Uma escola para a vida (The finishing school), de Muriel Spark

Eu sou um cara que costumo andar sempre com um livro na mão, no bolso, na bolsa ou na pasta. Qualquer oportunidade, saco do livro e leio onde estiver. Porém, achei tão ridícula a tradução do título deste romance de Muriel Spark que tinha certo constrangimento de lê-lo em público. E a capa é um horror. Parece um troço militar… Mas o livro é de uma das autoras com as quais mais me divirto. Memento Mori, A Primavera da Srta. Jean Brodie, O Banquete e Realidade e Sonhos não mudaram minha vida, mas me deixaram muito feliz de lê-los, principalmente a Srta. Brodie. Finishing School é um gênero de escola particular muito comum na Europa. É onde os alunos recém saídos do colegial fazem um hiato e tem aulas de idiomas, cultura geral, cultura artística, boas maneiras, leem os livros sem os quais não se pode viver…, etc. É neste ambiente que Muriel Spark desenvolve o tal Uma escola para a vida (2004). A Finishing School em questão chama-se Sunrise e é itinerante. A cada ano aluga um local paradisíaco diferente e lá dá suas aulas. Os donos são jovens — Nina Parker e seu marido Rowland Mahler têm menos de 30 anos. Ela cuida da parte burocrática da instituição e ele leciona redação criativa, uma das matérias mais concorridas do colégio. Nos intervalos, Rowland tenta escrever seu primeiro romance. Paralelamente, um de seus alunos — Chris Wiley, de apenas 17 anos — , também está escrevendo o seu. Só que enquanto o texto do rapaz avança, Rowland entra em crise de criatividade; sim, logo ele, o professor de “redação criativa”. Se Chris alimenta-se da crise e da inveja de Rowland; Rowland deseja todo o mal àquele desgraçado que parece não padecer de nenhuma dificuldade com seu livro.

Sim, é um belo plot e Muriel Spark (1918-2006), que escreveu a novela aos 86 anos, não perde a elegância nem a segurança. Não seu melhor texto, mas ainda assim fica muitíssimos furos acima da média. E, por favor, a octogenária escritora não merecia este título de auto-ajuda… Nada a ver! Eximo o tradutor, que fez excelente trabalho, mas o editor merece a nota zero sem perdão. Faltou-lhe uma finishing school, sem dúvida!

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Kassab kassad em primeira instância

Mais detalhes sobre as peripécias do ex-vice de Serra na prefeitura de São Paulo aqui.

Do Hupper, claro. Ah, vejam o post abaixo…

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Imagem do DEM fica "muito prejudicada" por Arruda, diz Kassab

Aqui.

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Are you going with me?, de Pat Metheny e Lyle Mays

Fiquei muito chocado quando uma amiga minha chamou Are you going with me? de “Música de Boate”. Das duas, uma: ou não é ou é e eu perco muito por não frequentar boates. Infelizmente, não encontrei nenhum show do Pat Metheny Group com Mays e a catrefa habitual. O filme abaixo traz Metheny e a North Sea Jazz Festival em 2003. A gravação original de estúdio está no disco Offramp (Turn Left), de 1981.

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A última da Veja

Um governador em pleno exercício de mandato é preso e a Veja dá destaque de capa ao “Efeito Sanfona”… Será uma mensagem subliminar não entendida por este idiota que vos escreve?

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Comentário sobre o Desfile e a Música das Escolas de Samba

Não por me dar razão em boa parte, mas pela inteligente e esclarecida ampliação do tema apenas sugerido por mim neste post, republico o comentário do leitor Matheus Todeschini Lopes.

Adoro carnaval e sambas-enredo. Sou único da minha faixa de idade, 20 anos, a gostar. Antigamente as baterias tinham um andamento muitíssimo mais lento. Os sambas eram obras sensacionais, com poesia, melodias variadas. “Hoje” (a partir do final dos anos 80, início dos anos 90), o samba mudou, aliás, o carnaval mudou. As Escolas começaram a fazer carnaval para ganhar dinheiro. Não que antes não ganhassem, mas agora estamos falando de milhões. Até 8 milhões de reais. E esse dinheiro é desviado para jogo do bicho, dependendo da Escola vai até para o tráfico. Os sambas eram feitos por grandes sambistas, que amavam suas escolas, seus bairros, sua gente. Gostavam da festa, das pessoas nas ruas a cantar e dançar, a curtir a folia, não por acaso eram foliões. Mocidade com Toco; Império Serrano dando aula de história do Brasil (aprendi o gosto pela história graças ao samba); Vila Isabel com Noel, Brazão, Martinho e Luiz Carlos, cantando sobre o Boulevard, a gente simples da Vila; Mangueira com Jamelão, Helio Turco e Jurandir, iam da Literatura aos morros com seus barracões de zinco; Portela com Paulo da Portela e Paulinho da Viola, pedindo benção dos orixás; Salgueiro com Noel Rosa e seus sambas afro, contando a história do negro do Brasil. Cada escola com um estilo, uma história para contar. Até os artistas começarem a invadir a avenida. Gente que antes não gostava de se misturar com o povão, começou a aparecer na avenida – para aparecer nas revistas, jornais e televisão. Império Serrano avisou em 1982 sobre o que estava acontecendo, com o Bumbumpaticumbumprugurundum:

Super Escolas de Samba S/A
Super-alegorias
Escondendo gente bamba
Que covardia!

É o inconformismo com os famosos, com os turistas, que nem tem ideia do que cantar, tirando pessoas das comunidades dos desfiles, é a revolta contra as Escolas que não escolhiam os melhores sambas, mas os que pagavam mais. Retorno financeiro. Dinheiro, dinheiro. $$$$

“Já diria Sérgio Cabral: “Brancos, devolvam a escola de samba aos negros”. Como este pedido será atendido hoje em dia? Quem sustentaria o carnaval, de maneira a manter o luxo hoje imprescindível que faz atrair milhares de turistas de lugares do mundo inteiro até as arquibancadas da Marquês de Sapucaí? É brabo de admitir, mas os desfiles das escolas de samba de hoje se resultam numa festa capitalista, pouco importando a qualidade do samba e desprezando os mais humildes das comunidades que amam o samba para dar lugar aos endinheirados caras-pálidas que sequer gostam deste ritmo musical tipicamente brasileiro. E, lamentavelmente, o dinheiro e as super-alegorias que escondem ainda mais a gente bamba acabaram definitivamente por diminuir um pouco a apoteose e a magia do carnaval. Por isso que as vendas dos discos de sambas-enredo despencaram consideravelmente, ao ponto de uma pesquisa divulgada no começo de 2004 mostrar que 60% das pessoas não gostam de carnaval, a prova concreta de que a popularidade do samba-enredo descera por ralo abaixo. Tal rejeição melancólica faz com que as músicas mais tocadas do carnaval sejam da estirpe de “Egüinha Pocotó”, “Tapinha não Dói” e genéricos. É duro admitir! Isso é profundamente triste para quem tem amor ao carnaval e ao samba-enredo: ver este gênero musical ser desprezado por muita gente (sobretudo os jovens).

Ver aqui.

Hoje, os grandes sambistas estão de fora. Martinho, por milagre, conseguiu colocar um samba na Avenida, em homenagem a Noel Rosa, com a Vila Isabel. Infelizmente o samba foi destruído na avenida, pois o andamento foi por demais acelerado… Traficantes colocaram sambas noutras escolas, enchendo de dinheiro as diretorias…

Os desfiles não servem para mais nada. Não há graça. Já sabemos sempre quem fica na frente, entre os 6 primeiros. O bicho manda. A bala manda.

E eu, burro que sou, já estou esperando os sambas de 2011, só para ver e ouvir a mesma merda, sambas imbecis, sem qualquer qualidade.

Aí tenho que ler “Tudo começa pela música. As melodias são todas muito parecidas, além do ritmo ser sempre o mesmo e das repetições fazerem parte do sistema” e tenho que concordar… Ler “E por que não usar uma batida mais lenta? Seria uma revolução… Se uma tem de ser mais alegre e empolgante que a anterior, não há como a coisa não tender à idiotice. E, decididamente, não é arte. É muito mais uma grande lavanderia de dinheiro para os traficantes” e ter de balançar a cabeça novamente, confirmando.

🙁

* Beija-Flor tem por característica ter sambas mais lentos e tristes.

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Sem Rumo, de Cyro Martins

Cyro Martins (1908-1995) é uma instituição gaúcha. Foi importante escritor e talvez médico ainda maior. Sem Rumo (1937) é o primeiro livro da chamada Trilogia do Gaúcho a Pé, que é completada por Porteira Fechada (1944) e Estrada Nova (1954). Li detidamente Porteira Fechada no ano passado. Na verdade, digitei o romance por inteiro a fim de fosse convertido para o Braille, pois é de leitura obrigatória para o vestibular da UFRGS. Fiquei entusiasmado e pensei em ler toda a trilogia, essa desconhecida.

O primeiro volume é decepcionante: achei Sem Rumo quase ilegível, tal o número de antigas expressões gauchescas utilizadas. E olha que, apesar de urbano, sou gaúcho e costumo entender com facilidade tudo o que me cai em mãos, mas as expressões fronteiriças de Cyro acabaram por me incomodar. OK, a história é boa, Cyro tem uma dimensão social inencontrável em Erico, por exemplo, mas penso que ele exagerou a mão em seu romance de 30. Suas primeiras páginas são quase impenetráveis e não são exageradas as 233 notas explicativas que o “tradutor” coloca ao longo das 140 páginas. Chiru é um projeto daquilo que seria o grande João Guedes no segundo romance da trilogia. Indicado apenas para estudiosos da região fronteiriça do início do século e para nascidos em Quaraí.

P.S. — Ah, a edição da CORAG, comemorativa dos cem anos de nascimento do escritor, é uma joia. Os livros — comprei toda a trilogia por quase nada — são belíssimos.

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Estive em Lisboa e lembrei de você, de Luiz Ruffato

Excelente novelinha bipartite de Luiz Ruffato. Serginho (Sérgio de Souza Sampaio) vive em Catagueses uma vida simples de cerveja, trabalho mal remunerado e fofocas. Repentinamente, acaba sendo obrigado a casar com Noemi por causa de uma gravidez, tem problemas financeiros e pensa resolvê-los emigrando para Portugal. Lá, enriqueceria.

A primeira parte da novela trata das idas e vindas de Serginho até decidir-se pela viagem; a segunda é a experiência portuguesa. Ruffato é excelente escritor e conta a história “sobrando”. Não é um livro alegre. Ver o personagem passar de cidadão de segunda classe em Catagueses para a terceira classe portuguesa não é das coisas mais motivadoras que tenho lido, mas a graça e a fluidez do autor deixam tudo mais leve, escapando dos excessos de verossimilhança e das teses sociológicas. A ingenuidade do personagem e a estranheza com o falar português são muito bem mostrados. É um bom livrinho de 83 páginas. Vale a leitura.

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Desfile das Escolas de Samba

Há poucas coisas mais entediantes do que os desfiles. Tudo começa pela música. As melodias são todas muito parecidas, além do ritmo ser sempre o mesmo e das repetições fazerem parte do sistema. Mas ouvi-lo de longe não chega a ser irritante. Aos poucos, a atenção sobre o que se ouve vai ficando rarefeita e podemos perfeitamente religar nosso toca-discos interno. O som torna-se uma new age percussiva.

Já olhar é pior. A necessidade de “demonstrar 100% de alegria na passarela do samba” é das coisas mais enjoativas. Não é possível fazer um desfile triste e sem erros? E por que não usar uma batida mais lenta? Seria uma revolução… Se uma tem de ser mais alegre e empolgante que a anterior, não há como a coisa não tender à idiotice. E, decididamente, não é arte. É muito mais uma grande lavanderia de dinheiro para os traficantes.

Vi a comissão de frente da Unidos da Tijuca. Aquela troca de roupa é o sonho de todo marido.

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Relato de uma Viagem à Itália (VII)

No outro dia, fomos à cidade de Trento. Definitivamente inseridos em postais de natal, como nesta foto tirada de dentro do carro, na estrada entre Riva Del Garda e Trento,

Flavio levava nosso grupo – eu, Claudia, Julio e Marcelo – por uma estrada sinuosa e absolutamente inesquecível, quase sobrenatural sob a neve. Lembro de lagos com castelos em ilhas, lembro de vinhedos sem fim, de pontes, de subidas e descidas belíssimas e de curvas, curvas, curvas. Riva é uma pequena cidade e sei que o Flavio, que é arquiteto, realiza seus projetos nas redondezas, tendo que viajar diariamente. Pergunto se ele não enche o saco de tantas viagens e curvas e ele me dá a resposta óbvia que, penso, também daria em seu lugar: “Gosto de viajar pela região”. Não me incomodaria de ser seu motorista. Livramo-nos do carro e fomos caminhar pela cidade, tomando parte na interminável guerra de neve protagonizada pelo Marcelo e pelo Julio. A sensação de frio, apesar do zero grau, não era algo que nos fizesse sofrer muito.

Os filhos do Flavio caíam e molhavam-se na neve a todo o momento, mas, apesar de nossas advertências, não estavam nem aí e não sentiam nenhum desconforto com a meleca do chão da cidade. Fomos a um parque – cujo nome deve, tem que ser Dante Alighieri – e conversamos à beira de um lago perfeitamente congelado, enquanto o Flavio, apesar do sábado, atendia telefonemas que pareciam ser de clientes.

Fomos tirar fotos frente a uma estátua bastante diferente de Dante Alighieri, mais um monumento fascista dos muitos que há na Itália. Desta vez, o mau gosto ultrapassa todo o palatável e o Duce nos faz ver uma versão de Dante fazendo uma saudação fascista em direção ao resto da Europa. Eu e Flavio, tomados de compreensível entusiasmo histórico-ideológico, não resistimos àquela demonstração insofismável e inventiva da direita e imitamos o cara, fazendo uma pose de faria morrer de inveja certos blogs por aí.

Foi surpreendente quando o tal “cliente”, que telefonava a cada dez minutos desejando saber onde o Flavio se encontrava, chegou. Fomos a um bar esperá-lo. O Flavio direcionou-o e não aguardamos muito tempo. Chegou dizendo que vinha entregar uma encomenda ao grande Milton Ribeiro… Ele era, apenas e simplesmente, o Allan, do Carta da Itália, um verdadeiro e completo cronista, dono de uma das prosas mais finas da blogosfera e que mora em Piacenza. Ele chegou com um pequeno e valioso presente, um CD de Pino Daniele que provocou imediato entusiasmo na Claudia e incompreensão em mim. Até hoje este CD é polêmico aqui em casa. Eu e a Claudia gostamos muito e o ouvimos com freqüência. O Bernardo e a Bárbara o detestam; o Dado costuma a cantar Arriverá L´Aurora, num tom agudíssimo quando quer me irritar. Enfim, coisas do esporte bretão. O fato é que o Allan viera especialmente de Piacenza e eu fiquei felicíssimo com aquilo. Notem, na foto abaixo, além do Allan, a cara diabólica do Marcelo e o CD do Pino em primeiríssimo plano.

Fomos comer numa pizzeria e seguimos caminhando pela cidade, realizando gravações para a obra cinematográfica Milton Ribeiro na Itália, que está orgulhosamente instalada neste micro e agora no YouTube. No intervalo das complexas gravações, mais fotos.

De Trento fomos fazer uma visita à Vinícola e “Distilleria” Francesco Poli, em Santa Massenza di Vezzano. Degustamos vinhos e grappas absolatemente maravilhosas. Posso dizer que bebi um pouco além da conta, mas como não dirigir mesmo, tudo certo. Além de mim, as crianças demonstraram claramente que seu prazo de validade estava vencido. Compramos vinhos e lamentamos que nossas malas estivessem tão cheias. De outro modo, traríamos a produção da vinícola para Porto Alegre. Voltamos a Riva para realizarmos as tomadas finais do hoje clássico Milton Ribeiro na Itália, com a participação do inglês Allan Robert no papel de testemunha da assinatura do Kontracto de Flavio Prada com a Verbeat. Após firmarmos o compromisso, Flavio Prada e eu fomos tirar uma última foto. Ainda no papel do Almodóvar de Riva, ele ordenou que fizéssemos caras de idiotas. Vejam no resultado como ele é melhor ator.

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Relato de uma Viagem à Itália (VI)

Alguns de meus sete leitores talvez nem lembrem mais que abandonei o relato de minha viagem à Itália. Parei no capítulo V e o retomo agora de forma a apagar minha desídia. Na última parte publicada, eu e Flavio Prada estávamos aos beijos na estação de trem de Rovereto. Sim, ele me deu dois beijinhos à russa. Ignorava que os italianos também eram dados a este gênero de expansões e fiquei na minha, apenas virando levemente o rosto, por medida de precaução. Talvez ele estivesse me tomando por outro, talvez nem fosse o Flavio, sei lá. Afinal, nunca se sabe, só o conhecia dos blogs.

Quando combinamos a visita de dois dias a ele em Riva del Garda — …

…cidade paradisíaca numa bela região montanhosa como mostra a foto acima –, trocamos alguns e-mails em que Flavio mostrava-se preocupado com o roteiro de viagens pelas redondezas de Riva e com o cardápio que nos seria servido. Ele queria saber do que gostávamos, o que queríamos ver, etc. Não respondi, disse-lhe apenas que não fizesse nada diferente do normal e que, como não conhecíamos aquela região, ficaríamos nas mãos dele. Imaginem se eu faria exigências a um anfitrião que desconhecia pessoalmente e que gentilmente nos receberia junto a sua família de esposa e três filhos? Nunca! Mas Flavio voltou à carga e fez-me entender que tudo tinha que ser pensado com grande antecedência. Consultei a Claudia e ela me disse que os italianos eram assim mesmo. Gostavam de tudo acertadinho. Pedi-lhe uma sugestão de cardápio e ele nos respondeu com algo consistentemente majestoso. Também descreveu-nos os vinhos… Salivando, concordamos com tudo. E ele nos fez uma proposta de roteiro muito mais interessante do que as que pesquisáramos. Tudo certo.

Depois de três minutos de Flavio Prada, já tinha reconhecido o blogueiro que faz humor de quase todos os modos, mas principalmente explorando as contradições entre forma e conteúdo. É alguém em quem a piada brota de um rosto sério, que apenas ri – e muito – quando percebe o entendimento do interlocutor. De novo a forma e o conteúdo em oposição. Vi ainda que ele tinha em comum com a Claudia a característica de não explicitar seu afeto por palavras, mas através de atos. Novamente, o conteúdo vem sem forma, inesperadamente. Estou acostumado a isto e concluí que seria muito bem tratado. Fui.

Estava um frio de rachar. Depois de uma rápida visita ao MART (Museo d`arte moderna e contemporanea di Trento e Rovereto), fomos deixar nossas malas no apartamento da família, em Riva. Lá, conhecemos a Marly, mulher do Flavio, com a qual tinha tido uma curiosa conversa telefônica no dia anterior: ela falava em italiano e eu respondia em português, sem que nenhum dos dois notasse nada de estranho. Ficamos sabendo que nossa chegada lamentavelmente desalojara dois dos filhos deles, que iriam para o quarto da irmã. Lá, tivemos nosso primeiro e qualitativamente nada modesto almoço.

Para quem não sabe, o Flavio, além de arquiteto e escritor, é pintor, músico e cineasta amador. Quando seus filhos Beatriz, Julio e Marcelo chegaram, tivemos a exibição de alguns incríveis curtas nos quais seus filhos são explorados como atores. Há uma cena de perseguição que até agora não sei como foi filmada e a cara de delinqüente de seu filho Marcelo é absolutamente engraçada. Também tivemos alguns solos do guitarrista e tecladista (roqueiro) Flavio. Depois de comermos feito uns animais, a cena era a da foto abaixo. Acredito que as pessoas ficam burras depois de comer demais. É a burrice pós-prandial. Olhem a foto e tentem analisar o que se pode esperar de gente assim. Bem, eu fui lavar a louça, pois considero esta tarefa não seja muito exigente mentalmente.

Acho que saímos só ao entardecer. Visitamos o local do I Congresso Intergáctico de Blogueiros de Riva del Garda que, desta vez, apresentou um acrécimo de 100% de comparecimento em relação ao primeiro evento. Gostaríamos que ficasse registrada a profunda animação dos congressistas, assim como a neve sobre a mesa dos debates.

Voltamos para o apartamento onde comemos novamente (e eu voltei a lavar a louça ). Depois disto, contradizendo a burrice pós-prandial, eu e o Flavio ficamos conversando como velhos amigos até mais ou menos às 4 da madrugada. Foi uma conversa séria, em grande parte sobre política. Durante o papo, tive a idéia de montar o Bombordo para ver se tornava mais produtivo um certo grupinho de discussões que fica desfiando teses e mais teses para o Yahoo ler.

Lamentei estar cansado e ter pedido a ele para me retirar e ir dormir. Quando entrei no quarto, a Claudia já dormia há mais ou menos dois anos. Deitei cuidadosamente na cama para não acordá-la – ela sofre de insônia, eu não – e, quando coloquei minha cabeça no travesseiro, certo de um sono reparador, ouço uma gargalhada, digamos, imoderada, vinda das minhas costas. Não, prezado leitor, não fui enrabado, acontecera que minha cabeça pressionara um saco de risadas que fora colocado ali pelo diabólico Julio, de nove anos, o segundo filho do Flavio. Procurei debaixo do travesseiro, nada. Abri a fronha, nada. A Claudia começou a reclamar e disse que eu estava acordando a casa inteira. Mandei calmamente ela calar a boca. O guri tinha posto fronha dentro de fronha para dificultar meu acesso à merda gargalhante. Acabei por acertar um soco no meu travesseiro e as risadas pararam. Então, cuidadosamente, pus meu travesseiro no chão para que a coisa não disparasse mais, enquanto a Claudia tinha um ataque de riso a meu lado. Eu, o usurpador do quarto, fiquei paradinho o resto da noite, temendo novas armadilhas.

Muito cuidado ao visitar Flavio Prada, portanto.

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Relato de uma Viagem à Itália (V)

Já tínhamos combinado com o Flavio Prada que passaríamos dois dias em sua casa, em Riva del Garda. A combinação foi estranha para mim, pois o Flavio desejara que nós aprovássemos com dois meses de antecedência o cardápio que nos serviria… Confesso que cheguei a pensar que fosse uma brincadeira dele e respondi que qualquer coisa nos satisfaria, que não éramos muito chatos, etc. Mas logo vi que ele queria mesmo que opinássemos. A Claudia observou:

— Milton, teu amigo já é 100% italiano. Este tipo de coisa é bem deles. Querem tudo combinadinho e nada pode dar errado. Não sei como ele ainda não especificou nossa agenda.

Então tá. Trocamos vários e-mails em que os pratos iam sendo um a um escolhidos. A Claudia ousou sugerir uma simplificação do cardápio, mas a modéstia de minha cara-metade foi escorraçada por nossos futuros anfitriões. Logo depois, o esperado: Flavio queria acertar uma agenda, aonde iríamos, etc. Disse que dois dias era muito pouco, que éramos uns trouxas, aquelas coisas do Flavio; mas depois de algumas explicações e piadas, a agenda saiu. Então tá.

Porém me adianto, devo retornar a dois dias antes de partirmos de Porto Alegre, quando a Claudia me chamou no computador.

— Milton, este aqui é o Flavio Prada?

Olhei melhor a foto.

— Sim, não tinha visto isso.

— E esta aqui, tu tinhas visto?

— Também não.

— Bom, espero que ele seja divertido – completou ela.

— Eu também! — suspirei.

Voltamos à Itália. Pegamos o trem para Rovereto em Verona. É uma longa subida em que a neve e as montanhas vão surgindo até cercarem-nos totalmente. A viagem é linda, mas as fotos ficaram horríveis. Tentei de todas as formas mostrar que havia montanhas dos dois lados, atrás e na frente. Talvez outro tivesse conseguido, eu não. E muitas fotos mostraram meu lamentável reflexo no vidro. Deu tudo errado. Gostei da mais despretensiosa:

Quando chegamos na estação de Rovereto, devíamos finalmente encontrar o Flavio. Olhei para os lados e não vi ninguém. Fiz uma piada para a Claudia, dizendo que estava me sentindo como Tolstói na estação de trens perto de Iasnaia Poliana. (Não entendeu? Vá ler qualquer notinha biográfica do cara!) Era neve e mais neve e ninguém nos esperava. Até que surgiu um sujeito em tudo semelhante ao Flavio Prada das fotos. Caminhava rápido, sem olhar para os lados e estava passando reto. Chamei-o:

— Flavio?

Ele descreveu uma curva em torno de nós e disse:

— Eu não sou Flavio Prada! E não gosto de ser confundido com blogueiros!

Comecei a rir, nos abraçamos e… coisa esquisita. Ele me deu dois beijinhos à russa. Ignorava que os italianos também eram dados àquele gênero de expansões e fiquei na minha, pensando que tínhamos saído muito rapidamente de Iasnaia Poliana para o Kremlin. Afinal, o Flavio ostentava um chapéu que poderia ter sido em outra encarnação uma chapka soviética.

Saímos de carro. Fomos ao Mart, o Museu de Arte Moderna de Rovereto e viajamos até Riva del Garda. Na estrada, paisagens assim. Vejam como o Flavio sofre.

Interrupção Brusca: Antes de eu terminar o post, entrou no ar o filme da Verbeat — dirigido por Flavio Prada — sobre minha visita à Itália e sua assinatura de contrato em nossa prestigiosa empresa. Vejam o filme, comprem o livro e curtam as sensacionais blogueiras dançantes presentes na película!

Bom filme!

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Relato de uma Viagem à Itália (IV)

Como quase todos que a visitam, chegamos a Veneza de trem. Tudo normal na estação de trens. Comemos alguma coisa, ligamos para o Flavio Prada, compramos a passagem de volta para Verona. Tudo normal.

Saindo da estação de trens para a rua tem-se uma visão extraordinária. É um choque mesmo. (Quando voltei a Porto Alegre, meu amigo Fabrício Pessoa logo perguntou: e a sensação que dá na gente ao sair da estação de trens?) Pois é. Há a calçada por onde caminhamos, uma calçada normal, há edifícios normais do outro lado da rua, só que no meio há água salgada e barcos. E há os gritos dos vendedores querendo que se entre neste ou naquele barco. Mas é difícil de decidir qualquer coisa, pois a visão é absolutamente extraordinária para o visitante de primeira viagem. Parece uma montagem de cinema muito perturbadora, pois estamos dentro do filme em situação tri-dimensional. Pegamos o traghetto para a Piazza da Catedral de San Marco e – isto não é pose – lembrei do filme Morte em Veneza. Veio-me logo à lembrança o nome do personagem principal, Gustav Von Aschenbach, escritor no livro de Thomas Mann, compositor no filme de Luchino Visconti. Minha trilha sonora era o Adagietto de 5ª Sinfonia de Mahler, também utilizada no filme e misturada com o barulho do motor do traghetto que nos levava. Antes que alguém pergunte, já vou respondendo que não!, não procurei adolescentes bonitinhos pela cidade…

Descemos em San Marco e começamos mais uma daquelas caminhadas de dia inteiro pela cidade. Um dia lindo, por sinal, em que fomos procurar pelo teatro La Fenice, pelo bairro judeu e pelas coisas turísticas, mas – maus turistas que somos – passamos a caminhar desprogramadamente por ruas cada vez mais estreitas, admirando as pequenas pontes para pedestres os pequenos canais navegados com suas gôndolas e, quando deu fome, procuramos por um restaurante onde houvesse bastante gente conversando no balcão – “bastante gente” significaria “bom restaurante” e “conversando no balcão” significaria “gente de Veneza, nativos”. Encontramos um numa viela. Uma senhora ria e gritava na porta alguma piada em dialeto veneziano para a garçonete, que lhe respondia sorridente. Não havia balcão, mas era o suficiente. Entramos, tinha poucos pratos a escolher, todos com aquele aspecto de assombrar qualquer fome, por maior de fosse. Comida maravilhosa, complementada por um musse de café inesquecível e sempre interrompida por algum morador que entrava saudando o dono do estabelecimento aos gritos, sendo contra-saudado da mesma maneira. Estava tão bom que começamos a conversar e a beber, esquecidos da cidade lá fora para ser vista.

Encontramos La Fenice e tudo o que planejáramos, fizemos declarações de amor à Veneza e compramos CDs dentro de uma exposição dedicada a Vivaldi e seu Tempo. Bem, os CDs comprados não foram de Vivaldi, foram de Piazzolla, alguém muito amado pelos italianos.

Fotos:

A caminho da Piazza de San Marco. Paisagem belíssima construída pelo homem acompanhada de vento e de um frio de 3 graus. Foto tirada de luvas, com receio de que a máquina fosse parar dentro d´água.

Vamos entrando na cidade e as ruas ficam mais estreitas. Há trânsito, berros e buzinas. Parece incrível que numa cidade tão lúdica haja pessoas apressadas e estressadas, indo trabalhar de barco.

Chamem os inquisidores novamente! Levem o blogueiro! A Catedral de São Marcos é mais impressionante do que a de São Pedro no Vaticano. É escura por dentro, cheia de mosaicos formados por pedrinhas infinitesimais. Um arraso.

Sobre uma ponte para pedestres, absolutamente perdidos, procurando pelo Teatro La Fenice.

Encontramos o Teatro La Fenice após ter passado duas vezes por trás dele, lendo as placas de Ingresso Personale di Servizio, Entrata e Uscita dei Musicisti, etc. Visto de fora, o teatro não chega a impressionar. O La Fenice foi destruído por um incêndio em 1996, sendo reaberto em 2002 para concertos e em 2003 para óperas. Dois eletricistas foram acusados de provocar o incêndio e hoje estão na prisão. Durante o período de reconstrução, as óperas eram levadas sob uma lona de circo, em uma piazza próxima. A faixa que vocês lêem significa: Do fogo se ressurge, da ignorância não e é endereçado a Berlusconi, que quer reduzir drasticamente as verbas para a cultura. Será que Berlusconi ressurgiria do fogo? Poderíamos tentar. Falando de coisas mais agradáveis: quem é o diretor deste teatro? É o maestro brasileiro Isaac Karabtchevsky. Sim, aquele mesmo que só programa merdas para a OSPA, aqui rege Mahler.

Espalhadas pela cidade, há estes rostos em pedaços. São restos de uma Bienal.

Ah, se as fotos tivessem som! Ao entardecer, ao lado de outra daquelas esculturas e vestido a rigor, um alaudista enfrenta com competência a Fuga da Suíte BWV 997, de J.S. Bach.

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Relato de uma Viagem à Itália (III)

Fomos de Roma para Verona de carona. Um pequeno problema na saída: tínhamos crescido e não coubemos no Skoda do Mario. Mudamos para uma enorme van da Fiat chamada Ulysse que deve ter consumido muito mais combustível do que o pretendido pelo Mario e pela Marisa… Verona é muito menor do que Roma, é claro, mas nela podemos ter uma perspectiva histórica muito diferente. Lá, a Idade Média permaneceu. O Renascimento, em Roma, destruiu muitas obras da Roma Antiga e praticamente sepultou a Idade Média. Os veroneses, muito mais pobres naquela época, mantiveram um registro menor, porém mais completo de seu passado. E, se em Roma a Claudia estava em casa, o que dizer de Verona, cidade onde ela morou por sete anos? Ela conhecia não somente todos os pontos turísticos como também os gastronômicos, as ruas, as linhas de ônibus e os supermercados… Minha lembrança da cidade estará sempre misturada com as figuras gentis e engraçadas do Mario, da Marisa e da Bruna, pessoas que a Claudia adora (não é para menos) e que depois nos deram as chaves de seu apartamento de Verona — trabalham lá — e foram embora para o Brasil preparar sua festa de 25 anos de casados… Numa espécie de estranho e benigno ciúme restrospectivo, deu-me desejos autênticos de um dia também morar lá. É uma cidade lindíssima, pequena (250.000 habitantes), com trânsito inexplicavelmente complicado e cartazes anunciando concertos de música erudita em muitas paredes — dei-me ao trabalho de contar os cartazes nas ruas, assim como as páginas culturais dos jornais. Os concertos eruditos e óperas de que ocorrem em Verora durante um mês, correspondem a seis anos de Porto Alegre, sem contar a qualidade. Uma cidade pequena, latina, linda, com todas as estações bem definidas e música… É o meu país inventado, é o paraíso!

Só não gostei de ter entrado numa gelateria para comer brioche — um pãozinho doce — com sorvete. Uma ideia legal no papel, mas por demais embuchante para meu estômago, que costuma aceita qualquer coisa em quaisquer quantidades.

Vamos às fotos?

A Arena de Verona vista de fora. Suponho que esteja abaixo do nível da rua para facilitar a entrada e armazenamento de água em seu centro, pois primeiramente era utilizada para servir de palco a batalhas navais, assim como o Coliseu de Roma.

A Arena é o Coliseu de Roma menor, porém completo. Fiquei abismado com sua beleza e, depois de ouvir a Claudia contar sobre as óperas tinha visto ali, pedi ela ir lá embaixo, pois queria sentir um pouco da acústica. Olha, eu conheço bem a mulher com quem vivo há 3 anos e meio; então, sei que ela falou bem baixo mas a ouvi perfeitamente uns 40 metros acima. Um espanto. É evidentemente, um local perfeito para óperas. Não se faz necessária nenhuma amplificação eletrônica. Só instrumentos e gogó.

Foto da Piazza Bra, tirada do alto da Arena. Era 11h30 mas, com aquele frio, nem os veroneses se arriscavam muito na rua.

Detalhes da porta da Igreja de San Fermo.

Mais do mesmo. Sua construção foi feita sobre outra igreja, esta medieval, que está recuperada abaixo. É isso mesmo, San Fermo está ao nível da rua e há outra igreja, plenamente recuperada, tosca, linda, medieval e ativa no sub-solo.

O claustro de San Fermo.

O Castel Vecchio à beira do rio Adige é uma antiga fortificação onde há um museu e mostras de artes plásticas, com acervo permanente e visitante.

O rio Adige é limpo e ali reúnem-se milhares de aves ao final da tarde com finalidades não declaradas. Só sabe-se, ou melhor, vê-se, que elas obedecem a um instinto súbito de levantarem vôo todas ao mesmo tempo e que é bonito de se ver.

Dizem que dá sorte colocar a mão no seio direito de Julieta. Todo mundo faz, não custa tentar, apesar de ser um seio gelado.

Na próximo segmento, Veneza e, depois, Riva e Flavio Prada.

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Fuga do Carnaval (imitando o Cláudio Costa)

A partir de 1:18, minha (difícil) Fuga do Carnaval. Da Partita Nº 2, BWV 826, de Johann Sebastian Bach. Ah, Glenn Gould ao piano, claro.

E aqui, a fuga do Dr. Cláudio.

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A Campanha não começou, mas o Carnaval já: Marcha da Dilma

Achei ultrabagaceiro, mas deve estar no nível das próximas eleições.

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Relato de uma Viagem à Itália (II)

Pegamos o vôo para Roma pela Ibéria, já acostumados ao mau tratamento e aos atrasos da empresa. Chegamos às 22h ao aeroporto de Fiumicino e o amigo da Claudia, Mario De Cristoforo, já estava nos esperando. Ele me perguntou se eu já conhecia Roma e, ouvindo minha resposta negativa, propôs a seu colega Pedro, que dirigia o carro, um rápido tour pela cidade. Senti-me protagonizando a cena final de Roma de Fellini, na qual um grupo de motociclistas percorrem alucinadamente a cidade, passando — e não poderia ser diferente, porque a cidade é um museu a céu aberto — por vários de seus monumentos históricos. Vimos o Altar de Pátria, o qual foi descrito por Pedro como um horror criado por Mussolini (verdade); paramos em frente ao Coliseu, muito bonito e fantasmagórico à noite; e vi ruínas, ruínas, ruínas por todo o lado, as quais vão sendo sistematicamente cuidadas, recolhidas e remontadas. Percorrendo Roma de carro, à noite, certamente estava despejando ohs! e ahs! para todo o lado, nem que fosse em silêncio.

Ficamos insuficientes 4 dias na cidade. A chuva, aquela que costuma me acompanhar e que desta vez até transformou-se em neve, esteve sempre presente em Roma, mas não nos impediu de passar todo o tempo fora de casa. Penso que o ponto alto foram as caminhadas pelas ruelas da cidade histórica, com o ambiente barulhento e desorganizado em torno de nós e as surpresas que aconteciam a cada virada de esquina. Deixando de lado o mapa, tínhamos a possibilidade de ver uma Piazza Navona, uma Fontana di Trevi, o bairro judeu, uma pequena piazza ou apenas mais uma rua ao fazermos uma curva. Se tivesse que eleger o que mais gostei em Roma, ficaria com suas ruas, depois com o Pantheon, a Fontana di Trevi, a Piazza Navona, a Piazza di Spagna ligada à Scalinata della Trinità dei Monti, o Caffè Greco, os estupendos Musei Vaticani, a estranha imensidão do Circo Massimo com seus atletas de fim de semana e o mercadão dominical de Porta Portese. Também adorei as pequenas igrejas da Via del Corso, os notáveis afrescos de Santa Maria del Popolo na Piazza del Popolo e mais vinte outras que esqueci os nomes.

As decepções foram a Catedral de São Pedro, uma ostentação medonha que parece existir mais com a intenção de oprimir os pobres seres humanos com o poder da igreja do que ser um local de devoção e fé. Sinceramente, a Catedral do Papa pareceu-me destinada a arrancar exclamações de turistas deslumbrados. A mim, causou um pouco de medo e fantasias rápidas de inquisição. Também fiquei desiludido ao ver a chocha expressividade perfeita da Pietà – esperava algo com a intensidade da clássica cena de Bergman em Gritos e Sussurros e vi apenas algo impecável, perdido na riqueza da Catedral. E voltando ao Altar da Pátria (Altare della Patria)… aquilo é um trambolho imenso, heróico e mussoliniano a estragar a paisagem, só tornando-se interessante de longe, quando não se vê seus detalhes.

Comemos sempre muito bem. Se íamos fazer economia nas pizzeria al taglio, o resultado era maravilhoso; se íamos gastar numa gelateria das piazze, experimentávamos o melhor dos sorvetes; se estávamos congelando e entrávamos num caffè ou numa cioccolateria, tínhamos vontade de passar lá o resto da tarde, lendo, bebendo e conversando. É natural que a comida italiana seja melhor na Itália, não? As pizza al taglio deles – que ficam atrás de vitrines acompanhadas de atendentes apressadas e simpáticas, sempre querendo nos cortar pedaços muito maiores do que o solicitado — poderiam ser servidas, com vantagem, nas melhores pizzarias brasileiras. Uma questão de qualidade dos ingredientes, explicava-me a Claudia.

Gastamos muito e bem em Roma. Há coisa barata e boa fora do circuito Helena Rubinstein; deveríamos ter viajado com a mala vazia para enchê-la com roupas de inverno na Itália. Os eletrônicos de pequeno porte também são acessíveis. Comprei um Walkman com CD, MP3, etc. por 39 euros. Tinha I-Pods a partir de 50 euros. Por que o mesmo Walkman custa R$ 300,00 no Brasil? Já os CDs são caros, principalmente para alguém financeiramente contido como eu, mas há honestos balcões de ofertas que me fizeram comprar uns 20 de primeira linha, sem cometer suicídio financeiro. Os livros também são muito acessíveis. O que é caro é a comida, as lojas para turistas e a hospedagem.

Depois destes 4 dias de caminhadas malucas, fomos para Verona de carro, com o casal Marisa Machado e Mario De Cristoforo, amigos da Claudia, como já disse. Mas isso fica para um próximo post. Finalizo Roma com fotos.

Escultura de Arnaldo Pomodoro na parte interna dos Museus do Vaticano, adornada pelo brinco da Claudia (lado direito da foto).

Os museus do Vaticano têm um acervo artístico interminável, seja em obras sacras, seja em profanas, afrescos, etc. De quebra, ainda temos a insuperável Cappella Sistina e os aposentos de Rafael, etc. Compreensivelmente, as fotografias são proibidas, mas não aqui, neste corredor bloqueado.

Caffè Greco: local onde pobres mortais podem alimentar-se acomodados em salas antes frequentadas por gentalha como Goethe e Byron.

O Coliseu: o cartão postal é uma ruína mais bonita por fora do que por dentro. A Arena de Verona, apesar de menor, é mais interessante.

Mesmo sem Anita Ekberg e com um frio do cão, a Fontana di Trevi é belíssima.

Do outro lado, o Imperador; deste lado, o povo; no meio, corridas de bigas e outras competições. Hoje, apenas atletas de fim de semana com seus abrigos e Nikes.

A escadaria da Trinità dei Monti com a Piazza di Spagna lá embaixo. Procurei em vão a janela utilizada por Bertolucci em Assédio. Acho que foi montagem…

Chamem a Inquisição! Perdoem-me, mas penso que a Pietà montada por Bergman em Gritos e Sussurros era tão intensa que olhei para aquela coisa toda perfeitinha  e achei sem nenhuma alma… Esperava muito mais. Pietà por Pietà, fico com esta, muito mais humana.

Não pensem que vou só ficar falando mal de Michelangelo por aí… Vale o torcicolo ficar admirando esta pequena parte do teto da Cappella Sistina. Melhor sentar ao fundo da Cappella para olhar. Mesmo assim, saí com o pescoço duro. A Sistina é o ponto alto dos Musei Vaticani e, mesmo que estejamos acompanhados por centenas de turistas, observá-la é uma experiência inteiramente individual que nos leva aos céus e nos traz de volta várias vezes. É Bach em pintura.

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Relato de uma Viagem à Itália (I)

Vou viajar amanhã no final da tarde e retorno quarta-feira, logo após o Carnaval. Tenho muitos trabalhos pendentes — vocês podem notar isto pela forma como NÃO tenho respondido aos comentários, apesar de lê-los, viu Charlles? Então, usarei estes dias para republicar uma série de posts muito agradáveis a mim. Tudo se passou em 2005 e quem leu a série na época achou legal. Até me propuseram um livro, mas não levei a sério.

Mas começamos por Madrid. Chegamos à cidade na manhã do dia 25 de novembro. Descobriríamos depois o quanto o aeroporto de Barajas poderia ser caótico, mas às 6h da manhã ele ainda estava tranqüilo. Emergimos do metrô no centro de Madrid, perto do Museu do Prado. Foi uma visão desconhecida e meio fantasmagórica: era noite ainda, estava um frio de rachar e pudemos ver a cidade amanhecer enquanto passeávamos pelas ruas próximas ao Museu. Já manhã clara, entramos num simpático café onde consumimos sem arrependimento 11,20 euros numa refeição cuidadosamente imitada aos madrilheños presentes. A Claudia faz sempre questão de mimetizar-se com os habitantes da cidade, de ir aos lugares onde eles vão, de pegar os ônibus e metrôs deles e de conversar. Sábia, ela.

O Museu abre às 9h e pegamos uma fila cheia de japoneses. O ingresso custava 6 euros e tínhamos insuficientes 2h30 para percorrê-lo, já que às 11h30 nos encontraríamos com Nora Borges na porta norte do Prado. Não me decepcionei com os esperados Velasquez e Goyas, porém minha surpresa maior foi a de ter encontrado lá importantes quadros de Bosch, Brueghel e Dürer. Minha estupenda ignorância não os imaginava ali. Se houve um momento mágico, foi quando olhei para um canto e vi O Triunfo da Morte de Brueghel.

Detalhe

Foi um soco no peito. Aquela visão inesperada poderia me deter por horas naquela sala, mas segui adiante e — nova surpresa — dei de cara com o tríptico O Jardim das Delícias de Bosch (ou El Bosco, como indicava a ficha).

Detalhe

Uma maravilha para se examinar longamente, sentado no banco que há para esta finalidade frente ao quadro. É um quadro (ou são três?) de dimensões muito menores do que eu imaginava, apesar das centenas de detalhes. Esperava Goya e Velasquez, mas meus primeiros pasmos foram para “estrangeiros”. Sobre Goya: apesar de tudo, nesta curta visita, minhas preferidas foram as salas dedicadas a ele. Sabia que isto iria acontecer. Ele sempre conta histórias que me interessam. É um narrador e Alejo Carpentier tinha razão quando dizia que, para inspirar-se, bastava olhar para um trabalho de Goya e imaginar o que aquelas pessoas pensavam, como viviam, como se divertiam e o quanto sofriam.

Detalhe

Às 11h30 em ponto estávamos na tal porta norte. Reconheci a Nora de longe. Veio sorridente, abanando para nós. Estava na companhia de seu marido Pepe e logo deu para ver o quanto ela NÃO é fotogênica. Ao vivo, é uma mulher muitíssimo mais bonita; é alta, alegre, viva, daquelas nas quais os movimentos só vêm aumentar os atrativos. Minha irmã já tinha me falado a respeito e pensei que o Pepe, quando a viu no Recife, deve ter planejado imediatamente sua imigração. Ele queria saber como ela tinha me reconhecido com tanta facilidade e ela respondeu:

— Ora, ele é a Iracema de barba!

Tá bom, Nora.

Passamos inteiramente às mãos — ou aos pés — do Pepe. Depois de termos conseguido um calçado adequado à Claudia, ele comandou uma pedestre e espetacular visita relâmpago à Madrid, inteiramente voltada aos monumentos históricos e, principalmente, à gastronomia. Começamos num bar cuja visão exterior era esta:

Estou ali no meio, acho

Bebemos vinho e comemos tapas. Pepe explicou-nos a história das tapas espanholas. O Rei Afonso X, El Sabio, sabia mesmo das coisas. Tinha mais a ver com a Claudia do que com nosso Afonso. (Nada como uma agressão gratuita para manter a forma…) Ele, o Sábio, simplesmente proibiu que o vinho fosse servido desacompanhado de alguma coisa para comer. O motivo? Ora, evitar as brigas de bêbados diluindo álcool à proteína e ao amido. Então, por lei, o vinho passou a ser servido juntamente com pães, batatas, berinjelas, croquetes, calamares, outros frutos do mar, etc., que se tornaram parte da arte gastronômica espanhola e que eram entregues ao cliente num prato que cobria o copo, tapando-o. Daí, o nome tapas.

… el Rey Sabio dispuso que en los mesones de Castilla no se despachara vino si no era acompañado de algo de comida, regia providencia que podemos considerar oportuna y sabia para evitar que los vapores alcohólicos ocasionaran desmanes orgánicos en aquellos que bebían….

Depois, continuamos as caminhadas com estratégicos e oportunos pit stops gastronômicos. Um para a cerveja, onde a Nora tirou esta bela foto de nós três (o Pepe fora),

Eu, Claudia e a Nora (refletida)

o seguinte para comer numa das Cuevas Luís Candelas – El Mesón de la Cava -, onde a comida e o vinho eram tão fantásticos que comi com gosto até umas imensas azeitonas – detesto azeitonas, ninguém é perfeito. Detalhe: eu não lembro do que comemos. (A Claudia esclarece: morcilla – com incrustrações de arroz! -, cogumelos, pimientos, azeitonas, jamón, pães – aqueles grissinis gordinhos e compridos – e sabe-se lá mais o quê). Lembro apenas que estava maravilhoso e só posso transcrever a frase do Gejfin: “Amigos, tudo”. O vinho auxiliou-nos a recortar e a pôr sobre a mesa alguns retalhos do sempre renovável tecido da delicadeza. Conversamos muito, falamos sério e rimos como velhos amigos, contamos histórias, dissemos um monte de besteiras e saímos dali para a Nora comprar o presente do Tiagón e presentear a Claudia com um livro de receitas de tapas. Literalmente, amor à primeira vista de todos para com todos.

Voltando as cuevas: elas são locais belíssimos e misteriosos, tudo – paredes, chão e teto – é feito de pedra e está assim desde… durante los años 1825 a 1837, por su constitución y sus múltiples salidas al exterior, sirvieron de guarida y cobijo a los célebres bandidos capitaneados por Luís Candelas. En la actualidad se conservan en gran parte tal y como fueron usadas por aquel bandido.

A Entrada das Cuevas

Antes de nos deixarem em Barajas, ainda tomamos café num bar e conhecemos o bar, a mesa e a cadeira da vinoteca em que minha irmã… (censurado) …tornando-se uma das principais atrações e local de peregrinação da capital espanhola.

Despedimo-nos lá pelas 18h e, na fila do check-in para Roma, conversamos sobre a certeza de que veríamos aqueles dois novamente. A existência simplesmente não pode ser algo tão injusto que permita ter sido este nosso primeiro e último encontro.

O pentelho sempre dá um jeito de entrar num sebo

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García Márquez e Fidel na última Bravo

A última Bravo! traz uma grande matéria de capa a respeito de um tema muito importante: “O Escritor e o Ditador — O Fascínio dos Intelectuais por Líderes Autoritários”. A matéria é centrada na relação Gabriel García Márquez com Fidel Castro. A amizade é não muito considerada e sim o fascínio, a obediência, o apoio incondicional. Está correto. Depois, o artigo avança na direção de outras relações de fascínio — o de Jorge Amado por Stálin, o de Ezra Pound por Mussolini e Mussolini , o de Camilo José Cela por Francisco Franco. Todos verdadeiramente escreveram odes a seus musos, algumas bastante constrangedoras. O autor do artigo, André Lahóz, procura manter um equilíbrio entre os políticos de direita e de esquerda, mas acho que perdeu uma bela oportunidade de falar no Brasil quando tocou levemente no tema da questão moral da complexa relação entre governantes e intelectuais. Também, coitado, Lahóz é editor-chefe da Exame…

Em nosso país de compadres, parece ser difícil falar nos escritores que buscam e buscaram cargos junto a governos ditatoriais. Mais importante do que o fascínio ou apoio que escritores destacados dão isolada e publicamente, talvez fosse analisar o mar de intelectuais que trabalham e trabalharam silenciosa e vergonhosamente para esses governos. No Brasil, meus caros, a coisa é disseminada até hoje. Eu mesmo conheço um importante escritor gaúcho que arranjou uma boquinha com a Yeda e, olhando mais para trás, quem não sabe que o ministro Gustavo Capanema tinha em seu time de assessores gente célebre e trabalhadora como Carlos Drummond de Andrade, Mário de Andrade, Cândido Portinari, Manuel Bandeira, Heitor Villa-Lobos e Vinícius de Morais, entre outros? Ora, isso ocorre até hoje, é só prometer um cargo que nossos intelectuais aceitam ou dobram-se com a maior facilidade. Sim, poucos morrem em revoluções no Brasil… Por isso, acho absolutamente sem sentido o final do artigo no qual Lahóz declara que, hoje, passados os dias dos seguidores de Marx e Lênin, abençoadamente substituídos pelo seguidores de John Stuart Mill e Alexis de Tocqueville — repito aqui o ato falho de Lahóz ao citar o Karl Marx da primeira dupla (a dos esquecidos) apenas pelo sobrenome, enquanto que a segunda (a dos triunfantes) pelo nome completo, como se fosse necessário esclarecer quem fossem esses “famosos faróis” — , então,como dizia, passados os dias do seguidores de Marx e Lênin, hoje seria complicado para Hugo Chavéz, Evo Morales ou Kirschner (?) laçarem escritores que os bajulem e legitimem (mas ele acha mesmo que GGM legitimou Castro?). O final foi 100% Veja. Viva o Admirável Mundo Neoliberal!

Mas vale a leitura.

Logo após o artigo de Lahóz, há outro de Sérgio Rodrigues. Este faz uma excelente resenha sobre o livro Gabriel García Márquez: Uma Vida, notável investimento de 17 anos do inglês Gerald Martin, a ser lançado no Brasil em março. A biografia, apesar de autorizada, não contorna fatos embaraçosos — dentre os quais Omar Torrijos e Andrés Pastrana seriam os maiores, em minha opinião… — que foram descritos pelo inglês, segundo Sérgio, com compreensiva economia de adjetivos. Porém Sérgio também comete um pecado crasso.

(Certa vez, li um longo ensaio sobre a história do maxixe. Lá pela metade, o autor escrevia en passant que Pixinguinha era o maior compositor brasileiro de todos os tempos. A curta afirmativa parecia prescindir de quaisquer argumentos, pois era matéria transcorrida em julgado, assim como dizer que a água molha… Ora, sugeri educadamente ao autor que retirasse aquela frase que forçava uma verdade não tão clara assim. Houve concordância.)

A historinha acima adequa-se a Sérgio Rodrigues quando ele dá a entender que o conceito ou a ideia de “esquerda”, na política, está morto. Sem maiores explicações, ele decide que GGM tem uma atuação pública de esquerda que “sobreviveu à própria ideia de esquerda” (as aspas são minhas). Ora, este é um falso truísmo (Def.: Verdade trivial, tão evidente que não é necessário ser enunciada). Agora mesmo, a fim de ver se a matéria já tinha transcorrido em julgada, consultei teses contemporâneas de Ciências Políticas e vi que a validade de tais conceitos é efetivamente debatida, só que a maioria das teses, mesmo as de direita, reafirma que são conceitos válidos e mais, sugerem que dizer isso é uma espécie de vezo da direita mais truculenta.

Não sei exatamente o que Lahóz e Rodrigues escreveram. Ás vezes vem um editor e altera o texto, sei disso. Mas penso que a ideologia da Veja está pegando fundo em toda a Editora Abril. Ou a ideologia da Abril pegou na Veja, deu lucro e agora está sendo repassada, sei lá.

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A Mulher do Tenente Francês, de John Fowles (resenha e reconstrução, um show!)

Na Inglaterra, este romance de 1969 possui status de clássico. Quando foi passado para o cinema, recebeu roteiro do respeitadíssimo dramaturgo Harold Pinter (1930-2008), Nobel de Literatura de 2005, e que tem dentre suas maiores influências Samuel Beckett e Frank Kafka. Já John Fowles (1926-2005), o autor do romance, escreveu poucos livros mas tem obra consistente e é até popular.

A Mulher do Tenente Francês é excelente. A história é contada a partir de um curioso foco narrativo: o autor, longínquo, examina os atos de seus personagens vitorianos a partir do instrumental em uso nos anos 60, quando o livro foi escrito. Tal instrumental é basicamente freudiano, marxista e gramsciano. Não, não, nada de discursos políticos. Só observações aqui e ali. Ao estilo de Machado de Assis, o autor às vezes conversa conosco, realizando uma bem-humorada interface entre a ação e o leitor. Costuma também brincar com o fato de estar “perdendo o controle” sobre os personagens e, lá pela página 100, explica que está alterando o planejamento inicial do romance por causa dos personagens, que decidiram outra coisa. Para completar, dá ao leitor a chance de escolher entre três finais distintos. É delicioso investimento ler estas 484 páginas.

Considerando-se a estrutura narrativa, não é de estranhar que Harold Pinter tenha sido convidado para escrever o roteiro cinematográfico. Para alegria da Caminhante (just a private joke), o filme de Karel Reisz, com Meryl Streep e Jeremy Irons, é um fiasco quando comparado com o livro. Ela, a Caminhante, acaba de marcar 2 x 0.

Mas tergiverso. No último domingo, procurando algo inteligente na Internet — ainda que zonzo pelo calor insuportável – , encontrei uma divertida série de Digested Classics no Guardian. Então armei uma espécie de jogo. Tenho certa vergonha de contar, mas vamos lá: copiei o texto no Open Office e escrevi minha versão por cima. Não fiz alterações substanciais, mas mexi num monte de detalhes. O tom destes “clássicos recontados” é mais do que jocoso, é decididamente uma profanação e, como meus sete leitores sabem, profanação das especialidades que mais aprecio.

Arriscaria dizer que ri muito do resultado. E, OK, vou dar a fonte por uma questão de honestidade. Por favor, não cliquem nela!

Observando a baía de Lyme, em 1867, podemos notar um casal muito bem vestido caminhando pela praia, se é que podemos chamar de praia aquela bela paisagem cheia de penhascos que acabavam no mar da Cornualha. Estavam tão à vontade longe de casa que não podemos chegar a outra conclusão que não seja a de que estavam noivos ou eram casados. E então ambos viram uma mulher toda de preto olhando o mar.

– Eu espero que você não tenha falado sobre as ideias tolas do Sr. Darwin novamente — criticou Ernestina. – Você sabe que papai não suporta a ideia de ser descendente de um macaco.

Monotemático, certamente Charles falara em novamente em Darwin, assim como hoje falamos sobre o aquecimento global ou as próximas eleições quando temos pouco assunto com nossos sogros. No entanto, a realidade é que Charles não tem nenhum direito a escolher seus temas de conversação, pois ele é uma construção da minha, apenas existe em minha mente, por isso, agora, quero que ele se fixe na mulher de preto que corre perigo na posição em que está.

– Quem é aquela? – , pergunta ele.

– Chamam-na de A Mulher do Tenente Francês – responde Ernestina. – Ela se apaixonou por um capitão náufrago que a abandonou. Ela caiu em desgraça e agora é empregada da Sra. Poulteney.

– Eu não desejaria saber nada dela nem desta história horrível, mas não creio que ela esteja segura naquela ponta. Pode cair e há pedras lá embaixo.

Charles dirigiu-se à mulher de preto e pediu-lhe que saísse daquele local perigoso, mas o olhar triste, frio e profundo que recebeu de volta avisava-lhe para se afastar.

Mas como este é o meu livro, vamos deixar esta cena introdutória e fazer algumas observações sarcásticas sobre ambos os personagens e seus valores vitorianos. Charles Smithson, podemos concluir, é um homem comum, ainda que nobre. Com uma renda que o libera da necessidade de trabalhar, ele é uma alma perdida de 32 anos, com ideias tão avançadas quanto pode ter um homem que deixa-se torturar pelas lembranças de suas ligações com prostitutas.

Sua noiva, Dona Ernestina Freeman, é o que agora nos anos 1960 chamamos de pequeno-burguesa. Seu pai ganha dinheiro no comércio. Ora, o comércio! Ele é o dono de algumas lojas de departamentos em Londres. Coisa estranha, enriqueceu trabalhando. Sua filha, apesar da baixa extração, pode, portanto, casar com Charles, de maior categoria, mas com menos grana. Está tudo perfeito. São dignos um do outro. O único inconveniente é que Ernestina é, como dizemos agora em 2010, uma cabeça oca ou uma loira burra.

Já Sarah Woodruff, ou A Vagabunda do Tenente Francês, como alguns de Lyme Regis a descreveriam… Bem, falemos dela depois. Há também a Sra. Poulteney, uma viúva que tomou Miss Woodruff para si, a fim de protegê-la das maledicências e assim aumentar suas chances de entrar no reino dos céus.

E depois há Sam e Mary. Como o amor dos empregados era mais alegre! E era mesmo. Livres das contorções românticas de seus chefes, Sam e Mary são personagens encantadores. A chefe de Mary é Ernestina e Sam é mordono de Charles. É um contraste bem útil para o romancista, que pode assim, criar uma superfetação de metáforas.

Mudemos o cenário. Muitas páginas depois, estamos em Undercliff, um mundo pré-histórico onde o desocupado Charles procura um fóssil – coisa de vitorianos confusos, apaixonados por Darwin, imaginem! E lá encontra Sarah Woodruff.

– Miss Woodruff –, diz ele.

– Senhor Smithson – , responde ela.

– Eu me preocupo com sua saúde.

– Minha saúde não significa nada.

Nossa! Após alguns minutos de conversa, ela diz que sua situação com o Tenente Francês desaparecido é o que a define como ser humano. Ela é aquilo. Se tivesse nascido 100 anos depois, Charles poderia ter reconhecido isto como uma expressão da angústia existencial sartreana. Porém, vejam como são as coisas, o que ele sentiu foi um desconcertante inchaço nas calças. Então, beijou-a na pálpebra.

Miss Woodruff olhou para toddos os lados.

Se formos vistos juntos, serei expulsa da casa da Sra. Poulteney.

Mais um discurso sobre a ciência vitoriana e hipocrisia religiosa? Mais encontros entre Charles e Sarah até que alguém os veja e cumpra-se a necessidade freudiana de ser expulsa da casa da Sra. Poulteney?

No entanto, damos mais um salto e vamos agora para Exeter, onde Sarah está hospedada no hotel Endicott. Charles vai até ela e aqui tenho um dilema, pois preciso manter o artifício que os meus personagens têm vidas próprias e que não sei como a história termina. Ousadamente, então, abandono-os.

Agora Charles nega a si mesmo a noite com Sarah e retorna a Ernestina, com quem viverá feliz para sempre pelos próximos 173 anos. Mas eu não quero fazer isso. Portanto, faremos com que ele retorne ao hotel, onde dou de cara com Charles desabado sobre o corpo nu de Sarah após 17 segundos de cópula intensa.

– Meu Deus, mas você virgem. Então, o tenente francês não…

– Na verdade não, mas eu precisava do mundo para imaginar que eu tinha para mim, para explorar minha vergonha e solidão.

Se Charles tivesse lido algum livro de psicologia moderna, ele teria concluído que Sarah estava precisando de uma terapia urgente. Mas como isso era 1867, ele simplesmente falou: “Eu te amo”.

Tudo se complica quando o mundo descobre a traição. Sam não entrega uma carta de Charles a Sarah e o mal-começado romance é subitamente extinto. Ela, Sarah, some. Charles é instado a terminar seu noivado, cai em ostracismo light e dorme com prostitutas enquanto cria mais mil metáforas em sua busca por Sarah.

Se eu soubesse que me obrigaria a escrever mais de 100 páginas, poderia ter ficado com o primeiro final. Mas não. Vou deixá-los com mais dois. Afinal, quero dormir com Meryl Streep novamente.

Ele a reencontra dois anos depois, vivendo como modelo de Dante Gabriel Rossetti. Aqui, um choque, pois Dante Gabriel Rossetti é um dos pintores preferidos de minha ex e, portanto, é um idiota. Criador de um grupelho que seus fãs gostam de chamar de pré-rafaelitas, mas que se chama Pre-Raphaelite Brotherhood ou Irmandade pré-rafaelita, é autor de pinturas, poemas e de conceitos que alardeavam a arte pela arte. Seu poema mais importante diz uma imbecilidade digna das maiores carolices “.pps”:

O pior momento para o ateu é quando ele realmente está agradecido e não tem ninguém para agradecer.

Você não precisa se preocupar com isso, Dante, eu organizaria uma festa. Mas voltemos. Ele a reencontra dois anos depois, vivendo como modelo de Dante Gabriel Rossetti.

– Eu não posso me casar com você. Ainda quero estar sozinha. Mas nós temos uma filha — diz Sarah.

Ou.

– Eu vou casar com você, mas será apenas platônico.

Você provavelmente vai escolher o segundo final. Eu fico com o primeiro, em que há sexo casual e variado. De qualquer maneira, Charles e Sarah acabaram pós-modernos.

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