Música para mal formados

Hoje, acompanhei pelo twitter uma discussão sobre música que me deixou curioso, tanto que procurei ouvir aquilo do qual falavam com tanta reverência. Peço desculpas a quem reconhecer a discussão, mas a música discutida era primária. Não vou entrar nessa de avaliar se era boa ou ruim, provocativa ou new age, monótona ou intrigante; vou apenas dizer que era constrangedoramente simples.

Haydn e Bruckner eram também assim só que na vida civil. Os registros históricos tratam de Haydn — um gênio que chegou a inventar novas formas musicais, como o quarteto de cordas — como um bobo alegre. Já sobre Bruckner, que faleceu ao final do século XIX, temos informações certeiras. Era um carola que não sabia nada do mundo, era meio tolo mesmo, mas ouvir suas sinfonias e achar seguir achando o cara simples é impossível! O cara era, do ponto de vista musical, de complexidade e profundidades abissais. Então, penso que haja uma inteligência específica voltada à musica. Esta transcende gêneros, pois, por exemplo, Frank Zappa foi roqueiro brilhante, Charlie Mingus um jazzísta e Steve Reich… O que faz mesmo Steve Reich?

Desculpe se pareço nojento ou elitista, normalmente sou mais gentil, mas é que quedei-me boquiaberto que aqueles escritores ficassem abobalhados por músicas que, antes de revelarem determinadas etnias, vivências ou culturas, demonstravam estruturas que tornariam qualquer frase SVO (Sujeito-Verbo-Objeto) digna de estudos. OK, tudo é diversão. Também acho. Só que a gente pode se divertir com Bergman ou Zé do Caixão, com Coetzee ou Paulo Coelho. São escolhas, vivências e cultura. Mas, engraçado, não consigo imaginar um papo semelhante entre escritores argentinos, ingleses, portugueses ou, pior, alemães. E tenho certeza de que isto é muito, mas muito significativo.

Günter Grass relembra passado e se diz otimista com futuro da Polônia

O autor Günter Grass tem, ao mesmo tempo, fortes conexões com a Alemanha e com a Polônia. Entretanto, em entrevista para a Deutsche Welle, diz que não tem um lar. Este espaço, segundo ele, foi preenchido pela literatura.

O prêmio Nobel de Literatura Günter Grass é autor de obras como O Tambor (1959), Meu Século (1999) e Nas Peles da Cebola (2006). O autor conversou com a Deutsche Welle sobre suas impressões a respeito da identidade polonesa e revisitou alguns eventos políticos importantes que influenciaram seu trabalho.

Deutsche Welle: Como polonês que veio para a Alemanha depois da Segunda Guerra, de que forma você avalia sua recepção na Polônia? As pessoas lá não o temem, mas o celebram e o defendem contra alguns difamadores.

Günter Grass: Eu fico feliz, é claro. É uma história longa para alguém como eu, que vem de uma família desterrada, e claro que não foi fácil naquele tempo imediatamente depois da guerra, quando você considera a história entre Alemanha e Polônia.

Os meus livros ajudaram a apresentar a história desse país à geração que cresceu em Danzig [nome da cidade durante a dominação germânica entre 1793 e 1945 – hoje a cidade polonesa se chama Gdansk] depois da guerra – a propaganda e 1945 eram assuntos de séculos passados para eles. As pessoas adotaram tudo isso, o que foi bem recebido. E isso também culminou no fato de as pessoas aceitarem quando eu fazia críticas sobre a Polônia ou sobre o nacionalismo polonês. Porque as pessoas sabiam que eu fazia comentários também em certos círculos aqui na Alemanha.

Você estava lá em 1970 quando o então chanceler federal alemão Willy Brandt se ajoelhou diante do Memorial aos Heróis do Gueto de Varsóvia. Qual foi a sua sensação e como você a avalia hoje?

Eu estava num canto da multidão, e eu tenho que dizer que fiquei chocado porque imediatamente imaginei como aquilo seria recebido na Alemanha. E não foram poucos os comentários de escárnio sobre isso.

Muitos anos depois, eu escrevi sobre quando Brandt se ajoelhou no livro Meu Século, sob a perspectiva de um jornalista reservado que presencia a cena, e que vê o fato parcialmente, como um tipo de propaganda feita por parte de Brandt, mas que também pensa em como escrever sobre isso de modo que um jornal queira publicar.

Aqueles não eram exatamente os meus pensamentos, mas o evento certamente provocou muitas coisas. Mesmo muitos poloneses tiveram um tempo difícil para compreender a motivação de Brandt, e eles refletiram extensivamente sobre esse significado.

Você acha que há um risco no sentido de a História ser reinterpretada de maneira que os alemães, de repente, se vejam como vítimas do período da Segunda Guerra?

Eu vejo a divisão das pessoas entre vítimas e perpetradores como um assunto artificial. Os alemães se tornaram simultaneamente os perpetradores e as vítimas de suas políticas. Quando penso nos jovens alemães que foram deportados, claro que eles são vítimas da política dos alemães. Qualquer ato de desterro é um crime, e o desterro de alemães também foi um crime e uma consequência terrível daquele período. Isso é um fato que você tem que reconhecer. Fazer a distinção entre vítimas e perpetradores não ajuda nesse ponto.

Você nasceu em Danzig  e se tornou uma personalidade na cidade. Você também tem muitos amigos na Polônia. Mas onde é o seu lar?

Para mim, lar é algo que foi perdido, mas eu tento transformar essa experiência em algo positivo. Para mim, a literatura oferece essa possibilidade, desde que você persista nesse propósito com certa obsessão.

A história de Gdansk é de destruição e revitalização e de lembrança. Depois de ter escrito O Tambor, eu voltei várias vezes para Gdansk para encontrar os vestígios dessa cidade. A fase de reconstrução e os primeiros sinais de agitação nos anos de 1970, e a revolta dos trabalhadores – tudo isso entrou nos meus escritos. Nesse sentido, eu sou um polonês que está na Alemanha.

Recentemente, Bronislaw Komorowski ganhou a eleição presidencial na Polônia contra Jaroslaw Kaczynski. O que você acha desse resultado?

É um grande alívio para mim, esse é o futuro da Polônia. O país tem que deixar de ser uma vítima absoluta. Há uma geração nova que terá um papel importante na Europa, e estou convencido que o novo presidente representa bem isso.

Com Deutsche Welle (ho, ho, ho) / Entrevista: Barbara Cöllen / Revisão: Roselaine Wandscheer

O mais puro Kafka…

Aqui.

E, segundo o jornal israelense Haaretz, tem mais…

The German Museum of Modern Literature Thursday rejected a demand from Israel’s National Library that it return the manuscript of Franz Kafka’s novel “The Trial,” saying it acquired the manuscript legally.

The National Library claims the manuscript was illegally sold to Germany by Esther Hoffe, former assistant to Kafka’s friend Max Brod, and that it is the manuscript’s legal heir.

The museum, however, said the manuscript was bought transparently, at a public auction, without objections. It added that as far as it knows, Brod gave the manuscript to Hoffe as a gift.

??? Se metem em tudo…

O Burgomestre de Furnes, de Georges Simenon

Georges Simenon vendeu aproximadamente 500 milhões de volumes de suas novelas e romances. Trata-se de um excepcional caso de sucesso popular e de crítica. Durante toda a sua vida, os leitores e editores pediram-lhe um grande romance através do qual o autor pudesse ser apresentado. A resposta era sempre a mesma:

– Minha grande obra é o mosaico formado por meus pequenos romances.

Grosso modo, podemos dividir sua obra em duas partes: os romances policiais com ou sem o célebre detetive Maigret e os duros romances psicológicos que lhe valeram o apelido “Balzac de Liége”, recebido de ninguém menos que André Gide. A popularidade destes livros não deixa de impressionar, pois são escritos em tom menor, são nada solares, sendo antes cheios de personagens deprimentes e deprimidos. Com suas ações quase sempre em cidades pequenas, Simenon envolve-nos numa triste realidade provinciana, onde o mal comanda.

O método de produção de Simenon é curioso. Ele escrevia seis ou sete romances ou novelas por ano, mas elas não lhe saiam continuamente e sim como espasmos. A história era inventada em 30 ou 40 dias em sua imaginação. Era o período de não escrever, de caça à história, quando ele passeava, ia a bares e convivia com as pessoas. Então, ele avisava aos familiares que trabalhar e todos sabiam o que aconteceria – ele sumiria em seu escritório por algo entre 10 e 20 dias. Nestes períodos, ninguém deveria falar com ele e a ordem era apenas alimentá-lo. Se um fato externo o interrompesse, abandonava o trabalho.

De certa forma, tal concentração está presente em seus trabalhos. As narrativas, a forma de envolver o leitor são via de regra impecáveis. A modernidade não está num trabalho de linguagem ou em tramas complexas ou contrapontísticas, está no fato de que o autor se exime dos princípios morais, apresentando tramas simples onde as atitudes são descritas de forma distante, muitas vezes cruel. Não há Deus nem julgamento, há sucessão de fatos que são jogados ao leitor no momento exato e que fazem excelente literatura.

Acabo de ler O Burgomestre de Furnes, um extraordinário estudo sobre o embrutecimento, o ódio e a avareza. Joris Terlink é o burgomestre que comanda a população, a economia e os conselheiros do povoado. Todos o temem e ele é consultado para tudo. Sua vida pessoal está associada a diversas tragédias, recentes e antigas: uma filha doente mental que é mantida presa em seu quarto sob o argumento de que não haveria um lugar melhor para ela, o câncer da mulher, os vários filhos fora do casamento – o quais são ignorados por Terlink – e a própria gestão de Furnes, cuja falta de solidariedade produz um suicídio no início da história. Há algo menos sedutor? Terlink é um monstro absoluto, circundado de idiotas que têm dificuldade de viver sem ele, mas a segurança com que Simenon leva sua narrativa não é menos monstruosa e sem compaixão.

Além do Burgomestre, os maiores romances desta face de Simenon provavelmente são Sangue na Neve , O homem que via o trem passar, O gato e Em caso de desgraça. Todos foram reeditados pela L&PM em sua coleção de pockets.

Uma Virose e Duas Miniaturas

Meu início de semana foi muito ruim. Quando decidia fazer alguma coisa vinha a febre; então, tomava o antitérmico e deitava-me para sentir naúseas ou ser atacado pela diarréia. (Este negócio de ir ligeirinho para o banheiro como uma gueixa em fuga é das coisas mais humilhantes, não?) Aí sentava na cama para melhorar da náusea e acabava me interessando por alguma coisa e começava a me mexer. Animava-se mais e saía da cama para voltar a sofrer os tremores da febre. Um saco!

Um dia alguém me pediu para escrever histórias em 300 toques, título incluso. Não lembro bem quem foi que pediu e muito menos se foram publicadas. Sei que encontrei duas em meu micro ontem.

Além de ser um desafio para um cara que gosta de discorrer calmamente sobre os assuntos, foi muito divertido escrevê-las, Primeiro, fiz uma grade de 20 linhas, com 15 caracteres em cada uma. Depois, fiquei mais esperto e usei o BrOffice para contar os toques (opção Arquivos, depois Propriedades e Estatísticas).

O resultado está a seguir. A primeira historieta é original, a segunda é um ultrarresumo de outra pequena história já publicada.

1. Casou-se com o Corretor

Acorda e decide matar-se. O celular toca : “Filha, me deu outra crise, venha”. Vai à sacada e olha e rua, mas não quer pular de pijama. Veste-se e pensa na mãe: merda, só atrapalha. O celular de novo. A morte. Desce e dirige de olhos fechados. A despesa não supera a franquia.

2. A Erudição Rejeitada.

— Se desejas me conhecer — disse o conhecido intelectual — , ouve isto. É a 7ª de Beethoven.
Queria mostrar-se sublime.
Separaram-se na frente do prédio. Ao entrar, ela indaga ao porteiro:
— Que música te descreve?
— Ora, Gostoso Demais, da Bethânia.
Ela riu. Acabaram subindo juntos.

Também amor, penso

Elogio (da inteireza)

Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.
Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.
Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.
Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.

Atenção, O Aleph agora é de Paulo Coelho!

Que coisa triste! O mais influente (…) escritor (?) brasileiro (argh!) vai lançar em julho seu próximo livro, chamado singelamente O Aleph. Com isso, penso que Paulo Coelho procure agregar à sua obra a grife de Jorge Luis Borges, autor de um importantíssimo volume de contos chamado casualmente de El Aleph ou O Aleph. Coincidência?

O que a eternidade é para o tempo, o Aleph é para o espaço, dizia Borges (1899-1986). Para Paulo Coelho, o Aleph é um ponto que contém todo o universo e que nos transporta a outra dimensão, em busca de uma resposta. Na obra, o autor descerverá uma grave crise de fé, o que faz buscar — talvez no pontinho-tudo — o caminho da renovação e do crescimento. Notável.

Apesar do Aleph ser um ponto, o autor espertamente visitou a Europa, a África e a Ásia em plena crise, sempre na desesperada busca de si mesmo. Ou do Aleph. Nesta viagem, seguiu a recomendação de J., seu mestre espiritual: “Está na hora de sair daqui, reconquistar seu reino”. E o autor foi, talvez de TAM.

— Às vezes, é necessário deslocar-se de si próprio para localizar seus próprios passos em outros lugares terrenos e espirituais.

Interessante. Não sabemos se Paul Rabbit levou o pontinho na viagem ou acabou esbarrando com ele por aí. Os argentinos vão adorar a confusão que Rabbit criará no Google, misturando-se à Borges. Vou parar por aqui a fim de revisar meu livro de contos: Ficcciones.

Quando li O Grupo, de Mary McCarthy…

… devia ter uns 14 anos. Sim, era lá por 1971 e eu achava que devia ler livros de pessoas mais velhas. A história gira em torno da formatura e do encaminhamento na vida de um grupo de jovens formadas pela elitista universidade de Vassar. O foco é sobre o período pós-universitário. O livro é de 1963 e lembro de ter gostado demais dele. Era realista e adulto. Lembro que fiquei pasmo com uma cena logo no início: alguém mais velho, talvez um professor, masturba uma das moças com certa frieza e desinteresse. Então sexo podia ser aquilo? Que estranho. Estava na praia, lendo na rede. Fiquei sentado, pensando. Voltei a deitar e continuei a leitura.

Há também um filme de Sidney Lumet. Lembrei de O Grupo por causa deste post e da frase de Eduardo Pitta: “Enquanto houver livros como este de Mary McCarthy, os domingos nunca são chatos”. Deve ser verdade.

Todos esperam por Pilar del Río

Sem inspiração para um Porque hoje é sábado, volto ao assunto Saramago.

Na semana passada, as vendas dos livros de Saramago dispararam 1000% na Europa. É natural , portanto, certa algaravia e ansiedade de editores e livreiros para saber se poderão contar com inéditos do Nobel da Literatura. Com muito respeito, agente literária do autor, a alemã Nicole Witt, respondeu que tudo está nas mãos da viúva Pilar del Río e da Fundação José Saramago e completou dizendo que esperará: “Afinal, o que Saramago quis publicar, ele publicou”.

Porém, as atenções estão voltadas para as dezenas de páginas do romance inacabado Alabardas! Alabardas! Espingardas! Espingardas!, titulo tirado de Gil Vicente, e também para a volumosa correspondência do autor, já mostrada — manuscritos, cartas, textos inéditos, fotografias — na exposição José Saramago, denominada A Consistência dos Sonhos, onde pode ser conferida farta troca de cartas, cheias de discussões literárias, com o romancista José Rodrigues Miguéis. Ah, e há um romance inédito, Claraboia, rejeitado por uma editora no final dos anos 40, e que o autor nunca quis, depois, publicar.

Ernesto Sábato completa 99 anos / Saramago entrevista María Kodama

Ernesto Sábato não escreveu muitos livros de ficção, talvez tenha escrito três ou quatro, mas os que li foram muito marcantes: O Túnel e Sobre Heróis e Tumbas.

O Túnel é de 1948 e insere-se decidamente no existencialismo. Albert Camus era um entusiasta da obra e recomendou sua tradução para a Gallimard, o que tornou Sábato uma celebridade da noite para o dia. Lembro que gostei demais daquele vertiginoso monólogo escrito na primeira pessoa por um narrador que resolve contar o ato que cometeu. Traz tremendos debates de consciência, demonstrando as  dualidades e desvios que empurram os seres humanos a pensamentos e atos.

Mas, em minha opinião, seu grande romance é Sobre Heróis e Tumbas de 1961. São três narrativas que se completam: a do amor algo doentio de Martín por Alejandra — esta uma das maiores personagens que já conheci — ; a da morte no exílio do general Juan Lavalle, heroi da independência argentina; e o melhor de todos: O Informe sobre Cegos, que chegou a ser publicado separadamente há alguns anos. As duas primeiras, apesar de totalmente diversas, são clássicas histórias de decadência de uma certa aristocracia,  contadas sob a perspectiva da morte. Já O Informe está no limite do fantástico e é a respeito de uma seita maléfica dotada de poderes esotéricos e que une todos os milhões de cegos do mundo.

(Escrevo de memória. Li ambos nos anos 70…).

Tenho a melhor das lembranças de Ernesto Sábato, mais um grande escritor argentino.

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Kodama entre o génio de Borges e as perguntas geniais de Saramago

Obs.: Ontem, no Ciberescritas, li a estranha entrevista que José Saramago fez com (ou submeteu a) María Kodama, viúva de Jorge Luis Borges. Transcrevo-a abaixo.

Por Isabel Coutinho

José Saramago revelou-se um óptimo entrevistador. María Kodama, a última companheira de Jorge Luis Borges, riu-se às gargalhadas e lá foi respondendo às perguntas sérias, íntimas e prosaicas do Nobel português. “Como é que Borges dizia que te queria? Explica-nos, explica-nos!”.

Já José Saramago tinha lido pela primeira vez o poema Elegia (1963), de Jorge Luis Borges, e estava a dizer para a assistência que quase encheu o auditório da Biblioteca Nacional, sexta-feira à tarde em Lisboa, que se tratava de “um belo poema, quase uma autobiografia”, quando a sua mulher, Pilar del Río, irrompeu pelo palco vinda da plateia.

“É um poema belíssimo mas ninguém ouviu nada”, disse-lhe, enquanto ajustava os microfones em cima da mesa.

O prémio Nobel da Literatura ainda balbuciou que alguém tinha ido mexer no seu microfone, mas Pilar del Rio virou-se para os oradores e avisou: “Para todos e para sempre, o microfone tem que estar em frente à boca!” A plateia desatou às gargalhadas.

“Pois”, afirmou Saramago. “É a sua experiência de rádio”, justificou-se perante os seus companheiros de mesa, que eram María Kodama escritora, tradutora, companheira de Jorge Luis Borges por mais de vinte anos e Carlos da Veiga Ferreira, o editor da Teorema, onde estão publicadas em português as Obras Completas do escritor argentino que morreu em 1986.

“E então passemos a ler outra vez o poema porque não perdemos nada com isso”, rematou o autor de Ensaio sobre a Cegueira. “Oh, destino, o de Borges,/ ter navegado pelos diversos mares do mundo/ ou pelo único e solitário mar de nomes diversos (…)/ e não ter visto nada ou quase nada/ senão o rosto de uma rapariga de Buenos Aires (…)”, deu-se assim o mote para a palestra-colóquio E se falássemos de Borges?, uma conversa entre a viúva e o Nobel, organizada pela Fundação José Saramago, a que se seguirão outras dedicadas a escritores. No dia 10 de Julho, no Teatro Nacional de São Carlos, falar-se-á de Jorge de Sena.

“Não achas que os leitores ficam prisioneiros dos contos de Borges?” Saramago tem a intuição de que o acesso à obra do escritor argentino se faz pela leitura dos contos e que às vezes os leitores ficam só por aí. Esquecem que Borges foi um grande poeta.

Kodama concordou. O que deu fama internacional a Borges foi a tradução dos seus contos e da sua prosa. Mas, revelou, “ele sempre se sentiu poeta”. Mesmo a sua prosa é “uma prosa poética, tem um ritmo especial”. Ele preferia ser recordado como poeta e não como contista. Mas como era muito exigente consigo próprio e perfeccionista, sentia uma nostalgia, pensava que nunca ia conseguir chegar a escrever “o poema”. “Eu como leitora acho que muitas vezes o conseguiu, mas ele não o sentia da mesma maneira”, concluiu María.

Vida de todos os dias

Borges começou por ser poeta. Mas a determinada altura teve um acidente. Magoou-se na cabeça numa janela aberta que estava a ser pintada, quando ia para casa de uma amiga, e sofreu uma septicemia. Na época não havia antibióticos, ficou às portas da morte, com febre e pesadelos. Quando melhorou, “milagrosamente”, teve medo de ter perdido a capacidade intelectual, a capacidade para escrever poemas. “Então decide que vai escrever um conto porque se fracassasse não sentiria que estava louco ou que tinha perdido essa capacidade.” Escreve então o seu conto Pierre Menard, autor de ‘Quixote’ (onde está a frase “Não queria compor outro Quixote o que é fácil mas ‘o’ Quixote”).

A partir daí entra num longo período em que se dedica à prosa, aos contos, e escreve ensaios e crítica literária para jornais. “Quando perde a visão e percebe que lhe é difícil continuar a escrever, vai retomar a poesia. Porque era mais fácil decorar o texto por causa da rima, já que não podia passar ao papel imediatamente o que estava a pensar.” Começou pela poesia, por causa do acidente escreve prosa e mais tarde, por causa da cegueira, regressa à poesia. Na última fase, “já seguro de si”, mistura as duas coisas, poesia e prosa.

Como era Borges na vida de todos os dias?, quis saber Saramago.
“É que Borges era um génio e continua a ser apesar de já não estar entre nós como é que se comporta um génio na vida de todos os dias?” A esta “questão prosaica” o escritor quis que Kodama respondesse francamente. Aprendia-se muito, disse ela, era notória a profundidade e diversidade do seu conhecimento. Tinha um enorme sentido de humor e contava muitas histórias da sua avó inglesa, que ele adorava. “Era um ser encantador, divino”.

Por vezes eu tentava que os meus colegas de turma fossem assistir às aulas de línguas anglófonas que ele me dava. Eles diziam-me: ‘Não! Como queres que vamos contigo, ele é velho, os labirintos, os espelhos, por que é que não vens mas é sair connosco?’ Eu respondia-lhes: ‘Sim, ele é os labirintos, os espelhos, o que vocês quiserem, mas paralelamente a isso é uma pessoa divertidíssima com quem podemos passar momentos muito agradáveis e descobrir uma quantidade de coisas, intelectuais e não só, através do que nos conta.” Apesar da sua sabedoria, disse Kodama, as pessoas não se sentiam intelectualmente inferiores a Borges. Sabia guiar as conversas.

“Tinha muita consideração pelos outros. E tinha um sentido ético e de delicadeza no trato. Na sua obra também se reflecte isso: tudo está dito, mas tudo é dito de uma maneira especial.”

Aulas de línguas

Não há palavras para descrever o ar matreiro do escritor português quando anunciou a María Kodama que lhe ia colocar duas questões “muito íntimas”. Durante toda conversa, que durou mais de uma hora, Saramago fez sempre perguntas interessantes, foi dizendo também aquilo que pensava sobre a obra do autor argentino, não fugiu a perguntas difíceis como a sua ligação com a ditadura.

Estava visivelmente bem-disposto a longa doença do ano passado parece estar finalmente a ficar para trás, com 14 quilos a mais e a recuperar pouco a pouco a massa muscular. “Estavas realmente interessada em aprender inglês antigo ou foste aprender inglês antigo para conhecer Borges?”, foi a primeira. Seguiu-se a segunda: “Como é que Borges dizia que te queria?… Explica-nos, explica-nos!” Foi então quando Kodama tinha cinco anos que teve aulas com uma professora de inglês que utilizava um método de lhe ler os textos no original e depois traduzir em espanhol. Leu-lhe um poema em inglês de Borges, do qual Kodama não entendeu nada mas sentiu que havia algo ali que a fazia sentir próximo dele (a solidão).

Aos 12 anos, um amigo do pai, que era fanático de Borges, levou-a a ouvir uma conferência do escritor e ela impressionou-se com a sua timidez. Anos depois, já no colégio, viu Borges do outro lado da rua. Vai ter com ele: “Conheci-o quando era uma miúda.” Ele riu-se: “Claro, agora você é grande. Em que trabalha?” Ela respondeu-lhe: “Estou a terminar o secundário.” Quer estudar o inglês arcaico?, pergunta-lhe ele. “Shakespeare?”, arrisca ela. “Não, muito anterior, século X.” “Então se calhar é complicado”, diz-lhe ela mas ele convence-a, dizendo que vão estudar juntos. Passam a encontrar-se em cafés de Buenos Aires, ele aparecia com os dicionários debaixo do braço. “Divertíamo-nos muitíssimo”. E a vida foi-lhes dando outra história que terminou, realmente, “em amor”.

“E a segunda pergunta?”, insistia José Saramago. Kodama ria-se ao início e depois já estava às gargalhadas. “Que palavras utilizava para dizer que te queria…”, continuava o autor português. “Isso é importantíssimo. Posso não ser um bom escritor, mas a fazer perguntas sou um génio!”, brincou o Nobel, que assim pôs a sala inteira a rir à gargalhada.

María e Jorge usavam vários nomes, a maior parte ligados à literatura. “Um desses nomes era tirado de um conto que ele me tinha dedicado em segredo e que se chama Ulrica (in O Livro da Areia). Quis gravá-lo no túmulo em Genebra e em lugar de María Kodama e de Borges coloquei o epitáfio ‘De Ulrica a Javier Otárola’, porque eram nomes muito especiais para nós. Ulrica vinha também um pouco da Elegia de Marienbad, de Goethe, que ele me recitava em alemão. Ulrike von Levetzow era o nome da jovem amante de Goethe e quando ele fazia amor com ela contava as sílabas nas suas costas, acariciando-as com a mão. Bem, já está dito.” E María Kodama e José Saramago prosseguiram com outro assunto antes que a conversa ficasse mais complicada.

Aquele Jeitinho Fredolino de Ser

Luís Fernando Veríssimo deve ter escrito mais de dez crônicas acerca desta grande figura. Eu, aqui de baixo, escrevo a minha primeira. Fredolino Schirmer foi o proprietário, chef e maître do saudoso restaurante Floresta Negra, de Porto Alegre. A comida de Fredolino era… melhor economizar nos adjetivos. Não só o Luís Fernando ia lá, muita gente ia reverenciar as criações de Fredolino. Havia quem viajasse para conhecer o Floresta, outros atrasavam compromissos para visitá-lo e nós, que morávamos aqui, não nos incomodávamos com as longas filas para entrar no restaurante.

Conheci Fredolino numa destas filas. Ele saiu do restaurante, examinou o número de pessoas à espera – entre as quais estava eu – e berrou:

– Olha aqui, ó. Vão embora!

Não acreditei que o senhor que dissera aquilo, voltando imediatamente para o restaurante, pudesse ser o lendário Fredolino Schirmer, mas era. A cidade inteira sabia que Fredolino era um mestre da cozinha, mas que costumava tratar mal, muito mal seus clientes. O Veríssimo, que estava sempre lá, discordava. Além de exaltar a qualidade internacional de sua produção, escrevia que o dono do Floresta tinha uma espécie muito particular e incompreendida de gentileza. Eu diria que o velho Fredolino desejava apenas que as pessoas fruíssem do melhor e defendia-as agressivamente de sua própria vulgaridade. Só isso.

Mas voltemos ao restaurante: tentei novamente e consegui entrar. Já acomodados – eu, minha ex-mulher e um casal de amigos -, recebemos a atenção do maître, aquele mesmo senhor que berrara conosco na fila outro dia. Devo dizer que todos nós tínhamos um pouco de medo do velho (o Luís Fernando também, ele que negue!). Então, quase desculpando-nos por importuná-lo, pedimos nossos pratos. O meu era um linguado ao molho de maçã, coisa até então inimaginável. Minha ex me imitou, ou eu a ela, não interessa. Quando fomos servidos, ela viu Fredolino aproximar-se com uma enorme pimenteira e, ao mesmo tempo que protegia o prato com as mãos, perguntou com toda a delicadeza e receio:

– Será que vai ficar bom com pimenta?

Fredolino trovejou:

– Claro que fica bom! – e tacou-lhe enorme quantidade da coisa, enquanto ela tirava rapidamente as mãos do caminho.

Recebi outra chuva em meu linguado e afirmo-lhes: aqueles linguados não morreram em vão!

Outra vez, a mãe de uma amiga minha foi ao Floresta e – em noite de lotação completa – perguntou a Fredolino:

– Esta nata é uma coisa dos deuses! De onde o senhor tira esta maravilha?

Fredolino não respondeu, mas logo depois ela soube que receberia uma resposta literal quando o viu avançando pelo salão com um enorme balde de plástico ornamentado por uma colherona. Mostrou-o a ela enquanto mexia a colher e disse para todo o restaurante ouvir:

– Tiro daqui, ó!

Devo dizer-lhes que esta senhora é uma mulher finíssima, educadíssima, destas que a simples idéia de estar num restaurante lotado, sendo observada pelos circunstantes enquanto olha para baixo, bem dentro do balde de nata de um Fredolino aos gritos, basta para perturbar o sono por meses.

Hoje almocei com a minha mulher e perguntei-lhe se ela o conhecera. Dez anos mais jovem do que eu e tendo passado muitos anos fora de Porto Alegre, disse-me que apenas conhecera sua fama de cozinheiro e de intratável. Mas, sendo ela também habilíssima nestas coisas de culinária, pensa que um chef tem que ter opinião e que não deve curvar-se inteiramente aos gostos pessoais dos clientes, se achar que o resultado ficará prejudicado. Mas ela disse mais sobre Fredolino: acredita que é normal os artistas terem certos desvios de comportamento e que o contato com certos porto-alegrenses metidos poderia gerar efeitos danosos ao humor do velho. Recordo-me que alguns de nós – provincianos que tínhamos o privilégio de conviver com o mestre – pretendíamos dar palpites em seus pratos e éramos quase expulsos do Floresta Negra! Ainda estão em minhas retinas as vezes em que vi Fredolino balançar negativamente a cabeça, dizendo para uma mesa de desavisados:

– Se vocês querem comer isto, erraram de restaurante. Vão embora!

Outra vez ouvi uma senhora de idade solicitar determinado prato. Como resposta, obteve esta pérola: minha senhora, na sua idade e a esta hora tardia eu não aconselharia este prato. Vou trazer-lhe outro mais leve e adequado, de minha escolha. E dirigiu-se à cozinha.

Outro fato curioso era a política de preços do Floresta. Naqueles tempos de inflação, Fredolino demorava meses para reajustá-los. Assim, nosso melhor restaurante tornava-se muito barato em alguns períodos. Porém, um belo dia, tínhamos a surpresa de ver os preços multiplicados por três ou cinco. E ai de quem reclamasse! O período mais sensacional do Floresta foi o ano de 1986. Com o congelamento de preços baixado por Dílson Funaro durante o governo Sarney, pudemos comer meses e meses no Floresta a preços módicos. Foi um ano inesquecível.

Fredolino Schirmer faleceu há uns 20 anos. Sua esposa Christa publicou um livro com as principais de receitas de seu marido pela Editora Tchê!, em 1992. Para encontrá-lo, só em sebos. Como ele ficou na casa da minha ex, não tenho certeza se Christa publicou a receita do linguado com o qual sonhei esta noite.

Em tempo: acabo de encontrar uma crônica de Luís Fernando Veríssimo com referências aos grande Fredolino:

(…)Quando conheci o Gerry Mulligan, em Porto Alegre, a fase das drogas já ficara muito, muito para trás. Ao contrário de Chet, Gerry tinha vencido sua luta contra a dependência, era um respeitável senhor de barbas brancas. E a longa sucessão de mulheres na sua vida – que incluíra a atriz Judy Holliday – tinha acabado numa bela italiana chamada Franca, que Gerry conhecera durante a gravação do seu disco com o Piazzolla, na Itália, e aposto que ficou com ele até o fim. Era evidente que a Franca tinha tudo dominado.Depois da apresentação fomos jantar com Mulligan, mulher e trio, a convite do adido cultural americano. O melhor restaurante de Porto Alegre, na época, era o “Floresta Negra”, cujo dono e maitre, “seu” Fredolino, era uma figura controvertida: muitos confundiam com rudeza o que era apenas bom humor alemão, já que as duas coisas nem sempre se distinguem. Estávamos acostumados com seu jeito, e com o fato que em noites de muito movimento a dona Christa e sua equipe, na cozinha, não davam conta, e a comida demorava.

Mas Franca não queria saber do folclore do lugar, queria alimentar o seu homem. E deu-se o choque de culturas. “Seu” Fredolino já expulsara gente do restaurante por menos do que ouviu da italiana, naquela noite. Por um momento a mesa ficou suspensa, à beira de um incidente internacional. O adido cultural e eu, representando nações neutras, ficamos calados. Mulligan nem tomara conhecimento do confronto, aquela era a área de ação da mulher. Manteve a sua pose de patriarca viking.

“Seu” Fredolino talvez tenha se dado conta de que enfrentava uma leoa, e a possibilidade de grandes estragos materiais no seu restaurante. Recuou. Ninguém foi expulso. Dali a pouco veio a comida. Estava ótima. Acho que a Franca até elogiou. As forças do Eixo estavam recompostas. Durante o jantar, não adiantou eu querer perguntar ao Mulligan sobre Zoot Sims e outros que tinham tocado com ele, inclusive o Chet Baker. Ele só queria falar no Garcia Marquez.

Eu nunca fui expulso por Fredolino. Um dia, arranquei dele uma gargalhada. Foi uma pequena glória ver a mesa me olhar boquiaberta.

 

Saramago e o ranço

Em nosso país e em Portugal parece ser pecado grave destacar-se. Bom mesmo é a vida de gado. Não pensem que sou um admirador das grandes estrelas, apenas acredito que algumas delas aparecem naturalmente, por seus méritos. Saramago foi um escritor que começou a produzir mais intensivamente em idade madura e por obra do desemprego. Nada em sua postura trai um desejo de ficar famoso, todas as suas opiniões e dureza demonstravam vontade de ser lido, ouvido e de influenciar. Não é um pecado um autor desejar ser lido. E ele era instigante, sem conceder.

Certa vez, creio que em 1989, José Saramago deu uma palestra ao lado de Arnaldo Jabor. Não sei de quem foi a ideia de juntar uma dupla tão pouco miscível. Era um ciclo de palestras sobre o “Fim da História” e Saramago veio ao debate com sua inteligência e lógica afiadíssimas. Ele ironizou amplamente toda a noção de que a história tinha acabado, a ponto de dizer que duvidara, pela manhã, se valia a pena fazer a barba. Depois, refez todas as suas ações do dia, a leitura dos jornais, o almoço, o trabalho e a vinda para a palestra de táxi e sua relação com a história. Foi uma explanação muito engraçada, clara e irrefutável — talvez enlouquecida pelo tema — , mas tornou-se muito séria quando o assunto derivou para a Guerra dos Bálcãs. O “Fim da História” simplesmente não cabia na realidade da Jugoslávia (em portugal é assim: Jugoslávia). Lembro que ele fez várias perguntas retóricas a nós, público, comprovando a tolice daquela teoria. Então Jabor entrou com sua pobreza de ideias oficialistas — pois concordava minuciosa e, perdoem-me, tolamente, com o mote do ciclo — e houve um debate.

Poucas vezes eu tive oportunidade de ver outro massacre semelhante àquele. Em vez de adotar uma estratégia conciliatória, Jabor atacou os posicionamentos esquerdistas de Saramago. O contra-ataque do português — cujas convicções foram pensadas e repensadas durante toda uma vida por um cérebro evidentemente privilegiado, superior mesmo — foi tão arrasador que Jabor foi vaiado ao voltar a falar. E não esqueçam que a plateia era formada por pessoas de posições neoliberais, em evento patrocinado pela RBS.

Saramago, afora sua grande literatura, era um polemista de primeira linha. Provocava com vara curta à direita e à esquerda — não esqueçam seu importante artigo anti-Fidel Castro “Até aqui cheguei” — e tornou-se popular pela qualidade de suas obras e pela notável coerência de ideias. Não houve nada de oportunista na vida e na atuação de Saramago. Porém uma série de intelectuais brasileiros criticavam sua onipresença e má literatura. Ora, todos são livres para gostar ou não de Saramago, eu mesmo me irritei profundamente com a ruindade de Todos os Nomes, em minha opinião uma fracassada imitação de Kafka, mas o que alguns diziam a seu respeito era apenas ranço e má vontade. Li que havia um esgotamento das ideias em seus livros (sem dizer quais, mas parecendo ser essas coisas de esquerdismos e solidariedade), li que por trás de seu barroquismo (*) — acusação que poderia prosperar por ser verdadeira — não haveria mais nada, e li gente muito boa simplesmente e por vício perguntando “Who`s next?”.

Lembro que a revista Veja, que já foi uma publicação respeitável, ter dado páginas e páginas a Tom Jobim, no início dos 80. O motivo, confessado pelo editor da época, era que o ranço de alguns estava tornando Tom um compositor de inspiração americana: “Águas de Março” era um plágio, tudo o que ele fazia era jazz menor (!), etc. Havia tanto ressentimento ao sucesso de Tom que a revista publicou a reportagem de capa “O Tom do Brasil” como uma espécie de desagravo a quem fez mais pelo Brasil do que todos os seus críticos juntos.

Creio que o mesmo estivesse ocorrendo com Saramago. Sua morte, ocorrida na última sexta-feira o torna novamente fabuloso. Uma pena que seja assim.

(*) Sabiam que “Barroco” significa “Pérola imperfeita”?

Morre José Saramago (1922-2010)

“No fundo, não invento nada, sou apenas alguém que se limita a levantar uma pedra e a pôr à vista o que está por baixo. Não é minha culpa se de vez em quando me saem monstros”.

Morreu nesta sexta-feira o escritor português e prêmio Nobel de literatura José Saramago, aos 87 anos, em Tías, Lanzarote, Espanha. Dia triste, tristíssimo para todos os amantes dos livros, da literatura e das ideias. Faleceu em casa.


Reproduzo aqui o texto de Luiz Schwarcz para o blog da Companhia das Letras.

Saudade não tem remédio

Acabo de ver o escritor José Saramago morto. Quando a notícia apareceu na internet, liguei pelo skype para Pilar, que sem que eu pedisse me mostrou José deitado na cama, morto. Tenho falado com Pilar quase todos os dias. Sabia que não havia chance de recuperação, o destino de José já estava traçado, os médicos não acreditavam mais na possibilidade de um novo milagre, como o do ano passado, quando venceu, contra todas as expectativas, os problemas pulmonares que o acometiam.

Posso dizer que José Saramago era um grande amigo meu e da minha família. Quando vinha ao Brasil hospedava-se em minha casa, no quarto que foi da Júlia, minha filha. Ele detestava hotéis. Viu meus filhos crescerem. Fui conhecer sua casa em Lanzarote logo que se mudou com Pilar, abandonando Portugal. Assisti emocionado a cerimônia do Nobel em Estocolmo — pouco antes, no hotel, aprovamos, Lili e eu, o vestido de Pilar para o evento. Estava em Frankfurt quando ele recebeu a notícia do prêmio; celebramos juntos.

A obra de Saramago veio para a Companhia das Letras por acaso. No fim da feira de Frankfurt de 1987 (no segundo ano de vida da editora), ao me despedir de Ray-Gude Mertin, uma amiga pessoal e agente literária de muitos autores brasileiros, comentei que José era dos meus autores favoritos. Conversa à toa, de fim de feira. Não fazia ideia de que ela representava o escritor português, junto com a editora Caminho, e que estava para mudar Saramago de editora no Brasil. Atrasei minha partida e voltei, com a bagagem no porta-malas do táxi, para falar com Zeferino Coelho sobre a Companhia das Letras.

Foi tudo muito rápido, Jangada de pedra foi o primeiro livro, lançado em abril de 1988 com a presença do autor no Brasil, junto com Pilar, jornalista que conhecera em 1986 e que mudou tanto a sua vida. A empatia foi imediata, apesar da minha gafe inicial —perguntei-lhe em plena praia de Copacabana se era verdade que, em Portugal, Psicose, de Hitchcock, fora intitulado O filho que era mãe, e Vertigo, A mulher que morreu duas vezes.

Em seguida fui a Lisboa. Já éramos bem amigos, ele queria me mostrar o novo livro que escrevia. Em sua casa, na rua dos Ferreiros à Estrela, José leu trechos de A história do cerco de Lisboa, e me levou para jantar no seu restaurante favorito, o Farta Brutos. Pilar foi minha guia de Lisboa na ocasião, reservou o hotel num velho convento na rua das Janelas Verdes, e mostrou os locais que aparecem no meu livro favorito de Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis. Comprei com Pilar o primeiro computador de José. Antes disso, ele datilografava três vezes cada livro para entregá-lo completamente limpo a seus editores.

No Brasil, o lançamento de Jangada de pedra foi uma festa interminável. Filas enormes na livraria Timbre e a efusão de beijos e abraços no escritor fizeram-no exclamar, “Luiz, esta gente quer me matar de amor”. Daí para frente, esse amor dos brasileiros por José Saramago só cresceu, suas visitas se tornaram mais frequentes, e vários dos últimos livros lhe ocorreram em viagens pelo país, nas quais estávamos juntos. Lembro-me ao menos de três ocasiões em que isso aconteceu. A mais recente delas foi em sua última estada no Brasil, quando da publicação de A viagem do elefante, livro que José resolveu lançar mundialmente aqui, em novembro de 2008, como presente ao carinho e aos amigos brasileiros. Ele já estava muito fraco, e a viagem era mesmo uma ousadia. Ao chegar em minha casa, numa das nossas primeiras conversas, me disse que não escreveria mais, estava se sentindo velho e cansado.

Depois do evento de lançamento no SESC Pinheiros, vencida uma fila enorme de autógrafos — Saramago nunca recusava autografar, nem mesmo doente —, fomos ao Rio, para a continuidade dos eventos. Ao pousarmos na cidade, enquanto eu recolhia as bagagens, José anunciou, para Lili, Pilar e eu, que decidira voltar a um velho projeto e que no voo achara a solução que faltava para Caim, que acabou sendo seu último livro.

Eu poderia contar outras tantas histórias aqui. Poderia até falar das nossas discordâncias, de uma discussão amigável que tivemos, sentados no alto do Bauzinho, em São Bento do Sapucaí, olhando para o horizonte da Serra da Mantiqueira, que nós dois adorávamos. Mas o espaço é curto: um blog, mídia que Saramago curtiu muito antes que eu. Em outro momento, quem sabe. Agora só quero me despedir mais uma vez de José. Com as melhores lembranças, o amor, e minha saudade. Maldita palavra, tão portuguesa, que agora ficará associada ao meu amigo. Mas saudade não tem remédio, não é, José?

Sobre Ulisses, de James Joyce (comentários que são colaborações)

Por Charlles Campos

Uma breve intromissão do dono do blog: afora a demonstração de conhecimento e vivência literária, o que me interessou no comentário do Charlles foram as afirmações que costumam ser evitadas por quem “canta” as qualidades do romance de Joyce: sua falta de sutileza, de coqueteria, sua essência antiburguesa e até antiliterária. Acho que ele resumiu bem uma característica que  tentei expressar sem o menor sucesso — “romance duro, engraçado, divertido, complicado, pornográfico, sexual e erudito”.

Também gostei muito das observações de outro leitor, Raphael Gomes, que escreveu assim:

Realmente o que mais afasta o leitor dos livros do Joyce é a idéia preconcebida de que Joyce é difícil. Mesmo mal de que sofre Beckett. Pobres irlandeses… Se você pega um livro com a convicção de que não irá entendê-lo,  já entra em campo perdendo. Ulisses é a epopéia do homem comum, e mesmo que não tenha sido escrito para esse homem comum, também não é privilégio apenas de quem, para falar da dor nas costas da avó, se expressa no mais erudito/vernacular jargão filosófico/teórico/literário, coisa que aliás, Joyce nunca fez.

E saio de cena deixando a palavra ao Charlles:

Esse é um dos livros em que o enredo é o de menos. Importa a incrível vivacidade e energia verbal de Joyce. É o anti-limite de sua superioridade como escritor acima de todos os outros_ de Mann, de Faulkner, Proust, Kafka_ que iria subir à estratosfera e se perder com o livro seguinte, o ilegível Finnegans Wake. Trata-se de uma brincadeira bem urdida, uma ciranda calculada na espontaneidade de um severo trabalho de anos, não uma tentativa, mas uma culminação do resumo do ser humano e de sua história, e um enorme deboche à febril ciência da psicanálise (se tudo que passa pela cabeça de um homem comum é divinamente banal, é ridículo sistematizar seu comportamento contraditório numa cabala do subconsciente). Ama-se Bloom e sua esposa, ama-se Dedalus e o excessivamente extrovertido Buck Mulligan, com todos os seus pecados, suas desimportâncias, suas carências.

É o romance da falta de sutilezas, da falta de coqueteria, o romance essencialmente não-burguês (não ANTI-burguês, pois revela o enorme descaso do autor para contrapor uma reação à uma sociedade medíocre), não-científico, e, por mais que possa ser surpreendente, não-literário. Dedica-se todo à celebração da literatura, mas é anti-empolação e anti-oitocentismo. Tanto que depois de Ulisses, aboliu-se a possibilidade de escrever como Victor Hugo, Sully Prudhomme, Romain Rolland, e outros. Ulisses aboliu a literatura em diversos países, obrigando os novos escritores à adaptação. É a suprema manifestação do humor, do humanismo, da redenção velada. Uma mistura de Nona Sinfonia com a fuga da última parte da Sinfonia Júpiter, com cabrioladas de um jazz que abriu as portas para as correntes de ritmos de Coltrane e dos minimalistas. O maior mérito de Joyce foi ter controlado sua extraterrestridade para dar à obra um caráter perfeitamente legível, pois seria natural que depois de ter rompido todos os limites, seu último passo seria Finnegans Wake, assim como o passo seguinte_ o estilo tardio_ de Beethoven fosse os ùltimos quartetos húngaros e a Missa Solemnis.

Aldous Huxley lamentou que Joyce tivesse optado pela abdução. Poderia ter escrito importantes livros da estatura dos de Stendhal. Mas é compreensível. Deportou-se do mundo dos viventes. Não lhe dizia nada a estranheza e prazer de incompreensão libidinosa que o mundo adotaria ao analisar as cartas singelas que escrevia para Nora Barnacle, seu amor de toda a vida. Onde revelava a leveza de seu espírito, a ralé via apenas a sujeira sexual de um intelectual reprimido. Por isso é desconcertante que achemos de uma beleza sem igual as passagens de Bloom se masturbando, de Molly cedendo-se mais uma vez com seus repetitivos sim, sim,sim, da última página, de Mulligan se atirando seminu ao mar, ao lado dos pescadores. Uma impossível beleza nesses gestos prosaicos, e uma lucidez que desmascara toda a hipocrisia, toda pompa. Uma declaração de amor à humanidade, antes de mais nada, mas uma humanidade ainda de um distante porvir, livre das tralhas da ciência e das hierarquias, e centrada no cultivo das idiossincrasias soltas e intimistas de si mesmo.

Por isso que é tão espantoso a Buck Mulligan quando Stephen Dedalus revela que, no leito de morte de sua mãe, se recusou a se ajoelhar; mas não pelo constrangimento à mãe, mas pelo constrangimento contra si mesmo. A liberdade do homem que tomou as rédeas de si mesmo e manda as convenções e a opinião alheia às favas…

Um dia o Charlles há de me explicar o fato de ter chamado os últimos quartetos de Beethoven de “húngaros”. Não entendi. Uma referência à Bartók?

Bloomsday

Além das datas religiosas, não creio haver outro feriado nacional dedicado a um personagem de ficção. O Bloomsday é um feriado comemorado no dia de hoje, na Irlanda, em homenagem ao livro Ulisses, de James Joyce. Atualmente, a amplitude do Bloomsday ultrapassa em muito à esfera de Ulisses. É, em verdade uma data em que se homenageia toda a literatura. Só os joyceanos absolutos — dentre os quais humildemente me incluo — relembram os acontecimentos vividos pelos personagens de Ulisses por dezenove ruas da cidade de Dublin e dezesseis horas no dia 16 de junho de 1904. Para os leitores restantes de todo o mundo, é a data em que se comemora toda a literatura.

Há controvérsias sobre quando o Bloomsday começou. Alguns especialistas indicam 1925, três anos após o lançamento do livro; outros dizem que foi na década de 1940, depois da morte de James Joyce. A hipótese mais aceita indica é que foi em 1954, na data do quinquagésimo aniversário do dia retratado em Ulisses.

Joyce escolheu o dia 16 de junho para ser imortalizado em sua obra porque foi nesse dia que ele teria mantido relações sexuais com sua futura companheira Nora Barnacle, na época uma jovem virgem de vinte anos. Estudiosos afirmam que, na verdade, o casal apenas “caminhou junto” pela primeira vez neste dia. O que sabemos é que, quando da primeira relação sexual, Nora teve medo de completar o coito e o masturbou “com os olhos de uma santa”, como Joyce relatou em carta.

Ao lado dos devotos de Joyce, criou-se uma curiosa seita de tementes (ou hostis) a Joyce. É como se sentissem obrigados àquilo — a tentar entendê-lo totalmente ou repeti-lo. É uma tolice bastante difundida. Ulisses é tão irrepetível quanto a Arte da Fuga de Bach e sua leitura, para o leitor comum,  é tão necessária quanto a audição de A Arte para o ouvinte de iPods. Apenas fico desconfiado quando um autor nega-se a conhecer a obra. Porém, como há historiadores que preferem desconhecer largos períodos…

Mas tergiverso. Assim como falta-nos tudo para que nossa cultura recrie um Bach, assim como algumas obras deste são tão impenetráveis e intricadas que alguns dizem terem sido escritas mais para a leitura de eruditos do que para a audição, o livro de Joyce é um complicadíssimo monumento cultural do qual temos a impressão de nos afastar a cada dia. Mas não me digam que não pode ser lido. Tanto quanto ouço A Arte Da Fuga, li o livro de Joyce desde minha pobre perspectiva e diverti-me muito.

Pois o romance é perfeitamente compreensível. Há pontos de inserção para mortais. As minúcias e a complexa teia de referências são importantes, mas podem permanecer semi-entendidas sem esfacelamento de sua essência. Prova de que o ludus nem sempre está associado à compreensão cabal. (Como disse Karen Blixen, não há nenhum problema em não entender inteiramente um escrito poético).

A história do livro é simples. Trata-se da vida de pessoas comuns da amada/odiada Dublin de Joyce: o professor secundarista  Stephen Dedalus; seu amigo Buck Mulligan; o vendedor Leopoldo Bloom — angustiado com a possível traição de Molly, sua mulher — ; conversas sobre Shakespeare numa biblioteca; a surra que Bloom toma de um antissemita; sua mastubação observando duas mulheres; a mijada no jardim com Stephen; e a chegada em casa, onde deita-se com Molly, a qual finaliza maravilhosamente o romance num monólogo interior prenhe de pornografia. E é isso.

Cada um dos capítulos cobrem aproximadamente uma hora do dia e guarda debochada relação com a Odisséia, de Homero. E aqui tenho de referir os milhares de torcadilhos, paródias — que parece ser a maior arma da arte moderna — , neologismos e arcaísmos.

Eu coloquei nele tantos enigmas e quebra-cabeças que ele manterá os professores ocupados durante séculos, disse Joyce.

Então, hoje é o dia de comemorar a existência do duro, engraçado, divertido, complicado, pornográfico, sexual e erudito livro de Joyce. Lembremos de Leopold Bloom, de sua mulher Molly, de Stephen Dedalus e de Buck Mulligan!

Obs.: As fotos de Marilyn Monroe lendo Ulysses e outro livro são da autoria de Eve Arnold e são de 1955.

Time dos Sonhos, de Luís Fernando Verissimo

O problema de Time dos Sonhos (Objetiva, 2010) não é o autor, mas sim a forma como o livro foi montado. Trata-se de crônicas futebolísticas — quase todas referindo-se a Copas do Mundo — publicadas em jornais entre o anos de 1997 e 2009. Ou seja, há unidade temática, porém esta é desfeita pelo fato dos textos não obedecerem à ordem cronológica. Para quem acompanha futebol, é desagradável ter de adivinhar o contexto de cada crônica ou olhar o final do livro em busca da data de publicação original. A todo momento, saltamos da Copa de 2006 para a de 1998, para depois cair em lembranças de 1990 e voar para a vitória de 2002. As quatro subdivisões do livro — Para que serve o futebol, O time dos sonhos, Ser Brasil e Jogo de cintura — , não me disseram muito. Não obstante este chateação, o texto de Verissimo permanece enxuto, engraçado e compreensivo para com a loucura dos tarados pelo esporte.

Há crônicas extraordinárias, principalmente aquelas sobre com referências a João Saldanha, às domingadas, à comida mexicana, à vida dos jornalistas durante uma Copa do Mundo e aos principais jogadores que encantaram o autor. Este, excelente observador e escritor, é exato, jocoso e nunca inferior aos fatos descritos, mesmo que os conheçamos em detalhes. Uma pena a desorganização do volume. O que poderia ser um livro de referência é confusão.

Indico o livro aos loucos por futebol e aconselho que sua leitura seja feita na base de uma crônica por dia. A leitura de todas em sequência prega sustos e nos faz cometer repetidos equívocos.

É difícil encontrar um homem bom, de Flannery O`Connor

O escritor Fernando Monteiro presenteou-me com este livro para que eu lesse o conto de abertura. Ele sabia que eu leria o resto, é claro. Flannery O`Connor (1925-1964) foi uma extraordinária escritora. A leitura dos contos de É difícil encontrar um homem bom é, no mínimo, uma experiência diferente. Escritos com economia, são histórias povoadas por vítimas odiosas, mesquinhas ou ridículas, acompanhadas – o termo é exatamente “acompanhadas” – de algozes involuntários ou indiferentes. Em comum, poderia dizer que todos são estúpidos, têm vozes desafinadas, são crentes e estão irremediavelmente perdidos. Parecendo detestar os próprios personagens, a autora deixa-os ir em direção do grotesco e do gratuito e é duríssima para com o sul dos Estados Unidos, terra de Bush e de proto-Bushes. Não obstante, a contradição entre estupidez e tensão torna algumas histórias extremamente engraçadas. Afinal, um dos modos de se descaracterizar desgraças é recorrer à hipérbole, ou seja, levá-las a inconcebíveis exacerbações. É isto que Flannery faz com maestria e é compreensível que a autora desse gargalhadas enquanto lia seus contos para os amigos. Fortemente recomendado por este blogueiro, o livro está à venda numa edição da Arx.

Campeonato Gaúcho de Literatura

Hoje, está sendo lançado o Campeonato Gaúcho de Literatura. O primeiro jogo já foi jogado. Trabalharei como árbitro numa das partidas: Cris, A Fera x O Girassol na Ventania. Como hoje estou misterioso (vide post abaixo), não vou divulgar o placar de minha peleja. Cada árbitro trabalhará em apenas um jogo. O legal neste Gauchão é que os livros jogam entre si em triangulares, o que significa dizer que nenhum será eliminado por apenas um juiz, quem sabe especialmente hostil ou desatento. Além disso, os árbitros declararam quais os livros que não podiam julgar devido à problemas de consciência, amizade, inimizade, etc. Segundo Lu Thomé, uma das organizadoras do torneio, as regras serão as seguintes:

Dos 27 iniciais, tira-se 15 livros seguindo a fórmula: os nove campeões de cada grupo e os seis melhores segundos colocados. Como cada jurado foi instado a elaborar um “placar” para cada jogo, se necessário haverá desempate no confronto direto e no “saldo de gols”.

A fase seguinte funciona parecido: dos 15 classificados, formam-se outros cinco grupos com três livros cada. Desses cinco grupos, classificam-se seis competidores: os cinco campeões e o melhor segundo colocado.

A fase semifinal também será triangular: os seis grupos serão divididos em dois triangulares. Os campeões de cada grupo fazem a final. A ideia é equilibrar o poder de um único jurado oferecendo a cada fase duas chances de avaliação para cada livro.

Os grupos:

GRUPO 1:
Atalhos
, de Luís Dill (WS Editor)
Mar Quente, de Enio Roberto (Dublinense)
No Limite dos Sentidos, de Jacira Fagundes (Movimento)

GRUPO 2:
Cris, a Fera, de David Coimbra (L&PM)
Minicontando, de Ana Mello (Casa Verde)
O Girassol na Ventania, de Marco de Curtis (Dublinense)

GRUPO 3:
A Raiz dos Louros, de Faustino Machado (7Letras)
Play, de Ricardo Silvestrin (Record)
Pó de Parede, de Carol Bensimon (Não Editora)

GRUPO 4:
Aroma Hortelã, de Joselma Noal (Movimento)
As Grades do Céu, de Susana Vernieri (Libretos)
O Silêncio dos Amantes, de Lya Luft (Record)

GRUPO 5:
O Batedor de Faltas, de Cláudio Lovato Filho (Record)
O Ideograma Impronunciável, de João Kowacs Castro (Dublinense)
Flores da Cor da Terra, de Lívia Petry (Nova Prova)

GRUPO 6:
Entre Facas, de Liziane Guazina (Nova Prova)
Fora do Lugar, de Rodrigo Rosp (Não Editora)
Os Limites do Impossível, de Aldyr García Schlee (Edições Ardotempo)

GRUPO 7:
Guerrilha e Solidão, de Valdomiro Martins (Literalis)
Raiva nos Raios de Sol, de Fernando Mantell (Não Editora)
Trocando em Miúdos, de Luís Paulo Faccioli (Record)

GRUPO 8
Das Travessias I, de Sérgio Napp (WS Editor)
Sinfonia às Avessas, de Waldomiro Manfroi (Letra & Vida)
Veja se Você Responde Essa Pergunta, de Alexandre Rodrigues (Não Editora)

GRUPO 9:
Escuro, Claro, de Luís Augusto Fischer (L&PM)
O Homem Perplexo, de Edgar Aristimunho (Dom Quixote)
Um Guarda-Sol na Noite, de Luís Filipe Varella (Dublinense)

Nunca esqueçam que futebol é bola na rede. O vencedor receberá 1 milhão de dólares em precatórios da Secretaria da Fazenda do Estado do Rio Grande do Sul e um delicioso saco de pipocas doces da Redenção.

Para quem escrevemos

Acho que alguns de nós, de uma forma indireta, escrevemos posts direcionando-os a determinadas pessoas que, provavelmente, o lerão. O besteirol é para ser lido por meu filho e por aqueles leitores que eu sei que os apreciam, o post de ficção vai para principalmente aquele determinado blogueiro que o lerá com extrema atenção e que comentará elogiando ou enviará um e-mail criticando (Ramiro, normalmente elogiando, ainda bem), o post sobre música vai para o pessoal do PQP Bach mais a Caminhante e a Anna, o post sobre o meu umbigo é para os amigos lerem e comentarem comigo, as resenhas vão para o Charlles, o Marcos Nunes e a Caminhante, os sobre futebol são para o Dario e o Fernando, etc. A verdade é que não apenas esqueço de muitos em minha listinha, mas que todos acabam indo para todos. É claro que o leitor-objetivo está presente em todas as áreas. Saul Bellow dizia escrever para suas mulheres, Thomas Bernhard escrevia para que seu país lesse e o odiasse mais, Clint Eastwood confessou ter feito filmes por vingança de uma só pessoa (e acabou sendo premiadíssimo), Paulo José Miranda escreveu um livro contra uma ex-mulher (e ainda solicitou que ela o revisasse…), Franz Liszt e o último Beethoven diziam escrever para o futuro. Já Fernando Monteiro diz que grande parte dos escritores atuais escrevem seus livros para um passado que, infelizmente, não pode lê-los nem comprá-los…

Já eu, aqui do meu cantinho, estava começando uma crítica simples e curta sobre um ótimo livro de Simenon e sei que a leitora-objetivo deste tipo de post era uma amiga que faleceu há dois meses. Então, ontem, eu começava, recomeçava e não encontrava o tom. Nunca tive bloqueios; sento e escrevo, analogamente ao que faço na privada e com resultados semelhantes. Eu escrevia, tentava ser inteligente, informado, sensível e bom observador porque ela era assim, porque, se eu fosse diferente, ela não daria importância. Aí, depois de algum tempo olhando para a tela, descobri: é muito mais fácil escrever dirigirindo-se a alguém. Só que este alguém me falta. “Saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu”. Pois nem isso consigo, não consigo ainda encarar a saudade. Por enquanto, o quarto ficará fechado, de pernas para o ar, até eu arranjar coragem.

Cena de The Pillow Book (O Livro de Cabeceira), de Peter Greenaway