Ludwig van Beethoven (16 de dezembro de 1770 – 26 de março de 1827) foi um compositor cuja existência mostrou ser tão adequada a romances e filmes que as lendas em torno de sua figura foram se criando de forma indiscriminada, às vezes paradoxal. Sua surdez, por exemplo, contribuiu muito para popularizá-lo e para que fosse lamentado. Victor Hugo dizia que sua música era a de “Um deus cego que criava o Sol”, mas quem o conhecesse talvez reduzisse o tom de piedade.
Beethoven era uma pessoa absolutamente segura de seu talento – não mentiríamos se o chamássemos de arrogante – e tinha certeza da imortalidade de sua obra. Ele tinha a perfeita noção de que estava criando um conjunto espetacular de obras musicais. A surdez representava uma tragédia muito mais do ponto de vista social, das relações amorosas e das de amizade, além prejudicar de forma fatal sua carreira de grande pianista, mas nunca foi encarada por ele como um obstáculo no plano da criação.
O problema começou a manifestar-se aos 26 anos de idade e aos 46 o compositor estava praticamente surdo. Ao final da primeira apresentação pública da 9ª Sinfonia, Beethoven permaneceu absorto na leitura da partitura e não percebeu que estava sendo ovacionado até que um amigo, tocando em seu braço, voltou a sua atenção para o que acontecia na sala, onde a platéia o aplaudia em pé. Ou seja, aos 54 anos, época da composição da Nona, ele era totalmente surdo.
Com isso, não estou dizendo que ele não tenha sofrido muito com o progressivo ensurdecimento. Sofreu a ponto de ter pensado em suicidar-se. Era 1802, Beethoven tinha 31 anos – idade com que Schubert morreu – e pensava em matar-se. Ao que se sabe, nunca fez uma tentativa, mas, se a fizesse e fosse bem-sucedido, talvez ainda assim estivéssemos falando dele.
Beethoven não era fácil. Em seus anos de aluno, ele utilizava harmonias que eram consideradas inadmissíveis. Quando lhe diziam que eram estranhas, perguntava de volta: “Quem as proibiu?”. Em 1792, quando Haydn visitou Bonn, foi apresentado a ele. Aos 21 anos, Beethoven mostrou-lhe algumas de suas obras e Haydn, impressionado, propôs que se mudasse para Viena a fim de que pudesse ser seu aluno. No mesmo ano, Beethoven instalou-se em Viena, mas recebia aulas de forma irregular, pois Haydn estava no auge de sua carreira e tinha de sair frequentemente da cidade.
Beethoven estava descontente devido a pouca dedicação de Haydn para com ele. Sabe-se que Haydn ensinou-lhe muito, apesar de considerá-lo um chato. Chamava Beethoven de Sua Majestade. Assim, em 1794, Beethoven aproveitou-se de uma viagem de Haydn a Londres e procurou um novo mestre: Georg Albrechtsberger. A relação entre ele e o novo professor também não foi muito tranquila. Tanto que Albrechtsberger, depois que foi dispensado, acabou proferindo uma daquelas frases que fazem a alegria dos biógrafos. Ele disse: “Não percam tempo com ele. Ele nada aprendeu e nada fará de bom”. Assim é que se faz para entrar na história pela porta dos fundos…
Hoje, quase 250 anos depois, não temos a intenção de contar os casos em que fica comprovado que Beethoven era um brigão — procuremos ver sua postura por um lado mais indulgente: era sujeito orgulhoso, consciente do próprio valor e, no caso do pobre Albrechtsberger, claramente superior.
Há um fato muito curioso na formação de Beethoven. Desde cedo ele teve uma noção muito curiosa sobre aquilo que lhe faltava: faltava-lhe conhecer literatura. E ele, com entusiasmo, atirou-se à leitura de Homero, Shakespeare, Goethe e Schiller. Pensava que só assim – e tendo bons professores de composição – poderia ser o que tinha planejado para si: tornar-se o Tondichter da Alemanha, o poeta dos sons.
Mais poesia do que isso?
As obras escritas antes de seus 30 anos obedeciam e traíam seus mestres. Apesar de respeitar as estruturas aprendidas, ele já anunciava os procedimentos expressivos que utilizaria nas fases seguintes — temas curtos e afirmativos, súbitos silêncios, uso simultâneo de graves e agudos do teclado, a primazia do ritmo. O seu “classicismo vienense” era, na verdade, um classicismo muito pessoal.
O uso dos silêncios
Os temas curtos sob os gestos incríveis do maestro Masato Usuki
Sua vida artística pode ser dividida em três fases — o que é tradicionalmente aceito. A primeira começa com a mudança para Viena, em 1792. Nove anos depois, em 1801, Beethoven afirmou não estar satisfeito com o que compusera até então, decidindo tomar um “novo caminho”. Tudo parecia levá-lo ao épico e, dois anos depois, em 1803, surge um grande fruto desse “novo caminho”: a Sinfonia Nº 3, Eroica. Ela abre um verdadeiro ciclo épico. A Sinfonia era para ser dedicada a Napoleão Bonaparte, pois Beethoven admirava os ideais da Revolução Francesa e Napoleão. Porém, quando Napoleão autoproclamou-se Imperador da França em maio de 1804, Beethoven retirou a dedicatória de forma pessoal, mas violenta… Foi à mesa onde estava a sinfonia já pronta, pegou a primeira página e riscou o nome de Napoleão tão violentamente que ficou um buraco no papel. Ele apagara a napoleônica referência com uma faca… E que música havia ali!
https://youtu.be/by2TA_yDlJg
O ciclo épico iniciado pela Eroica seguiu com obras verdadeiramente espantosas e originais, que cantavam a força da humanidade, a paixão pela liberdade e a vitória do espírito humano.
Vieram a Sinfonia Nº 5, a Nº 6, Pastoral, as sonatas Waldstein e Appassionata, o Concerto para Piano Nº 5, chamado Imperador, a Fantasia para piano, orquestra e coro. Eram músicas altamente belicosas, intensas, triunfantes e românticas. Importante explicar o título Imperador do Concerto Nº 5 para piano e orquestra. O compositor jamais quis este apelido para o Concerto. Quem deu este nome foi o editor responsável pela publicação da partitura na Inglaterra. Este acreditou ser aquele um Concerto tão grandioso como nenhum outro e o chamou de “Emperor”. O próprio Beethoven não gostou do apelido, mas isso de nada adiantou.
Na época da morte de Haydn, em 1809, ainda na primeira fase beethoveniana, foram anos de grande fertilidade criativa e, junto com as obras citadas, obras-primas brotavam de sua pena como beterrabas. Vieram também o Concerto para Piano nº 4, Op. 58 — recentemente interpretado por André Carrara com a Ospa; os Três Quartetos de Cordas, intitulados Razumovsky, em 1806; e o Concerto para Violino, Op. 61.
Fui de mau humor ao concerto da Ospa de ontem. Tinha uma certeza: seria péssimo. E me enganei totalmente. Acontece que o programa não era nada estimulante…
R. Schumann: Abertura Manfred J. G. Albrechtsberger: Concerto para Trombone Alto e Cordas L. v. Beethoven: Sinfonia nº 6 “Pastoral”
Regente: Guilherme Mannis
Solista: José Milton Vieira (trombone)
… e vou tentar explicar o motivo. A conhecida Abertura Manfred, de Schumann, é verdadeiramente um horror. Ela não melhorou ontem à noite e só fez com que eu afundasse ainda mais em minha cadeira. Mas ali, ouvindo aquela mediocridade vinda de um Schumann cheio de alucinações em seu caminho para a loucura, pude notar que — coisa de luteranos — a Igreja da Reconciliação tem boa acústica. Outra óbvia observação que pude fazer, enquanto esperava que acabasse a tortura, foi de que tínhamos pouco mais de meia casa de lotação, o que, naquele momento, achei justificado em razão do programa e do frio.
Bem, quando finalmente Schumann despediu-se e foi para o sanatório, entrou Albrechtsberger. Este sujeito de nome longo, ao qual doravante chamaremos de A. foi professor de Beethoven. Pois é, Ludwig van chegou em 1792 a Viena recomendado por Haydn para procurar aulas com seu amigo Albrechtsberger (OK, eu escrevo). Com ele, Beethoven estudou harmonia e contraponto. Alguns anos mais tarde, Albrechtsberger fez questão de entrar na história da música com uma das maiores bobagens já proferidas por um professor: “Beethoven não aprendeu absolutamente nada e nunca vai conseguir compor nada decente”… Isso é que é uma previsão! Sim, foi o que ele disse, demonstrando confiança e dando feedback positivo a seu pupilo. Para completar minha desconfiança, certa vez um CD de A. ganhou o prêmio de um dos 3 piores publicados pelo PQP Bach, dentre mais de 3 mil.
E, dizia eu, entrou o compositor com José Milton Vieira seu trombone de vara. Senti o drama. Ele vinha para enfiar-nos Albrechtsberger com todas as letras. Só que eu gostei. A música era surpreendentemente boa, tinha um lindo Andante e um Finale muito divertido. Miltinho, para variar, tocou demais. Diego Biasibetti mostrou-se um belo cravista, fazendo um baixo-contínuo seguro e discreto, como deve ser. Foi muito animador receber aquela ducha de boa música após (argh!) Manfred.
Sem intervalo, fomos para a programática Pastoral com seus 5 movimentos divididos em 3 seções. Já dera para sentir nas primeiras peças do programa que o regente Guilherme Mannis tirara as cordas da letargia. E elas dominaram bem a trabalhosa sinfonia do mestre de Bonn, pois se o flautim toca 6 notas, elas tocam milhares naquele tagatagatagataga beethoveniano que a gente adora. Aliás, mantive meu olho atento às cordas.
O tranquilo spalla Omar Aguirre era bem acompanhado, mas The Usual Suspects estavam lá, dando cruéis desformatadas a golpes de arco. Nem tudo é perfeito. No terceiro movimento também houve uma trompa que derrubou alguns obstáculos e caiu na pista, mas nada grave — a concepção de Mannis e o núcleo duro da orquestra seguraram bem a coisa. Chamo de núcleo duro as duas linhas de excelentes músicos que ontem estavam formadas por Marcelo Piraíno (clarinete), Diego Grendene (idem) e Adolfo Almeida Jr. (fagote), tendo mais à frente Klaus Volkmann (flauta e chorinho especial para moças no pós-concerto), Viktoria Tatour (oboé) e Paulo Calloni (corne inglês). Eram as duas linhas de três do técnico Mannis.
No final, só me sobrava rir de meu engano. O concerto fora muito bom.
Os bolcheviques tomaram de assalto o Theatro São Pedro ontem à noite. Chefiados pelo competente maestro Vladimir Ilitch Lênin, a orquestra tentou fazer com que a plateia saísse com cestas de frutos vermelhos do TSP, mas estes ficaram verdes, carecendo de maior maturidade. Sabemos que a a grande fome russa aceita qualquer coisa, até criancinhas; porém também sabemos — por experiência própria — das dores no estômago causadas por frutas verdes .
O programa não era nenhuma novidade, mas era bom:
Beethoven: Abertura “Coriolano” Mozart: Concerto para piano K.466 Brahms: Sinfonia Nº 4 Op.98
Regente: Gian Luigi Zampieri Solista: Daniele Riscica (piano)
A Abertura Coriolano acabou sendo a peça mais redonda da noite. Ela ilustra um episódio épico de Shakespeare com nada rara felicidade. Afinal, falamos de Beethoven. A peça é quase uma demonstração prática sobre o valor do silêncio como elemento de tensão. Uma maravilha onde pudemos ver o bom trabalho de Zampieri.
O Concerto para piano, K.466, de Mozart, foi apenas para cumprir tabela. Foi interpretado pelo jovem e correto Daniele Riscica. Jovem demais, correto demais. Faltou elegância e consistência ao moço de 24 anos. As notas foram dispostas com cuidado, mas sem grande significação. Um amigo achou que a orquestra estava muita alta no Romanze (movimento central do concerto), meio que impedindo nossa audição do pianista. Talvez.
A Sinfonia Nº 4, de Brahms, já teve melhores dias, mesmo com a Ospa. Parece-me que há que fornecer Ritalina (?) para as cordas da orquestra. Os sopros surgem com tesão e afinação, enquanto as cordas vêm mais ou menos hesitantes. Na terminologia da Av. João Pessoa, onde nasci, poderíamos dizer que os sopros jogam “às ganha” e as cordas “às brinca”. Aliás, ontem, brinquei de acompanhar as mãos esquerdas dos músicos das cordas. Conhecendo muito a sinfonia de Brahms, acredito que, por exemplo, o spalla dos primeiros violinos entrava no momento certo, no que era acompanhado por apenas metade de seu time. Claro que não tocam juntos. Por algum motivo, a interpretação melhorou nos dois últimos movimentos, com destaque para o flautista Artur Elias e o clarinetista Samuel Oliveira.
Acho que a orquestra precisa de mais motivação, motivação musical, olhares musicais, interesses musicais.
Crítica é memória, polêmica, discussão. Troca, argumentação, diálogo. O crítico é aquele que percebe e proclama o novo ao mesmo tempo em que fareja e revela o equívoco e a incompetência. Uma arte sem crítica está ameaçada por perigos avassaladores, mediocridade, estrelismo, fórmulas prontas, modismos e muitas outras coisas que estacionam na periferia da criação artística.
Na semana passada, tivemos o dia 21 de março de 2015, data no qual o mundo comemorava os 330 anos de Johann Sebastian Bach. E a Ospa, sempre ligada, fez o que se esperava, dedicando seu concerto à obras do Mestre de Eisenach, queridão pai de 20 filhos e de de uma obra interminável em número e tamanho.
Mas, Milton, não foi nada disso que acont… Cala a boca! Tudo começou quando adentraram o palco os 11 músicos que interpretariam o Concerto de Brandemburgo Nº 3, peça de abertura da noite. A concepção era antigo-moderna: 10 instrumentos de cordas mais o cravo de Fernando Cordella. Sobrava espaço no palco com esta formação rarefeita. Foi algo deste gênero:
Mas, pô, Milton, tu tá louco… Calado! Pois bem, foi um lindo e sensível começo de uma noite gloriosa, dedicada ao compositor preferido deste que vos escreve e do presidente da Ospa, Dr. Ivo Nesralla — segundo confidência feita há três anos no Instituto de Cardiologia. Depois, Cordella mandou bala no solo do Concerto Nº 5 de Brandemburgo, para cravo e orquestra.
Não, sete leitores, o pogrom, opa, o programa era outr… Depois, tivemos uma seleção de árias de Cantatas de Bach. Elisa Machado foi a primeira cantora convidada. O soprano cantou a famosa ária Bist du bei mir BWV 508, encantando o público do teatro. (Na verdade, ao que tudo indica, esta ária avulsa é de Gottfried Heinrich Stölzel, um aluno de Bach cuja ária foi copiada para Caderno de Notas de Anna Magdalena Bach, mas a tradição diz que é de Bach). O belo acompanhamento veio através do Quinteto de Metais da orquestra. Afinal, o maestro Sotelo é especialista em sopros. A coisa foi mais ou menos assim:
Milton, tu estás delirando. O concerto de ontem foi uma m… Continuando a noite, depois tivemos a mezzo-soprano Angela Diehl cantando a ária Erbarme dich, da Paixão Segundo São Mateus, acompanhada do maestro convidado, que empunhou o violino. (Bem, chega de exemplos, quem não conhece as árias que as procure no Youtube!).
Mas, caralho, Miton, para com is… Ora, para tu, eu é que escrevo, e dá trabalho. E estou fazendo a correção de um grave equívoco. Juremir Vieira foi o convidado seguinte. Ele esmerilhou na ária Der Ewigkeit saphirnes Haus, da Cantata Trauerode BWV 198. Logo após, Ricardo Barpp mostrou o esplendor de sua careca fechando a parte dedicada à música vocal de Bach. Ele elevou o público alguns centímetros do chão ao interpretar a ária inicial da Cantata Ich habe genug, BWV 82. Amigos, que noite!
Espere por mim, no final, eu vou dizer a verdad… Conforme a tradição da Ospa, a segunda parte dos concertos são de solo de batuta. Então, o de ontem foi finalizado com algumas fugas de A Arte da Fuga arranjadas para orquestra — versão de Karl Münchinger
— e com a Suíte Orquestral Nº 3. Um programa de enorme, de sonho, uma noite perfeita!
Deixa eu falar… Não ainda! Como bis, tivemos a Ária da Suíte Nº 3, ouvida entre suspiros do público. Agora sim, podes falar.
Na verdade, digo a vocês que foi um concerto bem diferente e pobre. Gente, a OSPA deu um concerto no dia dos 330 anos de nascimento de Bach e o programa foi de obras de Milhaud, Beethoven, Villani-Côrtes e Schubert! Há coerência. Afinal, no dia dos 50 anos de morte de Villa-Lobos, em 2009, a orquestra programou um Festival Mendelssohn.
Bem, o Milhaud foi excelente com um show do percussionista Douglas Gutjahr. Beethoven.. Putz, a Egmont pela 247ª vez? O Villani-Côrtes foi aceitável e o Schubert foi fraco, com direito a erro do maestro que entrou e desistiu, fazendo a orquestra parar sem entender nada. A quem estava sentado onde eu estava, num camarote bem em cima dos músicos, só restou rir. O melhor do concerto foram os solos de Klaus Volkmann e a cara de alívio de Emerson Kretschmer quando tudo acabou. Aliás, a cara dos músicos… Os violinos chegaram a fazer uma breve reunião no palco após o concerto, certamente para comemorar a rapidez com que reagiram à mancada do regente Dario Sotelo. Tudo o que o Milton descreveu seria totalmente possível e lindo, só que a criatividade e a ousadia andam tomando um pau que nem lhes conto.
Depois do The Guardian, mas com mais informações, quem sabe…
O Último Concerto (2012), de Yaron Zilberman, ora em cartaz em todas as capitais brasileiras, é uma boa e inesperada surpresa. É um retrato sincero, inteligente, não muito sentimental — considerando-se que é um filme norte-americano — e bem-construído sobre um músico que foi diagnosticado nos estágios iniciais do Mal de Parkinson. Por favor, esqueçam Amor, de Michael Haneke.
Christopher Walken dá um desempenho suave a Peter, um violoncelista muito amado e admirado, verdadeiro eixo emocional da trama e do Fugue Quartet, o qual trabalha junto há 25 anos. Ele é mais velho e mais sábio do que os outros: o primeiro violinista Daniel (Mark Ivanir), o segundo violinista Robert (Philip Seymour Hoffman) e Juliette (Catherine Keener), os dois últimos formando um casal.
O anúncio de Peter a seus atordoados parceiros desencadeia todos os tipos de repercussões dolorosas de grupo. Quando ouvem a notícia percebem que não são livres. O grande sucesso artístico e a história do quarteto comprova que eles cresceram juntos, organicamente, como uma família. Porém, confrontados com a perda de presença tranquila e apaziguadora de Pedro, eles entram em colapso e passam a duvidar de suas escolhas.
O roteirista teve o bom gosto de centralizar a música apenas no Quarteto, Op. 131, de Beethoven, uma peça de maturidade que exige o mesmo do quarteto. Ela, em seus sete movimentos encadeados, fala sobre a finitude, assunto principal de um filme que também nos mostra como funciona a intimidade de um grupo de pessoas talentosas e de como seus egos acomodam-se. Ou não.
Um belo filme adulto. Gostei muito, porém…
Aviso aos músicos: Apesar do enorme esforço e do trabalho que tiveram para aprender a imitar movimentos de músicos profissionais, para a Elena, minha namorada, o filme foi mais complicado. Violinista de sólida formação musical, ela tinha fechar os olhos para não ver as barbaridades cometidas pelos atores nas posturas dos atores fazendo-se de músicos. Por exemplo, quando Robert testa um violino, ele extraiu um vibrato perfeito para uma peça de Sarasate, só que sua mão esquerda está parada…
Quando pegamos um CD ou um programa de concerto e lemos o nome de Lavard Skou Larsen, ficamos normalmente surpresos ao saber que se trata de um maestro e violinista porto-alegrense radicado na Áustria. Os pais desta estrela internacional da chamada música erudita são os violinistas Perly e Gunnar. Ela é gaúcha e Gunnar Skou Larsen foi um dos estrangeiros que vieram para tocar violino na Ospa (Orquestra Sinfônica de Porto Alegre) de Pablo Komlós nos anos 50. Veio da Dinamarca.
Lavard recebeu o Sul21 no apartamento de sua mãe, no bairro Moinhos de Vento. Mesmo com a pesada agenda de concertos — nesta quinzena ele deu concertos em Erevan e em Tbilisi, respectivamente as capitais da Armênia e da Geórgia — ele sempre retorna a Porto Alegre para ver D. Perly, uma lúcida senhora de 90 anos e para tocar e reger, como fará na próxima terça-feira (15). Desta vez, trouxe a nora e os netos. Lavard viveu em nossa cidade só até os quatro anos de idade, mas fala um português perfeito e diz sentir-se em casa como porto-alegrense, gremista e amante do churrasco.
Hoje, além dos concertos pelo mundo, Lavard Skou Larsen é professor de violino na Universidade Mozarteum, em Salzburg, e da cadeira de prática de orquestra. Desde 1991, é fundador, maestro e diretor artístico da Salzburg Chamber Soloists, de grande sucesso no mundo inteiro. Grava regularmente para os selos Naxos, Denon, CPO, Marco Polo, Movieplay, Stradivarius e Coviello Classics e, em 2004, assumiu o cargo de maestro titular da Deutsche Kammerakademie Neuss am Rhein (Alemanha).
Como dissemos, na próxima terça-feira ele estará novamente à frente da Ospa, no Auditório Dante Barone, às 20h30, num concerto cujos detalhes são discutidos abaixo.
É desnecessário alongar-se sobre seu currículo. Acreditamos que boa parte de sua visão da música e do mundo está na entrevista abaixo, que foi longa, gentil, informal e pontuada por risadas.
Sul21 — Como é que um sujeito chamado Lavard Skou Larsen nasce em Porto Alegre?
Lavard Skou Larsen — (risos) Meu pai veio para o Brasil em 1955. Naquela época, vir para o Brasil era uma coisa muito especial, muito exótica, era uma aventura. Ele era violinista, dinamarquês e estudava violino em Viena. Mas quis fazer um ano ou dois anos em outro país. Poderia ter ido para a Índia, para o Paquistão, mas veio para o Brasil. Ele tentou tocar violino no Rio de Janeiro, na OSB, mas lá não tinha lugar. Daí, disseram pra ele “Olha, em Porto Alegre tem um húngaro, Pablo Komlós, que fundou uma orquestra, e lá estão precisando de gente”. E ele veio. Minha mãe conta sobre o dia em que ele chegou. Ele apareceu no ensaio com uma mala numa mão e o estojo de violino na outra, e o único lugar que tinha para sentar era ao lado de minha mãe. Ela é o mais velho membro da Ospa. Tem 90 anos.
Sul21 — A senhora também é violinista?
D. Perly Skou Larsen — Sim, eu toquei no primeiro concerto da Ospa, em 1950. Eu sou daqui de Porto Alegre, estudei no Instituto de Belas Artes. Eu me formei bem na época em que o Komlós estava organizando a orquestra, quando ele estava convidando todo mundo que sabia tocar um pouquinho. O pai do Lavard veio mais tarde. Ele tocava conosco e dava aulas de violino, porque tinha uma formação musical muito sólida.
Lavard — Mas ele te conheceu na Ospa, ele chegou para tocar na Ospa?
D. Perly — Sim, foi contratado. Naquela época a Ospa recebeu uma porção de músicos da Europa. Não foi só ele. Isso tudo em meados de 1950 e 1960. Aí eu casei com Gunnar Skou Larsen, montamos até escolas de música em Porto Alegre.
Sul21 — Como surgiu o violinista Lavard Skou Larsen?
Lavard — Acho que surgiu quando eu estava na barriga dela… Meu pai comprou meu primeiro violino quando eu era um embrião. (risos) Eu não tive escolha. Meu pai foi o primeiro músico de sua família. Meus avós eram camponeses na Dinamarca, gente bem simples. Ele tinha orgulho da profissão que o levara à Viena. E, logo com quatro anos de idade, eu comecei a arranhar o violino no método Suzuki, em que você aprende brincando. Ele tentou o mesmo com minha irmã, mas não obteve sucesso. No início eu era um pouco cabeça dura, não queria estudar, então ele me dava umas chicotadas com o arco. Depois disso eu tocava muito bem! (risos)
Sul21 — Além de apanhar com o arco, o que o guri Lavard fazia? Jogava bola?
Lavard — Brincava com os amigos, jogava bola… O meu pai era muito legal, todos os dias a gente tinha uma ou duas horas de estudo, mas depois, eram só brincadeiras. Ele me ensinou a paixão pela Fórmula 1, por exemplo, me levava às corridas lá na Áustria. Mas sabia educar muito bem, me fazia estudar seriamente. Éramos amigos.
Sul21 — Vocês viviam entre a Europa e Porto Alegre então?
Lavard – Sim, nós fomos para a Europa em 1966. Eu tinha 4 anos. Meu pai desejava estudar regência e tinha planejado ficar alguns anos na Áustria, mas acabou contratado pela Camerata de Salzburg, o que fez com que ele permanecesse definitivamente. Minha mãe também começou a tocar lá. Depois, ele fundou sua própria orquestra de câmara. Voltamos algumas vezes a Porto Alegre, sempre por compromissos profissionais dele ou para visitarmos a família. Ele faleceu em 1975. Hoje eu venho seguidamente à cidade, uma vez por ano, mais ou menos, para ver minha mãe.
Sul21 – Onde tu estudaste, quem foram teus professores?
Lavard – Estudei basicamente fora. Comecei no Mozarteum de Salzburg logo após a morte do meu pai, em 1976. E tirei o diploma com 21 anos, era um dos mais jovens. Estudei com Sandor Végh, e depois fui spalla em várias orquestras. Também aperfeiçoei esta profissão de liderar e organizar orquestras. Eu gostava disso mais do que tocar como solista. Até hoje toco como solista, mas tem que estudar muito para ser bom (risos). Eu faço isso umas quatro ou cinco vezes por ano, mas o que gosto mesmo é de procurar realizar o meu conceito de música dentro de um grupo, para uma orquestra de câmara ou sinfônica.
Sul21 — Tu sempre pretendeste reger?
Lavard — Não, isto veio depois. Acho que o maestro tem que saber muito bem como funciona uma orquestra por dentro. Eu tenho muita experiência de tocar em orquestra como spalla. Eu conheço os problemas e as manias dos músicos, sei da psicologia deles. Você tem de conhecer a essência do grupo. Eu não acredito muito nesses maestros que regem piano, que treinam só o gestual e que só eventualmente trabalham com uma orquestra. A orquestra é um gigante vivo na nossa frente. E eu comecei com isso já cedo, ganhei um prêmio aos 16 anos. Regi uma pequena orquestra na Áustria num concurso e ganhamos, eu e a orquestra, o primeiro prêmio. Mas foi em 2004, quando comecei na Orquestra de Neuss (a Deutsche Kammerakademie Neuss), que eu comecei a reger seriamente. Agora eu posso dizer que sou um maestro, que eu rejo mais do que toco.
Sul21 — É uma liderança natural ou é uma questão de postura adquirida, de atuação?
Lavard — Sem dúvida, você tem que ter um gene de liderança, e às vezes é necessário ser autoritário mesmo. A conversa com um é diferente da que se tem com outro. Um é mais sensível, outro é mais cerebral, outro talvez seja mais limitado. Uns pedem ordens; outros, conversas. Há que conhecer e considerar todos.
Sul21 –Tu te caracterizas como durão ou conciliador?
Lavard — Depende muito da orquestra. Quando não há disciplina ou estudo, eu sou muito duro. Quando há, eu sou aberto, acessível, tenho humor. Eu tive uma orquestra de músicos da Geórgia que estava residente na Alemanha. Fiquei lá dois anos… Foi insuportável, eu agi duramente e só deu rolo. Havia um grupo acomodado nas primeiras cadeiras que era mais velho e não tocava nada bem. E tinha um grupo excelente de jovens que pedia passagem. Estes me apoiavam. Foi um caso grave, houve até luta física entre eles. Os músicos das primeiras cadeiras não aceitavam a rotatividade que hoje em dia é normal. Eles não queriam saber disso, tinham uma formação meio soviética, mas eu fora contratado justamente para modernizar uma orquestra que era patrocinada pela Audi. Também não aceitavam críticas a seu modo de tocar, levavam tudo para o lado pessoal. Mas, feliz ou infelizmente, o maestro tem que ser o chefe. Quando eu entro numa orquestra, penso no tempo que permanecerei lá e como posso educá-la do jeito que quero. O som, o estilo e a forma de tocar são determinadas pelo maestro. É triste ver que os muitos maestros não têm essa obsessão de imprimirem suas assinaturas nas orquestras. Com toda a modéstia, eu posso dizer que imprimi meu estilo em Neuss e na Salzburg Chamber Soloists.
Sul21 — Tu também tens importante atividade pedagógica, não?
Lavard — Sim. Dou aulas em Salzburg e algumas vezes convidei músicos daqui para completarem suas formações comigo no Mozarteum. Todos eles estão bem colocados em orquestras brasileiras. Quando aparece alguém talentoso e com vontade de aprender, eu faço de tudo para mandá-lo para Salzburg. O custo para brasileiros é de 570 euros por semestre. Nosso conservatório é muitíssimo superior à esmagadora maioria dos norte-americanos, onde se paga até 25 mil dólares por semestre.
Sul21 — Qual é tua orquestra dos sonhos?
Lavard — Eu acho que a melhor orquestra alemã que jamais existiu foi a Filarmônica de Munique, sob a direção de Sergiu Celibidache. O que eu gostava em Celibidache – e meu professor em Salzburg, Sandor Végh, também era assim – é que havia uma filosofia, um conceito por trás, eles faziam música para entender a vida. Para eles, a música não era só notas e beleza, era mais importante que a religião. Eles procuravam o significado daquilo que estava entre as notas, do que emergia delas. A estética da música de Celibidache era uma coisa filosófica, muito profunda. Fora isso, a técnica de montar uma orquestra, de afiná-la e de fazê-la entender a música e o que estava acontecendo, eram únicas, era uma coisa de uma inteligência cultural que poucos alcançam. Celibidache conseguia unir técnica, espiritualidade, agressividade, tudo. Especialmente a música de alguns grandes artistas — falo de Mozart, Bach, Schubert, Haydn, Beethoven — têm significados muito profundos. A partir deles você entende muitas coisas íntimas da alma, do espírito. São coisas que mexem contigo. Como disse Beethoven, não existe coisa igual à música. Nem a filosofia, nem a religião, nem a psicologia chega perto da música. A música realmente pode resolver coisas. E quem tomou a sério estas noções foram Sandor Végh e Celibidache.
Sul21 — Como entender os significados, vozes e intenções?
Lavard — Não é nem uma questão de compreender. Um repórter perguntou ao Celibidache o que era a tal transcendência de que ele tanto falava, e ele respondeu que não tem como explicar a palavra transcendência porque ela também é transcendental! (risos) Porque a música é uma coisa passageira, ela existe neste instante. Quando tu escutaste a nota, ela já é passado. Um quadro eu posso olhar o tempo inteiro, posso estudar, o pintor pode modificá-lo. A música não. Celibidache nunca quis fazer gravações de estúdio porque ele pensava a música a partir do momento espontâneo do concerto, dessa existência efêmera. Uma gravação é como um retrato de uma pessoa. Você tem o retrato, mas não o prazer da presença. Eu também não gosto muito de gravações, mas você aprende coisas quando grava, apesar de que nunca vai ser a mesma coisa do que um concerto ao vivo. Os concertos ao vivo são a música de verdade.
Sul21 — E o repertório dos sonhos?
Lavard — Bem, minhas especialidades são Haydn, Mozart, Beethoven e Schubert. Também tenho muita afinidade com a música francesa e gosto muito de Brahms e Bruckner. O que eu não aprecio muito é a ópera, só suporto as de Wagner e Mozart e alguma coisa de Puccini. Rossini, Donizetti, etc., não gosto muito deles. Essas historinhas do cara que casou errado, do amor escondido, das mocinhas, dos disfarces, acho muito bagaceiras… Isso era coisa pra divertir o pessoal daquela época. Hoje em dia não faz sentido.
Sul21 — E o programa do teu concerto com a Ospa na próxima terça-feira?
Lavard — A primeira parte é Mozart, minha especialidade. Eu vou reger a Sinfonia Nº 38. Na segunda parte, eu vou reger e tocar o primeiro violino solo nas Metamorphosen, de Richard Strauss. É uma obra muito complicada, não sei se vai dar certo, mas vamos ver! É escrita para 23 solistas — 10 violinos, 5 violas, 5 violoncelos e 3 contrabaixos. Deixa eu te contar uma coisa: no dia 10 de abril de 1945, Strauss batizou a composição como Réquiem para Munique, porque ele era do Partido Nazista e estava escrevendo para os alemães que estavam sendo derrotados na Segunda Guerra Mundial. Strauss sofreu muito pelo fato dos alemães não terem conseguido se desenvolver depois da I Guerra Mundial. Sofreu mais ainda quando Hitler foi ladeira abaixo. Então ele escreveu um Réquiem. Só que, quando ele criou esse título, alguém mais esperto lhe disse que ninguém ia tocar a obra! (risos) Aí então ele botou Metamorphosen, que é uma coisa completamente objetiva, sem nenhum contexto político. Mas bem no final, nos últimos dez compassos, os contrabaixos tocam o motivo do segundo movimento de Eroica, de Beethoven. E aí o Strauss escreve “In Memoriam” na partitura. Neste ponto a gente percebe que o Réquiem original está escondido ali. E é uma peça maravilhosa, lindíssima, romântica ao mais alto e digno grau.
Sul21 — Tu gostas muito de futebol, infelizmente és gremista… E a Sala Sinfônica da Ospa? Parece que há dinheiro para os estádios, já para a cultura…
Lavard — Sim, você é colorado, eu sei pelo Facebook (risos). Hoje em dia, o futebol está emburrecendo as pessoas. Isso acontece em todo o mundo. Parece que o futebol é a única coisa que importa. Você abre o noticiário e a primeira coisa é o futebol. Eu acho errado. O futebol tem que retornar ao seu lugar. E olha que eu adoro futebol! Aqui, por exemplo, só se fala e só se briga pela Copa. Por exemplo, a Ospa, que tem um enorme potencial e é uma instituição da cidade, ficou esquecida. Eu acho isso um escândalo. Eu acho que os músicos da orquestra têm razão em fazer greve e cancelar concertos, as condições que eles estavam quando eu regi, em 2011, naquela sala onde ensaiamos lá no Cais (o armazém A3), eram escandalosas. Eu sou brasileiro e fico indignado com este tratamento. Acredito que os manifestantes foram muitos sábios ao protestarem durante a Copa das Confederações. Meus amigos me perguntavam o motivo; afinal, para os europeus, somos o país do futebol. Eu tentava explicar que quem não tem o básico, talvez não deva pagar por algo caro como uma Copa do Mundo. Um povo sem cultura é um povo perdido. A cultura é a única coisa que nos mantêm vivos. A cultura é o catalisador para entender a vida, não interessa se é pintura, escultura, dança, música, teatro, poesia; a cultura é a coisa mais importante, mais importante do que a religião. A cultura leva a entender a vida e isso é fundamental. A música é a medicina da alma. A cidade tem que ter uma grande orquestra. Como disse o Erico Veríssimo, “eu tenho orgulho de morar numa cidade que tem uma orquestra sinfônica”. Isso tinha que estar bem grande em cima da Rua da Praia, tinha que escrever lá “Nós temos uma orquestra sinfônica e é a Ospa.”.
Sul21 — Atualmente a gente passa pela Av. Independência e vê o prédio do ex-Teatro da Ospa sendo destruído. Sugiro-te nem passar lá, é deprimente. E a Ospa, hoje é jogada de um lado pra outro.
Lavard — Já passei por lá… Eu vejo nosso ensaio de hoje (9 de abril), na sala Elis Regina, como um bom passo, como uma perspectiva positiva no horizonte da Ospa. É uma sala muito boa, ótima. Faltam coisas fundamentais como o ar condicionado, mas é uma boa sala, muitas orquestras europeias não têm uma sala como aquela. Mas hoje devo ter perdido dois litros de suor ensaiando lá! Sendo maltratada, qualquer pessoa acaba sem vontade de trabalhar, é uma pena. Em São Paulo conseguiram montar uma ótima orquestra, com estrutura. É seguir o caminho.
Sul21 — Os políticos admiram a Ospa. Seus discursos são sublimes. Mas na prática tal admiração não se confirma.
Lavard — Tudo funcionava melhor na época em que havia maestros muito capazes e influentes, como Eleazar de Carvalho e David Machado, verdadeiras feras. Não quero dizer que isso seja bom, mas quando eles queriam uma coisa, brigavam, exigiam e conseguiam. Às vezes não adianta ser diplomático e democrático, às vezes o que resolve é o soco na mesa. Lamento dizer isso.
Escreveria um texto muito longo sobre o concerto de ontem à noite do teatro Dante Barone, porém, como o tempo é curto, vou tentar organizar o pensamento em itens e dar uma geral depois.
1. A acústica do Dante Barone não pode ser culpada de todos os males do mundo, mas que é uma porcaria, é.
2. Se a acústica é de má qualidade, esta é brilhantemente complementada por um palco pequeno. Então, o pessoal da cozinha — sopros, metais, percussão, etc. — tem que ficar na mesma “horizontalidade” do restante da orquestra, pois não há lugar para os praticáveis.
3. O programa de ontem à noite era esplêndido, talvez por isso merecesse mais dias de ensaio. Dois Shostakovich, um Lutosławski e dois Camargo Guarnieri juntos são complicados. Um programa desses requereria mais trabalho artístico antes de ir para o palco.
4. O concerto foi bom, as notas estavam lá. Mas Shostakovich e seu sarcasmo não compareceram.
Programa
Camargo Guarnieri: Abertura Festiva Witold Lutosławski: Pequena Suíte Camargo Guarnieri: Três Danças Brasileiras Dmitri Shostakovich: Abertura Festiva Dmitri Shostakovich: Sinfonia nº 9, Op. 70 Regente: Tobias Volkmann
Escreverei acerca do concerto sem fazer críticas ao maestro — que creio ser muito bom — ou aos músicos, que algumas vezes bateram na trave. Mas elogiarei alguns que realmente se destacaram na interpretação de peças nada triviais. Por exemplo, na Dança Negra, segunda das excelentes Três Danças Brasileiras de Guarnieri, tivemos momentos extraordinários proporcionados pelos solos de Paulo Calloni (corne inglês) e de Javier Balbinder (oboé), assim como de Diego Grendene de Souza (clarinete). Aliás, as Três Danças me pareceram a parte mais bem interpretada de ontem à noite.
Na Abertura Festiva de Shostakovich houve uma verdadeira celebração ao Partido Comunista, ao cumprimento do Plano Quinquenal em um ano, às futuras vitórias da classe trabalhadora e à safra recorde de trigo. Tudo devido ao socialismo. Ou seja, a coisa foi bem tocada. A Abertura Festiva (1971) de Camargo Guarnieri trouxe-nos nossa ditadura militar, o Milagre Brasileiro e as maravilhas dos anos Médici. Tudo devido aos milicos. Ou seja, a coisa foi bem tocada.
E vou direto ao ponto. A Sinfonia nº 9, Op. 70, de Shostakovich é puro deboche, sarcasmo, escárnio. Desde Schubert, com sua Sinfonia Nº 9 “A Grande”, passando pela Nona de Beethoven e pelas Nonas de Dvorak, Bruckner e Mahler, espera-se muito das Nonas. Há até uma maldição que diz que o compositor morre após a Nona sinfonia, o que, casualmente ou não, ocorreu com todos os citados menos Shostakovitch. Esta sinfonia – por ser a “Nona” – foi muito aguardada. Em 1945, a Segunda Guerra mundial tinha recém acabado, com a União Soviética vitoriosa. Era de se esperar que Shostakovich compusesse uma Nona sinfonia imponente, grandiosa, cheia de heroísmo e nacionalismo. Ademais, desde a Quarta Sinfonia o compositor vinha enfileirando enormidades musicais que continham profundas observações pessoais ou sociais. Na verdade, esperava-se mais uma Sinfonia que se referisse de forma dramática à Guerra, desta vez saudando a vitória. Para piorar, Shosta declarou que faria uma música que espelharia “a luta contra a barbárie e a grandeza dos combatentes soviéticos”… Bem, enquanto isso, ele preparava uma sátira.
Leonard Bernstein ria desta partitura. Os severos críticos soviéticos, adeptos do realismo socialista, não acharam graça e apontaram que a obra seria debochada, irônica e — pecado mortal — de influência stravinskiana. Eu, dono de um humor anárquico, ouço-a como uma das composições mais agradáveis que conheço. O material temático pode ser bizarro e bem humorado (primeiro e terceiro movimentos), mas é também terno e melancólico (segundo e largo introdutório do quarto), terminando por explodir numa engraçadíssima coda. Stálin foi assistir a estreia de uma Nona grandiosa… Não foi o que viu e ouviu. Teve inteira razão ao ver escoteiros marchando marchas bizarras com temas curtos e ridículos. Teve provavelmente razão ao ver o tema inicial como uma variação da marcha dos nazistas da Sétima, só que dançada por soldadinhos de brinquedo, ao estilo Forte Apache de minha infância.
A inesperada sinfonia possui cerca de 25 minutos e foi ouvida como um protesto tanto contra os terrores de Stálin quanto contra a necessidade dos compositores ao criarem Nonas tão boas quanto as de Beethoven, Mahler, Bruckner, Schubert, Dvorak… Como era de se esperar, Shostakovich foi censurado pelo Partido Comunista — cadê o Realismo Socialista? — e Stálin chegou a dizer que “a peça não passava de mero capricho burguês”. Como resultado, Shostakovich apenas lançou a Décima após a morte do líder, dedicando-se à música de câmara e a um miraculoso retorno à Bach, com a composição de Quartetos de Cordas e dos 24 Prelúdios e Fugas.
Destaques. Leonardo Winter (flautim) foi extraordinário em toda a sinfonia. Ele e o fagotista Adolfo Almeida Jr. mostraram total compreensão da música e estavam se divertindo. O mesmo vale para Klaus Volkmann (flauta). Adolfo Almeida Jr., repito, foi espantoso no Largo e na passagem para a seção final. José Milton Vieira (trombone) e Elieser Ribeiro (trompete), assim como os clarinetes estiveram maravilhosos, mas houve várias bolas na trave disparadas de outros pontos da orquestra. Não sou contra estas, acho naturais os erros — meus sete leitores sabem o quanto erro –, o problema é que a concepção da Sinfonia não estava madura. O sarcasmo e a profundidade expressiva de Shosta estiveram ausentes e isto matou a interpretação. Saí contrariado — grande coisa, né? — e conversei com amigos sobre o número insuficiente de ensaios, sobre a vida, as doenças e de como Shostakovich sofreu e buscou mais sofrimento ao manter sua integridade como artista e ser humano em troca da integridade partidária.
No fim do concerto, meu amigo Vinícius Flores, que AMA E CONHECE Shostakovich como poucos, disse-me: “Lição do dia: se você gosta muito de uma obra, pense duas vezes antes de ir ao concerto”.
Nossa, que chuvarada a de ontem à noite! E que acústica horrível e gritona a da Igreja dos Navegantes! Quando o excelente oboísta Javier Balbinder começou a ensaiar sozinho no palco já deu para concluir que o final da Abertura Egmont soaria como uma manada de elefantes na ponte do Guaíba. E soou mesmo.
Quando o concerto iniciou, os sismógrafos londrinos tremeram, indicando movimentos no solo abaixo da Catedral de St. Paul. É que Jeremiah Clarke revirava-se e dava socos para todo lado dentro de seu túmulo. O concerto começou com Trumpet Voluntary…
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Desde 1940, é sabido que a obra conhecida por Trumpet Voluntary foi escrita por Jeremiah Clarke e não por Henry Purcell, como anunciou o programa da Ospa. Quando a peça foi escrita, Purcell já estava morto havia cinco anos. A peça foi escrita originalmente para cravo e chama-se Prince of Denmark’s March. De 1878 até 1940, a peça foi atribuída a Henry Purcell e chamada de Trumpet Voluntary. Tudo porque, naquele ano do século XIX, um certo William Sparkes publicou um volume chamado Pequenas Peças para o Órgão, Livro VII, No. 1 (Londres, editado por Ashdown & Parry), incluindo erroneamente a peça de Clarke como se fosse de Purcell. Esta versão chamou a atenção de Sir Henry J. Wood, que fez duas transcrições orquestrais do mesma. Aí é que apareceu o trompete e o novo nome. Antigas gravações do início do século XX cimentaram o erro. Mantido o título dado por Wood, a peça tornou-se popular em casamentos reais, mas sabe-se desde 1940 que seu autor é Jeremiah Clarke, não Purcell. Não acho muito legal errar o autor de uma obra.
O pobre Clarke não foi sacaneado somente pela Ospa. Dizem os livros que “uma paixão violenta e sem esperança por uma bela senhora de uma classificação superior a sua levou-o a cometer suicídio”. Antes de se matar, ele ficou na dúvida: enforcamento ou afogamento? Como forma de decidir seu destino, ele jogou uma moeda para o alto, mas esta caiu em pé na lama. Gente, não brinco, falo sério. Em vez de considerar o fato como um sinal de que deveria desistir de seu intento, ele escolheu um terceiro método, matando-se com um tiro na cabeça nos jardins da Catedral de St. Paul, em Londres. Suicidas não têm muita chance com igrejas, mas foi feita uma exceção para Clarke, que foi enterrado na cripta da Catedral.
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Por outro lado, com toda a razão, estava escrito no programa da Ospa: Albinoni (Remo Giazzoto) – Adagio.
Albinoni foi um compositor barroco veneziano relativamente obscuro. Então, em 1958, surgiu este “Adagio” que tem sido usado por companhias de balé, patinadores, filmes — lembram de Gallipoli, um filme de 1981 sobre a Primeira Guerra Mundial? — e, com letras, por uma série de vocalistas como Sarah Brightman, por exemplo. Esta peça é, no entanto, uma composição moderna, como salientou o maestro Tiago Flores após regê-la. Conto o caso a seguir.
Manuscritos de Albinoni, incluindo uma série de partituras que nunca tinha sido publicada, estavam há muitos anos na Alemanha. Mas a biblioteca onde se encontravam foi destruída no bombardeio de Dresden, em fevereiro de 1945. Os papéis de Albinoni foram perdidos no incêndio. Porém, algumas obras do compositor tinham sido antes catalogadas por um musicólogo italiano chamado Remo Giazotto, autor de uma biografia de Albinoni. Em 1958, Giazotto introduziu esta peça como obra de seu biografado. Ele a teria reconstruído a partir de fragmentos de uma sonata.
Mas outros musicólogos tinham realizado as mesmas pesquisas e acharam tudo muito estranho. Denunciaram. Diante disso, como bom italiano enrolão, a história de Giazotto mudou um pouco. Ele passou a dizer que tinha se baseado em alguns fragmentos de uma linha de baixo que estavam num manuscrito de Albinoni. Mais: ele alegou que tinha os fragmentos. E mais: disse que eles tinham sido enviados a ele por questões de segurança, quando a biblioteca em Dresden dispersou muitos de seus tesouros… Um cidadão imaginativo, sem dúvida. É fundamental saber que os direitos autorais da peça têm apenas o nome de Remo Giazotto. E que ele, é claro, jamais mostrou os tais manuscritos.
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Abertura Egmont. Aqui não há erro nem má intenção, apenas curiosidades. A música incidental para a peça Egmont, de Goethe, foi composta no final de 1809 para o Court Theater de Viena. A obra de Goethe é de 1786 e refere-se à acontecimentos não contemporâneos dos autores. No século XVI, o conde Egmont, de Flandres, lidera o povo flamengo em sua revolta contra a tirania espanhola. Depois de sua captura e prisão pelos espanhóis, sua amante Clärchen tenta resgatá-lo, mas fracassa em sua tentativa e ela se suicida, ingerindo veneno. Em sua cela, Egmont tem visões da imagem da liberdade e esta é uma mulher que se parece com sua amada. Ela coloca uma coroa de louros em sua cabeça enquanto uma música militar é ouvida. Então Egmont é executado, mas leva consigo a certeza de que a liberdade irá prevalecer.
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Este foi um Concerto de Gatinhos. Lembram aquelas seleções de clássicos dos anos 70 e 80 que tinham gatinhos na capa? Ali, o Aleluia de Handel podia vir antes de Rhapsody in Blue, a qual era seguida da Abertura 1812, por exemplo. Salada semelhante foi-nos servida na noite de ontem. A Ospa estava cheia de gatinhos, óin… Olha, eu acho que isso não cria público, acredito que este gênero de programa seja válido apenas em séries de concertos para escolas ou como eram os velhos “Concertos para a Juventude”, mas enfim. O apelido “Disco de Gatinhos” ou “Concerto de Gatinhos” é de autoria do Júlio e da D. Cristina lá da King`s Discos, esplêndida loja que ficava na Galeria Chaves. Eles não gostavam muito daquelas seleções…
Não vou avaliar o lado artístico do concerto de ontem. Era quase impossível tocar alguma coisa sem desafinar no meio daquela reverberação. Os membros da orquestra devem ter saído meio surdos de lá.
Mas voltemos a Brahms. Sei, há Beethoven, Mozart, Bruckner, Mahler e Shostakovich, mas, no meu sentir, esta sinfonia é a melhor que conheço. Brahms era visto como o sucessor de Beethoven e estava muito preocupado em ser digno da tradição sinfônica do mestre. Tão preocupado que preparou sua primeira sinfonia ao longo de mais de 20 anos. Sua composição iniciou-se em 1854 e sua finalização só ocorreu em 1876.
O maestro Hans von Bülow apelidou-a de “A Décima de Beethoven”, o que é apenas uma frase de efeito. Não pretendo desconsiderar que há uma citação da Nona de Beethoven no último movimento, porém os fatos obrigam-me a encarar isto como uma demonstração de gratidão a seu antecessor, ao qual tanto devia – ou, corrigindo, ao qual tanto devemos… Depois de anos e anos como ouvinte, afirmo tranquilamente que, até mais do Beethoven, o que há aqui é Schumann, principalmente na forma inteligente como foram desenvolvidos os elos entre os movimentos que parecem brotar logicamente um do outro. No mais, a Primeira de Brahms é uma derivação autêntica, exclusiva e original do estilo empregado por Brahms em sua música de câmara. Ademais, Brahms – que estreava sua sinfonia 49 anos após a morte de Beethoven – aborda o gênero de forma diversa, dando, por exemplo, extremo cuidado à orquestração e chegando a verdadeiros achados timbrísticos no segundo movimento e na introdução ao tema do último tema: aquele esplêndido solo de trompa, seguido da flauta e do arrepiante trio de trombones. Tais cuidados orquestrais evidentemente não revelam um compositor maior que Beethoven, apenas revelam que o tempo tinha passado, que Brahms já tivera contato com as orquestrações de Rimsky-Korsakov, Berlioz, Wagner, Liszt (os dois últimos eram seus inimigos), que Mahler tinha 16 anos de idade e que a Sinfonia Titan estaria pronta dali a 12 anos…
Em sua primeira sinfonia, Brahms resolveu apresentar todas as suas armas como compositor. A solidez da intrincada estrutura do primeiro movimento (Un poco sostenuto – Allegro) vem diretamente de alguns outros notáveis “primeiros movimentos” de sua música de câmara. Sua complicada estrutura rítmica e aparente rispidez causa certo desconforto a ouvintes mais acostumados a gentilezas. Sua estrutura não é nada beethoveniana, os temas são mostrados logo de cara, sem as lentas introduções nem os motivos curtos e afirmativos de nosso homem de Bonn. Afinal, estamos ouvindo nosso homem de Hamburgo! Se o primeiro movimento demonstra toda a maestria do compositor ao lidar com diversas vozes e linhas rítmicas, o próximo é um arrebatador andante (Andante sostenuto) que parece pretender mostrar “vejam bem: além daquilo que ouviram, eu também faço melodias sublimes”. A melodia levada pelo primeiro violino ao final do andante é belíssima e inesquecível. O terceiro movimento (Un poco Allegretto e grazioso) nos diz que “além daquilo que ouviram, eu também faço scherzi divertidíssimos, viram?”. Claro que não chegamos à alegria demonstrada nos scherzi de Bruckner, porém, para um sujeito contido como Brahms, a terceira parte da sinfonia chega a ser uma galinhagem.
O último movimento é um capítulo à parte. É a música perfeita. Há a já citada introdução de trompas e trombones, mas há principalmente um dos mais belos temas já compostos. No romance Doutor Fausto, de Thomas Mann, o personagem principal Adrian Leverkühn vende sua alma ao demônio em troca da glória e da imortalidade como compositor. Feito o negócio – num dos mais belos capítulos já escritos: o diálogo entre Adrian e o Demônio –, Adrian vai compor e… bem, sai-lhe uma peça muito parecida com o tema a que me refiro. Ele o abandona. Seria este um sinal de Mann, indicando que seu personagem partiria do ponto mais alto existente para a construção de uma obra estupefaciente? Creio que sim, creio que sim, meus queridos sete leitores. Mas, sabem?, não vou gastar meu latim descrevendo o tema que aparece aos 5 minutos do último movimento da sinfonia para ser transformado e retorcido até seu final.
Afinal, ele está aqui. A sinfonia completa está. Sim, neste maravilhoso blog. Trata-se da versão de Claudio Abbado.
Não é música para diletantes leigos como eu. Porém, como a ouço há anos, posso avaliar como deve ser difícil equilibrar a rigidez formal e a imaginação melódica de uma sinfonia que – inteiramente dentro da tradição de contrastes das sinfonias – parece pretender abarcar o mundo, mostrando-se ora imponente, ora delicada; ora jocosa, ora séria.
Nós estávamos indo para o British Museum. Pegamos o metrô até Russel Square Station. A Elena sentou-se ao lado de um rapaz provavelmente de Punjab. Ele estava super sério, parecia estar rezando. De longe, não dava para notar se o que ele tinha em ambas as mãos era um livro de orações ou outra coisa sagrada, tal era a devoção com que segurava o objeto de leitura ou observação.
Quando Elena sentou ao lado do cara, deu uma olhadela e viu o que era. Ele estava entretido com um joguinho do iPhone onde passavam legumes. Ele eliminava tomates e cenouras, a coisa mais linda. Eu compreendo o moço — é complicado ser fundamentalista Sikh no mundo ocidental. Um dia, o cara escorrega e é visto com algo bem vulgar nas mãos, apesar da cara de quem só pensa na salvação.
A estação de Russel Square é da mais profundas, mas lembro que eu e a Bárbara subimos os…
… 175 degraus — correspondentes a 15 andares — em fevereiro de 2013. Não lembro o motivo pelo qual fizemos isso, mas não pense que vivemos em academias e outros que tais.
O British Museum foi fundado em 7 de junho de 1753. Sua coleção permanente inclui peças como a Pedra de Roseta e os frisos do Partenon de Atenas, conhecidos como a coleção de mármores de Elgin. Ao todo, o Museu abriga milhões de itens expostos. É claro que aquilo lá é tudo pilhagem muito bem apresentada e catalogada. Há alguma irritação de quem foi roubado, claro.
Por exemplo, desde 1980, o governo grego vem tentando reaver peças do Partenon que foram roubadas por ingleses e que compõem o acervo do Museu. A disputa gira principalmente em torno dos mármores de Elgin. Na esperança de tê-los de volta, os gregos construíram uma grande estrutura no sopé da acrópole para receber as peças. Estão esperando até agora, sentados. A rapinagem também foi enorme no Egito. Eu não sei como eles trouxeram as imensas peças romanas, gregas e egípcias que há no Museu, mas afirmo que são ladrões sensacionais. Tanto que o interior do British pode ser visto no filme O retorno da múmia.
Acima, o centro do museu, reformado em 2000. É a maior praça coberta da Europa. Ela ocupa o espaço central do prédio, ao redor do The Reading Room. Pois bem, a gente estava numa das salas, admirando as coisas boquiabertos, quando começou a tocar uma sirene acompanhada de vozes tonitruantes dizendo para evacuar o prédio. Era um aviso de incêndio. Escolado por anos de futebol, não acompanhei a massa, até porque Cadê o cheiro de queimado, cadê a fumaça? Meu nariz detectou apenas excesso de zelo. O alarme, altíssimo, repetia-se sem parar. Mandava todo mundo embora. Crianças choravam, aquelas vidas ceifadas precocemente, que triste.
Aí, o aviso mudou: dizia, ainda repetidamente, para que a gente ficasse parado onde estava, mas o bando de malucos só queria saber da porta. Disse para a Elena que, se alguma coisa explodisse era melhor estar longe dali (da porta). Acabaríamos pisoteados.
Ficamos juntinhos, numa posição de inteiro conforto, agradabilíssima, na verdade. Dei-lhe beijos e mais beijos. Anunciava sempre que o próximo beijo teria que ser muito bem dado, pois poderia ser o último. Trocamos abraços com o mesmo espírito. A coisa estava esquentando quando tudo parou. Olhamos para os lados e… O British era quase propriedade exclusiva nossa.
Por 15 minutos, claro. Depois, veio uma multidão sem a menor noção do sofrimento pelo qual passamos. Gente insensível, credo!
O British é impressionante, mas ao lado da admiração por peças de notável significado histórico, meu espírito zombeteiro fez com que eu só fotografasse curiosidades. A peça acima é uma máquina automática de fazer chá. Sim, uma Automatic tea-maker alarm dos anos 70. Olhando agora, não vejo mais graça, talvez fosse efeito da tensão.
Quando Elena viu esta pequena e belíssima peça, logo observou: o Brasil já exporta havaianas há dois mil anos. Correto.
(Tradução: Vênus perde suas havaianas enquanto sua capa voa com o vento).
Quem conheceu Otto Maria Carpeaux descrevia-o como uma espécie de monstro. O escritor José Roberto Teixeira Leite era seu amigo e desenhava assim a figura do austríaco: “Carpeaux foi um dos homens mais feios que conheci. Sua aparência neandertalesca, todo mandíbulas e sobrancelhas, fazia a delícia dos caricaturistas: parecia um troglodita, mas um troglodita que lia Homero e Virgílio no original, que se deliciava e ensinava sobre Bach e Beethoven, que diferenciava e palestrava sobre Rubens e Van Dyck”. Carpeaux também era gago. Carlos Drummond de Andrade, outro amigo, disse que, numa viagem de carro, ele foi citar Kierkegaard. “Começou a falar quando saímos de Juiz de Fora, Ki… Ki… Ki… e só completou o nome do autor dinamarquês em Barbacena, uns 80 quilômetros adiante’.
Antes de ser Otto Maria Carpeaux no Brasil, ele foi Otto Karpfen, um austríaco que estudou filosofia (doutorou-se em 1925), matemática (em Leipzig), sociologia (em Paris), literatura comparada (em Nápoles) e política (em Berlim); além de dedicar-se à música. Mesmo gago, ele falava e escrevia em inglês, francês, italiano, alemão, espanhol, flamengo, catalão, galego, provençal, latim e servo-croata. Mas não sabia muito da língua portuguesa quando chegou ao Brasil no final de 1939, fugido da Alemanha nazista. Tinha pai judeu e mãe católica. Identificava-se como católico. Quando chegou, foi trabalhar no interior do Paraná, numa fazenda, no campo.
O austríaco Stefan Zweig chegou aqui já famoso. Era um romancista muito popular. Judeu e austríaco, foi também poeta, dramaturgo, jornalista e biógrafo. Para as gerações mais antigas, Zweig era principalmente o autor de biografias. Escreveu várias: de Dostoiévski, Dickens, Balzac, Nietzsche, Tolstoi, Stendhal e uma famosíssima na primeira metade do século XX, de Maria Antonieta. Conseguiu o reconhecimento como romancista nas décadas de 20 e 30. Neste período, destacam-se os romances “Amok” (1922), “Angústia” (1925) e “Confusão de Sentimentos” (1927).
Em 1934 deixou o país e passou a viver na Inglaterra, entre Londres e Bath, onde se naturalizou cidadão britânico. Com o início da Segunda Guerra Mundial e o avanço das tropas de Hitler, o casal atravessou o Atlântico em 1940 e se estabeleceu nos Estados Unidos. Em 22 de agosto do mesmo ano, veio pela primeira vez ao nosso país. Ao todo, Zweig e sua esposa Lotte fizeram três viagens ao Brasil. Durante a primeira, entre 1940 e 1941 para uma série de palestras, escreveu:
“Você não pode imaginar o que significa ver este país que ainda não foi estragado por turistas e tão interessante. Hoje estive nas cabanas dos pobres que vivem aqui com praticamente nada (as bananas e mandiocas estão crescendo em volta), as crianças se desenvolvem como se estivessem no Paraíso — , a casa inteira, desde o chão, lhes custou seis dólares e, por isso, são proprietários para sempre. É uma boa lição ver como se pode viver simplesmente e, comparativamente, feliz — uma lição para todos nós que perdemos tudo e não somos felizes o bastante agora”.
É uma visão sociologicamente ingênua, mas demonstrava algum amor pelo país que adotaria.
O judeu Herbert Caro veio da Alemanha para Porto Alegre. Tinha em comum com Carpeaux a cultura literária enciclopédica e o profundo amor pela música. Na Alemanha, fora impedido de exercer a advocacia devido à promulgação das primeiras leis antissemitas pelo governo nazista. Primeiramente, refugiou-se na França, onde estudou Letras Clássicas na Universidade de Dijon. Para sustentar-se, dava aulas de latim e pingue-pongue – Caro havia integrado a seleção alemã de tênis de mesa durante seis anos e sido um dos dirigentes da federação de 1926 a 1933. Permaneceu um ano na França. Pressentindo a proximidade da guerra, buscou novo exílio. O Brasil surgiu como a melhor opção. Afinal, um amigo dissera que era um país barato de se viver. E Herbert Caro chegou a Porto Alegre em 7 de maio de 1935. Na mala, pouca coisa; no cérebro, um vocabulário de cerca de três mil palavras que aprendera em algumas aulas de português antes da viagem.
O vocabulário permitia que ele entendesse o Correio do Povo e pedisse informações na rua sem compreender perfeitamente a resposta. O ouvido ainda não estava acostumado. Seus conhecimentos de Direito eram inúteis e o doutorado em Filosofia também pouco valia na Porto Alegre da década de 30. O domínio de várias línguas proveu a subsistência nos primeiros anos e direcionou sua vida.
Por puro pragmatismo ou esquisitice mental, toda vez que vejo o esforço necessário à montagem de uma obra de grandes proporções, penso nos motivos que levam as pessoas àquilo. No caso de Fidélio, ópera filha única de Beethoven, o caso me parecia mais grave. Uma ópera longa, de um compositor pouco afeito ao gênero, porque não investir em algo mais moderno ou nos cânones Mozart, Rossini ou Wagner? Ademais, acho que nossa época tem pleno direito — e dever — de dar sua interpretação a obras do passado, mas confesso meu preconceito para com óperas. Até Eric Hobsbawm em seu maravilhoso Tempos Fraturados escreve que “… nenhuma das óperas do repertório atual tem menos de oitenta anos, e praticamente nenhuma terá sido escrita por compositores nascidos depois de 1914. (…) A produção operística (…) consiste, na maioria esmagadora, em tentativas de refrescar túmulos eminentes depositando sobre eles diferentes conjuntos de flores”.
Só que meu amado historiador esqueceu de dizer que, não obstante a idade e os trechos do enredo fora de moda ou decididamente tolos, algumas óperas, como Fidélio, têm muito a dizer aos dias atuais. Com toda a razão, o flautista Artur Elias escreveu no Facebook da Associação de Amigos da Ospa que Fidélio trata de temas como “abuso de autoridade, violência de estado, liberdade de expressão, protagonismo da mulher”. Acrescento à lista de Artur pitadas de presos políticos, tudo isso misturado a uma música de primeira linha. Então, este chatíssimo resenhista hostil às óperas foi lá e teve que admitir que ouviu Beethoven… Ops, que gostou muito do que ouviu. Então, recuando de sua posição atacante, vamos a alguns comentários a respeito do que vimos e ouvimos no Theatro São Pedro no último sábado.
O concerto é um gênero de composição que tem por uma de suas características principais a oposição entre a orquestra e um ou diversos solistas. O solista não necessita ser um virtuose absoluto, mas é bom que esteja à altura da música e do “enfrentamento” com a orquestra. Ontem à noite, nas brumas da acústica e no barulho do ar condicionado do Auditório Dante Barone da Assembleia Legislativa, tivemos dois concertos mais do que clássicos: o Concerto Nº 1 para piano e orquestra, Op. 15, de Beethoven, e o Concerto para violino e orquestra, Op. 35, de Tchaikovsky. À frente da orquestra, o casal russo — são mesmo casados — formado por Galina Petrova (piano) e Maxim Fedotov (violino). Vamos abrir e ver o que nos trazia a arca russa.
Se Beethoven tivesse parado no Op. 15, sua imortalidade não estaria garantida. Este concerto para piano de Beethoven é bem mais ou menos — uma assimilação meio confusa de Haydn e Mozart com uma voz própria nascente — e Galina Petrova obteve empurrá-lo mais para baixo. A pianista levou o concerto sem nenhuma sutileza e de forma bastante errática. O Allegro com Brio é solene e chato, mas a música melhora muito no belo e lírico Largo e no zombeteiro Allegro scherzando. Este é um tipo de música cheia de repetições, onde os temas apresentados pela orquestra são muitas vezes revisitados pelo piano e vice-versa. Petrova deixava claras suas limitações ao não conseguindo realizar as denunciadoras repetições ou ver-se repetida pela orquestra de forma ligeiramente diferente. Ela também não se salvava pela interpretação… Então, a primeira surpresa da arca russa foi decepcionante, mas…
O concerto de ontem à noite no Theatro São Pedro trouxe um repertório de primeira linha e emoções inéditas. Primeiro, uma voz do além avisou-nos que haveria um atraso de 10 minutos para o início do concerto. Tudo ficou mais claro quando finalmente o maestro suíço Karl Martin adentrou o palco. Ele é muito parecido com o Indiana Jones dos últimos filmes e, como a maioria das aventuras do herói ocorre aproximadamente na década de 1930, nada melhor do que começar o concerto com a Sinfonia Op. 21 (1928) de Webern. Só que… Bem, o motivo do atraso foi que um músico esquecera suas partituras em casa, no bairro Guarujá, e teve buscá-las com a presteza do personagem de Spielberg. Certamente, o esquecimento foi inoculado em seu cérebro por algum cientista nazista daqueles que costumam perseguir Indiana no desejo de se apossar de relíquias como o Santo Graal e partituras de compositores vienenses. Ainda mais que Webern foi, na década de 40, o mais descabelado hitlerista dentre os compositores austro-germânicos (favor ler O resto é ruído, de Alex Ross) e deve ser muito querido entre os inimigos de Indiana. Ah, e depois ainda teríamos o judeu Mahler!
Bem, enquanto o músico atormentado permanecia em sua corrida pelas ruas, o concerto começou. É que as primeiras obras não tinham a participação dele. E, como dissemos, o concerto foi aberto justamente com a Sinfonia de Webern. Webern sempre se caracterizou por se expressar de forma descontínua. Como Céline e suas milhares de reticências. Sua música é paradoxalmente densa como um haicai e rarefeita como a cabeleira de seu mestre Arnold Schoenberg. Suas composições têm movimentos muito curtos. Em 1927, decidiu expandir-se um pouco, então escreveu um Trio de Cordas que dura nove minutos. Logo depois veio esta Sinfonia que não é muito maior — 10 minutinhos — e que exibe uma beleza abstrata e estranha em seus dois movimentinhos. Anton Webern era um dos compositores da chamada Segunda Escola de Viena juntamente com Schoenberg e Alban Berg. A primeira teria sido formada por Haydn, Mozart e Beethoven, que não sabiam nada a respeito disso e que não pensavam como Schoenberg. No ano de 1928, ele escreveu: “A arte desde o princípio e por natureza não se destina ao povo. Mas querem forçá-la a isso. Espera-se que todos possam dar sua opinião. Pois a nova glória consiste no direito de falar: liberdade de expressão! Ó Deus!”.
(E o coro grego responde em intermezzo não programado:
— Ei, Schoenberg, vai tomá no cu! Olê, Inter, olê, Inter!)
Não obstante a tal obscura escola, eu curti o Webern.
E o nosso músico perdido? Nada de voltar. Então, ainda em Viena, voltamos no tempo para encontrar Mahler. Os lieder de Mahler, Strauss e Schubert são coisas a respeitar. No gênero, há dezenas de coleções e avulsos sublimes. As quatro Canções de um Viandante, com texto de autores da Idade Média compiladas no livro Das Kanben Wunderhorn, são lindíssimas. A segunda foi depois amplamente reutilizada por Mahler na Sinfonia Nº 1. (Aliás, quando iniciou este segundo lied, nosso músico adentrou o palco com enorme tranquilidade. Tal como Indiana Jones, ele não sua muito em suas correrias. parecia saído do banho.)
Mas voltemos ao Mahler. O barítono uruguaio Alfonso Mujica é magérrimo e garanto que todos pensaram numa voz fraca e inadequada para as canções, mas ele tirou de letra, dando a elas compreensiva interpretação, proporcionando-nos um dos mais belos momentos da temporada. Que seguiu com Haydn.
As últimas doze sinfonias de Haydn são as chamadas Sinfonias de Londres ou Sinfonias Salomon, nome do empresário esperto que as contratou. A Sinfonia Nº 92 é a última não londrina e tem o apelido de Oxford porque o compositor a conduziu na cerimônia onde recebeu o titulo de doutor Honoris Causa naquela Universidade. O pessoal de Oxford só pode ter adorado, não há como não sorrir àquela Sinfonia! Dentro da uma estrutura clássica de quatro movimentos (Grave-Alegro, Adagio, Minueto e Presto), é uma música feliz, cheia de invenções e surpresas, daquelas que fazem as pessoas irem para a rua felizes. Foi o que aconteceu.
Belo concerto! All’s well that ends well (Tudo está bem quando termina bem), já dizia Shakespeare.
Brahms nasceu em Hamburgo no dia 7 de maio de 1833. Como se não bastasse o trocadilho infame que o nome Brahms sugere a nós, brasileiros, ele era filho de um contrabaixista de Hamburgo que tocava em cervejarias. A partir dos dez anos de idade, o pequeno Johannes passou a trabalhar como pianista com seu pai, nas tabernas. Não sabemos se estas atividades foram nocivas à saúde do menino, sabemos apenas que ele, mais tarde, fez bom uso de seu conhecimento sobre o repertório popular alemão. Brahms teve apenas dois professores, ambos durante a infância e adolescência. E estava pronto. Acho que nasceu pronto, pois há obras perfeitamente maduras desde os primeiros opus. Ele não concordava, tanto que deixou passarem-se anos até arriscar-se no gênero sinfônico. Tinha algum receio da inevitável comparação com Beethoven.
Começou a compor cedo e, antes de completar 20 anos, seu Scherzo opus 4 já tinha entusiasmado e revelado afinidades com Schumann, a quem Brahms ainda desconhecia. Foi visitar Schumann e então os fatos são mais conhecidos: primeiro, Schumann escreve em seu diário “Visita de Brahms, um gênio!”, depois publica um artigo altamente elogioso ao compositor, fazendo com que o jovem Brahms tivesse a melhor publicidade que um artista pudesse desejar. Schumann o considerava um filho espiritual e a esposa de Schumann, Clara, chamava-o de seu “deus loiro”. Muitas hipóteses são possíveis sobre a relação entre Clara e Brahms, mas só uma coisa é certa: eles destruíram a maior parte das cartas que dizia respeito a ela. Porém, a versão de que houve um forte componente amoroso — ao menos no âmbito de uma grande amizade — tem tudo para estar próxima da verdade.
Em minha opinião, o que caracteriza Brahms são a densidade, o lirismo e a intensidade. Quando digo intensidade, refiro-me ao lado emocional; quando digo densidade, refiro-me a profunda inteligência musical e a muito artificiosa fusão que ele consegue entre a expressividade romântica e as preocupações formais clássicas. Foi um revolucionário amante dos tons menores e da economia de meios. Num mundo em que as orquestras cresciam desmesuradamente, não fez uso de exércitos orquestrais. Compreensivelmente, em sua época foi adotado pelos conservadores. Ele colaborou bastante com esta adoção ao assinar um manifesto contra a chamada escola neo-alemã de Liszt e Wagner. Um conservador? Nada mais equivocado. Ele nem precisaria ser desagravado por Schoenberg em Brahms, o Progressista, para ser reconhecido como uma voz original, distinta e um passo adiante de seus contemporâneos. Um passo dado numa outra direção do que a adotada por Bruckner e Mahler, mas adiante.
Ontem, a ponte levadiça do Theatro São Pedro foi baixada e a Ospa cruzou o fosso a fim de penetrar nos domínios de Eva Sopher. Ali, por trás das muralhas da velha casa, tivemos o primeiro dos chamados Concertos Oficiais da Ospa. O comando esteve a cargo do excelente maestro argentino Enrique Ricci, que costuma reger a partir de partituras pocket muito bonitinhas, mas que causam certa apreensão no espectador que se pergunta: será que ele vai conseguir virar direito as páginas daquela coisinha? Incrível, ele sempre consegue.
A pouco executada Abertura Leonora nº 3, Op. 72b, foi um bonito e coerente início para o conteúdo algo aventuresco da noite. Menos feliz foi a execução do Concerto para piano nº 4. Op. 58. Creio que o jovem pianista Aleyson Scopel não estava num bom dia — soube que ele fizera um ensaio maravilhoso no dia anterior — e a orquestra também não colaborou muito. É claro que a interpretação da obra, que é belíssima e meu concerto para piano preferido de Beethoven, não foi um fracasso, mas ficou abaixo do esperado. Gostaria de acrescentar que a orquestra está passando por período muito agitado por conta da perda de sua sala de ensaios e que, se a crítica vem, há que se dar generoso desconto. Não é fácil fazer arte embrulhado numa ordem de despejo.
O ponto alto foi a Sinfonia nº 3 – “Eroica”, Op. 55. Foi uma execução entusiasmada, de muita musicalidade e dinâmica como deve ser. Grande destaque para a dupla formada pela oboísta Viktoria Tatour e o flautista Artur Elias com Leonardo Winter a seu lado. Na fila de trás, os clarinetistas Augusto Maurer e Marcelo Piraíno, mais o fagotista Adolfo Almeira Jr. também levaram a orquestra pelo bom caminho. Em dia de observar detalhes, ri de Piraino – o homem que conta os compassos dançando –, admirei a atenção de Tatour que, na Eroica, jogou o cabelo para trás da orelha, fez cara de preocupação e logo tratou de desmontar o oboé com um olho enquanto seguia a partitura com o outro — quando terminou a cirurgia, bebeu água (pronto, entreguei a moça!) –, e de Israel Oliveira, que tentava escapar dos cabelos da violinista Elena Romanov a fim de enxergar o maestro. Enfim, coisas.
Beethoven tem a capacidade de deixar todo mundo aceso e feliz. A conversalhada nas coxias e na porta do teatro grassava e, para manter o espírito, é inevitável que se saia depois para jantar. Acrescentemos que o mestre de Bonn torna também incontornável a bebida. O resultado foi que, pela manhã, apareceu quase 1 Kg a mais na balança. Conclusão: Beethoven engorda.
O dia de hoje foi dividido em duas partes, uma muito longa, outra bem curta e a terceira média. A muito longa foi a do Castelo de Praga; a curta, a do Museu Kafka; a média, um Concerto no Rudolfinum.
O Castelo de Praga é, segundo o Guiness, o maior do mundo. É uma fortificação de 570 metros de extensão com largura média de 128 m. Para se ter uma ideia, ele tem mais área do que sete campos de futebol juntos. E haja perna para se chegar lá em cima! Mesmo caminhantes natos, tivemos que fazer dois pit stops nas intermináveis escadarias. Economia máxima, meus sete leitores. Carro, ônibus, o que significa isso? Mas valeu a pena.
A origem do Castelo é medieval, como se poderá notar pela masmorra e pela Basílica de São Jorge, mas ele também possui construções e reformas que foram finalizadas só em 1920. Digo tudo isto para explicar os vários estilos presentes. Logo na entrada, damos de cara com a Catedral de São Vito, construção embasbacante, verdadeiramente impressionante que é vista de toda a cidade.
O livro de Praga do Lonely Planet diz que, se quisermos ver tudo, só passando lá o dia inteiro. Acho que vimos tudo ou quase. Chegamos ao Castelo às 10h e saímos por volta das 16h. Se você cansar no primeiro dia, não há problema: curiosamente, a entrada vale por dois dias. Visitamos também o Palácio Lobkowitz, que tem ingresso à parte por ser privado. Ele pertence à família que, entre outras notáveis realizações de mecenato, disse para Beethoven: “Nós vamos te sustentar até o fim da vida, componha o que quiser”. (Ludwig van era muito jovem na época, nem tinha composto o ciclo de quartetos Op.18, e o habitual na época era encher o qualquer compositor de encomendas para cada ocasião).
Bem, o Castelo de Praga é absolutamente obrigatório. Pequeno e simpático é o Museu Kafka com seu ambiente escuro, muitos manuscritos, fotos e informação. Infelizmente, não se pode tirar fotos lá. Se você gosta de Kafka, vai porque vale a pena.
Também são proibidas fotos na Sala Dvorak do Rudolfinum. Li depois nas dicas do amigo Gilberto Agostinho que ali rolava muito boa música, talvez a melhor de Praga. Digo que li depois porque já tinha notado e comprado ingressos para o Concerto do Quarteto Zemlinsky. Começou com Beethoven — justo o citado Op. 18, Nº 1 –, depois seguiu com o excelente Quarteto Nº 3 de Martini e terminou com um Quarteto de Mendelssohn, o Op. 44, Nº 2.
Como ontem era a data de aniversário de minha filha, não julguei CORRETO ir ao Concerto da Ospa. Achei melhor jantar em casa, essas coisas. Mas coloquei uma missão para meu dileto amigo Ricardo Branco: já que ele iria ao concerto, que escrevesse algumas linhas a respeito. Costumamos ir juntos aos concertos que ocorrem na Reitoria da UFRGS. (Ignoro o motivo que leva o Branco e sua esposa Jussara a não irem aos concertos da Ospa em outros cantos da cidade que não a UFRGS). Talvez, após esta introdução, ele venha aqui nos explicar sobre o estranho fato. Pois é bom ir aos concertos com eles! O Branco é meu amigo a obscenos 36 anos e nosso gosto musical é bem parecido. Então, antes de passar a palavra ao Ricardo Branco, deixo para vocês o programa do concerto de ontem e despeço-me:
Programa:
Mikhail Glinka: Abertura da ópera “Ruslan e Ludmila”
Camille Saint-Saëns: Concerto para Piano e Orquestra nº 2, Op. 22
Johannes Brahms: Sinfonia n° 1
Regente: Roberto Tibiriçá
Solista: Ney Fialkow
Ser chamado de Pai de algum movimento musical, como normalmente é referido Glinka, pode significar nada mais do que ser um antecessor dos grandes. Com efeito, a abertura da ópera Ruslan e Ludmila, não passava de um aquecimento para recuperar-nos da algidez que pairava lá fora. Atingida a tepidez indispensável, pudemos sorver o belíssimo chocolate quente do Concerto para piano Nº 2 Op. 22 de Saint-Saens. Já no solo inicial, em estilo de uma fantasia, entendemos a que o pianista Ney Fialkow viera. O tema melancólico estava bastante adequado à noite. Um concerto leve que demandava um piano enérgico. Por fim, um movimento bastante rápido onde a orquestra e osolista ganham volume e terminam numa série de arpégios. Sinceramente, não sei por que os pianistas preferem o Concerto Nº 2 de Rachmaninof a este. Talvez o motivo esteja ligado ao fato de eu não ser pianista e sim um ouvinte.
Totalmente aquecidos, chegou a hora de brandy, ou vinho. No caso um Borgonha de alta classe. Brahms, primeira Sinfonia. Carpeaux comentou que havia um crítico americano que sugeriu adicionar “em caso de Brahms” nas placas de saídas dos teatros. Talvez por isso, este país gerou tão tardiamente compositores dignos de nota.
Sempre vi Brahms como uma camada de gelo escondendo um vulcão. Nada mais apropriado para a noite. No primeiro movimento há mais tensão que nos dois seguintes. O segundo é bastante lírico e o terceiro é o típico Brahms de ritmos e texturas complexas. Alguns já a chamaram de décima de Beethoven, será por que o più sostenuto no quarto movimento lembra o andante da nona? Não importa, é musica das maiores.
Assim se passou a noite, o gelo lá fora e a OSPA aprumada, agraciando-nos com lavas sonoras. Um ótimo retorno do Uruguai.
Obs.: não encontrei a capa de edição nacional para colocar ao lado…
Beethoven gostava de temas curtos e afirmativos. O crítico Otto Maria Carpeaux também, até demais. Beethoven repetia seus temas à exaustão, mas não enchia o saco. Carpeaux não os repete, mas larga aqui e ali juízos curtos, afirmativos e terríveis que às vezes me deixam louco. A literatura não prescinde de justificativas mais, digamos, alongadas. Eu gosto de Beethoven e de Carpeaux, só que o austríaco tem uma capacidade de me irritar que o alemão só utilizou n`A Batalha de Wellington e na Pastoral. Pobre do grande LAURENCE STERNE: na História da Literatura Ocidental, o maravilhoso amansa-burro de 2300 páginas de Carpeaux, ganhou a curta e grossa má vontade do mestre:
Não é romancista, e não compreendemos como seus contemporâneos puderam dar o nome de romance a esse aglomerado de conversas, digressões e anedotas, sem ação novelística, que é o Tristram Shandy.
Que equívoco! Fico curioso sobre o que diz Carpeaux sobre outro livro notável, também quase exclusivamente um aglomerado de conversas e digressões filosóficas: O Homem Sem Qualidades, de Robert Musil. Consulto e ele demonstra coerência, fazendo questão de chamar a obra-prima inacabada de romance-ensaio. OK. Romance-ensaio é mais que um aglomerado de conversas e digressões, porém Carpeaux sempre ensina muito e conta com minha INDULGÊNCIA.
Mas creio que Carpeaux, se se alongasse um pouco mais, não ousaria falar mal da espetacular prosa de Sterne. Seu principal romance (ou não), A Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy, é uma de minhas melhores lembranças literárias. Este livro extravagante, publicado em capítulos entre os anos de 1759-67, tem importantes admiradores. James Joyce, Luigi Pirandello, Samuel Beckett e MACHADO DE ASSIS, que o cita com conhecimento, foram alguns dos escritores que se declararam influenciados pelo irlandês Sterne, um pároco muito bem sucedido e amante de intermináveis digressões pontuadas de anedotas escabrosas e alusões cínicas. Agrada-me intensamente a forma como Sterne decepciona seus leitores ao não dar seguimento às ações que esboça, coisa que Roberto Bolaño se esmera em realizar (ou não).
A cena inicial nos conta sobre o nascimento de Tristram. Seu pai costumava fazer duas coisas no primeiro domingo do mês. A primeira era dar corda no relógio da sala; a segunda era cumprir seus deveres conjugais. Porém, num destes domingos, sua mãe, JÁ PENETRADA mas sem o menor interesse, pergunta repentinamente (a pontuação, sempre originalíssima, é puro Sterne):
– Por favor, meu caro, não te esqueceste de dar corda ao relógio? ————-Por D—–! gritou meu pai, lançando uma exclamação, mas cuidando ao mesmo tempo de moderar a voz. ——–Houve jamais mulher, desde a criação do mundo, que interrompesse um homem com pergunta assim tão tola?
Com a interrupção, o velho Shandy, desconcertado, descuidou-se de fazer outra coisa: o coitus interruptus. E é desta forma que nasce o HOMÚNCULO ou, para nós, o feto daquele que seria o protagonista da “ação”. A piada fez enorme sucesso e por anos não apenas as prostitutas da Inglaterra perguntaram a seus candidatos QUERES DAR CORDA EM MEU RELÓGIO?, como as senhoras de respeito deixaram de comprar relógios para suas casas com receio dos comentários que tal ato poderia provocar… Que os comprassem os maridos!
É também notável o momento em que Shandy desiste de narrar sua própria vida – o livro é escrito na primeira pessoa. Isto acontece lá pela página 80 de um livro de 600 páginas. Ele observa que gastou alguns meses escrevendo a respeito das primeiras horas de sua vida. Constata assim que demora muito mais para escrever do que para viver e que os acontecimentos narrados estão afastando-se mais rapidamente do que a narrativa avança… Impossível alcançar. Conclui que o melhor é parar de perseguir a si mesmo e conversar com os leitores. A vida de Tristram segue seu curso e Sterne, bem, Sterne sabe e declara-se consciente de que a literatura existe primeiro para SATISFAZER O AUTOR… Danem-se os leitores.
Tudo é desrespeito neste romance moderno com raízes no Quixote. Riso e melancolia brincam sob a batuta de Sterne. Como se não bastasse ser um excêntrico romance sobre quem escreve um romance, Tristram Shandy apresenta uma série de artifícios antes nunca vistos: uma página inteiramente pintada de preto, tentativas de desenhar graficamente a evolução do romance, alguns capítulos em branco (em que nada é escrito) e uma página também em branco, limpinha, para que o leitor desenhe sua amada.
Acima, Sterne nos brinda com o esquema gráfico da história do tio Toby…
Hoje, poucos lêem o descontrolado e desprogramado Tristram Shandy, mas os estragos causados por ele fez foram grandes: Joyce adorava seus jogos de palavras e trocadilhos ab-so-lu-ta-men-te malucos, Beckett — “Nada tenho a dizer, mas somente eu sei como fazê-lo” — deliciava-se com o fato de Sterne ter, por assim dizer, inviabilizado seu próprio romance e Machado de Assis aprendeu com ele a dialogar frequentemente com o leitor e a brincar com aqueles pequenos capítulos em que nada, mas nada mesmo, acontece. Aliás, há cenas de Memórias Póstumas de Brás Cubas que demonstram toda a admiração de Machado por Tristram.
Li este livro em 1985, na brilhante tradução de José Paulo Paes em edição da Nova Fronteira, depois reeditada pala Cia. das Letras e despeço-me com mais um trecho do Tristram Shandy. A pontuação é a do autor, claro:
O que é a vida de um homem! Pois não é um rolar daqui para lá?——–De infortúnio em infortúnio?—— Abotoar uma ca(u)sa de aflição!—–e desabotoar outra?
(…)
—Entrementes, tenho umas poucas coisas a fazer—uma coisa a nomear—uma coisa a lamentar—uma coisa a esperar, uma coisa a prometer, e uma coisa a ameaçar.—Tenho uma coisa a imaginar—uma coisa a declarar—uma coisa a esconder, e uma coisa por que rezar. ——A este capítulo chamarei, portanto, o capítulo das COISAS——e o capítulo a ele subsequente, isto é, o primeiro do volume seguinte, se eu viver o bastante, será o capítulo das SUÍÇAS, a fim de manter algum tipo de nexo entre as minhas obras.
A coisa que lamento é terem as coisas se apinhado de tal modo sobre mim que não consegui chegar àquela parte de minha obra a que visei durante todo o caminho com tamanha ansiedade, qual seja a parte das campanhas, e mais especialmente a dos amores do tio Toby; os acontecimentos e eles respeitantes são de natureza tão singular e de cunho tão cervantino que se eu conseguir transmitir a outro cérebro as impressões que as ocorrências suscitam por si sós em meu próprio cérebro—garanto que o livro abrirá caminho no mundo muito melhor do que nele abriu seu autor.—Oh Tristram! Tristram! poderá jamais acontecer, uma vez que seja—que o prestígio de que venhas a desfrutar como autor compense os muitos infortúnios que te afligiram como homem?—Festejarás o primeiro—quando tiveres perdido toda a sensação e lembrança dos outros!—
Não estranha eu estar tão inquieto por chegar a estes amores.—Eles são o acepipe mais refinado de toda a minha história! E quando eu chegar enfim a eles—asseguro-vos, boa gente,—(não me importam os estômagos delicados aos quais possa desgostar) que não serei nada cuidadoso na escolha das minha palavras;—a coisa que tenho a DECLARAR——–é que receio não poder chegar-lhes ao fim em apenas cinco minutos—e a coisa que ESPERO é que vossas referendas senhorias não se ofendam—se vos ofenderdes, podeis contar, minha boa gentry, que no próximo ano eu vos darei algo com que de fato vos ofenderdes—assim o faz minha querida Jenny—mas quem seja a minha Jenny—e qual a extremidade certa e a extremidade errada de uma mulher, essa é a coisa a ser ESCONDIDA—ser-vos-á contada dois capítulos após meu capítulo acerca das casas de botão—e em nenhum outro capítulo anterior.
E agora que chegastes ao fim destes quatro volumes—a coisa que tenho a PERGUNTAR é, como estão vossas cabeças? A minha dói horrivelmente—quanto às vossas saúdes, sei que estão bem melhores…
Estão mesmo, Laurence, ao menos a minha está.
A descrição da morte de Yorick: uma página preta, de luto.