Eu e Herbert Caro

Eu e Herbert Caro

Conheci o Dr. Herbert Caro numa loja de discos eruditos de Porto Alegre, a King`s Discos. Lá, eu, ele, o Júlio – que trabalhava na loja – e outros, tínhamos um encontro não marcado mas sempre repetido aos sábados pela manhã. Nós, o grupo dos tarados por música, ficávamos ouvindo as novidades e aprendendo com a inacreditável sabedoria do velho. Quando o conheci, ele já tinha mais de 70 anos. Lembro que tinha 51 a mais do que eu. Não lembro em que ano morreu, deve ter sido entre 1986 e 1990. Creio que Caro não viu a falência do jornal Correio do Povo, onde por décadas publicou suas compreensivas (expressão dele) e lindamente escritas críticas musicais. Como convivi com ele entre meus 20 e 30 anos, era tratado pelo mestre como a criança curiosa que era. Ele tinha atenção especial para comigo e o Júlio, os jovens do grupo, e gostava de me orientar na obra de meus amados Bach e filhos, Mozart, Brahms e Beethoven. Deu-me alguns discos, sempre sob o pretexto de servirem como comprovação de suas opiniões, nunca pelos motivos reais, que eram a amizade e o carinho. Era um alemão que dava de presente um disco e dizia com meio sorriso: “Para aplacarr tua ignorrância”. E se alguém faltasse àqueles encontros, ele reclamava.

Chamávamos o Dr. Caro de “Doktor Carro”, apelido de duplo sentido, pois ao mesmo tempo em que nos referíamos a seu forte sotaque, homenageávamos o grande tradutor de Doutor Fausto (Doktor Faustus) e A Montanha Mágica de Thomas Mann, Auto-de-fé de Elias Canetti, A Morte de Virgílio de Hermann Broch, O Lobo da Estepe e Sidarta de Hermann Hesse, etc. Ele era conhecido por ser de difícil trato, mas gostava de nós e creio que nos levava livres por receio de nossa ironia. Uma vez, pareceu-nos que ele auto-elogiava a tradução (a qual é impecável, insuperável mesmo!) de A Montanha Mágica (uma obra-prima!) e nós começamos a falar sobre a inutilidade de se traduzir uma bosta de livro em que nada acontecia, em que as pessoas ficavam falando sobre o tempo, doenças, guerra e que inaugurava o riquíssimo gênero do erotismo tuberculoso… (Se você não entendeu isto, leia o livro). Depois começamos a falar sobre a “metáfora da Europa” contida na obra e a bobajada alcançou níveis planetários. Viram? Para nós, era facílimo conversar com ele. Ele primeiro ficava com aquela cara escandalizada de alemão rígido: de estão-brrincando-com-algo-que-é-sagrrado-parra-mim. Depois ria conosco. Voltava todos os sábados para nos ensinar e, eventualmente, para apanhar mais um pouquinho.

Inesquecível foi o sábado quando chegaram os 3 LPs com últimas Sonatas de Beethoven tocadas por Maurizio Pollini, pianista falecido há 4 dias. Ele brandia os discos e dizia que aquele monumento não serria esquecido tão cedo. Tinha razão.

Creio que todas as vezes que vi o Doktor Carro foi na loja de discos, a exceção das palestras que ele deu no Goethe sobre a pintura dos mestres holandeses. Ele sabia tudo e ficava irritado quando sua esposa projetava uma página ou um detalhe errado. Não a ofendia, mas ficava visivelmente contrariado.

Outra característica dele era o fato de odiar o calor de Porto Alegre. “A canícula” como ele dizia. Em todos os anos de sua velhice, viajava dia 1° de dezembro e retornava ao final de março quando nossa cidade voltava a ficar suportável. (Eu adoraria poder fazer isso…)

É óbvio que me sinto nostálgico e gratíssimo a ele pelas lições. Sei que muitas opiniões que solto no blog PQP Bach e no Notas de Concerto da Ospa são do Doktor Carro e não minhas.

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Os dez discos que mais me influenciaram

Os dez discos que mais me influenciaram

O Paulo Ben-Hur me convidou para deixar aqui as dez capas dos discos que mais me influenciaram. Só as capas, mas não resisti a fazer comentários. E eles foram crescendo disco a disco…

~ 1 ~

Bem, eu era uma criança quando minha irmã Iracema Gonçalves, em 1965, trouxe isso aqui pra casa. Eu certamente ouvi este disco mais de 500 vezes na minha vida — talvez mais de 1000 — e até hoje meu coração bate mais forte vendo a agulha com o disco girando antes de Harrison iniciar aquele solo de guitarra.

~ 2 ~

O segundo disco que mais me influenciou vem também lá da infância. A eletrola do meu pai ficava, por motivos difíceis de entender, no meu quarto. E ele ouvia muita música. Muita mesmo. Como eu, hoje, ele podia passar horas e horas ouvindo discos, um bem diferente do outro, o que deixava minha mãe louca.

Este era especial porque ele dizia que era algo diferente. Mas como eu saberia que era diferente se não conhecia nada? E ele, que era dentista e pianista amador, me explicava as harmonias, o violão, a batida, a forma de cantar… De tal forma que este é um LP que faz parte de mim. Veio pré-instalado no meu cérebro, o que jamais me incomodou.

E hoje eu sei que ele é absolutamente genial e revolucionário.

~ 3 ~

Esta é uma capa famosa, inspiradora de memes. Meu pai comprou o disco no ano de lançamento, em 1966, e ele rodava sem parar na nossa eletrola. Conheço cada acorde e verso dele.

É o LP de estreia deste cidadão muito admirado. Ouço este disco até hoje com enorme prazer.

~ 4 ~

O quarto disco é o primeiro erudito que comprei em minha vida. Era uma gravação pioneira em instrumentos originais, ainda com um jeitinho romântico, mas já com o som delicado e afinadíssimo que amo.

O Collegium Aureum era cheio de craques como Franzjosef Maier, Hans Martin Linde e Gustav Leonhardt.

Dias antes de comprá -lo, tinha saído do banho molhado, enrolado numa toalha, para perguntar a meu pai que maravilha era aquela que ele estava ouvindo. Era o Concerto de Brandenburgo N° 3 tocado com instrumentos modernos.

Então, dias depois, encontrei a minha maravilha na King’s Discos. Ele também ficou babando.

~ 5 ~

Eu era um adolescente que estava descobrindo Bach quando comprei este disco de Thurston Dart (1921-1971) interpretando as Suítes Francesas de Bach no clavicórdio. Estas Suítes foram escritas para cravo ou clavicórdio, tanto faz.

Eu não sabia, mas Dart não era qualquer um, tanto que foi professor de gente como Michael Nyman, Davitt Moroney, Sir John Eliot Gardiner e Christopher Hogwood. Era um disco estupendo comprado na sorte por um ignorante.

O clavicórdio é um instrumento de teclado onde as cordas são percutidas como as do piano, e não pinçadas como as do cravo. Seu som é o mais leve e intimista dentre os três e as Suítes Francesas de Dart me pareceram a coisa mais próxima a um sussurro que já tinha ouvido. Mas era um sussurro muito belo, engenhoso e astuto.

Na Inglaterra, Dart é o padroeiro dos estudos de interpretação histórica. Toda a geração seguinte reverencia seu nome, e vários livros de interpretação histórica dividem esta área do conhecimento musical entre antes e depois de Thurston Dart. Parece que era uma pessoa realmente inspiradora.

Ouço este LP até hoje com enorme prazer.

~ 6 ~

Esse influenciou mesmo. Foi o disco que abriu as portas da música erudita do século XX para mim.

Quem me levou até Bartók foi Erico Verissimo lá nos anos 70. Num de seus livros — creio que se trata de O Senhor Embaixador –, um personagem diz que os Quartetos de Bartók davam-lhe uma representação tão vívida da Europa nos períodos das Guerras Mundiais que lhe era insuportável ouvi-los.

Como sabia de entrevistas que Erico amava os Quartetos de Bartók, aquilo foi a senha definitiva para que eu os procurasse. Perguntei para o amigo Herbert Caro que gravação deveria comprar e ele respondeu que eu deveria ouvir a do Quarteto Végh. Bem, teria que importar e o fiz. Eram 3 LPs da Astrée Auvidis. Me custaram os olhos da cara e aquela pessoa que SABEMOS QUEM É sumiu com o trio de LPs nos anos 90.

Só que o mundo abriga amigos e amigos e é comum acontecerem coisa mágicas. Há uns 5 anos, o Norberto Flach me ofereceu a gravação do Végh para ouvir. Essa mesmo, a de 1972, a que eu tinha. Eu jamais tinha falado pra ele do roubo nem nada, ele só chegou e colocou num e-mail: “Queres?”. Imaginem o que respondi.

~ 7 ~

Depois eu fui tomado de assalto por Schubert, o homem que conseguia fazer a poesia cantar e a música falar. Poderia colocar aqui o LP de A Morte e a Donzela, ou um de Sonatas (Pollini ou Brendel), ou o Winterreise com Fischer-Dieskau, ou a Fantasia Wanderer (com Pollini, novamente), quem sabe os dois últimos quartetos com o Allegri ou A truta, mas acho que ouvi muito mais este Quinteto que chamava de Quintetão.

É uma peça bastante longa e foi a última composição de câmara de Franz Schubert. Às vezes é chamado de “Quinteto para violoncelo” porque foi escrito para um quarteto de cordas padrão mais um violoncelo extra em vez de duas violas, como é mais comum em quintetos de cordas convencionais. Foi composta em 1828 e concluída dois meses antes da morte do compositor.

O incrível é que a primeira apresentação pública da peça só ocorreu em 1850 e a publicação em 1853.

Vale a pena ouvir mil vezes. O Adágio é algo sobrenatural com suas duas seções externas muito lentas e uma parte central turbulenta.

Sem exageros, penso que quem não conhece esta música ainda não viveu. Simples assim.

~ 8 ~

Uma capa ridícula, um disco de uma gravadora desconhecida em 1982, mas eu queria conhecer a tal Sinfonia Concertante de Mozart. E tive uma surpresa.

Sim, há ‘Don Giovanni’, ‘A Flauta Mágica’, os Concertos para Piano de números mais altos, a Júpiter, a 40, o Concerto para Clarinete, o Divertimento K. 287, é tanta obra-prima que nem sei, etc., porém, dentre os sei lá quantos CDs de Mozart de minha discoteca, escolho esta despretensiosa gravação da Bis sueca. É a que mais gosto, é endorfina pura, me deixa feliz. E nem é pelo extraordinário Concerto para Piano, é muito antes pela interpretação da Sinfonia Concertante para Violino e Viola K. 364. Para meu gosto torto, é meu melhor CD do mestre de Salzburgo.

Em 1988, Peter Greenaway realizou sua obra-prima ‘Afogando em Números’ utilizando o Andante da Sinfonia Concertante, o qual é executado longamente durante as cenas de assassinatos de maridos pelas Cissies do filme. Certamente, Mozart nunca imaginaria tal utilização, mas ficou lindo, perfeito, dentro de um filme virtuosístico tanto pela atuação dos atores como por sua beleza plástica.

Mas nosso assunto é Mozart. Prestem atenção ao primeiro movimento da Sinfonia Concertante, atentem ao momento em que violino e viola entram para fazer seu primeiro solo. Se você não sentir arrepios, a pandemia lhe afetou. Dificilmente haverá um mergulho vertiginoso que seja mais belo.

E num ano desses — antes de 2013 –, a Elena, seu ex e o Alexandre Constantino me deram de presente uma interpretação do Andante da Concertante na casa onde eu morava. Fiquei pasmo.

Este disco está no PQP Bach.

~ 9 ~

Tenho que colocar aqui meu querido Shostakovich. E uma audição da 10ª Sinfonia me deixou tão, digamos, fora de mim, que eu escrevi uma carta para a Rádio da Ufrgs pedindo que eles repetissem a Sinfonia no programa Atendendo o Ouvinte.

Fui atendido e fiquei deitado no sofá de casa tentando entender porque aquilo me contava uma história e qual seria exatamente ela. Pois eu sentia que algo de muito grave estava sendo contado.

Este monumento da arte contemporânea mistura música absoluta, intensidade trágica, humor, ódio mortal, tranquilidade bucólica e paródia. Tem, ademais, uma história bastante particular.

Que é, resumidamente, esta:

Em março de 1953, quando da morte de Stálin, Shostakovich estava proibido de estrear novas obras e a execução das já publicadas estava sob censura, necessitando autorizações especiais para serem apresentadas. Tais autorizações eram, normalmente, negadas. Foi o período em que Shostakovich dedicou-se à música de câmara e a maior prova disto é a distância de oito anos que separa a nona sinfonia desta décima. Esta sinfonia, provavelmente escrita durante o período de censura, além de seus méritos musicais indiscutíveis, é considerada uma vingança contra Stálin.

Primeiramente, ela parece inteiramente desligada de quaisquer dogmas estabelecidos pelo realismo socialista da época. Para afastar-se ainda mais, seu segundo movimento – um estranho no ninho, em completo contraste com o restante da obra – contém exatamente as ousadias sinfônicas que deixaram Shostakovich mal com o regime stalinista.

Não são poucos os comentaristas consideram ser este movimento uma descrição musical de Stálin: breve, absolutamente violento e brutal, enfurecido mesmo. Sua oposição ao restante da obra faz-nos pensar em alguma segunda intenção do compositor. Para completar o estranhamento, o movimento seguinte é pastoral e tranquilo, contendo o maior enigma musical do mestre: a orquestra para, dando espaço para a trompa executar o famoso tema baseado nas notas DSCH (ré, mi bemol, dó e si, em notação alemã) que é assinatura musical de Dmitri SCHostakovich, em grafia alemã.

Para identificá-la, ouça o tema executado a capela pela trompa. Ele é repetido quatro vezes. Ouvindo a sinfonia, chega-nos sempre a certeza de que Shostakovich está dizendo insistentemente: Stalin está morto, Shostakovich, não. O mais notável da décima é o tratamento magistral em torno de temas que se transfiguram constantemente.

Crianças, não ouçam o segundo movimento previamente irritados. Você e sua companhia poderão se machucar.

Ah, e quem eu ouvia? Ora, a Filarmônica de Leningrado sob Mravinsky, que foi o maestro que estreou a obra.

~ 10 ~

Esta é uma gravação que ouvi lá na virada do século e que, para mim, é a melhor desta obra-prima de Bach. Talvez seja a música que mais amo de todas. Sim, muita gente a gravou, os adversários são fortíssimos, mas nada se lhe compara ao que fez Pierre Hantaï. Confiram!

Eu nunca tive insônia. Talvez, em razão de alguma dor ou febre, não tenha dormido repousadamente apenas uns dez dias em minha vida. Não é exagero. Quando me deprimo, durmo mais ainda e acordar é ruim, péssimo. O sono é meu refúgio natural. Mas há pessoas que reclamam (muito) da insônia. Saul Bellow escreveu que ela o teria deixado culto, mas que preferiria ser inculto e ter dormido todas as noites — discordo do grande Bellow, acho que ele deveria ter ficado sempre acordado, escrevendo, vivendo e escrevendo para nós. Também poucos viram Marlene Dietrich adormecida. Kafka era outro, qualquer barulho impedia seu descanso, devia pensar no pai e passava suas noites acordado, amanhecendo daquele jeito após sonhos agitados… Groucho Marx, imaginem, era insone, assim como Alexandre Dumas e Mark Twain. Marilyn Monroe e Van Gogh também sofriam muito.

O Conde Keyserling sofria de insônia e desejava tornar suas noites mais agradáveis. Ele encomendou a Bach, Johann Sebastian Bach, algumas peças que o divertissem durante a noite. Como sempre, Bach fez seu melhor. Pensando que o Conde se apaziguaria com uma obra tranquila e de base harmônica invariável, escreveu uma longa peça formada de uma ária inicial, seguida de trinta variações e finalizada pela repetição da ária. ‘Quod erat demonstrandum’. A recuperação do Conde foi espantosa, tanto que ele chamava a obra de “minhas variações” e, depois de pagar o combinado a Bach, deu-lhe um presente adicional: um cálice de ouro contendo mais cem luíses, também de ouro. Era algo que só receberia um príncipe candidato à mão de uma filha encalhada.

O Conde tinha a seu serviço um menino de quinze anos chamado Johann Gottlieb Goldberg. Goldberg era o melhor aluno de Bach. Foi descrito como “um rapaz esquisito, melancólico e obstinado” que, ao tocar, “escolhia de propósito as peças mais difíceis”. Perfeito! Goldberg era enorme e suas mãos tinham grande abertura. O menino era uma lenda como intérprete e o esperto Conde logo o contratou para acompanhá-lo não somente em sua residência em Dresden como em suas viagens a São Petersburgo, Varsóvia e Postdam. (Esqueci de dizer que o Conde Keyserling era diplomata). Bach, sabendo o intérprete que teria, não facilitou em nada. As Variações Goldberg, apesar de nada agitadas, são, para gáudio do homenageado, dificílimas. Nelas, as dificuldades técnicas e a erudição estão curiosamente associadas ao lúdico, mas podemos inverter de várias formas a frase. Dará no mesmo.

O nome da obra — Variações Goldberg, BWV 988 — é estranho, pois pela primeira vez o homenageado não é quem encomendou a obra, mas seu primeiro intérprete.

Não posso distribuir cálices de ouro por aí, mas talvez devesse dar alguma coisa a Pierre Hantaï, o maior intérprete da obra.

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Balcão de Livraria, de Herbert Caro

Balcão de Livraria, de Herbert Caro

Raramente um livro é tão prazeroso para mim quanto foi este. Fui amigo do Dr. Herbert Caro. Durante anos, aos sábados pela manhã, eu e um pequeno grupo de jovens íamos até o porão da King`s Discos, na Galeria Chaves, onde se vendiam discos de música erudita, menos para comprar discos e mais para ouvi-lo falar. As palestras eram sobre quase qualquer coisa, pois ele parecia dominar todos os assuntos relativos à música, literatura e artes plásticas. E havia os dias mais maravilhosos, onde um tema principal não se estabelecia e podíamos falar de Bach, Vermeer, Beethoven, Bosch, Mozart, Canetti, Thomas Mann, Hördelin e da literatura brasileira, tudo misturado. Não eram bem palestras, eram conversas, mas que conversas!

O Dr. Caro tinha algo de muito peculiar. Ele se expressava bem, tinha muito humor e, mesmo sabendo infinitamente mais do que nós, deixava-se interromper a cada momento. Ou seja, ele nos ouvia. Uma vez, brinquei que encontrara um problema em sua tradução de A Montanha Mágica. Ele se voltou para mim com simplicidade e disse que depois eu deveria lhe mostrar onde estava o equívoco. Todos riram, mas ele não. Ele achara natural que eu o corrigisse.

Ganhei este volume de presente de uma amiga da Bamboletras que sabia de minha relação com o Dr. Caro. É uma verdadeira relíquia e estou muito agradecido. Afinal, todos sabem que o Dr. Caro escrevia ainda melhor do que falava, vide suas inigualáveis traduções e notáveis crônicas. E ele tinha um uso peculiar do idioma, talvez apenas explicado pelo fato de conhecer as raízes dos vocábulos.

Bem, vamos contextualizar. O tradutor, crítico musical e erudito Herbert Caro foi um dos grandes alemães que aqui aportaram fugindo da perseguição aos judeus na Alemanha. Chegou em 1935. Antes de viajar, teve aulas de português — sim, ainda na Alemanha, aprendeu suas três mil primeiras palavras na língua de Camões e nossa gramática. Veio para Porto Alegre e, entre outros trabalhos, foi balconista de uma extinta livraria da Rua da Praia, a Americana. Na verdade, além de balconista, era gerente da seção de livros importados da livraria. Lá permaneceu por 5 anos. Enquanto trabalhava, publicava suas crônicas de livreiro no Correio do Povo. A coluna chamava-se Balcão de Livraria. Ele deixou a Americana antes de 1960.

Em razão da alta qualidade dos textos, as crônicas eram reproduzidas por jornais do centro do país. Caro costumava antes mostrá-las a Erico Verissimo, que as revisava, mas a voz é de Caro. (Conheço-a bem por ter  lido durante anos, semanalmente, suas críticas sobre música erudita, também publicadas no Correio).

O livro Balcão de Livraria é de 1960 e traz 17 crônicas selecionadas. Os textos são deliciosos, o humor está sempre presente e é refinadíssimo. A forma como Caro dominava o português é algo absurdamente perfeito. Os temas tratam desde de pedidos errados ou amalucados de clientes, como propostas educacionais para promoção da leitura no Brasil dos anos 50-60, reclamações de que não há no Brasil publicações para livreiros e editores que tragam os lançamentos mensais de uma forma organizada e reflexões gerais sobre o ofício e a vida brasileira.

Garanto-lhes, o livro é de qualidade espantosa.

Leia um trecho do que ele diz sobre vender livros na época do Natal:

“Cabe ao livreiro envidar esforços para impedir os erros. Ele, que tem a obrigação de saber alguma coisa sobre o conteúdo de cada uma das obras expostas, pode servir de casamenteiro entre o presente e o destinatário. Como na maioria das vezes desconhecerá o segundo, deverá indagar do tipo de pessoa que este representa, dos assuntos que lhe interessam e, melhor ainda, dos livros que nos últimos tempos tenha lido com agrado. Embora na época do Natal haja muito movimento, sempre sobrará o tempo necessário para fazer algumas perguntas rápidas neste sentido. No começo, alguns fregueses estranham o pequeno interrogatório ao qual os submete o livreiro, mas depois de pouco tempo notam que desta forma se facilita a escolha. Em última análise ficam bem impressionados e retornam à livraria”.

Herbert Caro, Balcão de Livraria (1960)

Aqui, provavelmente Caro estava falando de Canetti, sempre com humildade, ouvindo seu interlocutor.

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Carta a um jovem poeta de 23 anos

Carta a um jovem poeta de 23 anos

Recebi este e-mail. Como ainda não pedi permissão para publicar o nome do autor, este fica por enquanto anônimo.

Olá, Milton. Há algum tempo que acompanho seu blog. Como vi no seu curriculum vitae que você possui uma certa sistematização de suas leituras, anotando cada livro lido (com seu número de páginas), e que possui uma vasta bagagem cultural, gostaria de saber como você concilia o trabalho e outras atividades pessoais à leitura de tantas obras literárias e quanto tempo por dia, em média, dedica-se a esse intento. Pergunto isso por me deparar com uma vasta quantidade de clássicos diante de mim e não possuir o tempo que gostaria para apreciá-los. Quantos livros é possível ler em 1 mês? Refiro-me aos grandes: Joyce, Proust, Thomas Mann, Musil, Faulkner… E, para finalizar, já que você sabe quantos livros e páginas leu desde 1971, poderia me dizer quantos foram? Curiosidade de um jovem de 23 anos diante de um abismo de ignorância a ser sobrepujado.

Georges Seurat [ Man Reading ] 1884
Georges Seurat [ Man Reading ] 1884

Em primeiro lugar, não acho que a tal bagagem seja tão grande. O tamanho que possa ter está mais ligado ao tempo em que estou vivo do que a uma suposta sistematização. Em segundo lugar, leio muita ficção e crítica literária, mas não sei nada de filosofia, política e de muitos outros assuntos. Posso ter conhecimentos hipertrofiados aqui e ali, mas fico constrangido quando me chamam de “pessoa culta” porque não ignoro minhas atrofias acolá. Elas me impedem muitos movimentos. O pouco que li e sei não é fruto de uma fórmula pré-determinada e clara, mas tenho certeza de que começa pelo pequeno hábito de ter SEMPRE um livro à mão. SEMPRE significa SEMPRE. Tá bom, não levo o livro que estou lendo ao futebol nem tomo banho com ele ao lado, mas nas outras circunstâncias há sempre um objeto desses por perto. Por exemplo, no último sábado à noite tive de ir a um bar buscar minha filha e amigas. Eu estava saindo de um cinema, era quase meia-noite. Os pessoas costumam perguntar “Para que sair em pleno sábado à noite com um livro?”. É, mas olha só: eu já estava chegando ao bar onde ela estava me esperando quando recebi um telefonema. Uma amiga tinha recém chegado e elas queriam ficar mais meia hora, uma hora. Sem problemas. Ganhei um tempo de leitura num café. Foi bom.

Na correria em que vivemos, sobram muitos espaços de espera. Fazemos inúmeros deslocamentos durante o dia. Garanto que hoje leio mais fora de casa do que sentado confortavelmente. Leio a qualquer hora e já me acostumei com as súbitas interrupções. Outra coisa, se conseguirmos sentar, os ônibus são locais muito bons para ler. Não consigo ler em pé no ônibus porque carrego uma tralha pesada demais e tenho medo que alguém aperte este notebook onde te escrevo. Já no metrô a coisa volta a ficar possível, desde que abraçado a uma daquelas colunas (“pole reading?”).

Aproveito também meu horário de almoço. A lei me dá 1 hora, por enquanto. Então, falo minha refeição em 30 min e subo correndo até a Biblioteca Pública, perto do meu emprego no centro de Porto Alegre, para ganhar 30 min de leitura. Isto me acalma e reorganiza. É um oásis em meio à loucura diária.

Não sei quanto tempo dedico-me a ler e nem me programo. Eu abandonei a leitura antes de dormir, pois o sono me vence facilmente. Há o time eater do facebook, quase inevitável, mas que deve ser dosado.

[ Charlotte Greenwood ] 1928
[ Charlotte Greenwood ] 1928

Quando jovem, fui mais obsessivo e cuidava para ler um mínimo de 30 páginas por dia. Hoje, um negócio desses é inviável. Leio o que dá, quando dá. Outra coisa: não se force a ler o que não gosta. Não adianta. A gente demora muito lendo coisas chatas, pois é penoso manter a atenção. Shakespeare ensina que “ONDE NÃO HÁ PRAZER NÃO HÁ PROVEITO”. É uma verdade. Se não houver prazer, você vai esquecer do que leu. Ler é diversão. Não adianta, se você achar algum Faulkner um saco, mude de livro ou de autor. Se você passar a amar, por exemplo, Kafka, atire-se sobre ele como se sua vida dependesse disso. Em algum momento, Kafka dialogará com outro livro e fará a indicação de quem deve ser lido logo após. Sim, os livros dialogam entre si. Um cita outro ou você, na sua ânsia de descobrir mais fatos sobre um autor de que gosta, pesquisará em qualquer lugar e encontrará outras obras afins pelo caminho. Terá curiosidade sobre elas e a impressão de que são eles, os livros, que te obrigam a lê-los, se formará. Meu who`s next é inteiramente regido por essas escolhas que “eles” fazem entre si.

Houve uma época em que li todos os romances de Balzac em sequência. Só que isso só pode ser feito se você gostar mesmo do autor. Se você não suportar a pieguice de Dickens, não o enfrente. Com o tempo, algum outro autor lhe dirá que há apenas dois Dickens que são muitíssimo bons: Pickwick e Grandes Esperanças. É importante uma boa primeira abordagem, por isso, inicie Flaubert por Madame Bovary, Balzac por Ilusões Perdidas ou Pai Goriot — talvez A Prima Bette — e Joyce por Ulisses ou Retrato do Artista Quando Jovem; evite começá-los pelo duvidoso Salambô, pelo ridículo A Mulher de Trinta Anos ou por Finnegans Wake, ilegível para 99,9% dos mortais mesmo em português, including me.

Eu só aconselho a amar de paixão dois autores que realmente são fundamentais para quem nasceu no Brasil: Machado de Assis e Guimarães Rosa. Não é difícil amá-los e mesmo a prosa à principio intrincada de Rosa passa a funcionar após algumas páginas de sofrimento. Ela requer alguma adaptação mental do leitor, mas o pequeno esforço vale a pena. E como!

Como escrevi no Curriculum Vitae, tinha anotados todos os livros que li. Parei com isso há uns 5 anos. Tinha tudo num caderno, não no Excel. Fazia uma espécie de tabulação anual. Cada louco com sua mania, OK? Posso te dizer é que lia de 18 a 20.000 páginas por ano quando tinha entre 16 e 30 anos, 3.000 páginas nos anos em que meus filhos nasceram, e que hoje fico lá pelas 7 ou 8.000 paginas. Escrever em 2 blogs toma algum tempo, mas escrever me é sempre prazeroso e sou rápido. É impossível dizer quantos livros se lê por mês, se for poesia dá para ler vários, se for Ulysses, dará mais de um.

Bom, era isso. Para ti, FP, o bom seria começar por Doutor Fausto, de Thomas Mann, traduzido por meu amigo Herbert Caro. É uma das maiores obras literárias que conheço e fala bastante de uma coisa que amamos muito.

Grande abraço.

Dora Carrington [ Portrait of Lytton Strachey ] 1916
Dora Carrington [ Portrait of Lytton Strachey ] 1916

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Eu sofro com o calor

Eu sofro com o calor

FrioE, por isso, estou aqui de janela aberta, aproveitando a rara oportunidade de sentir um ventinho de 13ºC entrando por ela. É um imenso prazer depois de meses terríveis indo de ar condicionado em ar condicionado. Sei que as plantas crescem no calor, sei também que as pessoas ficam mais bonitas e saudáveis quando estão na praia. Mas sei também que me sinto mal numa cidade quente e úmida, suando cada vez que saio à rua ou quando desligo o ar. E canso. E produzo pouco. Por isso, se tivesse dinheiro para tanto, iria para o Hemisfério Norte em todos os verões, para dar uma trégua de alguns dias no suadouro porto-alegrense.

A propósito, fui amigo do grande Dr. Herbert Caro. Ele sumia de Porto Alegre durante os meses de, nas palavras dele, canícula. Saía da cidade para a Europa no início de dezembro e só voltava ao final de março, passando dois invernos por ano. Se eu tivesse condições econômicas, repito, daria definitivamente adeus aos verões, coisa apenas aceitável na praia e olhem lá.

Então, hoje estou mais feliz que pinto no lixo, que formiga em tampa de xarope, que genro levando sogra na rodoviária, que pobre em dia de excursão ou quando ganha frango no bingo e muito, mas muito mais feliz do que ontem. E me sinto novo como camisola de noiva.

A perspectiva para os próximos dias é ótima. Desta vez, parece que teremos inverno!

(E, falem sério, o frio facilita o amor, certo? Ou vocês não gostam de abraçar um outro corpo — mesmo o mais querido deles — no inverno?).

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Uma abordagem pessoal no dia dos 140 anos de Thomas Mann

Uma abordagem pessoal no dia dos 140 anos de Thomas Mann

Thomas Mann

Sei lá se Thomas Mann está fora de moda — acho que está –, o fato é que ele foi um dos principais formadores deste que vos escreve. Casualmente, fui amigo do maior tradutor de Mann no Brasil, o Dr. Herbert Caro. Eu era um rapaz de uns 20 anos e o Dr. Caro, como o chamávamos, era 51 anos mais velho. Nossa principal ocupação aos sábados pela manhã, na King`s Discos, era a de discutir música, outras das especialidades dos dois mestres, Mann e Caro. Mas mesmo quando o assunto era este, Mann podia aparecer e não só através de seu romance Doutor Fausto, mas de seus comentários e opiniões a respeito.

Como quase todo mundo, conheci Mann através de Os Buddenbrook (tradução de Herbert Caro), o longo romance que publicou aos 26 anos. Depois fui para os pequenos Tônio Kroeger e A Morte em Veneza, empurrado pelo filme de Visconti. Quando conheci Caro pessoalmente, recém tinha lido uma tradução sua, a do maravilhoso A Montanha Mágica. De forma muito insistente, este livro, lido há aproximadamente 37 anos e nunca mais revisitado, permanece em minha memória e faz parte de minha vida interior. Às vezes brinco dizendo que a música é Politicamente Suspeita. Afinal, o personagem Settembrini diz, um tanto absurdamente:

A arte é moral na medida em que desperta. Mas que sucede quando ela faz o contrário? Quando entorpece, adormenta, estorva a atividade e o progresso? Também disso a música é capaz; sabe perfeitamente agir como ópio. Uma influência diabólica, meus senhores! O ópio é uma obra do Diabo, porque causa apatia, estagnação, passividade, inatividade servil… Há na música um elemento perigoso, senhores. Insisto no fato da sua natureza ambígua. Não exagero ao declarar que ela é politicamente suspeita.

E, quando estou irritado, consigo enxergar bem na minha frente o titulo do capítulo A Grande Irritação. Também lembro frequentemente do fascínio de Hans Castorp (minha senha neste computador!), “o filho enfermiço da vida”, pela bela e estranha Clawdia Chauchat e de como tal fascínio serviu para que Hans repensasse os argumentos de Settembrini e formulasse seus próprios pontos de vista. Lembro do capítulo onde o casal travava uma conversação em francês… Lembro também das digressões sobre a passagem do tempo no Sanatório Berghof.

Mas o livro de Mann que mais amo é outra tradução de Caro: Doutor Fausto. O romance tem o formato e as qualidades dos romances do século XIX, mas é o conteúdo é moderno. Começa como uma serena farsa, mas acaba sendo uma amostra do que se veria num inimigo intransitivo de Thomas Mann: Thomas Bernhard.

Leio Doutor Fausto como quem lê uma novela curta. Não noto nada ali que não contribua para compor a narrativa, nada me parece estéril, da primeira a última linha. O nazismo é apenas um viés da narrativa. Seu assunto principal, e Caro falava nisso, é a imortalidade e aquilo que Mann chamava de “a crise da arte ocidental”, tanto que quem irritou-se com o livro foi a Segunda Escola de Viena, na pessoa de Arnold Schoenberg. (Lembrem-se da nota que Thomas Mann teve que acrescentar ao final do livro, atribuindo as teorias dodecafônicas ao Harmonielehre de Schoenberg, e dizendo que associou tais teorias apenas a seu diabólico personagem em contexto fictício, etc.?)

O romance é o canto de cisne de toda uma música e literatura que estava sendo abandonada. Um grande tema, ainda atual.

Meu respeito e, quem sabe, compreensão do livro de Thomas Mann faz com que eu releia sempre e saiba quase de cor toda a explicação do professor Kretzschmar para a Sonata Op. 111 de Beethoven, o capítulo VIII do livro. Muito mais conhecido é o diálogo com o Demônio (Cap. XXV), onde Adrian Leverkühn faz “alguns pequenos acertos” com o homem. São páginas arrepiantes e é curioso que, a partir da leitura do livro – lido quando tinha… de que ano é a tradução de Caro? … 1984? Então tinha 27 anos — passei a relacionar o diabo como algo que exala frio e não calor. Ah, as “impressões equivocadas” dos católicos… Não, nada de fogo, nada de diabinho infantil, estamos falando de um diabo real, meus amigos!

Doutor Fausto é uma história íntima, pessoal, ontológica. O texto fala muito ao sociológico, mas sempre de uma perspectiva íntima. Aquelas chatas argumentações que veem o livro como 100% político — seria uma metáfora do Nazismo e da Europa pré e pós-guerra — servem mais para A Montanha Mágica e o pré-guerra. Acho tão complicado reduzir o Fausto a tal modelo que bocejo só de pensar em reler o esforço de alguns comentaristas, que estreitaram um romance, cujo assunto principal é a mortalidade, a uma mera alegoria política.

A obra de Thomas Mann é imensa. Produzia 3 páginas por dia, todos os dias. Era uma máquina de reflexão e de escrever bem. Produziu romances, novelas, contos, escritos políticos e ensaios. Profundo analista psicológico e estilista consumado, Mann é um goethiano, herdeiro tardio da tradição idealista e romântica alemã e um dos principais autores modernos. Era um clássico em tempos revolucionários e conseguia refletir de forma original e particular o espírito de seu tempo. Sua obra apresenta planos sociais minuciosos, assim como um realismo psicológico preciso e de peculiar minúcia e particularidade. Expressou esteticamente do conflito entre a sociedade, o senso comum e o valor dado à vida — jamais esquecer do capítulo Neve, de A Montanha Mágica — contra o individualismo, o escapismo e o jogo artístico-estético.

Nascido em Lübeck no dia 6 de junho de 1875, Thomas Mann foi filho do comerciante Johann Heinrich Mann e da, curiosamente, da brasileira Júlia da Silva Bruhns, a quem destinou várias páginas descrevendo-lhe o carinho e os belos olhos escuros vindos dos trópicos. Ela escreveu que “A infância tropical na cidade colonial de Parati, cercada pela pujança da mata, as amas negras e as frutas tropicais, seria depois trocada pelas ruelas sombrias da antiga Lübeck, no norte da Alemanha.”

thomas mann sorrindo

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As contribuições de Carpeaux, Caro e Zweig, ilustres imigrantes que chegaram com a guerra

As contribuições de Carpeaux, Caro e Zweig, ilustres imigrantes que chegaram com a guerra
Carpeaux chegou em 1939 e foi trabalhar numa fazenda

Quem conheceu Otto Maria Carpeaux descrevia-o como uma espécie de monstro. O escritor José Roberto Teixeira Leite era seu amigo e desenhava assim a figura do austríaco: “Carpeaux foi um dos homens mais feios que conheci. Sua aparência neandertalesca, todo mandíbulas e sobrancelhas, fazia a delícia dos caricaturistas: parecia um troglodita, mas um troglodita que lia Homero e Virgílio no original, que se deliciava e ensinava sobre Bach e Beethoven, que diferenciava e palestrava sobre Rubens e Van Dyck”. Carpeaux também era gago. Carlos Drummond de Andrade, outro amigo, disse que, numa viagem de carro, ele foi citar Kierkegaard. “Começou a falar quando saímos de Juiz de Fora, Ki… Ki… Ki… e só completou o nome do autor dinamarquês em Barbacena, uns 80 quilômetros adiante’.

Antes de ser Otto Maria Carpeaux no Brasil, ele foi Otto Karpfen, um austríaco que estudou filosofia (doutorou-se em 1925), matemática (em Leipzig), sociologia (em Paris), literatura comparada (em Nápoles) e política (em Berlim); além de dedicar-se à música. Mesmo gago, ele falava e escrevia em inglês, francês, italiano, alemão, espanhol, flamengo, catalão, galego, provençal, latim e servo-croata. Mas não sabia muito da língua portuguesa quando chegou ao Brasil no final de 1939, fugido da Alemanha nazista. Tinha pai judeu e mãe católica. Identificava-se como católico. Quando chegou, foi trabalhar no interior do Paraná, numa fazenda, no campo.

Stefan Zweig veio para uma série de palestras, voltou e morou com a esposa em Petrópolis.

O austríaco Stefan Zweig chegou aqui já famoso. Era um romancista muito popular. Judeu e austríaco, foi também poeta, dramaturgo, jornalista e biógrafo. Para as gerações mais antigas, Zweig era principalmente o autor de biografias. Escreveu várias: de Dostoiévski, Dickens, Balzac, Nietzsche, Tolstoi, Stendhal e uma famosíssima na primeira metade do século XX, de Maria Antonieta. Conseguiu o reconhecimento como romancista nas décadas de 20 e 30. Neste período, destacam-se os romances “Amok” (1922), “Angústia” (1925) e “Confusão de Sentimentos” (1927).

Em 1934 deixou o país e passou a viver na Inglaterra, entre Londres e Bath, onde se naturalizou cidadão britânico. Com o início da Segunda Guerra Mundial e o avanço das tropas de Hitler, o casal atravessou o Atlântico em 1940 e se estabeleceu nos Estados Unidos. Em 22 de agosto do mesmo ano, veio pela primeira vez ao nosso país. Ao todo, Zweig e sua esposa Lotte fizeram três viagens ao Brasil. Durante a primeira, entre 1940 e 1941 para uma série de palestras, escreveu:

“Você não pode imaginar o que significa ver este país que ainda não foi estragado por turistas e tão interessante. Hoje estive nas cabanas dos pobres que vivem aqui com praticamente nada (as bananas e mandiocas estão crescendo em volta), as crianças se desenvolvem como se estivessem no Paraíso — , a casa inteira, desde o chão, lhes custou seis dólares e, por isso, são proprietários para sempre. É uma boa lição ver como se pode viver simplesmente e, comparativamente, feliz — uma lição para todos nós que perdemos tudo e não somos felizes o bastante agora”.

É uma visão sociologicamente ingênua, mas demonstrava algum amor pelo país que adotaria.

Caro veio para o Brasil porque lhe disseram que era barato

O judeu Herbert Caro veio da Alemanha para Porto Alegre. Tinha em comum com Carpeaux a cultura literária enciclopédica e o profundo amor pela música. Na Alemanha, fora impedido de exercer a advocacia devido à promulgação das primeiras leis antissemitas pelo governo nazista. Primeiramente, refugiou-se na França, onde estudou Letras Clássicas na Universidade de Dijon. Para sustentar-se, dava aulas de latim e pingue-pongue – Caro havia integrado a seleção alemã de tênis de mesa durante seis anos e sido um dos dirigentes da federação de 1926 a 1933. Permaneceu um ano na França. Pressentindo a proximidade da guerra, buscou novo exílio. O Brasil surgiu como a melhor opção. Afinal, um amigo dissera que era um país barato de se viver. E Herbert Caro chegou a Porto Alegre em 7 de maio de 1935. Na mala, pouca coisa; no cérebro, um vocabulário de cerca de três mil palavras que aprendera em algumas aulas de português antes da viagem.

O vocabulário permitia que ele entendesse o Correio do Povo e pedisse informações na rua sem compreender perfeitamente a resposta. O ouvido ainda não estava acostumado. Seus conhecimentos de Direito eram inúteis e o doutorado em Filosofia também pouco valia na Porto Alegre da década de 30. O domínio de várias línguas proveu a subsistência nos primeiros anos e direcionou sua vida.

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Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XIX – Auto-de-fé, de Elias Canetti

canetti auto-de-féElias Canetti foi um judeu búlgaro de nome italiano e origem espanhola que viveu na Inglaterra e escrevia em alemão. Recebeu o Nobel em 1981, tendo iniciado sua carreira literária com seu único romance, este Auto-de-fé (atualmente na Cosac Naify, 631 paginas). Depois, produziu ensaios e algumas peças teatrais.

Aqui, a tradução é de Herbert Caro, o que tem claro significado. Meu velho amigo não costumava entrar em fria. Um dia, em nossas reuniões na King`s Discos com a finalidade de falar de música, o Dr. Herbert Caro disse que a Nova Fronteira estava publicando mais um calhamaço traduzido por ele. Disse que não ficava nada a dever a Doutor Fausto, nem a A Montanha Mágica e nem às outras traduções que ele já fizera. Parece que, naquela altura da vida, ele só traduzia o que queria, e sempre eram grandes obras. Assim que foi lançado, comprei (ou roubei, pois na época era um meliante literário) o livro.

Peter Klein é um eminente filólogo que só existe em função de sua biblioteca. Ele é um misantropo que vê o mundo através de seus milhares de livros, mantendo-se afastado da vida. Um dia, por impulso, este ser enormemente individualista resolve casar com a governanta — afinal, ela era tão competente, arrumava tudo tão direitinho… — , convencido de que esta lhe auxiliaria a manter-se afastado do mundo exterior. Casam-se. Porém, rapidamente o casal se incompatibiliza e Klein é posto no olho da rua. Forçado à vida, o professor parte para conhecê-la, entrando numa espiral auto-destrutiva.

Canetti_EliasLendo assim, parece simples; lendo o livro cruzamos com uma montanha de personagens estranhos. O livro é de 1935, segundo ano do nacional-socialismo de Hitler, e seu entendimento do livro deve ser buscado não apenas naquela Europa, mas também lá longe, na China de dois mil anos atrás. Não esqueçam que Peter Klein é um sinólogo e, há dois milênios, o império chinês foi dominado por um certo Qin Shi Huang. Huang foi quem pacificou os vários reinos em guerra que vieram a formar a China. Também divulgou o confucionismo e construiu um belo exército de terracota para proteger seu túmulo. Qin Shi Huang tinha algo de Hitler no sangue e determinou que todos os livros que discordassem de sua linha filosófica deviam ser queimados. Para o servidor que demonstrasse negligência ou piedade ao punir os portadores de livros proibidos, estava prevista a pena de morte. Depois, Huang achou que as fogueiras de livros não bastavam e decidiu enterrar vivos os aproximadamente 500 intelectuais e alquimistas do reino, só para deixar claro seu apreço pela opinião alheia e pelo debate franco e aberto de ideias.

Huang e Hitler, Hitler e Huang. Como escreveu Felipe de Amorim em seu extenso e pessoalíssimo comentário sobre Auto-de-fé, o tema de Canetti é o embate entre o totalitarismo e a liberdade intelectual, descrita numa linguagem colorida e com farpas para todos os lados. Os personagens deste estranho livro interagem, mas não dialogam efetivamente, pois cada um deles está fechado em seu próprio mundo e em suas metas individualistas. Falam e não se ouvem uns aos outros. Eles não conseguem, em momento algum, estabelecer uma compreensão concreta do outro, nem do mundo.

Canetti era um apaixonado pelo tema da formação de grupos populares e da comunicação entre seres humanos. Sua maior obra de ensaios, Massa e Poder, deseja compreender como pessoas pretensamente racionais podiam subitamente se transformar em uma coletividade enfurecida cheia de paranoia, medo e voracidade. Quem manda e quem obedece, quem deve ser exterminado e quem deve sobreviver? Enfim, como se obtém e se perde o poder. “A massa traz sempre vivo em si um pressentimento de desintegração que ameaça e da qual busca escapar através do rápido crescimento”, diz em Massa e Poder. E tudo o que está claramente presente neste ensaio de 1960, aparece de forma alegórica em Auto-de-fé.

Em Auto-de-fé, o ingresso do homem no grupo, na massa, não o torna mais tolerante. Na massa, ele ganha permissão para radicalizar suas opiniões e atos. É este o processo que move as ações dos personagens do romance em sua jornada aniquiladora.

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Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): I – Doutor Fausto, de Thomas Mann

Começo esta antologia anárquica — a ordem em que os livros aparecem não reflete nenhum juízo comparativo — por um livro que toca muito de perto a quem, como eu, gosta de música. Pois o Doutor Fausto de Mann, além de possuir imenso valor literário, é uma espécie de bíblia reverenciada pelos amantes da música. No almoço de ontem, eu estava conversando com meu filho a respeito da obra-prima de Sokurov quando ele disse: “não existe um capítulo XXV no filme”. Ele se referia à celebre conversa de Adrian Leverkühn como o demônio. Eu logo lembrei de outro capítulo, o oitavo, onde o professor Kretzschmar explica a Sonata Op. 111, de Beethoven. Percebem? O que desejo dizer é Doutor Fausto é um livro citado capítulo por capítulo, tal a impressão que causa a quem se apaixona por ele. É o mesmo que fazemos com a Parábola de Grande Inquisidor de Os Irmãos Karamázovi. Claro que ele pode e deve ser fruído também por quem sofre de amusia, assim como os Karamázovi pode ser lido por quem não deseja matar o pai, mas amar a música ajuda.

Narrada por um amigo, o professor Serenus Zeitblom, Doutor Fausto é a história do músico Adrian Leverkühn que, como o Fausto da lenda, vende a alma ao Demônio. Como contrapartida, ganha por alguns anos uma absoluta genialidade musical, suficiente para a composição de um conjunto de obras imortais. Publicado em 1947, este livro faz parte do período final de Thomas Mann, sendo tecnicamente seu romance mais ousado, no qual música e política, realidade e símbolo, o bem e o mal, estão entrelaçados de forma  impressionista e irrepetível. Sempre é bom ressaltar que a tradução da Nova Fronteira é do saudoso e competentíssimo Herbert Caro, que proporcionou grandes manhãs de sábado a um grupo de jovens que se encontrava na King`s Discos da Galeria Chaves em Porto Alegre para falar sobre… música e literatura. O que aprendi com este sábio não tem tamanho, mas esta é outra conversa.

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Beethoven – Quarteto de Cordas, Op. 132 – 3º movimento (e o inevitável 5º de minhas lembranças)

É sempre difícil escrever sobre uma música que amamos muito e que nos faz lembrar fatos pessoais. A primeira coisa que me vem à mente quando penso no Opus 132 foi aquele momento mágico em que eu, sentado na pior sala de meu passado, ouvi iniciar o Allegro Appassionato (último movimento do quarteto) e vislumbrei que, logo aos primeiros compassos, minha filha, aos cinco anos de idade, entrava girando na sala, improvisando uma valsa que dançava sozinha, de olhos fechados, por puro prazer de ouvir a música… Foi tão marcante que hoje soa-me hipócrita dizer que o movimento principal deste quarteto é o imenso Heiliger Dankgesang eines Genesenen an die Gottheit, in der lydischen Tonart, um agradecimento à divindade pela recuperação que Beethoven obteve após grave enfermidade. Mas é, claro que é. O terceiro movimento, com suas duas explosões de alívio é o centro e razão de ser desta grande e fundamental obra.

Quando os últimos quartetos foram apresentados pela primeira vez, não foram bem recebidos pelo público. Ao receber a notícia, Beethoven deu a célebre resposta:

– Gostarão mais tarde.

Como ele sabia que estava escrevendo para o futuro é algo que consigo mais ou menos entender observando a evolução de sua música. Outro fato que chama a atenção é que, estética e conceitualmente, estes quartetos parecem projetar-se na evolução da história da música para colocarem-se quase 100 anos sua época, talvez logo antes dos grandes quartetos de Schoenberg e Bartók. É um mundo à parte. ISTO é Beethoven, e não seus concertos ou sonatinhas iniciais. Ela refere-se aos últimos quartetos, às últimas sonatas para piano, às Diabeli e certamente à Nona Sinfonia. O restante seria grandioso, mas menos pessoal e significativo. Lembro que quando era adolescente, nós tínhamos que nos aproximar destes quartetos respeitosamente e o Dr. Herbert Caro dizia que talvez fosse necessária maior maturidade para que um jovem pudesse entendê-los. Discordo postumamente do grande Dr. Caro, meu amigo e tradutor de Doutor Fausto, da Montanha Mágica, de Auto-de-Fé e outras tantas obras-primas; acho que sempre ouvi o Op.132 e 130 (o último acompanhado de sua Grande Fuga) da mesma forma e o respeito que sempre tive por estes quartetos emanava deles e não de minha atitude. O fato é que o Op. 132 é uma música que passou a fazer parte de mim muito cedo. Eu, um adolescente na casa de meus pais, costumava ficar deitado, antes de dormir, tentando reproduzir nota a nota o terceiro movimento. Cronometrava para ver se chegava perto de seus 15 minutos… Às vezes, pensava conseguir reproduzi-lo por inteiro. Mas nunca ninguém pode comprovar, nem eu.

Dizer mais o quê?

E, aqui, o movimento que minha filha Bárbara dançou por puro prazer numa noite fantasmagórica:

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Uma Incrível Coincidência (Fernando Monteiro, Herbert Caro, eu…)

Post publicado em algum dia de 2003 em meu antigo blog

Tenho certeza de que você que lê já leu Herbert Caro. Certeza absoluta! Mas você terá que chegar ao terceiro parágrafo para comprovar.

Estava dialogando por e-mail com o escritor pernambucano Fernando Monteiro – importante: minha imensa admiração por Fernando precede nosso contato, vim a conhecê-lo após elogiá-lo aqui neste blog e não o contrário, OK? -, quando fiz uma carinhosa referência a meu falecido amigo Herbert Caro. Conheci o Dr. Caro numa loja de discos eruditos de Porto Alegre, a King`s Discos. Lá, eu, ele, o Júlio – que trabalhava na loja – e outros, tínhamos um encontro não marcado mas sempre repetido aos sábados pela manhã. Nós, o grupo dos tarados por música, ficávamos ouvindo as novidades e aprendendo com a inacreditável sabedoria do velho. Quando o conheci, ele já devia ter mais de 70 anos. Não lembro em que ano morreu, deve ter sido entre 1986 e 1990. Creio que Caro não viu a falência do jornal Correio do Povo, onde por décadas publicou suas compreensivas (expressão dele) e lindamente escritas críticas musicais. Como convivi com ele entre meus 20 e 30 anos, era tratado pelo mestre como a criança curiosa que era. Ele tinha atenção especial para comigo e o Júlio, os jovens do grupo, e gostava de me orientar na obra de meus amados Bach e filhos, Mozart, Brahms e Beethoven. Deu-me alguns discos, sempre sob o pretexto de servirem como comprovação de suas opiniões, nunca pelos motivos reais, que eram a consideração, a amizade e o carinho. Era alemão.

Chamávamos o Dr. Caro de “Doktor Carro”, apelido de duplo sentido, pois ao mesmo tempo em que nos referíamos a seu forte sotaque, homenageávamos o grande tradutor de Doutor Fausto (Doktor Faustus) e A Montanha Mágica de Thomas Mann, Auto-de-fé de Elias Canetti, A Morte de Virgílio de Hermann Broch, O Lobo da Estepe e Sidarta de Hermann Hesse, etc. Ele era conhecido por ser de difícil trato, mas gostava de nós e creio que nos levava livres – a mim e ao Júlio – por receio de nossa ironia. Uma vez, pareceu-nos que ele auto-elogiava a tradução (a qual é impecável, insuperável) de A Montanha Mágica (uma obra-prima!) e nós começamos a falar sobre a inutilidade de se traduzir uma bosta de livro em que nada acontecia, em que as pessoas ficavam falando sobre o tempo, doenças, guerra e que inaugurava o riquíssimo e “arborescente” gênero do erotismo tuberculoso… (Se você não entendeu isto, leia o livro!) Depois começamos a falar sobre a “metáfora da Europa” contida na obra e a bobajada alcançou níveis planetários. Viram? Para nós, era facílimo conversar com ele. Ele primeiro ficava com aquela cara escandalizada de alemão rígido: estão-brincando-com-algo-que-é-sagrado-para-mim. Depois dava gargalhadas conosco. Voltava todos os sábados para nos ensinar e, eventualmente, para apanhar mais um pouquinho.

Pois bem, no meu e-mail para o Fernando, falei qualquer coisa sobre o velho e ele me respondeu assim:

(…)
Caro: que coincidência você ter sido amigo do Caro, personagem num capítulo (que estou anexando) de “As Confissões de Lúcio”. Se o quiser, pode divulgar o capítulo – ou a parte do Caro, nele – no blog.
(…)

Quer dizer que Fernando Monteiro, lá de Recife, põe como personagem em seu romance inédito As Confissões de Lúcio meu amigo Herbert “Carro”? Abaixo está a comprovação. A seguir, pois, tenho a honra de apresentar-lhes um trecho do capítulo Falenas na Sombra, de As Confissões de Lúcio. Notem (1) como o personagem Lúcio Graumann apelida Caro de “Herr Graal” – é claro que Fernando e Lúcio ignoravam o “Doktor Carro”! -, (2) como o Fernando refere-se em seu texto à “metáfora da Europa” e (3) aproveitem para medir o calibre do escritor Fernando Monteiro:

Essa anotação eu lera ainda na praia da Paraíba. Havia sentado sobre o papel, na rede de Acaú (Lúcio o deixara amassado sob o calor de febre do seu corpo magro naquele descanso menos estreito do que parecia, e mais cheio de areia e detritos do que se esperava). Quando descobri o papel, pensei – não sei porque – nas três ou quatro vezes (um recorde!) em que havíamos saído para beber no bar de um alemão, próximo da redação do Correio porto-alegrense… o que não era garantia nenhuma de conversa fluente, de piadas, do humor leve de sextas-feiras nas quais você ouve e é ouvido sem grande atenção, alguém entra, você acena, retoma o fio da conversa que não se crispa e o mais. Não, com Lúcio talvez nunca fosse assim, ao contrário, embora não fosse um “chato” (eu, pelo menos, não achava), mas ao se usar a palavra “chato” talvez alguém quisesse referir aquela intensidade dos prisioneiros, isto é, uma conversa meio fixa e fiel a coisas que seguiam no centro do seu interesse, indiferente à indiferença da bebida, da diversão “organizada” como uma suspensão sem maior responsabilidade: um balão desinflado com fritas, uma coisa que pudesse ser esquecida como um jornal dobrado no banco de trás de um táxi. Claro, ele tinha humor – mas seu humor respondia só às convocações rápidas, breves. Herbert Caro compreendia bem esse humor – quando brigavam dentro e fora da redação do Correio cheia de falsos “humorados”. Caro muitas vezes alongou o jogo dos jogos de palavras que fazia com Lúcio, ao tempo das traduções que “Herr Graal” (como ele o chamava) admirava e, eventualmente, corrigia aqui e ali, em algum tijolaço do idioma de Mann fundindo dois vocábulos com a sombra do terceiro como a águia sobre os picos nevados da montanha mágica disputando a visão da alma ingênua de Hans Castorp que não tinha humor, acusava Graumann, e Herbert respondia que era burrice de Lúcio não ver o humor de Mann naquele grau de exarcebação do “espírito monótono” que, no fundo, era de Heinrich e não de Thomas, como se poderia pensar do nariz degaulleano do prêmio Nobel refugiado na América para escapar da “parentada” de Graumann (uma estocada de Caro, suponho que dirigida aos ascendentes maternos, aos Braun cheios de loura burrice responsável por queimar livros em praças públicas)…

Seria um verdadeiro sanatório – e não uma metáfora da Europa – se a vertente “Heinrich” houvesse escrito o livro fascinante justamente por ser de um homem destinado a compreender tudo tarde, depois que as coisas se tornavam irremediáveis (respondia Caro, seriamente, às provocações de Graumann), e Lúcio poderia sorrir, mudar de assunto, contar uma piada – isso não seria o esperado e, contudo, quando a contasse, seria com inesperada graça, sem grande empenho, é verdade, mas com certa graça engraçada até por ter um quê de deslocada… sem no entanto riscar o vidro daquela intensidade do humor que se oculta na “seriedade” – o mesmo caso de Mann? – e que corresponde bem a uma pitada de humor secreto (não sei se isso poderá ser perfeitamente entendido por quem tenha sempre procurado ou preferido os amáveis palhaços de um escritório, Graumann não teria sido jamais um deles) manifestando-se no meio de uma roda como aquela do Correio dos velhos tempos, posso até rever a cabeça inclinada de Caro e a de Lúcio, por sua vez, no seu “ponto de parada”, naquilo que não correspondia a uma dessas pausas que se faz buscando a “aprovação” de algum raro conviva ainda mais ensimesmado, ou surpreendendo – então – por qualquer participação súbita e perfeitamente ajustada…

Observação aos incautos: Heinrich Mann é, por assim dizer, o irmão escrachado de Thomas Mann. É autor do livro Professor Unrat que, rebatizado para O Anjo Azul (Der Blaue Engel), tornou-se o filme-base da carreira de Marlene Dietrich.

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O peso relativo das palavras no Judiciário

Digamos que as palavras tenham seus pesos determinados não por sua densidade ou consistência, nem por sua massa multiplicada pela aceleração da gravidade, mas pela quantidade de leitores atentos que elas possam obter durante sua vida útil. Peço aos meus sete leitores que comparem a “perenidade dos livros” com o número de pessoas paradas e atentas em frente a um dazibao. Se, após editado, uma palavra dentro de um livro obtiver 500 leitores que passarão os olhos por ela e a compreenderão, ela terá peso menor que outra, chinesa, que terá 10.000 leitores no jornal mural chinês e que amanhã será substituída por outra. Aqui, neste texto, não me interessa a beleza ou a razão, mas o número de leitores compreensivos — adjetivo que uso na acepção que Herbert Caro utilizava em nossas manhãs musicais de sábado na King`s Discos, onde compreensivo era o intérprete ou tradutor que demonstrava empatia para procurar sempre entender o autor. Deste modo, uma palavra dita no rádio para 50.000 ouvintes também teria peso superior a de qualquer palavra escrita por um bom e ignorado escritor brasileiro.

Curioso, este assunto me ocorreu quando estava na presença de um psiquiatra forense. Tive duas sessões com ele, cada uma de quase três horas. A finalidade era a de saber se eu poderia obter a guarda de minha filha, ou seja, a de saber se eu era louco ou não. Sua opinião foi muito benigna a meu respeito e, ao final da segunda sessão, ele me comentou que achara meu processo confuso e mal montado. Montado? Ele me explicou que num processo o mais importante é a montagem e o motivo era simples. Os juízes não liam os processos, apenas davam davam um “vistaço”. Vistaço? Ah, sim, folheavam os processos, liam os títulos, algumas frases de um ou outro item e decidiam. Como? Ora, através da experiência. Os juizes então liam os processos como lemos um livro que estamos detestando, mas do qual, meio de má vontade, queremos vagamente descobrir o final? Sim, só que eles não avaliam a qualidade, apenas têm pressa.

O ambiente psiquiátrico é dos mais civilizados que conheço. Peço desculpas a meus amigos terapeutas, mas aquilo é pura diversão para alguém que nunca precisou de tratamento. A gente vai lá e tem uma boa conversa com um sujeito especializado em conviver e manipular, fazendo-nos mudar de assunto ou penetrar em coisas que nem sempre apreciaríamos, mas que ali, bem, ali vale tudo. É como uma dança. O terapeuta faz uma forcinha para um lado sugerindo uma mudança de rumo ou ritmo e nós vamos atrás; se quisermos comandar, vamos ter de enganá-lo ou convencê-lo, tarefa bem complicada, pois ele tem interesses muito definidos e normalmente dá mais importância à nossa insistência em comandar do que ao conteúdo que desejamos introduzir. Sempre saí leve das poucas consultas que fiz, pois era agradável ser “levado” numa dança em que tudo o que não precisara fazer era pensar. Deixava-me ser manipulado e gostava. Mas aquilo que ouvira era demais! Por isso, mudei de posição na cadeira e comecei a questionar. A partir do momento em que ele dissera que eu não era doido varrido e não daria muito dinheiro às pessoas de sua profissão (sim, ele O disse), eu, bem, poderia me mostrar ao natural… Então, resumindo, o processo tem de ter bons títulos, que fossem sedutores ou escandalosos o suficiente para chamar a atenção do apressadinho? Sim, claro. E letras bem grandes? Evidentemente. E os textos deveriam ser curtos e grossos? You got it.

Naquele momento, eu descobri duas coisas: (1) que perderia um outro processo e (2) que qualquer advogado de inteligência mediana saberia que não adianta escrever laudas e laudas citando Pontes de Miranda, Ortega y Gasset e milhões de artigos perdidos na teia de fios em curto circuito do “sábio legislador”, quando o melhor seria a abertura de um processo twitter, que receberia inclusive a simpatia de um incompreensivo (ainda na acepção de Caro) juiz.

Cheguei em casa e liguei para meu advogado. Perguntei-lhe quantas páginas ele escrevera (um monte!), o tamanho da fonte (10, imaginem!) e o número de títulos de itens (poucos). Stendhal dizia ironicamente que sonhava escrever como um advogado, pretendia que seus livros saíssem direto do cartório para o prelo, pois admirava a exatidão jurídica — hoje nem lida… Ali, as palavras eram exploradas em seu preciso significado, as metáforas estavam varridas, mas Stendhal, o imenso, seco, esquecido e genial Henri-Marie Beyle, faleceu em 1842, estamos quase dois séculos adiante e, apesar de os advogados tentarem manter a utilização de palavras etimologicamente corretas… hoje escrevem para não serem lidos.

Então, quando anunciam como grande coisa a informatização do Poder Judiciário, com a eliminação daquelas montanhas de processos, só posso pensar que é um caminho naturalíssimo. Há milhões de processos mal analisados atravancando as salas e agora tudo ficará registrado, e não lido, em discos rígidos. Ah, mas os juízes terão acesso mais rápido aos textos? Pode ser, porém você tem de considerar o novo suporte.

Os monitores e as janelas têm características físicas que favorecem o Reino da Desatenção que é a Internet. Tudo no computador favorece o “scanning”, a busca de palavras-chave ou trechos de interesse. Há a ansiedade da informação, há a janela em background piscando ali embaixo, tudo é difuso. Como diz este interessante site, Manifesto contra a leitura desatenta, a leitura rápida é útil, mas só leitura rápida é fútil. Eu reformularia a frase do Fred, só que a rima iria para o saco (expressão impensável juridicamente — a que saco Vossa Senhoria se refere?). A leitura não será como a do músico que lê a partitura em clusters (conjuntos, pencas) de notas conhecidas e que as toca todas. A qualidade do “vistaço” será menor ainda nos vídeos, pois a ele associa-se a pressão das janelas abertas e do fazer tudo ao mesmo tempo agora.

Então, meus caros advogados, eu sugiro que vocês deem peso a suas palavras treinando no twitter. Ou que tuítem direto com os juízes. Claro que estou brincando. Mas acho mesmo que o sucesso do twitter deve-se à diluição da atenção provocada pelo suporte onde trafegam textos que são só mais ou menos lidos. 140 caracteres é um bom número para um “vistaço”.

Obviamente, tudo isso NÃO passou pela minha limitada cabeça enquanto estava sentado na frente do psiquiatra forense, até porque, ainda que estivesse arguindo, estava com resquícios daquele clima bom de dança. Todavia, fiz-lhe as perguntas decisivas, aquelas duas óbvias, as que não iriam calar. Como então eles decidem? Ora, pelo senso comum, sem atentar a detalhes. Essa era a resposta que temia ouvir e suas consequências nefastas dariam assunto para vinte posts. Poderia abrir um curso para advogados, pois o peso, a importância de suas palavras será diretamente proporcional à aderência, fingida ou não, ao senso comum. Quem estiver mais perto de nossa tradição cultural, de nossos costumes e do Programa Raul Gil irá vencer. Meu curso prometeria aos advogados que suas palavras teriam o insustentável peso de uma palavra de juiz. E fiz-lhe a outra pergunta. Juízes fazem psicanálise? Sentem-se culpados? Eu achei que ele apenas riria e já até olhava para um canto qualquer quando ele, rindo muito, cruzou as pernas e respondeu com uma frase avassaladora. Não precisam, a maioria vai à igreja.

Eu não era louco, mas me deu um desejo incrível de morder o pé do psiquiatra, que balançava satisfeito, disponível, bem na minha frente, divertido.

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Reflexões discretamente alcoolizadas sobre o Fausto de Mann

A Augusto Maurer e Ricardo Branco

A obra literária que mais me satisfez até hoje foi Doutor Fausto, de Thomas Mann. Não o defenderia como “o maior romance de todos os tempos”, é apenas o meu maior. Ele tem o formato e as qualidades dos romances do século XIX, mas é o conteúdo é moderno; ele começa como uma serena farsa, mas acaba sendo uma amostra do que se veria num inimigo intransitivo de Thomas Mann: Thomas Bernhard.

Esses dois autores têm em comum o interesse extremo pela música e, mesmo que Bernhard diga que sente desprezo por seu xará, creio que eu e vários leitores apaixonados pela música podem fazer o terceiro vértice entre eles. São estupidamente numerosos os grandes escritores que tinham — e têm — profundo amor à música erudita (bom assunto, Milton, bom assunto, anote aí), porém poucos conseguiram fazer dela personagem ou uma obsessão tão arrebatadora que as lembranças de seus livros chegam ao ponto de “ter som”. Doutor Fausto e O Náufrago. Herbert Caro, em nossos saudosos encontros informais de sábado pela manhã na King`s Discos, entusiasmava-se demais com Auto-de-Fé e Doutor Fausto, parecia conformado com sua elogiada tradução de A Montanha Mágica, e voltava a falar de Fausto e Canetti. E de música. Imagino sem medo de errar que o tradutor preferia Doutor Fausto a qualquer outra obra de Mann.

Leio Doutor Fausto como quem lê uma novela curta. Não noto nada ali que não contribua para compor a narrativa, nada me parece estéril, da primeira a última linha. As interpretações são livres, ou nem tanto. Tenho convicção de que o nazismo é um viés à narrativa. Seu assunto, e Caro falava nisso, é sobre aquilo que Mann chamava de “a crise da arte ocidental”, tanto que quem irritou-se com o livro foi a Segunda Escola de Viena, na pessoa de Arnold Schoenberg, pois o serialismo torna-se coisa do diabo… (Adrian Leverkühn NÃO se orgulharia, pois sua obra inexistente foi maior que a de Schoenberg). Lembram da nota que Thomas Mann teve que acrescentar ao final do livro, atribundo as teorias dodecafônicas ao Harmonielehre de Schoenberg, e dizendo que associou tais teorias apenas a seu personagem fictício em contexto ideacional, etc.?

Leio o livro como algo muito direto e até visceral… É um Mann raivoso e nunca repetido, nem antes, nem depois. Mann, um homem que gostaria de ter sido um compositor como Cesar Frank — palavras suas —, investe contra aquilo que estava sendo criado por sua geração. O romance é um canto de cisne bastante distorcido de toda uma música e literatura (foi mesmo?) que estava sendo abandonada e que serve ao admiravelmente ao narrador Serenus Zeitblom.

Meu respeito e, quem sabe, compreensão do livro de Thomas Mann faz com que eu releia sempre e saiba quase de cor toda a explicação do professor Kretzschmar para a Sonata Op. 111 de Beethoven, o capítulo VIII do livro. Muito mais conhecido é o diálogo com o Demônio (Cap. XXV), onde Adrian Leverkühn faz “alguns pequenos acertos” com o homem. São páginas arrepiantes e é curioso que, a partir da leitura do livro – lido quando tinha… de que ano é a tradução de Caro? … 1984? Então tinha 27 anos — passei a relacionar o diabo como algo que exala frio e não calor. Ah, as “impressões equivocadas” dos católicos… Não, nada de fogo, nada de diabinho infantil, estamos falando de um diabo real, enregelante, meus amigos!

Doutor Fausto é uma história íntima, pessoal, ontológica e só fala ao sociológico a partir desta perspectiva. Aquelas chatas argumentações que veem o livro como político — seria uma metáfora do Nazismo e da Europa pré e pós-guerra — servem para A Montanha Mágica e o pré-guerra. Acho tão complicado reduzir o Fausto a tal modelo que bocejo só de pensar no esforço que alguns comentaristas fizeram para estreitar um romance cujo assunto principal é a mortalidade a uma alegoria política. Como já disse, Doutor Fausto é profundamente ontológico, nada sociológico e, aos que ainda torcerem o nariz, gostaria de perguntar onde o serialismo tem mais a ver com a política do que com a evolução de uma arte que há anos estava passando por rápidas transformações com Wagner, Mahler, etc. e que parecia ter chegado a um estágio onde só especialistas a poderiam fruir.

Deveria seguir mais um pouco, porém, meus caríssimos sete leitores, já é meio tarde, sabem?

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A internet e as relações humanas

Os compositores de obras musicais costumam dar indicações quanto ao modo como deve ser tocada esta ou aquela peça. Entre cronistas não existe este hábito. Mesmo assim, aviso aos meus leitores que esta crônica deve ser lida con amore.

HERBERT CARO

Talvez esta seja uma experiência comum a muita gente, talvez não. Antes da Internet e, principalmente, dos blogs, eu utilizava muito o telefone. Conscientemente ou não, reservava horários noturnos para fazer longas visitas telefônicas aos amigos. Eram comuns os telefonemas de mais de uma hora onde exercitava meu razoável dom de escutar e minha discutível oratória. Nesta época, já ouvia uma crítica interna que advertia ter sido um erro grosseiro o quase ter abandonado as conversas que antes tinha em sebos e livrarias nos finais de tarde, assim como a tradicional discussão sobre música erudita na King`s Discos dos sábados pela manhã (onde recebia verdadeiras aulas quando jovem). O telefone, pensava, substituíra pobremente a observação da postura, do olhar e dos gestos dos amigos. É certo que tenho a sorte de possuir muitos amigos e nunca deixei de encontrá-los. Porém aqueles civilizados, alegres, gentis e “casuais” encontros em locais onde se podia jogar conversa fora sem maiores objetivos foi pouco a pouco substituído por vozes ao telefone.

O telefone impedia que se abrisse o leque de amizades como acontece nas livrarias e discotecas. Aos que já estão pensando que foram meus filhos os culpados disto, respondo que a utilização do telefone foi pré-prole e aos que acusarem nossos relacionamentos amorosos de exigências exclusivistas não posso responder, pois não lembro de meu primeiro casamento, tendo até esquecido se o nome de minha esposa era Suélen ou Pâmela…

Já viram que hoje estou em ritmo de conversa… Continuemos. As mudanças foram um sinal dos tempos? Acho que não. Ainda hoje, dia desses, fui passear por algumas livrarias do centro ao final da tarde e encontrei — sempre fora do âmbito das horrendas mega — pessoas falando em livros e contando casos. (Para quem mora em Porto Alegre, posso indicar a Ventura Livros como um local com enorme potencial para se comprar livros e para boas palestras. Os donos são acolhedores e conhecem muito bem aquilo que vendem. O Gustavo e seu sócio são representantes de uma raça que as mega-livrarias – sei lá por quê – parecem desejar extintas: são leitores de primeira linha, sabem muito e são civilizados, solidários, dando até descontos aos amigos…)

Também a Sala dos Clássicos é um local em que pode-se encontrar apaixonados debatedores defendendo o vulgar Concerto Nº 5 para Piano e Orquestra de Beethoven em detrimento do maravilhoso Nº 1 de Brahms. (Importante: eu amo Beethoven, mas este Concerto cujo primeiro movimento é pura ornamentação é de matar. Concordo: há gosto para tudo — no mundo há, inclusive, vegetarianos e pessoas que só ouvem Wagner.)

Voltemos a nosso assunto, pois quero lhes falar que, após abandonar o olhar, o ambiente e o gesto, troquei a voz pelos e-mails e blogs. Hoje, quase não falo mais ao telefone, só o utilizo para recados e conversas curtas. Mesmo as consultas que fiz a alguns amigos e, principalmente, àquela psicanalista formada pela Sorbonne, acerca da interpretação “do tal post da cizânia” resultaram curtíssimas; todos têm computadores conectados à rede em suas casas e as conversas foram esclarecedoras e exclamativas, mas breves. O grosso foi por MSN.

De qualquer forma, os novos vínculos formados pelos blogs e pala rede são muito fortes e creio que este seja um dos maiores elogios que possam ser feitos aos textos numa época em que a literatura fracassa diante de outros meios de expressão. E o leque de amizades potenciais guardado pela rede é aparentemente inesgotável. Não ousaria listar aqui os novos amigos com receio de ofender alguém pelo esquecimento, mas digo que, se eles têm a desvantagem de estar longe, têm a vantagem de nunca terem me decepcionado quando os conheci pessoalmente — ao contrário! Mas não me convenço muito: é raro vê-los, ouvir suas vozes, apertar suas mãos, beijar as bochechas ou alcançar-lhes um copo. Acho triste.

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A um Escritor que Amo

Quando o li pela primeira vez, foi por exigência do colégio. Tinha 14 anos e foi uma revelação. Nunca antes me deparara com nenhuma atividade que me interessasse de verdade. Não queria ser médico ou engenheiro – tinha eu 14 anos de idade… – mas poderia ser aquilo. Escreveria livros! A partir daquele, comecei a procurar outros do mesmo autor e notei como ele frequentemente citava músicas. Ora, meu pai era um homem de muitos discos, então era fácil conhecer as coisas de Beethoven, Mozart, Brahms e Bach de que ele falava. Depois, conheci Herbert Caro, que — amigo de Erico — fez-me uma relação verbal das músicas que ele ouvia repetidamente em casa, enquanto escrevia ou nos intervalos. Sabe-se hoje que Erico Verissimo deixou por escrito a recomendação de que, se quisessem lembrá-lo no futuro, não precisariam fazer grandes homenagens e discursos, bastaria reunir seus amigos e leitores “numa noite, qualquer noite” e tocar um “dos últimos quartetos de Beethoven, algumas sonatas de Mozart e qualquer coisa do velho Bach. E o resto – que diabo! – o resto é silêncio.”

Ontem à noite, fui a um concerto em homenagem aos 100 anos de nascimento de Erico Verissimo – ele nasceu em 17 de dezembro de 1905. Executou-se um quarteto de Mozart, outro de Beethoven e o esplêndido Op. 25 de Brahms. Foram apresentados por membros do Salzburg Chamber Soloists Ensemble. O fundador e regente desta orquestra é um portoalegrense chamado Lavard Skou-Larsen. Lavard é um violinista filho de mãe brasileira e pai dinamarquês e, mesmo morando desde os 4 anos em Viena, conhece a obra de Erico por influência de sua mãe. O concerto foi espetacular, com destaque para a violoncelista – e mulher de Lavard – Adriane Savytzky, para a pianista israelense Revital Hachamoff e para o entusiasmo, tesão e alegria de todos. Não houve discursos. Com fotos de Erico por todo o lado, ouvimos música. A empresa patrocinadora fez das suas apresentando um vídeo institucional, mas sabemos que sem patrocínio não tem concerto. Se todas as homenagens a Erico forem deste porte, teremos um grande final de ano em Porto Alegre.

Erico viajava muito ao exterior e costumava dizer aos que não conheciam Porto Alegre: “Moro numa cidade que tem Orquestra Sinfônica”. Para ele, isto demonstraria inequivocamente nosso tamanho, civilidade e humanismo. Tinha razão. Espero que a Orquestra Sinfônica de Porto Alegre não esqueça dele.

P.S.- Esta pequena crônica foi escrita em abril de 2005. Sim, a Ospa homenageou Erico no concerto do dia 13 de setembro de 2005. O programa não foi um horror, mas também não incluiu nada que o escritor especialmente admirasse: começou com a Abertura da ópera “Fosca” de Carlos Gomes, depois veio o Concerto para Piano e Orquestra em lá menor de Schumann e finalizou com a Sinfonia nº 4 em ré menor, também de Schumann. Poderiam ter lido trechos de seus livros, apresentando as músicas depois, mas como são uns béocios, perderam a oportunidade. Uma pena.

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