A nota amarela — seguida de Sobre a escrita — um ensaio à moda de Montaigne, de Gustavo Melo Czekster

A nota amarela — seguida de Sobre a escrita — um ensaio à moda de Montaigne, de Gustavo Melo Czekster

Esta será uma resenha estranha, escrita em formato gonzo. Gonzo é um estilo de texto jornalístico ou cinematográfico no qual o autor abandona qualquer pretensão de objetividade e se mistura com o que é contado.

Pois bem, o romance A Nota Amarela — primeira parte do livro de Czekster — é narrado pela violoncelista Jacqueline du Pré. Trata-se de seus pensamentos durante sua célebre interpretação do Concerto para Violoncelo de Elgar. Claro que tudo o que ela pensa foi criado e (muito) pesquisado por Czekster. Du Pré foi uma grande figura inglesa da música erudita. Linda, cheia de vida, verdadeiramente fulgurante, ela era recém casada com o pianista e regente Daniel Baremboim — até hoje uma figura referencial na área musical. Há um filme de uma interpretação de du Pré para este concerto que foi gravado em 1967 e que serviu de base para boa parte do trabalho. Eu conheço este filme há muitos anos. Acho que o vi pela primeira vez ainda adolescente em alguma TV Educativa e fiquei fascinado. Afinal, uma linda música, tocada com muita emoção por uma bela mulher, o que poderia haver de melhor? O fato é que jamais esqueci dele e tratava de rever o filme a cada reapresentação. Aqui está ele:

Uma vez, nos anos 80, levei uma moça muito bonita, graciosa e radical, pela qual estava me apaixonando, para ver a Ospa tocar este concerto. O programa finalizava com a Sinfonia Nº 9 de Schubert, a Grande. Não é que tenha dado errado, mas… O fato é que fiz enorme propaganda do concerto de Elgar e, no final, ouvi ela dizer que o inglês fora humilhado por Schubert e… Como é que eu tinha dito que detestava autores do século XX que escreviam como se estivessem no XIX se, já de cara, no primeiro concerto em que íamos juntos, eu elogiava um desses “horrores”? E me perguntou ironicamente qual era a obra de Rachmaninov que eu amava. Nenhuma, eu respondi, já perdendo o entusiasmo. Ela gostava da música moderna, divertia-se com Stockhausen, Xenakis, com a Segunda Escola de Viena, etc. Minha história com a moça não interessa, mas ela tinha razão. Costumo não gostar destes autores, contudo há exceções e uma delas é este concerto.

Elgar e sua batuta

Me deu vontade de bater nela com a enorme batuta de Elgar, mas acabamos passando uns bons seis meses juntos, não obstante meu gosto por aquela “vulgaridade”. Então, desde que soube que Czekster se dedicara a esmiuçar a famosa interpretação de du Pré, fiquei encantado e meio enciumado, porque o Concerto era meu e de Jacqueline e fim!

Mais: como se não bastasse, o livro de Czekster tinha outra característica perturbadora. Eu sou uma pessoa avessa a ler filósofos, não gosto. Também sou totalmente hostil a romances-ensaios como, por exemplo, O homem sem qualidades, de Robert Musil. (OK, estou aqui desfiando perigosamente alguns de meus vários desvios de caráter). Só que amo profundamente um filósofo e ele se chama Michel de Montaigne. A forma com que Montaigne aborda seus temas me deixa inteiramente envolvido. Além de possuir um texto maravilhoso, ele mistura histórias pessoais e observações sobre temas menores, partindo para conclusões que às vezes admite duvidosas. É um escritor glorioso. Para cúmulo, ainda tem muito humor e uma capacidade argumentativa absolutamente anormal. É agradável lê-lo. Ele conversa com o leitor como faz Machado. E Czekster escolheu-o para escrever um ensaio “à moda de”. É muita coisa em comum.

Desta forma, mesmo sem abrir o livro, mesmo observando de longe o volume, eu sabia que ele era para mim.

(Desculpe, Czekster, mas me senti como o personagem de A Vida do Outros, o capitão Gerd Wiesler (Ulrich Mühe) que termina o filme dizendo “É para mim”).

Mas demorei uns dois meses para abrir A Nota Amarela. Olha, gostei demais.

Czekster dividiu a narrativa em 31 capítulos, que é aproximadamente o número de minutos de duração do Concerto. Numerou-os em ordem descendente, sublinhando os minutos faltantes da execução do mesmo — o autor não faz isso de forma arbitrária, tem suas razões. Como disse, o livro é escrito na primeira pessoa do singular e, no ensaio, o autor deixa claro que leu todos os livros e entrevistas disponíveis de du Pré. Eu li muito menos e é claro que as coisas batem. Jamais saberemos o quanto o texto é du Pré, mas eu creio que é muito. Para nossa sorte, Czekster não fala sobre a doença que vitimou a carreira da violoncelista e a própria. A carreira de du Pré foi curta em razão da esclerose múltipla, que a forçou deixar os palcos aos vinte e oito anos de idade. Ela viveu apenas 42 anos.

Em determinado momento, Jacqueline vê, na plateia, uma mulher com um lenço amarelo, e aquilo a perturba. Ela se pergunta o motivo disso, pensando até se em seu guarda-roupa esta cor aparece ou não. Até que ela lembra que seu professor de violoncelo, o grande William Pleeth, presente ao concerto, um dia lhe dissera que os chineses acreditavam que uma nota amarela seria “a partícula de som perfeito que deu origem ao Universo”. Ela seria a nota perfeita, aquela que o músico deveria alcançar ou se aproximar ao máximo. Porém, toda vez que ela sente que a tal supernota está iminente, sobrevém-lhe enorme angústia e medo.

Escrever sobre os pensamentos de um artista conhecido durante a execução de um concerto é um enorme desafio, uma verdadeira proeza. A coisa poderia ficar realmente chata com constantes referências a ensaios, acelerações, desacelerações, dificuldades técnicas, relação com o palco, olhares do maestro, erros, etc., mas Gustavo mostra-se realmente criativo e não nos entrega — para usar uma expressão da moda — mesmice. O livro é feérico e Jacqueline está dentro de um drama que envolve angústia, dores, digressões, autocrítica, crítica e até certo descolamento daquilo que está fazendo.

E o ensaio sobre a escrita é brilhante, belíssimo. E também quase um thriller. A questão pessoal — penso que real — confessada pelo autor “a la Montaigne” é absolutamente grave e angustiante. Daquelas coisas de fazer a gente engolir o livro.

Recomendo muito.

Gustavo Melo Czekster | Foto: Maia Rubim/Sul21

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100 Livros Essenciais da Literatura Mundial

100 Livros Essenciais da Literatura Mundial

Há algumas semanas, li a lista da extinta revista Bravo sobre os 100 livros essenciais da literatura mundial. A edição vendeu muito, disse o dono da banca de revistas meu vizinho. No final da revista, há uma página de Referências Bibliográficas de razoável tamanho, mas o editor esclarece que a maior influência veio dos trabalhos de Harold Bloom.

Vamos à lista? Depois farei alguns comentários a ela.

A lista é a seguinte (talvez haja erros de digitação, talvez não):

1. Ilíada, Homero
2. Odisseia, Homero
3. Hamlet, William Shakespeare
4. Dom Quixote, Miguel de Cervantes
5. A Divina Comédia, Dante Alighieri
6. Em Busca do Tempo Perdido, Marcel Proust
7. Ulysses, James Joyce
8. Guerra e Paz, Leon Tolstói
9. Crime e Castigo, Dostoiévski
10. Ensaios, Michel de Montaigne
11. Édipo Rei, Sófocles
12. Otelo, William Shakespeare
13. Madame Bovary, Gustave Flaubert
14. Fausto, Goethe
15. O Processo, Franz Kafka
16. Doutor Fausto, Thomas Mann
17. As Flores do Mal, Charles Baldelaire
18. Som e a Fúria, William Faulkner
19. A Terra Desolada, T.S. Eliot
20. Teogonia, Hesíodo
21. As Metamorfoses, Ovídio
22. O Vermelho e o Negro, Stendhal
23. O Grande Gatsby, F. Scott Fitzgerald
24. Uma Estação No Inferno,Arthur Rimbaud
25. Os Miseráveis, Victor Hugo
26. O Estrangeiro, Albert Camus
27. Medéia, Eurípedes
28. A Eneida, Virgilio
29. Noite de Reis, William Shakespeare
30. Adeus às Armas, Ernest Hemingway
31. Coração das Trevas, Joseph Conrad
32. Admirável Mundo Novo, Aldous Huxley
33. Mrs. Dalloway, Virgínia Woolf
34. Moby Dick, Herman Melville
35. Histórias Extraordinárias, Edgar Allan Poe
36. A Comédia Humana, Balzac
37. Grandes Esperanças, Charles Dickens
38. O Homem sem Qualidades, Robert Musil
39. As Viagens de Gulliver, Jonathan Swift
40. Finnegans Wake, James Joyce
41. Os Lusíadas, Luís de Camões
42. Os Três Mosqueteiros, Alexandre Dumas
43. Retrato de uma Senhora, Henry James
44. Decameron, Boccaccio
45. Esperando Godot, Samuel Beckett
46. 1984, George Orwell
47. Galileu Galilei, Bertold Brecht
48. Os Cantos de Maldoror, Lautréamont
49. A Tarde de um Fauno, Mallarmé
50. Lolita, Vladimir Nabokov
51. Tartufo, Molière
52. As Três Irmãs, Anton Tchekov
53. O Livro das Mil e uma Noites
54. Don Juan, Tirso de Molina
55. Mensagem, Fernando Pessoa
56. Paraíso Perdido, John Milton
57. Robinson Crusoé, Daniel Defoe
58. Os Moedeiros Falsos, André Gide
59. Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis
60. Retrato de Dorian Gray, Oscar Wilde
61. Seis Personagens em Busca de um Autor, Luigi Pirandello
62. Alice no País das Maravilhas, Lewis Caroll
63. A Náusea, Jean-Paul Sartre
64. A Consciência de Zeno, Italo Svevo
65. A Longa Jornada Adentro, Eugene O’Neill
66. A Condição Humana, André Malraux
67. Os Cantos, Ezra Pound
68. Canções da Inocência/ Canções do Exílio, William Blake
69. Um Bonde Chamado Desejo, Teneessee Williams
70. Ficções, Jorge Luis Borges
71. O Rinoceronte, Eugène Ionesco
72. A Morte de Virgilio, Herman Broch
73. As Folhas da Relva, Walt Whitman
74. Deserto dos Tártaros, Dino Buzzati
75. Cem Anos de Solidão, Gabriel García Márquez
76. Viagem ao Fim da Noite, Louis-Ferdinand Céline
77. A Ilustre Casa de Ramires, Eça de Queirós
78. Jogo da Amarelinha, Julio Cortazar
79. As Vinhas da Ira, John Steinbeck
80. Memórias de Adriano, Marguerite Yourcenar
81. O Apanhador no Campo de Centeio, J.D. Salinger
82. Huckleberry Finn, Mark Twain
83. Contos de Hans Christian Andersen
84. O Leopardo, Tomaso di Lampedusa
85. Vida e Opiniões do Cavaleiro Tristram Shandy, Laurence Sterne
86. Passagem para a Índia, E.M. Forster
87. Orgulho e Preconceito, Jane Austen
88. Trópico de Câncer, Henry Miller
89. Pais e Filhos, Ivan Turgueniev
90. O Náufrago, Thomas Bernhard
91. A Epopéia de Gilgamesh
92. O Mahabharata
93. As Cidades Invisíveis, Italo Calvino
94. On the Road, Jack Kerouac
95. O Lobo da Estepe, Hermann Hesse
96. Complexo de Portnoy, Philip Roth
97. Reparação, Ian McEwan
98. Desonra, J.M. Coetzee
99. As Irmãs Makioka, Junichiro Tanizaki
100 Pedro Páramo, Juan Rulfo

A lista é ótima, mas há critérios bastante estranhos.

Se não me engano, só três semideuses têm mais de um livro na lista: Homero, Shakespeare e Joyce. OK, está justo.

No restante, é uma lista mais de autores do que de livros e muitas vezes são escolhidos os livros mais famosos do autor e dane-se a qualidade da obra. Se a revista faz um gol ao escolher Doutor Fausto como o melhor Thomas Mann, erra ao escolher Crime e Castigo dentro da obra de Dostoiévski – Os Irmãos Karamázovi e O Idiota são melhores; ao escolher Guerra e Paz de Tolstói – por que não Ana Karênina? -; na escolha de O Complexo de Portnoy, de Philip Roth; que tem cinco romances muito superiores, iniciando por O Avesso da Vida (Counterlife) e ainda ao eleger Retrato de Uma Senhora na obra luminosa de Henry James. Li por aí reclamações análogas sobre as escolhas de Brás Cubas e não de Dom Casmurro, de Cem Anos de Solidão ao invés de O Amor nos Tempos do Cólera e de As Cidades Invisíveis de Calvino, mas acho que é uma questão de gosto pessoal e não de mérito. Ah, e é absurda a presença do bom O Náufrago e não dos imensos e perfeitos Extinção, Árvores Abatidas e O Sobrinho de Wittgenstein na obra de Thomas Bernhard.

Saúdo a presença de grandes livros pouco citados como Tristram Shandy, obra-prima de Sterne muito querida deste que vos escreve, de Viagem ao Fim da Noite, de Céline, de A Consciência de Zeno, genial livro de Ítalo Svevo, de O Deserto dos Tártaros (Buzzati) e do incompreendido e brilhante Grandes Esperanças, de Charles Dickens, de longe seu melhor romance.

Porém é estranha a escolha de A Comédia Humana, de Balzac. Ora, a Comédia são 88 romances! Não vale! Estranho ainda mais a presença de autores menores como Kerouac e Malraux, além do romance que não é romance — ou do romance que só é romance em 100 de suas 1200 páginas: O Homem sem Qualidades, de Robert Musil.

Também acho que presença de McEwan e de Coetzee prescindem do julgamento do tempo, o que não é o caso de alguns ausentes, como Lazarillo de Tormes, de Chamisso com seu Peter Schlemihl, de George Eliot com Middlemarch, de Homo Faber de Max Frisch e de O Anão, de Pär Lagerkvist, só para citar os primeiros que me vêm à mente. E, se McEwan e Coetzee esttão presentes, por que não Roberto Bolaño?

E Oblómov??? Não poderia ficar de fora!

(O Bender escreve um comentário reclamando a ausência de Grande Sertão, Veredas, de Guimarães Rosa. É claro que ele tem razão! Esqueci. Coisas da idade.)

Com satisfação pessoal, digo que este não-especialista não leu apenas Os Miseráveis, o livro de Blake e os de Lautréamond, Mallarmé, Ovídio e Hesíodo. Isto é, seis dos cem. Tá bom.

P.S.- Milton mentiroso! Não li Finnegans também!

Este post foi publicado em 13 de dezembro de 2007, mas quase nada mudou.

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Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): V – Os ensaios de Montaigne

Permitam-me dizer que Michel de Montaigne (1533-1592) teria sido o maior blogueiro do mundo. Seus Ensaios tratam de absolutamente qualquer coisa — da medicina, da atitude dos criados, dos cavalos, da morte, das variações dos estados de espírito, da amizade, da agricultura, do clima e, pasmem, até da filosofia. Mas cada assunto abordado traz consigo tamanha qualidade de texto, fluidez de pensamento, ironia e inteligência que nos quedamos — e quedar é a palavra — totalmente apaixonados. Os ensaios são muitos e normalmente não são longos. Ele foi o inventor do gênero, criando-o como um amigo que nos sussurra, dentro de uma perspectiva subjetiva, ideias fundamentadas de tolerância e liberdade. Nada sei sobre filosofia, mas ele deve ter sido importantíssimo, pois, sem revoluções, usou a sua consciência individual e a contrapôs aos dogmas divinos da Idade Média. Sim, estamos no século XVI, meus amigos. Se não existisse Montaigne, o mundo seria certamente pior. A totalidade de seus ensaios cabe normalmente em três volumes. Modernamente, são feitas seleções como a que mostramos acima, lançada em 2010 pela Penguin-Companhia. É um livro para se ter em casa e abrir de vez em quando. Ele serve para colocar nossas ideias no lugar, para que aprendamos a pensar, para que nos acalmemos através de inevitáveis sorrisos de compreensão. Para ele, nada é definitivo; com ele, ao esmiuçar cada assunto, teremos lições gentis de como abordar questões e veremos como tudo é tão, mas tão profundo, que boa parte de nossa visão da vida torna-se mera superficialidade. (Ah, através de suas argumentações, ele nos ensina a não nos perder em bobagens, a ser mentalmente produtivos. O complicado é aprender a agir assim. Talvez nem ele conseguisse…).

Montaigne analisou as instituições, as opiniões e os costumes de sua época, tomando a humanidade como objeto de estudo. Porém, não deixa dúvidas: “sou eu mesmo a matéria de meus livros”. Além de comentar o mundo, Montaigne, em sua sinceridade e absoluta exposição, fala de suas crises renais, sobre o que acha de cada odor, sobre sua falta de memória e faz o maior mimimi lamentando-se por não ser dotado de um pênis que satisfaça todas as mulheres. Tudo isto permeado por uma concepção muito original do que é a ética. É o que eu disse: é um amigo que, falando de si, fala de todos.

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