu trabalho como letrista do que por sua obra literária. Porém, estes estão de tal forma interligados entre si e com a vida do autor que certamente não é muito inteligente separá-los. Nos anos 40, Vinícius era um poeta lírico de linguagem simples que muitas vezes enveredava pelo social. Os poemas desta época certamente não lhe garantiriam nenhum gênero de “imortalidade” e ele era mais conhecido por sua atuação como jornalista e crítico de cinema.
Só em 1953 o poeta começou a abrir espaço para o letrista e músico. Naquele ano, Aracy de Almeida gravou Quando Tu Passas Por Mim, primeiro samba de sua autoria. Escrito com Antônio Maria, o samba marcava, na vida pessoal do poeta, mais um fim de casamento.
Em 1954, foi publicada sua coletânea Antologia Poética, ao mesmo tempo em que finalizava sua peça teatral Orfeu da Conceição, premiada no concurso associado ao IV Centenário de São Paulo, cidade por ele apelidada de “o túmulo do samba”. Dois anos depois, quando andava atrás de alguém para musicar a peça, um amigo indicou-lhe um jovem pianista e arranjador chamado Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, de 29 anos. O encontro entre Vinícius e Tom, entre Tom e Vinícius, deveria ser saudado com fanfarras não fosse a Bossa Nova avessa a tais barulheiras. Ali nascia uma das mais fecundas parcerias da música brasileira, uma que a marcaria definitivamente. Os dois compuseram a trilha sonora para Orfeu e seguiram compondo uma vertiginosa sucessão de clássicos que acabaram na criação da Bossa Nova juntamente com João Gilberto. Se Todos Fossem Iguais A Você, Eu e Você, A Felicidade, Chega de Saudade, Eu sei que vou te amar, Garota de Ipanema, Insensatez, entre outras belas canções canônicas.
“Vinicius de Moraes foi um divisor de águas na história da música popular brasileira. Um poeta de livro que de repente se torna letrista e traz para as letras da música brasileira uma grande densidade poética”, define o crítico musical Tárik de Souza. Mais do que parceiros, Vinicius de Moraes colecionou amigos, companheiros de boemia e da vida cotidiana. A troca ia muito além das rimas e notas musicais.
Para Tárik, que apresenta na Rádio MEC FM o programa Bossamoderna, Vinicius exerceu um papel de catalisador na música popular, estimulando o surgimento de novos compositores. “Ele foi o primeiro parceiro do Edu Lobo, o primeiro parceiro do João Bosco, incentivou o Francis Hime e vários outros artistas a se dedicarem realmente à música, a partir de parcerias com ele. Vinicius tinha essa generosidade de lançar artistas e de abrir novas frentes, como ele fez com Toquinho, que foi o seu último grande parceiro”.
É grande a lista. Além dos já citados, inclui Carlos Lyra, Baden Powell (que formavam, juntamente com Tom, o que o poeta chamava de sua “santíssima trindade”), Chico Buarque e muitos outros. Lyra, um dos integrantes da “trindade” de Vinícius, conta como foi seu primeiro contato com o poeta. “Liguei para a casa dele: ‘Vinícius de Moraes? Aqui é o Carlos Lyra”… e ele, com aquela mania de diminutivos, respondeu: ‘Ah, Carlinhos, ouvi muito falar de você. O que você quer de mim?’ E eu: ‘quero umas letrinhas…’. E ele: ‘então venha já pra minha casa’. E aí começou a amizade e a parceria”.
A pedra fundamental da bossa nova veio com o LP Canção do Amor Demais, gravado por Elizeth Cardoso. Além da faixa-título, o LP trazia ainda com outras músicas da parceria, como Luciana, Estrada Branca, Outra Vez e a indiscutível Chega de Saudade, em interpretações vocais intimistas, bastante estranhas ao comum da época — o da voz empostada e do berro. No ano seguinte, era lançado o LP João Gilberto que trazia como música de abertura a mesma Chega de saudade e abria definitivamente o período da bossa nova. Aliás, é importante dizer que a famosa batida do violão de João Gilberto já se fazia presente no disco de Elizeth.
Mas Vinícius ainda teria outras participações fundamentais na história da MPB. Em 1965, o “I Festival Nacional de Música Popular Brasileira” (da extinta TV Excelsior) consagrou Arrastão (composta em parceria com Edu Lobo) como vencedora. O segundo lugar foi a Valsa do Amor que Não Vem , do mesmo Vinícius com Baden Powell, defendida por Elizeth Cardoso.
Em 1966, uma nova parceria com Baden Powell gerou “Os Afro-Sambas”, uma brilhante coleção de canções de influência africana que recebeu sua maior homenagem há poucos anos, com a regravação feita por Mônica Salmaso e Paulo Bellinati.
Entre um parceiro e outro, eram criadas uma série de obras-primas da MPB. Samba da Bênção, com Baden; Marcha da Quarta-feira de Cinzas, com Carlos Lyra; Valsinha e Gente Humilde, com Chico Buarque; a lista é imensa.
Depois de 1970, foi a vez de encetar outra longa parceria, talvez a mais duradoura e prolífica delas, aquela com o violonista e compositor Toquinho. Formavam uma dupla bem diferente em qualidade das atuais. Também era diversos na postura: Toquinho empunhava um violão e Vinícius um copo de uísque. O primeiro LP já trazia Na Tonga da Mironga do Kabuletê, Testamento, Tarde em Itapoã, Morena Flor eA Rosa Desfolhada. Em 1972, eles lançaram o álbum São Demais os Perigos Dessa Vida, contendo — além da faixa-título — grandes canções como Cotidiano nº 2, Para Viver Um Grande Amor e Regra três.
Em 1979, participou de leitura de poemas no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo (SP), a convite do líder sindical Luiz Inácio Lula da Silva. Voltando de viagem à Europa, sofreu um derrame cerebral no avião. Perderam-se, na ocasião, os originais de Roteiro lírico e sentimental da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.
No dia 17 de abril de 1980, foi operado para a instalação de um dreno cerebral. Morreu na manhã de 9 de julho, de edema pulmonar, em sua casa na Gávea, em companhia de Toquinho e de sua última mulher.
Antes do poeta, o crítico e grande conhecedor de cinema
O “Poetinha” que o Brasil admira e cultua pelo lirismo de seus versos era também um cinéfilo de carteirinha. Ao longo de toda a década de 40 e na primeira metade dos anos 50, Vinicius de Moraes exerceu, paralelamente à carreira de diplomata, intensa atividade como crítico de cinema para os jornais A Manhã e Última Hora e para as revistas Diretrizes e Sombra.
“Creio no cinema, meio de expressão total em seu poder transmissor e capacidade de emoção, possuidor de uma forma própria que lhe é imanente e que, contendo todas as outras formas de arte, nada lhes deve”, escreveu Vinicius, em artigo publicado em agosto de 1941 no jornal A Manhã. Parte do acervo literário de Vinicius, sob a guarda da Fundação Casa de Rui Barbosa, os escritos revelam que o poeta produziu análises aprofundadas sobre os grandes mestres do cinema da época, como Orson Welles, Charles Chaplin, Alfred Hitchcock, René Clair, Fritz Lang, Sergei Eisenstein, Vittorio de Sica e o brasileiro Alberto Cavalcanti.
Os rumos do cinema brasileiro e o resgate da obra de nossos primeiros cineastas também estavam nas preocupações do poeta. “Vinicius de Moraes foi importante não só como crítico de cinema, mas também como cineclubista. Foi por meio do Vinicius e das pessoas que integravam a turma dele, de cinéfilos, que o público tomou conhecimento da existência de Limite, o filme de Mário Peixoto, que estava perdido há anos”, disse Fabiano Canosa, um dos curadores do Festival do Rio.
Entre 1946 e 1950, período em que foi vice-cônsul do Brasil em Los Angeles, Vinícius estudou cinema com Welles e teve uma convivência muito grande com o meio cinematográfico de Hollywood. “Ele frequentava muito a casa de Carmen Miranda e promoveu a aproximação de muitos nomes da cultura brasileira com Hollywood nos anos posteriores à 2ª Guerra Mundial, como por exemplo o escritor Erico Veríssimo”, declarou Canosa, ex-programador da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e do Public Theatre de Nova York.
O poeta
A poesia de Vinícius, seja na música ou nos livros de poesia, transpira paixão. Paixão pela mulher, paixão pelo divino, paixão pelo prazer transitório e pela dignidade humana. Outra palavra fundamental de seu léxico é a busca. Busca da religião que logrou encontrar na África, busca das inumeráveis musas — mulheres reais ou inventadas — e a busca do perdão para tantas infidelidades. Poeta entre o viril e o terno, entre o metafísico e o carnal, fez de sua poesia um local de encontros e de despedidas. Morreu como uma encarnação do hedonismo. Era o rei das festas, o mais saudado, o poeta do fumo, das religiões afro-brasileiras num tempo em que isso era quase escandaloso, da irresponsabilidade, da insânia e, sobretudo, da intoxicação — através do amado uísque — que une o bebedor com a deidade. E, para nossa alegria, ainda nos deixou uma extensa obra que, se não chega a ser a de um Drummond, a de um João Cabral, a de um Murilo ou a de uma Cecília, chegou mais facilmente ao coração do povo através da música. Vinícius, velho, saravá!
Não sou pessimista. Apesar de tantos problemas e desassossegos, não penso que o mundo esteja andando para trás. Mas houve coisas que certamente pioraram muito — refiro-me especificamente às artes populares, principalmente o cinema e a música do dia-a-dia. Por exemplo, durante o Festival da Record, cujos resultados mostro abaixo, eu tinha dez anos. Lembro que nós, lá em casa, fazíamos apostas. Minha irmã, em seus adolescentes 15 anos, era uma adoradora — é até hoje — de Edu Lobo, enquanto suas colegas só tinham olhos para Chico Buarque. (Aliás, ela devia ser do contra, tanto que amava George Harrison, não Paul McCartney ou John Lennon). Mas não tergiversemos: o Festival ocorria numa sexta ou sábado à noite e nós víamos o VT dias depois, mas antes da próxima “rodada”, a qual ocorria no fim-de-semana seguinte. Então, lembro de um sábado ou domingo pela manhã que entrei correndo no quarto da Iracema para berrar-lhe que ouvira a novidade no rádio. Na noite anterior, Edu Lobo vencera novamente o Festival da Record. Foi uma das raras vezes que a vi acordar bem-humorada.
O Festival da Record e o FIC mobilizavam o país e o que me deprime é que se tratavam de músicas populares de primeiríssima linha — coisa que não acontece mais hoje, pois popular é a Valesca “Beijinho no Ombro” Popozuda, não Yamandú Costa ou Hamilton de Hollanda ou Mônica Salmaso ou Guinga, por exemplo.
E aí está a apresentação de Edu Lobo defendendo sua composição. Mesmo com o som ruim, mesmo com a gritaria geral, fica clara a irrepetível mistura de ritmos nordestinos com Stravinsky, ídolo maior de Edu. É para se ouvir de joelhos.
Tremenda injustiça sofreu nosso ex-ministro. Gilberto Gil era um rapaz todo redondo e veio com a esplêndida e igualmente original Domingo no Parque, devidamente polida por Rogério Duprat e com a presença irreverente de um trio desconhecido de maluquetes — Os Mutantes. Não fosse Edu, era para ganhar. Era a minha preferida.
Mesmo bonito e com o apoio do público, Chico não poderia fazer nada contra as duas campeãs. As canções adversárias eram obras de exceção. Sobrou um mui digno terceiro lugar para Roda Viva, a absolutamente preferida de meu pai.
http://youtu.be/HRFw5u5wR4c
Caetano Veloso ocupou o quarto lugar com Alegria, Alegria, uma canção que marcou época e deu nome a um time de futebol amador onde eu brinquei algumas vezes: a AAAA (Associação Atlética Alegria Alegria…).
Naquele mesmo festival aconteceu um escândalo. Sérgio Ricardo veio com uma música bem ruinzinha e, quando foi reapresentá-la, o público vaiou tanto que ele simplesmente não conseguiu cantá-la novamente. Então, ele gritou, sapateou de raiva e acabou quebrando seu violão no palco. Depois, completou a obra lançando-o à plateia. Concordo que o público foi intolerante para com o artista, mas confesso a vocês que foi lindo de ver!
Por que caímos tanto? Acompanhando de longe a cena do rock e do pop, não vejo uma decadência tão grande fora do país. A música dos franceses sempre foi fraca, mas, quando estava em Londres, ouvia as canções que tocavam nos pubs. Não havia nenhum Led Zeppelin ou Beatles, mas o que ouvíamos eram coisas bem feitas, originais e vivas. Lá há criatividade e potência, por assim dizer. O que aconteceu conosco? Faltam universidades de música popular? O pessoal bom não chega a ser conhecido porque a indústria só se interessa pelo lucro rápido? Os caminhos estão mesmo cortados? A qualidade genética do país simplesmente caiu? Ou trata-se de mais um reflexo da falência de nosso sistema educacional? Sei lá.
Texto de 2010 que cortei, cortei, cortei e corrigi.
Mentira. São 45 livros porque 5 receberam dois votos.
Inspirado por Carlos Willian Leite, do Jornal Opção, de Goiânia, o Sul21 convidou dez romancistas, poetas, ensaístas ou críticos literários para nomearem as cinco piores obras de autores brasileiros que conhecem. Obviamente, a escolha reflete o gosto pessoal e o conhecimento de cada um dos dez “jurados” e não uma condenação irremediável. Trata-se de uma anti-lista, contrária às listas habituais de melhores.
Ampliando a ideia inicial, pedimos que, a cada voto, fosse acrescentada de uma a cinco linhas justificando a escolha. Por iniciativa nossa, informamos aos votantes que não divulgaríamos seus nomes, postura que foi rechaçada por dois deles, Fernando Monteiro e Ronald Augusto, que têm suas iniciais apontadas logo após seus votos. Os outros “jurados” apenas aceitaram as regras sem comentá-las. Deste modo, não podem receber a imputação de terem planejado agir sob o manto do anonimato…
(Carlos André Moreira também pediu que seus votos fossem indicados. Justificativa abaixo (*)).
Por falar em anonimato, o autor desta introdução não votou.
Assim, acrescentamos as iniciais C.A.M. aos respectivos votos. A seguir, então, em ordem alfabética por título, a lista dos 50 livros para morrer antes de ler:
Agosto, de Rubem Fonseca
Tive de ler por obrigação e acabei tomando ojeriza pelo personagem principal do livro: a azia do protagonista.
A Casa do Poeta Trágico, de Carlos Heitor Cony
Romance artificialmente construído, com pretensões de “clima internacional” que termina por criar situações ridículas como a do casal de amantes, personagens centrais, que passam uma noite inteira trepando nas ruínas de Pompeia porque se distraíram (trepando, já) e não perceberam que o sítio arqueológico havia sido aferrolhado, de acordo com o horário de fechamento dos portões (17h). Tudo bem. O homem e a mulher não se incomodam… Sem colchão, sem lençol, sem travesseiro, sem mais nada, continuam a trepar e só vão sair das ruínas quando os funcionários reabrem Pompeia para os turistas, às 10h da manhã seguinte. É mole? Não. Teria que ser muito dura (a noite). Por cenas como essa, melhor morrer antes de ler. (F.M.)
A Casa das Sete Mulheres, de Letícia Wierzchowski
— Essa pérola do cancioneiro gauchesco tem uma das mais mal escritas primeiras páginas da história da literatura universal. O resto do livro vai pelo mesmo caminho.
— Contar a Guerra dos Farrapos a partir das mulheres próximas ao general Bento Gonçalves não é ideia ruim. Mas é tudo canhestro no livro: a narrativa, o enredo, a construção dos personagens. Uma leitura que dura para sempre, no mau sentido.
A Divina Pastora, de Caldre e Fião
Achado um único exemplar num sebo de Montevidéu pelo livreiro Monquelat de Pelotas. Antes nunca o encontrasse!
A Escrava Isaura, de Bernardo Guimarães
Conto de fadas de superação do interdito social. História irrealista que pretendia demonstrar que as tendências (pseudo) democráticas dependiam apenas da boa vontade cristã das pessoas. Daí a Globo ter exibido a novela que tanto agradou a classe média, sempre politicamente equivocada e alienada.
A Guerrilheira, de Índio Vargas
Embora Índio Vargas seja autor de um dos livros mais importantes sobre a ditadura militar, “Guerra é Guerra, dizia o Torturador”, este aqui parece um esboço que alguém mandou inadvertidamente para a gráfica e foi publicado sem passar por revisão. Falta foco, estrutura, cuidado com a prosa, os episódios desmentem uns aos outros, repetem-se, quando não se perdem em digressões que não acrescentam nada, nem tensão. (C.A.M.)
A Moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo
— Bobo. A fantasia não dá nem uma novela das seis, o texto é primário. É um crime fazer os adolescentes lerem essa chatice dizendo que se trata de literatura, pior, de um clássico. Esse livro só tem importância dentro da história da literatura brasileira, coisa que o professor pode resumir numa linha e poupar os alunos.
— Clássico absoluto e abominado nas salas de aula brasileiras, mas permanece sendo lido, vendendo e com lugar cativo na alma de cada mau professor deste grande país!
A Quarta Parte do Mundo, de Clovis Bulcão
A orelha promete um “épico eletrizante”, “baseado em fatos reais” (a malfadada passagem de Villegagnon pelo Brasil). Na verdade, “eletrizantes” são as imagens, algumas das mais feias da história da literatura brasileira, como essa: “Uma robusta garça fora ferida e grunhira como um porco”. O autor criou um mundo perigoso, em que os personagens sentem apenas emoções-clichê, como uma “mistura de pavor e ódio”, e em que podem ser “tragados por piratas ou pelos abismos do mar” (tentemos visualizar isso…). Definitivamente não recomendo.
A Suavidade do Vento, de Cristóvão Tezza
Romance fraquíssimo, que nada tem a ver com a sutileza de um Antonioni, em certa tarde, olhando para árvores descabeladamente agitadas: “Como é fotogênico o vento!”, como registrou o mestre italiano da (verdadeira) suavidade na sua “Trilogia da Incomunicabilidade”, bem longe do realismo rastaquera do Tezza desse livro. (F.M.)
As Parceiras, de Lya Luft
Psicologismo mediano misturado com literatura convencional que tenta disfarçar, sem sucesso, um estilo a meio caminho do entretenimento em tom pastel e da autoajuda intimista. Narrativa para lobas fleumáticas. (R.A.)
Bernarda Soledade, a Tigre do Sertão, de Raimundo Carrero
Muito ruim. Influenciado por Lorca (?) até no título, além das situações de “dramaticidade” de estilo juvenil em torno de mulheres confinadas à maneira exatamente de “A Casa de Bernarda Alba” (sem ter, entretanto, conseguido imitar a qualidade do inspirado poeta andaluz). Em tempo: não seria “tigresa”?… (F.M.)
Cai a noite sobre Palomas, de Juremir Machado da Silva
Há uma diferença bastante grande entre construir personagens inteligentes e colocar frases de efeito e nomes de grandes pensadores em suas bocas. Talvez o Juremir não soubesse disso ao escrever o seu primeiro livro. Triste é perceber que segue sem sabê-lo até hoje.
Canto da noite, de Augusto Frederico Schmidt
Para ser justo com o falecido, eu poderia ter mencionado a obra poética inteira como exemplo da pior poesia feita no Brasil. No gênero, o autor talvez tenha sido a maior impostura de todos os tempos. Por ser endinheirado e porque publicava os grandes poetas de seu tempo, era apontado, por eles, como um grande poeta. (R.A.)
Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre
Não é nem romance nem obra sociológica. Até nos faz pensar que no Brasil se praticou e se pratica a democracia racial , via miscigenação e que na casa grande havia senhores bons e na senzala escravos submissos. Cáspite !!!
Contra o Brasil, de Diogo Mainardi
— A história de um picareta que odeia o Brasil e passa o tempo todo citando frases de viajantes e pensadores que desancaram o País e seus habitantes. Acho que ninguém vai querer ler uma autobiografia do Diogo Mainardi, mas por precaução, foi para a lista.
— Mainardi não tem muita preocupação com ideias, propostas, alternativas. Sua intenção é de apenas bater, sua arte é a da objeção. Um livro cuja intenção é a de vender o complexo de vira-latas do autor. Não obtém o riso, não informa, não nada. Merece presença aqui.
Corpo Presente, de João Paulo Cuenca
É um mistério o prestígio que Cuenca desfruta como “autor da nova geração”, já que sua obra parece reunir justamente os piores maneirismos da sua geração: abuso de ironia, pretensão acima da qualidade de seu texto, investimento em fórmulas que já não convencem. Este seu primeiro romance é um bom exemplo: um “romance urbano” com um “protagonista deslocado”, perdido em “questões de sobrevivência e sexo”, redigido em uma “escrita cinematográfica”, que na verdade é uma prosa que se pretende densa e nebulosa, mas apenas abusa de orações coordenadas sem parecer que sabe onde quer chegar. Puxa, como ninguém pensou nisso antes? (C.A.M.)
Dois Irmãos, de Milton Hatoum
Já houve um Jorge Amado, e foi suficiente.
Estorvo, de Chico Buarque
— O que dizer quando o título diz tudo? Chico, como escritor, costuma, na minha modesta opinião, emular outros escritores, com resultados sempre inferiores aos do original.
— A prova impressa de que a genialidade em determinado campo artístico não implica em qualquer tipo de brilhantismo nos demais. Compositor de raro talento, Chico é um escritor medíocre, infelizmente. Acho que nem fã de carteirinha aguenta esse árido calhamaço de coisa alguma.
Fernando Pessoa, uma quase autobiografia, de José Paulo Cavalcanti Filho
Outro livro enorme, uma biografia excessivamente ocupada do varejo, do trivial-mínimo, da vida pessoal de Fernando Pessoa, que o autor jura ter visto nas ruas de Lisboa (isto é, a alma penada do poeta), talvez sinalizando que ele, Cavalcanti Filho, escrevesse sobre quantas vezes, por exemplo, um bardo alfacinha é capaz de ir ao banheiro, num único dia, depois de ter repetido o fundo prato da caldeirada do “Martinho das Arcadas”… (F.M.)
Chico Buarque comenta o racismo claro ou dissimulado de boa parte dos brasileiros. Ri daqueles que insistem em ignorar os séculos de miscigenação em nosso país. Em seu depoimento, Chico fala de sua revolta ao descobrir que sua filha, casada com o músico Carlinhos Brown, foi forçada a se mudar em razão das agressões que seu filho, neto de Chico, sofria dos moradores. Às vezes, quando ouço pessoas falando de sua genealogia — que sempre evitam suas linhagens não brancas, respondo que tenho pedigree. É que só se encontra portugueses em meu passado. Só que minha árvore genealógica é muito incompleta, muito curta, é dessas que logo se perdem, mesmo que eu tenha cidadania portuguesa adquirida em razão de ter avós portugueses por parte de pai. Aliás, os portugueses nunca se miscigenaram… Daqueles 128 citados por Chico — 4 avós, 8 bisavós, 16…, etc. — deve haver um monte de não brancos. Imagina se não há negros e índios dentre eles? Minha mãe era chamada de índia por seus pais… E os 128 estiveram por aí não faz muito tempo.
A Folha de São Paulo realizou uma enquete com 70 jovens músicos, escritores, diretores de cinema e de teatro, atores de TV e artistas plásticos, todos com até 40 anos de idade. A amostragem não é a melhor possível, mas o resultado foi o esperado: Caetano Veloso — que completa 70 anos hoje — e Chico Buarque foram eleitos como os artistas vivos mais importantes da MPB. É curioso: esta dupla, que já dividiu discos, palcos e até programa de TV, não é nada homogênea. Se Chico é uma unanimidade, Caetano está longe disso; se Chico é musicalmente mais conservador, Caetano se reinventa a cada trabalho; se Chico é a continuidade da tradição do samba e da bossa nova, Caetano é o artista que adora novidades, que visita o rock e a música latino-americana; se Chico traça uma trajetória coerente e em linha reta em suas intervenções políticas, Caetano é tortuoso, sendo o costumeiro autor de infelizes intervenções na vida brasileira. Sim, o que deveria importar é o artista e sua produção, mas é impossível não lembrar das entrevistas de Caetano, nas quais Lula já foi um “analfabeto que não sabe falar e é cafona, grosseiro”. Também não podemos esquecer que Caetano e Gil fizeram uma Tropicália II que simplesmente excluiu todos os outros membros do movimento inicial. Gil tratou de ficar quieto, talvez envergonhado, porém o boquirroto Caê tentou justificar o fato, criando uma explosiva inimizade com Tom Zé, o qual costuma ofendê-lo com termos bastante chulos, além de desprezar publicamente os repetidos elogios de Caetano.
Caetano Veloso nasceu em 7 de agosto de 1942 em Santo Amaro, na Bahia. Foi o quinto dos oito filhos de José Teles Velloso, funcionário público dos Correios, e Claudionor Viana Teles Velloso, Dona Canô. Aos 17 anos, Caetano recebeu uma compreensível iluminação que o deixou fascinado pela arte musical: ouviu, num programa da Rádio Mayrink Veiga, a canção Chega de Saudade e tomou conhecimento do disco homônimo de 1959 de João Gilberto.
Desta forma, iniciou a carreira interpretando canções de bossa nova, sob a imensa sombra de João Gilberto. Depois, inseriu-se no estilo musical que ficou conhecido como MPB (Música Popular Brasileira). Porém, Caetano — uma figura magérrima que logo deixou crescer os caracóis de seus cabelos — foi o membro da MPB que mais esteve associado ao movimento hippie do final dos anos 60. Seu primeiro LP foi Domingo (1967), em parceria com Gal Costa. A sonoridade era totalmente bossa nova. O disco não vendeu muito, mas foi aclamado por artistas importantes, como Elis Regina, Wanda Sá e Dori Caymmi.
No segundo LP já tínhamos o Caetano que conhecemos. Caetano Veloso foi lançado em janeiro de 1968 e trouxe canções como Alegria alegria, No dia em que vim-me embora, Tropicália, Soy loco por ti América e Superbacana. Alegria alegria fez escândalo no terceiro Festival de Música Popular Brasileira (TV Record, outubro de 1967), juntamente com Gilberto Gil, que interpretou Domingo no Parque, classificadas respectivamente em quarto e segundo lugar. Era o início do Tropicalismo, movimento considerado “alienado” pela esquerda da época por incluir guitarras elétricas.
Em julho do mesmo ano, veio o fundamental álbum Tropicália ou Panis et Circensis. Trata-se de uma obra coletiva que apresentava Os Mutantes, Torquato Neto, Rogério Duprat, Capinam, Nara Leão, Tom Zé, Gil e Gal. Ouvindo o disco hoje, fica claro que, apesar das canções serem basicamente de autoria de Gil e Caetano, a revolução localiza-se na presença de Rogério Duprat nos arranjos, assim como na habitual e abençoada loucura de Tom Zé.
A postura de Caetano e seu modo hippie tropical de vestir deixava nervosa a ditadura militar. Havia desconfiança sobre aqueles baianos meio estranhos, ainda mais que seu amigo Gilberto Gil tinha canções bastante contestadoras. Por esse motivo, várias canções da dupla foram censuradas. Em dezembro de 1968, Veloso e Gil foram presos, sob a acusação de terem desrespeitado o hino nacional e a bandeira brasileira. Foram levados para o quartel do Exército de Marechal Deodoro, no Rio, onde tiveram suas cabeças raspadas, suprema humilhação, mas dentro da ideologia militar de “cabelos longos, ideias curtas”…
Foram soltos em fevereiro de 1969, numa quarta-feira de cinzas, e seguiram para Salvador, onde tiveram de se manter em regime de confinamento, sem aparecer nem dar declarações em público. Em julho de 1969, após dois shows de despedida no Teatro Castro Alves, Caetano e Gil partiram para o exílio na Inglaterra. Antes de partir, Caetano gravou as bases de voz e violão do próximo disco, Caetano Veloso, que foram mandadas para São Paulo, onde o maestro Rogério Duprat faria e gravaria os arranjos. No repertório, destaque para as canções Atrás do trio elétrico, Irene, Não identificado, Charles anjo 45 e Marinheiro só. Caetano apenas retornou definitivamente ao Brasil em janeiro de 1972.
Durante a ditadura militar, as intervenções de Caetano Veloso foram mais no sentido da defesa da contracultura, mais próximas dos acontecimentos do Maio de 1968, do que propriamente contra o regime militar. Mas bastava para incomodar muito. Os tropicalistas se preocupavam em ser de esquerda, não eram marxistas-leninistas, stalinistas, trotskistas ou maoístas. Porém, os militares achavam aquilo muito perigoso e não aprovavam sua irreverência. Na época da prisão dos dois cantores, em dezembro de 1968, os militares nada tinham de concreto contra eles, apenas a acusação de que tinham desrespeitado o Hino Nacional, cantando-o aos moldes do tropicalismo na boate Sucata. Juntou-se a isto a provocação de Caetano Veloso na antevéspera do natal de 1968, ao cantar “Noite Feliz” num programa de televisão apontando uma arma para a própria cabeça.
A Globo, com Chico Anísio, tratava de ridicularizar e tornar palatável a turma baiana com o quadro humorístico Baiano e os Novos Caetanos, onde todos eram muito “desbundados”, adotando uma postura ultra–light e levemente drogada em relação à vida.
Mas os militares tratavam de se envolver. Em 1973, Caetano Veloso teve a sua canção Deus e o Diabo vetada pela censura. Era ofensiva às tradições religiosas. Em 1975, o álbum Joia trazia na sua capa Caetano Veloso, sua Dedé e o filho Moreno completamente nus, com algumas pombas cobrindo-lhes a genitália. Censurado, o álbum foi relançado com uma nova capa, onde ficaram apenas as pombas. Tudo isso tornou Caetano um adversário da ditadura militar, papel que ele cumpriu rigorosamente, fazendo oposição a seu modo, atacando a “moralidade” que os militares queriam preservar.
Antes de Joia, tivemos o extraordinário Transa (1972), que continha Mora na filosofia (de autoria da dupla Monsueto e Arnaldo Passos) e Triste Bahia, o qual iniciou uma trilogia marcada pelo experimentalismo. O segundo trabalho nesse caminho foi o polêmico Araçá Azul (1973), um disco até hoje difícil de ouvir, verdadeiro recorde de devoluções. Ele foi retirado de catálogo e relançado apenas em 1987. O último disco da trilogia experimental foi o citado Joia (1975), lançado juntamente com Qualquer coisa, cuja capa era semelhante a do álbum Let it be, dos Beatles. O experimentalismo, a disposição para abraçar o novo, são qualidades que não podem ser retiradas de Caetano.
Caetano Veloso não tem realizado trabalhos com a qualidade que tinha no passado. Analisando seus discos, não selecionamos nenhum deste século. O último trabalho de nível superior de Caetano certamente foi Livro (1997) e, indo em direção ao passado, Circuladô (1991), Estrangeiro (1989), Uns (1983), Cinema Transcendental (1979), Muito (1978) e Bicho (1977), além dos citados anteriormente. Também digno de nota é Totalmente Demais (1986), trabalho ao vivo onde Caetano aparece com seu violão cantando canções de outros autores. É neste disco que ele aparece pela primeira vez como grande intérprete, fato que o tempo apenas acentuou.
Romário cunhou a célebre frase “Pelé calado é um poeta“. Talvez seja um exagero aplicá-la de forma geral a Caetano Veloso, mas o compositor, cantor e escritor baiano tem efetivamente o costume de criar frases polêmicas que não apenas pisam o limite do mau gosto como muitas vezes o ultrapassam. O talentoso Caetano, um autêntico poeta quando escreve suas músicas e letras, costuma dar vazão a humor ou publicidade bastante duvidosas em suas entrevistas.
Um capítulo à parte é o livro Verdade Tropical (1997), onde relata de uma forma muito pessoal a história e lembranças do Tropicalismo, de sua infância, da prisão e do exílio. O livro é excelente, cheio de informações, mas gerou uma grande polêmica com o ensaísta Roberto Schwarz, que o criticou asperamente em Martinha Versus Lucrécia — Ensaios e Entrevistas (2012). Segundo Schwarz, “Verdade Tropical deve muito de seu interesse literário a certa desfaçatez camaleônica em que Caetano, o seu narrador, é mestre”. O autor aponta em Caetano uma “autoindulgência desmedida, um confusionismo calculado e momentos de complacência com a ditadura, o qual está plasmado quando Caetano atenua os aspectos negativos ou críticos, dando realce ao encanto dos absurdos sociais brasileiros, tão nossos”.
Caetano e seus admiradores mostraram-se muito contrariados com as críticas de Schwarz ao livro. Claro que Caetano respondeu a seu modo, atacando o esquerdismo de Schwarz em inacreditável livre-associação: ““Sempre me pergunto por que Roberto Schwarz ou Marilena Chauí nunca têm nada a dizer sobre o que se passa na Coreia do Norte. Por que Lula e Tarso Genro mandaram de volta, num avião venezuelano, os atletas cubanos que tinham pedido asilo político ao Brasil? Isso é admissível? Ninguém na esquerda reclama de nada disso”. Não se sabe o que tais afirmações têm a ver com o livro.
Porém, não obstante toda a polêmica que envolve o nome de Caetano, seu nome está presente no cerne do que foi a música brasileira dos anos 60 para cá. Tem o mérito indiscutível de ser um autor inquieto e corajoso, que dialoga com a vanguarda e com o brega. O autor de canções como Língua (do disco Velô), Sampa, Alegria alegria, Haiti, Terra, Muito Romântico, O Ciúme, Você é linda, etc. está acima até de sua admiração por Antônio Carlos Magalhães. Ah, se Caetano falasse menos…
A única exigência que faço a meu leitor é que dedique a vida inteira à leitura de minhas obras.
(The only demand I make of my reader is that he should devote his whole life to reading my works).
JAMES JOYCE
Esta é uma piada de Joyce, mas tem gente que se assusta muito com ela e mais ainda com aquilo que é dito sobre Ulysses. Se quiséssemos estabelecer uma categoria de livros mais elogiados, citados, incensados e menos lidos, Ulysses, de James Joyce, talvez encabeçasse a lista. Este é um fenômeno que surpreende, pois contrariamente a, por exemplo, O homem sem qualidades, de Musil, Ulysses é um livro escandalosamente colorido, engraçado e divertido. E sexual. Uma leitura desatenta torna certamente o livro uma chatice, uma leitura interessada já basta para torná-lo um grande romance, mesmo que não se queira entrar nos enigmas e quebra-cabeças que manterão os professores ocupados durante séculos, conforme disse o autor. A leitura 100% compreensiva talvez seja inalcançável ao leitor comum, porém, como sublinhou Karen Blixen (Isak Dinesen), não há nenhum problema em não entender inteiramente um escrito poético. Obviamente, Ulysses se beneficia com outras leituras, com a crítica, com consultas e com uma vasta cultura, porém, como assegura o tradutor da última versão brasileira, Caetano Galindo, Ulysses pode ganhar mais se for apresentado sozinho, sem notas explicativas. É importante lembrar que Ulysses é, em primeiro lugar, um romance, um dos maiores de todos, não um quebra-cabeça. Isto não anula de modo algum todo o aparato que costuma cercá-lo, apenas diz que tal parafernália pode estar em outro lugar que não atrapalhando a leitura.
O habitual é que as pessoas se aproximem de Ulysses com cuidado. Livro difícil, cheio de armadilhas. Tudo se passa num só dia, em 16 de junho de 1904. São 18 capítulos, cada um com aproximadamente uma hora de ação; cada um escrito num estilo diferente; cada um deles sendo uma paródia de um episódio da Odisseia de Homero; em cada um, um sistema detalhado de referências a uma ciência ou ramo do conhecimento; em cada um, uma parte do corpo humano é alçada a símbolo; em cada um, uma infinidade de enigmas, jogos de palavras, paródias, trocadilhos, neologismos, arcaísmos, estrangeirismos e todas as operações com a linguagem que você puder imaginar e mais algumas, como escreveu o ensaísta Idelber Avelar.
Porém, a história não pode ser mais simples e Joyce ufanava-se do fato de seu romance ter quase nada de trama. Naquele dia, hoje conhecido como Bloomsday, Stephen Dedalus, professor de escola secundária, conversa com seu amigo Buck Mulligan, dá uma aula e passeia pelas margens do Liffey; Leopold Bloom, vendedor, efetivamente muito pouco atormentado pelas repetidas traições de Molly, sua mulher, toma café da manhã, vai a um funeral, visita um editor de jornal, lancha num bar, olha um anúncio de jornal na biblioteca (enquanto Dedalus discute Shakespeare com amigos), responde a uma carta recebida, leva porrada de um anti-semita, masturba-se observando Gerty MacDowell tendo por background um ofício religioso, encontra-se com Dedalus num hospital, leva-o a um bordel e convence-o a acompanhá-lo até a sua casa; ambos urinam no jardim; Bloom entra e se deita ao lado de Molly, que fecha o romance com um monólogo cheio de pornografia. Fim.
Não lembro quem utilizou esta imagem, mas ela é bastante eficaz para demonstrar as diferenças de Joyce em relação a um autor muito mais lido, Franz Kafka. Imaginem a literatura moderna dentro de um modelo matemático de abscissas e ordenadas, um modelo plano, simples e, principalmente, redutor. Considerem que a gente deva colocar os autores espacialmente e que a abscissa seria o grau de complexidade narrativa e a ordenada seria a complexidade dos temas. Pois bem, então comparemos Joyce com outro autor canônico, Franz Kafka. Enquanto Joyce cria histórias rotineiras dentro de narrativas complexas, Kafka seria sua antítese, com narrativa mais convencional, porém, com temas e histórias insólitas e — para repetir o termo e dar exatidão matemática (?) à analogia — , complexas. Em nosso modelo, eles estariam bem longe um outro. É claro que estamos desconsiderando uma importante terceira dimensão, o arsenal de referências joyceano e uma quarta, o grau de representação social. Sem esta última, certamente não comemoraríamos o Bloomsday.
No Brasil, Ulysses foi traduzido três vezes. A primeira tradução foi a que o filólogo Antônio Houaiss fez em 1966 para a Civilização Brasileira. Foi com ela que conheci o extraordinário romance. Até hoje, foram 21 edições e este Ulysses ainda está no catálogo da editora ao preço de R$ 80. Li o livro aos 22 anos, quando muita gente dizia que era um livro para ser lido apenas aos 40, com maior vivência, maturidade, etc. Para mim, naquela idade, seria absolutamente incompreensível. Não foi, mas o mérito não foi meu. Ulysses não um livro fácil, mas sua inacessibilidade é um mito. Foi com a tal maior vivência que li a segunda tradução, da filósofa, professora emérita e tradutora Bernardina da Silveira Pinheiro. É uma tradução mais coloquial e menos pudica que o intrincado e envergonhado trabalho de Houaiss. A edição é da Objetiva e custa dez centavos a menos que a da Civilização Brasileira. Em 2012, tivemos a terceira tradução, do professor e doutor em linguística Caetano Galindo para a Penguin / Companhia das Letras. O preço é simpático, apenas R$ 47. Esta última tradução é superior às duas anteriores. Coloca-se entre a Ítaca do coloquialismo de Bernardina e a possível Troia de Houaiss. De bônus, traz um excelente ensaio do crítico irlandês Declan Kiberd, uma das maiores autoridades em Joyce, um sujeito que escreveu um best seller de crítica literária chamado Ulysses and Us.
Abaixo, a primeira tradução francesa do romance com autógrafo do autor. Aliás, esta tradução foi revisada por Joyce. O livro me foi emprestado por seu dono, o poeta e romancista Fernando Monteiro.
.oOo.
Odisseu, rei de Ítaca, casado com Penélope, depois de ter se distinguido durante dez anos na guerra contra Troia, está voltando para casa, passando por uma série de aventuras e provações, ficando muitas vezes à mercê de feiticeiros, monstros e deuses vingativos. Penélope o aguarda fielmente, embora assediada por pretendentes (sempre tão gentis, diria Chico Buarque) que aguardam no banco de reservas, ansiosos por entrarem em campo no lugar do marido desaparecido. Seu filho, Telêmaco, aconselhado pela deusa Palas Atena, sai em busca do pai. Em resumo, temos as aventuras do herói Odisseu em sua volta à pátria, a fidelidade da mulher ao marido ausente e um filho à procura do pai.
Pois então abrimos Ulysses e vemos a paródia da Odisseia de Homero. A Penélope de Joyce, Molly, cujo nome de nascimento é Marion Tweedy), não é nada fiel. Stephen Dedalus (Telêmaco), embora insatisfeito com o pai que tem, não está atrás de outro. (Na verdade, Bloom pranteia um filho morto, Rudy, e deseja que Stephen vá morar com ele e Molly). Bloom é um Ulisses nada heróico, um judeu irlandês de vida comum, que sabe de Molly e Blazes Boylan, mas não pretende lavar a honra com sangue. O livro, aliás, não possui situações extremas e apenas se atém a um imenso leque de experiências cotidianas. Sim, mas e o sexo?
Joyce refere-se a ele já no primeiro enigma do romance: a escolha da data. Por que 16 de junho de 1904? Ora, porque foi nesse dia que Nora Barnacle fez de Joyce um “homem de verdade”. Alguns críticos consideram que o livro seria uma espécie de declaração de amor que o escritor fazia a sua esposa e amante. No dia 16 de Junho de 1904, o casal saiu para um passeio pela primeira vez. Joyce não levou Nora para os cafés, teatros, nem para o centro de Dublin, mas pelas ruas que vão dar no cais. Foram até a área de Ringsend que, naquela noite, estava deserta. Nora não perdeu tempo. Desabotoou as calças de Joyce e masturbou-o com mestria, “com olhos de santa”. Era a primeira vez que Joyce tinha sexo de graça e o fato revestiu-se de grande importância.
Ulysses foi publicado no dia de aniversário de 40 anos de Joyce, em 2 de fevereiro de 1922. Antes, em 1919, alguns capítulos tinham sido publicados na revista The Egoist (Londres). Resultado: impressores e assinantes ameaçaram demitir-se em função da pornografia envolvida… Em 1921, outros capítulos foram publicados em The Little Review (Nova Iorque). Resultado: a edição foi retirada de circulação e suas editoras multadas. Acusação: grossa pornografia.
Um trecho de Ulysses (Cap. 17, Ítaca):
Se ele tivesse sorrido por que teria sorrido?
Para refletir que cada um que entra (na cama) imagina ser o primeiro a entrar enquanto que é sempre o último termo de uma série precedente mesmo que seja o primeiro de uma outra subsequente, cada um imaginando ser primeiro, último, único e só enquanto que não é nem primeiro nem último nem único nem só em uma série que se origina e se repete ao infinito.
Trad. Caetano Galindo
Este trecho jamais poderia ser admitido a escritor preso aos códigos machistas da sociedade do início do século passado. Seria improvável para um homem comum do começo do século XX chegar à conclusão que Bloom chegou a respeito do adultério de Molly, da qual ele nem cogita separar-se: Assassinato, jamais, pois que dois males não perfaziam um bem. E chegamos gloriosamente ao pensador que Joyce era e, principalmente, a um leitor de Freud.
Epígrafe para o próximo texto:
Não faço ideia se o meu marido é um gênio ou não; o que sei, com certeza, é que ele tem uma mente bem suja.
Publicado originalmente no Sul21 em 1º de maio de 2012
A capa de Clube da Esquina, fundamental álbum duplo de Milton Nascimento e Lô Borges, que completou 40 anos no mês de abril deste ano, era enganadora. Nada poderia ser mais despojada do que a fotografia dos dois meninos ao lado. Durante muito tempo pensou-se que era uma foto da infância de Bituca e Lô — de Milton Nascimento e seu parceiro Lô Borges. Não. É uma foto de Tonho e Cacau, clicados pelo fotógrafo Cafi (Carlos da Silva Assunção Filho) a caminho da fazenda da família de um dos letristas do disco, Ronaldo Bastos. Eles nunca mais foram reencontrados pelos autores do disco e pelo fotógrafo. Apenas no mês passado, o jornal o Estado de Minas colocou-se em campo atrás da dupla. Após mais de 50 consultas no entorno da cidade fluminense de Nova Friburgo, sempre com o disco de vinil na mão, os repórteres Ana Clara Brant e Carlos Marcelo chegaram à dupla, que ainda reside nas redondezas.
Ouvindo-se o disco hoje, ele impressiona por vários motivos e gera alguma incompreensão, a começar pelo mais datado dos questionamentos: por que a maioria dos críticos da época o destroçaram? Pensando retrospectivamente na música que havia na época, só podemos colocar Clube da Esquina ao lado dos trabalhos de Caetano, Gil e dos Mutantes. E mais: num contexto onde ainda eram comuns gravações sem o menor apuro técnico, o disco de Milton e Lô estava atualizado não apenas com a qualidade dos trabalhos dos Beatles e do rock progressivo do exterior, mas com a irreverência dos Mutantes, ao menos no âmbito dos arranjos. E ainda mais: ele significava um passo adiante ao saltar sobre os ombros da bossa nova e da MPB para ver mais adiante. Tão adiante que, ao ouvirmos o disco hoje, não achamos que esteja entrando na quinta década.
Ele vem de uma época bem diferente da atual. Os discos de vinil eram caros e a maioria das pessoas comprava um ou dois discos por mês. Como disse o jornalista e escritor Luiz Biajoni, naquela época, antes do surgimento dos CDs e da digitalização da música, nós “economizávamos uma grana suada para comprar um bolachão de vinte e poucos minutos de cada lado a fim de escutá-lo um mês inteiro, pois a grana para o próximo disco só pingaria no mês seguinte”. Segundo Biajoni, esta atenção ao artefato cultural tornava mais significativos os trabalhos dos músicos, principalmente se comparada com a verdadeira “Síndrome de Babel” que hoje nos deixa armazenar milhares de discos num computador para ouvi-los sem maior carinho. Como Clube da Esquina era um álbum duplo, ele requeria um investimento dobrado — um investimento de dois meses, se pensarmos em como comprávamos discos na época — e era um considerável objeto de cobiça. Tal fato reforçava em muito o caráter mítico do disco. Poucos eleitos o possuíam em casa (a não ser que fossem filhos — caso deste comentarista — de um pai melômano e de ouvidos abertos). Então, ele circulava muito em fitas cassete, depois do proprietário dizer com ar casual: “Eu tenho o disco em casa. Se vocês quiserem, posso gravar”.
A surpresa deste disco de Milton Nascimento era a presença de Lô Borges como co-autor. Afinal, Milton já tinha quatro discos gravados e uma firme reputação como cantor e compositor. Era o autor de Travessia, de Morro Velho e de alguns outros sucessos. Repentinamente, ele fez à gravadora Odeon dois pedidos quase escandalosos: o de gravar um álbum duplo e o de dar a parceria do álbum ao desconhecido Lô Borges. “Eu era um menino, aquilo era uma novidade completa em minha vida porque eu não tinha nem carreira musical. Era um iniciante, não sabia nem se queria ser um músico profissional. Minha única credencial era a de ser co-autor de Para Lennon e McCartney”, comenta Lô.
Porém, Milton Nascimento estava determinado a gravar Clube da Esquina de qualquer maneira e de não alterar o projeto, segundo Lô Borges: “Quando o Milton fez o convite-convocação, a gravadora ainda nem tinha topado a gravação do disco. Ele tinha um contrato com a Odeon e foi logo dizendo que, se não topassem fazer a coisa, procuraria outro grupo para oferecer o projeto”. Havia também a questão familiar. Lô tinha 18 anos e precisaria ir ao Rio de Janeiro gravar o disco. “Estávamos debaixo de uma ditadura barra pesada. Minha mãe não queria que eu fosse, eu viajei meio rompido com a família. Só depois eles perceberam que era algo significativo na minha vida. Era aquele terror da ditadura, né? Três ou quatro pessoas morando juntas em uma casa já eram consideradas subversivas”, diz.
E foram morar na praia de Piratininga, em Niterói. “Milton ficava num quarto compondo, eu ficava noutro e o Beto Guedes circulando de quarto em quarto para ver o que o Bituca estava produzindo e o que eu estava fazendo”, recorda-se. “Eu era meio hippie, o Milton era mais politizado”.
O resultado foi um disco de referência para músicos e surpreendente para os ouvintes até hoje. Tantas daquelas canções foram regravadas por outros artistas que o Clube da Esquina mais parece uma antologia e não a produção de um artista em um período limitado de sua vida; isto é, não parece um disco rotineiro. Das 21 canções do álbum duplo, várias foram regravadas e estão na memória dos que ouvem MPB. Por exemplo, no mínimo Tudo que você podia ser, Cais, O trem azul, Cravo e Canela, San Vicente, Um girassol da cor do seu cabelo, Paisagem da Janela, Me deixa em paz, Nada será como antes, Saídas e bandeiras e Clube da Esquina Nº 2, são onze canções frequentes em rádios de bom nível e em bares idem. Boa parte delas fazem parte da memória comum de música brasileira presente em nossos cérebros.
Mas o que diferencia este disco de seus antecessores? Por que , além das razões que elencamos, ele é tão cultuado? Que novidades traz?
Em primeiríssimo lugar, traz a qualidade de Milton Nascimento como compositor. E não foi um caso único em sua carreira. Naqueles anos 70, Milton produziu maravilhas, uma atrás da outra. Era um artista sofisticado. Tanto que depois criou o altamente experimental Milagre dos Peixes, fruto de uma mente inquieta e dos problemas que tinha com a Odeon, e depois os impecáveis Minas, Geraes, Clube da Esquina Nº 2 (outro álbum duplo), Sentinela, Caçador de mim, ou seja, se o Clube não foi o caso único da produção de grande música na carreira de Milton, foi o primeiro.
Em segundo lugar, a diversidade. As fontes que Milton Nascimento — digamos claramente que Clube da Esquina é muito mais Milton que Lô — bebia. O caldeirão é grande, grosso e complexo. Na época, todos ouviam Beatles sem parar e Milton (e também Lô), faziam confessadamente o mesmo. Mas Milton aprofundou a influência do jazz que a Bossa Nova já apresentava e colocou uma batida latino-americana, chegando depois a cantar músicas com Mercedes Sosa, além de interpretar Violeta Parra, Victor Jara e os cubanos Pablo Milanes e Silvio Rodríguez. E não é só: há a presença do folclore a da religiosidade mineira.
Em terceiro lugar, a qualidade dos músicos, a presença de solos instrumentais — tão raros naquela época — e o uso de orquestra (como em Um Girassol da Cor do Seu Cabelo) quando estavam começando a aparecer os malfadados, apesar de econômicos, teclados.
Para completar, a repercussão do trabalho foi amplificada por ninguém menos do que Elis Regina, que tinha em Milton seu compositor preferido, no que era correspondida como cantora. Apesar de Milton ser um imenso intérprete, a partir do Clube da Esquina, passou a lançar suas canções com outros artistas como Gal Costa, Maria Bethânia, Caetano Veloso, Chico Buarque, Simone, Clementina de Jesus, Gilberto Gil, Beto Guedes, Herbie Hancock, Paul Simon, Peter Gabriel, etc. Então, muitos de seus trabalhos posteriores eram coletâneas de canções já divulgadas, o que diminuiu a importância destes discos, pois as canções se tornavam conhecidas por outras vias.
Finalizando esta lista de razões e elogios ao disco, há o fato de Clube da Esquina ser um nome de disco, mas também de um movimento. Espécie de Tropicália mineira, o Clube da Esquina era formado por Milton, os irmãos Borges (Lô, Márcio e Marilton), Ronaldo Bastos, Fernando Brant, Tavinho Moura, Wagner Tiso, Beto Guedes, Flávio Venturini, Toninho Horta, e os integrantes do 14 Bis.
Aliás, 1972 teve uma safra de discos talvez (um pouco) menores, mas também extraordinários. É o ano de Acabou Chorare, dos Novos Baianos; de Expresso 2222, de Gil; de mais um tremendo disco de Elis Regina, chamado, para variar, Elis; de Transa, de Caetano Veloso… Um grande ano para a música brasileira, mesmo sob a ditadura.
O CD é difícil de encontrar? Nem tanto, principalmente fora do país (clique no link e observe a avaliação dos visitantes da Amazon). Os Clubes da Esquina 1 e 2 estão à venda em sites estrangeiros, como a citada Amazon.com, por exemplo, pois recentemente o estúdio Abbey Road, de Londres, remasterizou tudo.
Abaixo, a relação de canções do álbum:
Lado Um
1 “Tudo Que Você Podia Ser” (Lô Borges, Márcio Borges) – 2:56
Interpretação: Milton Nascimento
2 “Cais” (Milton Nascimento, Ronaldo Bastos) – 2:45
Interpretação: Milton Nascimento
3 “O Trem Azul” (Lô Borges, Ronaldo Bastos) – 4:05
Interpretação: Lô Borges
4 “Saídas e Bandeiras nº 1” (Milton Nascimento, Fernando Brant) – 0:45
Interpretação: Beto Guedes e Milton Nascimento
5 “Nuvem Cigana” (Lô Borges, Ronaldo Bastos) – 3:00
Interpretação: Milton Nascimento
6 “Cravo e Canela” (Milton Nascimento, Ronaldo Bastos) – 2:32
Interpretação: Lô Borges e Milton Nascimento
É, tive que fazer um investimento num espetáculo caro. Agora à tarde, saí correndo para o Teatro São Pedro a fim de comprar ingressos. Quase não consegui. Só cadeiras extras disponíveis a 80 pilas cada. Foda-se. Se isto significa sentar numa das laterais da plateia, também pode significar sentar no fosso. Queremos o fosso, claro. A banda será formada por Edu, Cristóvão Bastos, Carlos Malta, Jorge Helder e Jurim Moreira.
Como disse o Jornal do Comércio, do Recife, o preço do ingresso pode até ser considerado “popular” diante do valor cobrado pelo seu parceiro de grandes obras Chico Buarque, o qual valeria R$ 350. Por falar na dupla Chico-Edu, estão no repertório Beatriz, Choro bandido e A ciranda da bailarina.
Como Edu Lobo tem o frevo no sangue, espero que saiam também Angu de caroço e Frevo diabo. Minha irmã, que tinha Edu como símbolo sexual numa época em que todas as moças suspiravam pelo olhos e o restante de Chico Buarque, não vai poder ir. Lastimável. Mas fico feliz que Porto Alegre reconheça e lote o teatro para ver um dos grandes gênios da MPB.
Charles Kiefer diz que gostaria de ser um homem calmo como foi seu avô. Porém, após conhecê-lo, fica difícil imaginar alguém mais mais tranquilo que o escritor. Kiefer recebeu o Sul21 em seu gabinete na PUCRS e a impressão que tivemos é a de que poderíamos ter conversado muito mais do que a uma hora e quarenta minutos que está resumida a seguir.
Nascido em Três de Maio, no noroeste do Rio Grande do Sul, Kiefer tem 30 livros publicados, foi oito vezes finalista do Prêmio Jabuti – ganhou três -, dá aulas na universidade, comanda oficinas literárias, fundou uma associação de incentivo à leitura e guarda na gaveta mais de um livro quase pronto para publicação. Toda essa atividade parece natural ao sorridente professor.
Suas notas biográficas apontam que nasceu em 1958 e que estreou na ficção em 1982, com Caminhando na chuva, novela que já está na 20ª edição e vendeu 100 mil exemplares. Sairá uma nova edição em 2012, comemorativa aos 30 anos de lançamento do livro, pela editora Leya. Porém, logo abaixo saberemos que Caminhando é seu quarto livro e que os anteriores são comprados e queimados pelo próprio autor.
Sul21 – Há algumas décadas atrás, o escritor era considerado o reflexo ou uma espécie de reserva moral da sociedade, uma figura importante, ouvida sobre vários assuntos de sua época. Hoje ele foi deslocado deste papel. Qual é, atualmente, o papel do escritor na sociedade?
Charles Kiefer – Boa pergunta, hoje dei uma aula sobre isso. Discutimos sobre o realismo e a função social do escritor. Mas eu começaria a responder falando sobre um livro que eu adoro, chamado Era uma Vez a Literatura, de José Hildebrando Dacanal, no qual ele diz que numa sociedade iletrada, onde a base social são analfabetos ou semiletrados, o escritor vira gigante, pois ele domina um código oculto. Então, numa sociedade de baixo nível cultural, a literatura toma um papel fundamental, assim como nas sociedades recém-formadas. Quando tu não tens um conceito de nação, a literatura é quem faz o papel de construtora da identidade nacional. No Conesul, se não existisse o romance de Ricardo Güiraldes, Don Segundo Sombra, essa imagem do gaúcho que temos hoje não existiria. A literatura está por trás disso. Ela é quem trouxe a imagem que chamamos, na teoria, de mitopoética, que acaba reproduzida pela população.
Podem falar o que quiserem do Lula, mas ele fez a maior distribuição de renda da história do país. E tudo sem guerra, numa revolução social feita em silêncio.
Sul21 – Isso numa sociedade rebaixada.
Charles Kiefer – Sim, daí vem um negócio chamado democracia… Podem falar o que quiserem do Lula, mas ele fez a maior distribuição de renda da história do país. E tudo sem guerra, numa revolução social feita em silêncio. Por exemplo, aqui na PUCRS, 40% dos meus alunos vêm do Prouni, são bolsistas e alunos maravilhosos, pois sabem que aquela é a única chance deles, e a agarram com tudo. Enfim, o que está acontecendo é que nós estamos entrando para o que antigamente a gente chamava de concerto das nações. Antes a gente tocava um bumbo lá no fundo e de forma desafinada, agora somos primeiro violino, dando tom para o resto da orquestra. A literatura ainda tem um espaço num contexto destes? Não. E sim, ao mesmo tempo. Ela não tem mais esse espaço formador da sociedade, mas ela é um relicário, é a coisa mais bonita que a língua pode reproduzir, e é esse papel que ela tem nas sociedades desenvolvidas. Ela conserva e reproduz beleza artística, assim como o cinema, o teatro, a música, a pintura. Aquela coisa do “doutô” da literatura, que é letrado e superior, acabou, não há mais distinção. Agora nós temos um papel de ator coadjuvante. E a outra coisa que aconteceu foi a internet. O conhecimento, que antes era um feudo, está distribuído, o poder está distribuído. Com a internet cada vez mais barata, tu escreves o teu texto, tu fazes o teu jornal. Essa disseminação da informação, essa democratização, tem consequências ainda desconhecidas, muito interessantes, como as que houve nos países do norte da África e na Espanha.
Sul21 – Vários ensaístas reclamam que nas últimas décadas houve uma decadência geral na qualidade artística, tu concordas?
Charles Kiefer – Isso é uma baita bobagem. Nós não enxergamos as coisas maravilhosas que estão feitas pois quem as está realizando são nossos vizinhos, nosso amigos, colegas, contemporâneos. Quando a gente tiver distanciamento crítico a gente vai ver a qualidade de muitas coisas. Talvez estejamos vivendo uma nova Renascença. Leio textos fantásticos até em sala de aula.
Sul21 – E os grandes temas estão mantidos?
Charles Kiefer – Amor, dinheiro, poder, guerra e paz?
Sul21 – Eu diria morte, também, e deus.
Charles Kiefer – Sim, sim, mas eu gosto de colocar as coisas em duplas dialéticas, amor e ódio, vida e morte, guerra e paz, fé e ciência. Acho que os grandes temas estão presentes desde o início do tempos, senão não interessa. Apenas mudou a abordagem.
Sul21 – E é curioso como a literatura dialoga com o restante das artes. Se tu melhoras o nível da leitura, melhoras todo o resto em termos culturais, a música, o cinema, o debate político, a visão de mundo…
Charles Kiefer –– … até o cabelo, a roupa, a arte muda totalmente uma pessoa.
Se, como diz o Harold Bloom, Shakespeare inventou o humano, Poe inventou o homem moderno.
Sul21 — Voltando à questão dos grandes temas, a literatura busca novos temas, ou ela usa mesmos do passado?
Charles Kiefer – Eu escrevi um livro todo sobre isso, A Poética do Conto: de Poe a Borges – um passeio pelo gênero. O último cara na civilização ocidental que acrescentou coisas novas ao imaginário popular foi Edgar Allan Poe. Isso em 1840, 1849… naquela década. Olha só o que o Poe inventou literariamente: ele inventou o romance policial, o alienígena, as viagens espaciais, inventou também o romance psicológico, dedutivo. A única coisa que ele não inventou é toda essa comunicação de internet. Ele quase chegou a criar isso, num conto dele, de um jogador de xadrez automático.
Sul21 – O Autômato Jogador de Xadrez.
Charles Kiefer – Exato! Ali já é um computador. Ele poderia ter ido adiante e inventando algum sistema eletrônico que resolvia o negócio. Se, como diz o Harold Bloom, Shakespeare inventou o humano, Poe inventou o homem moderno. Entretanto ele não é um grande escritor, as histórias dele são mecânicas, os personagens são maníacos, muito neuróticos, o amor é pouco natural, não há nele seres humanos verdadeiros, há obsessões, ele abriu o caminho para Stephen King, Lovecraft.
Sul21 – Como funciona o projeto Associação Jovem Leitor?
Charles Kiefer – Nós temos muitos escritores, está faltando é leitores. A AJL é uma entidade civil, pública. Eu e os meus alunos fazemos projetos de leitura, criamos bibliotecas e doamos livros para crianças e jovens das comunidades menos aquinhoadas. Temos vários tipos de projetos para atender várias necessidades. Aproveitei o momento em que era patrono da Feira do Livro para dar maior visibilidade ao projeto.
Sul21 – Como foi montado?
Charles Kiefer – Eu fui para os Estados Unidos há anos atrás e vi as tais Gideon Bibles, umas bibliazinhas pequenas onde estava escrito take it, coloquei no bolso e pensei “que coisa legal”. E dentro estava escrito que aquilo era resultado da decisão de alguns ricos empresários cristãos que distribuíam bíblias de graça. E pensei “por que não fazer isso com literatura?”. Eu estava sempre com essa ideia de ficar um dia rico, e quando estava hospitalizado – passei dezessete dias sem nada para fazer -, fiquei pensando, lendo, e constatei que grande parte do PIB do Estado passava pela minha sala de aula nos ensinos particulares. Há gente riquíssima estudando e pensei “por que não reunir todo esse pessoal para fazer algo? Vamos fazer uma associação”. E então mandei um e-mail para os meus alunos e a coisa explodiu. Agora temos CGC, eu fui o primeiro presidente, agora é o Ayala Aguiar. Trabalhamos em parceria com a Câmara Riograndense do Livro. Há muita gente que conseguiu vencer e ganhar dinheiro na vida sem grande instrução. Há muitos alunos de mais idade e bom poder aquisitivo em oficinas minhas, eles notam que estão atrás do resto dos alunos e me pedem indicações de livros, de coisas para preencherem estas lacunas e vencer o atraso. Eles conseguem e sabem o quanto é importante o complemento cultural.
Sul21 – Teu primeiro livro foi escrito aos 17 anos. Soube que tu desejas jogar fora todos os exemplares, queimar se possível…
Charles Kiefer – Verdade, eu compro nas livrarias e queimo. E é pior, porque são três livros, na verdade: O Lírio do Vale, Vozes Negras e Os Caminhantes Malditos. Me arrependo de tê-los publicado. Mas é lógico que não posso tirar o primeiro degrau da escada. Eu era jovem, imaturo, o peso da emoção naqueles livros era infinitamente maior que o da razão. Com essa idade você é só sentimento. E, enfim, depois veio Caminhando na Chuva, que é o primeiro livro do escritor, enquanto os outros são livros do adolescente. Ele é na verdade meu quarto livro, mas a própria editora colocou-o como o primeiro.
Sul21 – Caminhando na Chuva é um grande livro.
Charles Kiefer – Com 53 anos eu posso olhar para trás e achar interessante, mas na época eu nem percebia. (risos) Quando eu tinha 22 anos, morava ali na Avenida Pará, em Porto Alegre, em cima de um açougue, num lugar horrível, e daí eu pensei que minha adolescência estava acabando e que nunca mais teria aqueles sentimentos e emoções. Eu estava vendo novas coisas surgindo em mim, sabia que estava mudando; foi então que decidi, é agora ou nunca, ou registro isto ou nunca mais vou ter a oportunidade. Sentei e escrevi o livro em 17 dias. Quando eu comecei a escrever, queria fazer um memorial de adolescente, sob o ponto de vista de alguém que está saindo dessa fase mas ainda está nela. Por isso tem aquele ar de autenticidade, eu consegui o equilíbrio. O Dacanal me disse uma vez que o meu último livro bom foi Valsa para Bruno Stein, “depois tu só escreveste porcaria”. Talvez ele tenha razão pois acho que agora eu me volto muito para o lado da razão, não deixo tanto a emoção extravasar, apesar de ter feito coisas meio loucas como O Escorpião da Sexta-feira.
Sul21 – Onde tu colocas a questão da razão e da emoção no excelente Quem Faz Gemer a Terra?
Charles Kiefer – Ah, esse livro foi muito repensado, eu passei uns seis meses pensando “de que ângulo vou partir para contar essa história?”. Eu vi aquela briga do Olívio (Dutra, na época prefeito de Porto Alegre) enfrentando baionetas, eu vi tudo ao vivo, e quando cheguei em casa a imprensa já estava transformando todos em marginais, era tudo uma mexicanada zapatista e eu me enfureci, um furor santo, e decidi escrever o livro. O fato de eu ser de Três de Maio também me feriu, pois vi parentes e amigos sendo considerados selvagens, como se viessem do interior para matar e destruir a civilização ocidental. Então, quando eu fiz o recorte, vi que tinha o problema do foco narrativo e pensei muito. Até que chegou o momento em que concluí que tinha que contar do ponto de vista do colono. E eu precisava expressar isso numa linguagem ou do colono ou minha, mas escolhi um meio termo, pois ele está preso, o fato aconteceu cinco anos antes e ele recebeu muitas visitas, até de jornalistas, e contou tanto a história, tantas vezes, que o discurso já está polido. Foi o modelo estrutural ideológico que desenvolvi para conseguir equilibrar a visão do personagem com a minha sem errar muito.
Foi feita uma tremenda injustiça contra os seres humanos que formavam o Movimento dos Sem Terra. Já eram ladrões de terras e viraram monstros assassinos.
Sul21 – Lembro dos jornais no dia seguinte. A morte de um brigadiano foi tratada como “massacre”. Era um caso difícil, havia um corpo e os jornais apareciam cheios de argumentos para não dar nenhuma dimensão humana ao sofrimento dos colonos. Parecia que o mundo burguês ia acabar pelas mãos do MST.
Charles Kiefer – O acontecimento foi grave, claro. Mas foi feita uma tremenda injustiça contra os seres humanos que formavam o Movimento dos Sem Terra. A imprensa já os tinha transformado em ladrões de terra. Viraram monstros assassinos. Indignado com isso, escrevi o livro. Até hoje essa pecha segue associada ao MST. O fato é que eles enfrentam o setor mais conservador da sociedade, então parece adequado qualificá-los como sua antítese, o que não é verdade. O livro é um relato muito autêntico.
Eu era muito na minha, não visitava muito os outros, tinha poucos amigos. Eu tinha uma relação ruim com a minha terra.
Sul21 – E o colono veio morar na Avenida Pará… Tu eras um menino pobre de Três de Maio que ouvia Bach, Mozart e Beethoven.
Charles Kiefer – Eu era muito na minha, não visitava muito os outros, tinha poucos amigos. Eu tinha uma relação ruim com a minha terra. É complicado… Eu era pobre, estudava numa escola de crianças ricas, pois minha mãe conseguiu uma bolsa de estudos para mim. Eu não tinha dinheiro para comprar sequer comida no recreio, levava um pãozinho de milho com melado que abria para comer. Era a piada da escola. Eu tinha que ir comer bem afastado num campo de futebol para ficar em paz.
Sul21 – Bullying?
Charles Kiefer – Eu acho que sim, eles implicavam com um blusão de lã que eu tinha, eles pegavam no meu pé, eu coloco isso no Caminhando na Chuva. Era um blusão que eu tinha ganhado da minha mãe e usava ano após ano, era o que ela tinha conseguido me dar, enfim. Mas nada disso me influenciou muito, o que realmente tem peso são meus avós, meu avô paterno era um grande leitor e ainda era músico. Lembro de quando era criança, eu sentado no colo do meu avô, ele contando as histórias do Charles De Coster, como As Aventuras de Till Eulenspiegel. Esse autor ninguém conhecia aqui no Brasil. Meu avô era violinista também, chegou a tocar numa orquestra em Cachoeira do Sul, ele e um irmão dele. Eles casaram com duas mulheres irmãs e foram viver no mesmo terreno, mas as mulheres brigaram, e um dia o irmão do meu avô, de madrugada, bateu com o facão na porta gritando “vem pra fora se tu é homem”. Meu avô, que era muito calmo – era o homem que eu gostaria de ser e não sou – , me contou que, se pegasse o facão e saísse, seria um morto ou um assassino. Então ele não saiu, mas fez as trouxas dele para ir embora para sempre com a mulher. Naquela madrugada, estava saindo um comboio de carroções, como no faroeste, de pessoas indo para a serra. Ele já tinha sido convidado para ir mas não aceitou, daí mudou de ideia e colocou a mulher, os dois filhos, e foi embora, durante dezoito dias no meio do mato até chegar em Três de Maio. Havia três localidades, uma perto da outra – Consolata, Vista Alegre e Caravaggio –, formadas de minifúndios. Mas, enfim, a influência mitopoética que mais me influenciou foi quando eu descobri, numa análise em divã, a imagem do meu bisavô. Lembrei das vezes que fui correndo para um homem sentado numa cadeira de balanço, lendo, e daí, quando desejo ir para o colo dele, minha avó me segura e diz “Não vai lá porque ele está lendo”. Aquilo era um misto de sentimentos, de ciúmes do livro, da magia daquele negócio. Ele tinha aquela caixinha mágica, eu ficava esperando que dobrasse aquele monte de papéis, fechasse a caixa, para então ficar livre para ir lá no colo dele. E ele contava, abria a caixinha e mostrava o que estava dentro. Eu lembro disto, do louco desejo de conhecer aquilo, por isso já estava lendo aos três anos. Ele gostava muito do que se chama Bildungsroman.
Pois esse meu bisavô era um assassino. Ele matou o outro e jogou o corpo no mar, pegou os documentos, e virou Losekann. Quando chegou aqui viveu a vida do outro.
Sul21 – O romance de formação de origem alemã.
Charles Kiefer – Sim, ele lia bons livros e é uma figura mítica para mim, ele era de uma leva de alemães que foram para a Rússia, e se deram muito mal por lá, ficaram miseráveis e tiveram que migrar. E bem, há um crime na minha família, que foi o que originou meu primeiro romance que vou ter de reescrever logo. Pois esse meu bisavô era um assassino. Numa viagem de navio, uma mulher que tinha um jovem marido se apaixonou por outro homem, ele. E ele matou o outro e jogou o corpo no mar, pegou os documentos, e meu bisavô, que era qualquer coisa, virou Losekann, quando chegou aqui, viveu a vida do outro. Claro, não havia foto nos documentos, ninguém o conhecia, não deve ter sido difícil mudar de identidade.
Sul21 – Que história fantástica.
Charles Kiefer – Eu precisava escrever um romance sobre isso, né? Não podia ignorar. A minha bisavó, quando estava para morrer, livrou-se da angústia chamando toda a família ao pé da cama, e contou para seus filhos que o pai deles era um assassino. Ela até falou o nome real dele mas ninguém anotou, ninguém teve coragem. Eu até procurei, mas ninguém lembrava.
Sul21 – Uma família alemã de sangue quente essa… Mas eu li no teu blog um texto reclamando que teus livros passaram para a Record e tu achaste que ia aumentar muito as vendas, mas não foi o que ocorreu.
Charles Kiefer – É, é uma coisa meio lamurienta mesmo. O ponto principal é o fato de que quem vendia x exemplares por ano, hoje vende muito menos, e isso é para todos. Com a internet, o pessoal lê menos livros, mas veja como são as coisas: eu publiquei aquele ensaio Para ser escritor e em menos de 40 dias o livro esgotou a primeira edição. Já está na 2ª ou 3ª e circula em oito países. Mas ele não é ficção. Há uma estatística da Associação Mundial do Livro que revela que a ficção está caindo 20% ao ano nas últimas duas décadas. Para isso acho que há uma explicação psicanalítica, psicológica. Hoje em dia, as novas mídias já nos suprem completamente a necessidade de ficção. Na internet você vê filmes em poucos cliques, dentre tantas outras coisas. Há milhares de textos, interesses, estímulos. Por que você vai então ler? Além disso, há problemas de distribuição. As grandes editoras têm uma política de o escritor ter de vender um determinado número de exemplares para eles te tornarem top da editora, para elas investirem de fato em ti. Elas tem uma curva de equilíbrio que tem de ser atingida em tantos dias, e se isso não acontece você fica meio de lado. Elas também não ajudam a tua performance pois não fazem reposição. E bem, aumentou geometricamente o número de autores no mercado, e eu até contribuí com isso através de minhas oficinas. Somando-se a isso o problema de distribuição e a internet, a venda vai lá embaixo. Hoje em dia tenho certamente mais leitores dos meus blogs do que dos meus livros. Eu já até fiz uma coisa louca com a Editora Leya. Eu não cobro direito autoral adiantado. Nunca sei se vou morrer ou não, não quero ficar com conta para pagar. Então, depois de três meses eles me apresentam a primeira prestação de contas. É um dinheiro efetivo que entra. Pela Record, eu recebi já por 3 mil exemplares de uma edição e estou em dívida, pois eu só vendi 6 exemplares no último trimestre. O livro, que é de contos, está em débito com eles, vou demorar uns 50 anos para pagar. Meu novo livro está pronto, Dia de Matar Porco, mas eu preciso revisar, fechar bem ele, e falei para minha editora fazer um contrato para daqui dois anos e sem adiantamento.
Hoje em dia tenho certamente mais leitores dos meus blogs do que dos meus livros.
Sul21 – Me diz como foi tua experiência como secretário municipal de Cultura e secretário adjunto?
Charles Kiefer – Não quero falar disso… o que passou passou.
Sul21 – Foi tão ruim?
Charles Kiefer – Foi bem ruim, mas… Aconteceu uma coisa maravilhosa, que foi minha filha Sofia. Acabei me envolvendo de fato com a Marta nessa época porque a política nos ajudou, a gente estava sempre se encontrando. Casamos e tivemos a Sofia. Foi o que de melhor me trouxe a política…. o resto é resto andthe rest is silence (risos).
Sul21 – Tu tens três Prêmios Jabutis, né?
Charles Kiefer – Sim, e fui oito vezes finalista. Perdi até para o Chico Buarque…
Sul21 -Tu perdeste para Budapeste ou para Estorvo?
Charles Kiefer – Foi um estorvo na minha vida. (risos) Olha, talvez tu me perguntes sobre o caso Edney x Chico…
Sul21 – É óbvio.
Charles Kiefer – Ser jurado de prêmio é muito complicado. Eu dou um prêmio, o Prêmio Sofia de Literatura, dou 3 mil reais para o primeiro lugar, e mais 3 mil reais para o primeiro lugar dos alunos. Eu contrato especialistas em literatura para dar um dos prêmios, e os próprios colegas dão o outro. Esse ano aconteceu algo incrível: os especialistas deram seus prêmios e os alunos deram exatamente a mesma coisa, só que na ordem inversa… Isso mostra que cada pessoa lê um livro diferente.
Sul21 – Com quais livros tu ganhaste o Jabuti?
Charles Kiefer –Com o O Pêndulo do Relógio, Um outro Olhar e Antologia Pessoal.
Daí eu me dei conta de que uma coisa que funcionava maravilhosamente bem eram as oficinas literárias, os workshops. Então pensei em ganhar um extra e abrir um curso.
Sul21 –Bem, vamos falar das tuas oficinas, há alunos épicos que estão há 18, 19 anos contigo.
Charles Kiefer –Engraçado né? Isso começou quando eu estava em Iowa, nos Estados Unidos, convidado pelo governo americano para o International Writing Program. Lá, além de frequentar algumas aulas na universidade, a gente fez um grupo de escritores latino-americanos e alguns asiáticos e europeus. Nos reuníamos nas quintas à noite, no salão de festas de nosso prédio, para apresentar textos uns aos outros. A gente contratava uma moça alemã para nos traduzir, o Marcelo Carneiro da Cunha também traduziu vários contos meus também. Mas olha… eu gastei cerca de 51 mil dólares lá, um dinheiro nada meu, o governo americano pagava todo o transporte e estadia. Quando a gente quisesse viajar era só ligar para Washington – talvez por isso estejam tão mal hoje… E eu ainda trouxe dos EUA um dinheiro suficiente para comprar um apartamentinho ali na Santo Antônio onde eu coloco minhas quinquilharias, é meu escritório. Mas enfim, daí eu me dei conta de que uma coisa que funcionava maravilhosamente bem eram as oficinas literárias, os workshops. Então pensei em ganhar um extra e abrir um curso. Foi na Casa de Cultura Mário Quintana. Daí, no dia que cheguei para a primeira aula, a Simone Schmidt, que era chefe do departamento de literatura da Biblioteca Lucília Minssen, me disse que teríamos que cancelar: tinha apenas três inscritos. Eles não poderiam me pagar o cachê. Então eu decidi fazer de graça para respeitar o trio. Se Mozart fez concerto para apenas um em Paris, por que o Charles Kiefer não daria aula para três? Hoje eu tenho sete turmas particulares, dou aula aqui de noite (na PUCRS), de manhã na Palavraria, e tenho 1400 pessoas em lista de espera. Tem gente há oito anos esperando uma vaga. Eu desmanchei os dois grupos de sábado pois vou dar aula aqui também, e ali estava o Reginaldo Pujol Filho, que participava há 17 anos.
Sul21 – Eu sou um cético em relação às oficinas…
Charles Kiefer – Como o Dacanal…
Sul21 – Ele tem um livro contra as oficinas. Quais seriam os teus argumentos a favor então?
Charles Kiefer – Uma vez, um professor que me entrevistava fez uma pergunta mais ou menos assim. Daí eu brinquei com ele e disse que todo o ovo nasce para ser galo ou galinha, mas se o ovo não for galado não vai ser nada além de um ovo. Todo mundo nasce para ser escritor, basta ter as condições para isso, condições culturais, sociais para ser galado do ponto de vista da literatura. Bem, eu estou participando da equipe que está montando o Curso de Mestrado e Doutorado de Escrita Criativa. Pela primeira vez na América Latina haverá um curso assim, com cadeiras específicas, de estudo de cinema, teatro, literatura, poesia. Olha, é um curso integral, fascinante.
Sempre na terceira terça do mês, é hoje, no StudioClio, às 19h30, a hora e a vez de mais uma sessão lúdica-desportiva-literária do Sport Club Literatura. Resenhistas apresentam, avaliam e confrontam obras ao vivo, no palco do instituto.
Pelada da noite (preliminar):
Leite derramado (2009), de Chico Buarque (1944)
5 X 1
Se eu fechar os olhos agora (2009), de Edney Silvestre (1964)
(Pô, pelada polêmica essa aí, não?)
Com Luiz Paulo Faccioli e Marcelo Frizon.
Clássico da noite (Série Coliseu):
Feliz ano novo (1975), de Rubem Fonseca (1925)
3 X 4
O vampiro de Curitiba (1965), de Dalton Trevisan (1925)
Com Alexandre Rodrigues e Pedro Gonzaga.
É hoje, 16 de agosto, terça-feira, das 19h30 às 21h.
Há 31 anos, num 9 de julho, morria o poeta Vinícius de Moraes. O poetinha – apelido dado por Tom Jobim – era um boêmio, fumante, amante dos bons uísques e das mulheres. Casou-se nove vezes. Apesar disso, teve tempo de criar obra literária, musical e teatral. Foi parceiro de toda uma geração de grandes músicos brasileiros como o citado Tom, além de Chico Buarque, Toquinho, Baden Powell, Carlos Lyra, Edu Lobo e João Gilberto, dentre outros.
Marcus Vinícius da Cruz de Mello Moraes nasceu em 1913 no Rio de Janeiro, na Gávea, filho de um funcionário da prefeitura e de uma dona de casa que era também pianista amadora. Em 1930, ingressou na Faculdade de Direito do Catete, hoje integrada à UERJ. Na chamada “Faculdade do Catete”, conheceu o romancista Otavio Faria, que o incentivou na vocação literária. Vinícius de Moraes graduou-se em Ciências Jurídicas e Sociais em 1933, aos 20 anos. Após um período na Inglaterra, fez concurso para o Ministério das Relações Exteriores. Na primeira vez foi reprovado, mas na segunda tentativa acabou aprovado, sendo enviado para Los Angeles como vice-cônsul.
Chico Buarque, Tom Jobim e Vinícius de Moraes
Depois, Vinícius de Moraes atuou no campo diplomático em Paris e em Roma, onde costumava realizar animados encontros na casa do escritor Sérgio Buarque de Holanda. A carreira de diplomata fui subitamente interrompida pelo AI-5, através de uma aposentadoria compulsória. O motivo alegado foi a boemia. Em entrevista, o presidente João Figueiredo explicou as causas da demissão: “O Vinícius diz que muita gente do Itamaraty foi cassada por motivos políticos, por corrupção ou por pederastia. É verdade. Mas no caso dele foi vagabundagem mesmo. Eu era o chefe do Serviço Nacional de Informações, o SNI, e recebíamos constantemente informes de que ele, servindo no consulado brasileiro de Montevidéu e ganhando 6 000 dólares por mês, não aparecia por lá havia três meses. Consultamos o Ministério das Relações Exteriores, que nos confirmou a acusação. Checamos e verificamos que ele não saía dos botequins do Rio de Janeiro, tocando violão, se apresentando por aí, com copo de uísque na mão. Nem pestanejamos. Mandamos brasa.”
Hoje, ninguém se incomoda com seu mau comportamento funcional. Afinal, o ganho cultural foi muito mais importante.
Vinícius de Moraes é conhecido pelo grande público muito mais por sua música e por seu trabalho como letrista do que por sua obra literária. Porém, estes estão de tal forma interligados com a vida do autor que certamente não é muito inteligente separá-los. Nos anos 40, Vinícius era um poeta lírico de linguagem simples que muitas vezes enveredava pelo social. Os poemas desta época certamente não lhe garantiriam nenhuma “imortalidade”e ele era mais conhecido por sua atuação como jornalista e crítico de cinema.
O manuscrito de “Soneto da Separação”
Só em 1953 o poeta começou a abrir espaço para o letrista e músico. Naquele ano, Aracy de Almeida gravou “Quando Tu Passas Por Mim”, primeiro samba de sua autoria. Escrito com Antônio Maria, o samba marcava, na vida pessoal do poeta, mais um fim de casamento. No ano seguinte, Aracy de Almeida voltou a gravar outra música com letra de Vinícius.
Em 1954, foi publicada sua coletânea Antologia Poética, ao mesmo tempo em que finalizava sua peça teatral Orfeu da Conceição, premiada no concurso associado ao IV Centenário de São Paulo, cidade por ele apelidada de “o túmulo do samba”. Dois anos depois, quando andava atrás de alguém para musicar a peça, um amigo indicou-lhe um jovem pianista e arranjador chamado Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, de 29 anos. O encontro entre Vinícius e Tom, entre Tom e Vinícius, deveria ser saudado com fanfarras não fosse a bossa nova tão avessa a estas barulheiras. Ali nascia uma das mais fecundas parcerias da música brasileira, uma que a marcaria definitivamente. Os dois compuseram a trilha sonora para Orfeu e seguiram compondo uma vertiginosa sucessão de clássicos que acabaram na criação da bossa nova juntamente com João Gilberto. Se Todos Fossem Iguais A Você, Eu e Você, A Felicidade, Chega de Saudade, Eu sei que vou te amar, Garota de Ipanema, Insensatez, entre outras belas canções canônicas.
A pedra fundamental da bossa nova veio com o LP Canção do Amor Demais, gravado por Elizeth Cardoso. Além da faixa-título, o LP trazia ainda com outras músicas da parceria, como Luciana, Estrada Branca, Outra Vez e a indiscutível Chega de Saudade, em interpretações vocais intimistas, bastante estranhas ao comum da época — o da voz empostada e do berro. No ano seguinte, era lançado o LP João Gilberto que trazia como música de abertura a mesma Chega de saudade gravada por Elizeth e abria definitivamente o período da bossa nova. Aliás, é importante dizer que a famosa batida do violão de João Gilberto já se fazia presente no disco de Elizeth.
Tom e Vinícius
Mas Vinícius ainda teria outras participações fundamentais na história da MPB. Em 1965, o “I Festival Nacional de Música Popular Brasileira” (da extinta TV Excelsior) consagrou Arrastão (composta em parceria com Edu Lobo) como vencedora. O segundo lugar foi a Valsa do Amor que Não Vem , do mesmo Vinícius com Baden Powell, defendida por Elizeth Cardoso.
Em 1966, uma nova parceria com Baden Powell gerou “Os Afro-Sambas”, uma brilhante coleção de canções de influência africana que recebeu sua maior homenagem há poucos anos, com a regravação feita por Mônica Salmaso e Paulo Bellinati. No mesmo ano, lançou o livro de crônicas Para uma menina com uma flor.
Entre um parceiro e outro, eram criadas uma série de obras-primas da MPB. Samba da Bênção, com Baden; Marcha da Quarta-feira de Cinzas, com Carlos Lyra; Valsinha e Gente Humilde, com Chico Buarque; a lista é imensa.
Toquinho e Vinícius
Depois de 1970, foi a vez de encetar outra longa parceria, talvez a mais duradoura e prolífica delas, aquela com o violonista e compositor Toquinho. Formavam uma dupla bem diferente em qualidade das atuais. Também era diversos na postura: Toquinho empunhava um violão e Vinícius um copo de uísque. O primeiro LP já trazia Na Tonga da Mironga do Kabuletê, Testamento, Tarde em Itapoã, Morena Flor eA Rosa Desfolhada. Em 1972, eles lançaram o álbum São Demais os Perigos Dessa Vida, contendo — além da faixa-título — grandes canções como Cotidiano nº 2, Para Viver Um Grande Amor e Regra três.
Em 1979, participou de leitura de poemas no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo (SP), a convite do líder sindical Luiz Inácio Lula da Silva. Voltando de viagem à Europa, sofreu um derrame cerebral no avião. Perderam-se, na ocasião, os originais de Roteiro lírico e sentimental da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.
No dia 17 de abril de 1980, é operado para a instalação de um dreno cerebral. Morre na manhã de 9 de julho, de edema pulmonar, em sua casa na Gávea, em companhia de Toquinho e de sua última mulher.
O poetinha em 1977
A poesia de Vinícius, seja na música ou nos livros de poesia, transpira paixão. Paixão pela mulher, paixão pelo divino, paixão pelo prazer transitório e pela dignidade humana. Outra palavra fundamental de seu léxico é a busca. Busca da religião que logrou encontrar na África, busca das inumeráveis musas — mulheres reais ou inventadas — e a busca do perdão para tantas infidelidades. Poeta entre o viril e o terno, entre o metafísico e o carnal, fez de sua poesia um local de encontros e de despedidas. Morreu como uma reeencarnação de Dioniso. Era o rei das festas, o mais saudado, o poeta do fumo, das religioões afro-brasileiras num tempo em que isso era quase escandaloso, da irresponsabilidade, da insânia e, sobretudo, da intoxicação — através do amado uísque — que une o bebedor com a deidade. E, para nossa alegria, ainda deixou-nos uma grande obra que, se não chega a ser a de um Drummond, a de um João Cabral, a de um Murilo ou a de uma Cecília, chegou mais facilmente ao coração do povo através da música. Vinícius, velho, saravá!
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O dia da criação
Macho e fêmea os criou.
Gênese, 1, 27
I
Hoje é sábado, amanhã é domingo
A vida vem em ondas, como o mar
Os bondes andam em cima dos trilhos
E Nosso Senhor Jesus Cristo morreu na Cruz para nos salvar.
Hoje é sábado, amanhã é domingo
Não há nada como o tempo para passar
Foi muita bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo
Mas por via das dúvidas livrai-nos meu Deus de todo mal.
Hoje é sábado, amanhã é domingo
Amanhã não gosta de ver ninguém bem
Hoje é que é o dia do presente
O dia é sábado.
Impossível fugir a essa dura realidade
Neste momento todos os bares estão repletos de homens vazios
Todos os namorados estão de mãos entrelaçadas
Todos os maridos estão funcionando regularmente
Todas as mulheres estão atentas
Porque hoje é sábado.
II
Neste momento há um casamento
Porque hoje é sábado.
Há um divórcio e um violamento
Porque hoje é sábado.
Há um homem rico que se mata
Porque hoje é sábado.
Há um incesto e uma regata
Porque hoje é sábado.
Há um espetáculo de gala
Porque hoje é sábado.
Há uma mulher que apanha e cala
Porque hoje é sábado.
Há um renovar-se de esperanças
Porque hoje é sábado.
Há uma profunda discordância
Porque hoje é sábado.
Há um sedutor que tomba morto
Porque hoje é sábado.
Há um grande espírito de porco
Porque hoje é sábado.
Há uma mulher que vira homem
Porque hoje é sábado.
Há criancinhas que não comem
Porque hoje é sábado.
Há um piquenique de políticos
Porque hoje é sábado.
Há um grande acréscimo de sífilis
Porque hoje é sábado.
Há um ariano e uma mulata
Porque hoje é sábado.
Há um tensão inusitada
Porque hoje é sábado.
Há adolescências seminuas
Porque hoje é sábado.
Há um vampiro pelas ruas
Porque hoje é sábado.
Há um grande aumento no consumo
Porque hoje é sábado.
Há um noivo louco de ciúmes
Porque hoje é sábado.
Há um garden-party na cadeia
Porque hoje é sábado.
Há uma impassível lua cheia
Porque hoje é sábado.
Há damas de todas as classes
Porque hoje é sábado.
Umas difíceis, outras fáceis
Porque hoje é sábado.
Há um beber e um dar sem conta
Porque hoje é sábado.
Há uma infeliz que vai de tonta
Porque hoje é sábado.
Há um padre passeando à paisana
Porque hoje é sábado.
Há um frenesi de dar banana
Porque hoje é sábado.
Há a sensação angustiante
Porque hoje é sábado.
De uma mulher dentro de um homem
Porque hoje é sábado.
Há a comemoração fantástica
Porque hoje é sábado.
Da primeira cirurgia plástica
Porque hoje é sábado.
E dando os trâmites por findos
Porque hoje é sábado.
Há a perspectiva do domingo
Porque hoje é sábado.
III
Por todas essas razões deverias ter sido riscado do Livro das Origens, ó Sexto Dia da Criação.
De fato, depois da Ouverture do Fiat e da divisão de luzes e trevas
E depois, da separação das águas, e depois, da fecundação da terra
E depois, da gênese dos peixes e das aves e dos animais da terra
Melhor fora que o Senhor das Esferas tivesse descansado.
Na verdade, o homem não era necessário
Nem tu, mulher, ser vegetal dona do abismo, que queres como as plantas, imovelmente e nunca saciada
Tu que carregas no meio de ti o vórtice supremo da paixão.
Mal procedeu o Senhor em não descansar durante os dois últimos dias
Trinta séculos lutou a humanidade pela semana inglesa
Descansasse o Senhor e simplesmente não existiríamos
Seríamos talvez pólos infinitamente pequenos de partículas cósmicas em queda invisível na terra.
Não viveríamos da degola dos animais e da asfixia dos peixes
Não seríamos paridos em dor nem suaríamos o pão nosso de cada dia
Não sofreríamos males de amor nem desejaríamos a mulher do próximo
Não teríamos escola, serviço militar, casamento civil, imposto sobre a renda e missa de sétimo dia,
Seria a indizível beleza e harmonia do plano verde das terras e das águas em núpcias
A paz e o poder maior das plantas e dos astros em colóquio
A pureza maior do instinto dos peixes, das aves e dos animais em cópula.
Ao revés, precisamos ser lógicos, freqüentemente dogmáticos
Precisamos encarar o problema das colocações morais e estéticas
Ser sociais, cultivar hábitos, rir sem vontade e até praticar amor sem vontade
Tudo isso porque o Senhor cismou em não descansar no Sexto Dia e sim no Sétimo
E para não ficar com as vastas mãos abanando
Resolveu fazer o homem à sua imagem e semelhança
Possivelmente, isto é, muito provavelmente