Um clássico desconhecido: La Divina Increnca, de Juó Bananére

Um clássico desconhecido: La Divina Increnca, de Juó Bananére
Alexandre Ribeiro Marcondes Machado, criador de Juó

A artograffia muderna é una maniera de scrivê, chi a gêntil scrive uguali come dice.
Juó Bananére

Hoje, se poucos sabem quem foi Juó Bananére, o que dizer de sua obra magna La Divina Increnca? Porém, durante as primeiras décadas do século XX, Juó foi um dos nomes mais famosos da imprensa paulistana e brasileira. Ele foi um personagem fictício, imigrante italiano criado por Alexandre Ribeiro Marcondes Machado (1892-1933), e que era assunto tanto nas feiras e ruas quanto nos salões da alta sociedade.

Formado em engenharia pela Escola Politécnica da USP, alto e elegante, Alexandre em nada correspondia à imagem de Bananére que o caricaturista Voltolino imortalizou: um sujeito de meia-idade, baixo, gordo e maltrapilho. Bananére escrevia textos que parodiavam o sotaque da grande colônia italiana de São Paulo. Como quase todo imigrante, os italianos recém-chegados eram obrigados a aceitar quaisquer trabalhos. Um deles era o de puxar carroças de frutas para vendê-las. Daí o pseudônimo: um João Bananeiro qualquer virou Juó Bananére. Ele era o autor de versos como estes:

Migna terra tê parmeras,
Che ganta inzima o sabiá.
As aves che stó aqui,
Tambê tuttos sabi gorgeá.

A abobora celestia tambê,
Chi tê lá na mia terra,
Tê moltos millió di strella
Chi non tê na Ingraterra.

O leitor certamente reconhecerá neles uma paródia ao poema Canção do exílio de Gonçalves Dias. Além de brincar com poemas famosos, Juó escrevia os também os seus próprios, além de crônicas satíricas que narravam a vida dos imigrantes e faziam piadas com figuras da época, como os presidentes Venceslau Brás, Hermes da Fonseca, o jurista Ruy Barbosa e muitos outros. Também há paródias inspiradas em romances de Machado de Assis, mantendo sempre a mistura dos idiomas italiano e português.

Por mais de 20 anos, Juó se fez presente nos meios culturais e jornalísticos paulistas. Eterno Gandidato á Gademia Baolista de Letras, ele, infelizmente, nunca obteve uma cadeira para si, apesar dos imensos e macarrônicos elogios que fazia a si mesmo.

Nomes ilustres não lhe pouparam elogios. Oswald de Andrade referiu-se a ele como “o mestre da sátira no Brasil”. O escritor Antônio de Alcântara Machado não deixou por menos: o personagem teria sido “o melhor cronista” de São Paulo.

Apesar de não ter ascendência italiana, Alexandre apaixonou-se pela cultura surgida nos bairros operários que se expandiram na capital paulista, como Brás, Barra Funda, Belenzinho, Mooca e Bexiga — bairro de Adoniran Barbosa, que adorava e deixou-se influenciar por Juó –, após a grande onda imigratória que fez com que a população da cidade passasse rapidamente de 130 mil habitantes em 1895 a 580 mil em 1920. Metade destes habitantes consistiam de imigrantes estrangeiros e outro quarto de seus filhos já nascidos no Brasil.

Como jornalista, Alexandre escrevia artigos para o jornal O Estado de S. Paulo e, em outubro de 1911, começou a assinar uma coluna na revista semanal O Pirralho, um periódico literário, político e de humor recém lançado por Oswald de Andrade. É lá que ele passa a usar o pseudônimo Juó Bananère. O novo jornal tinha uma proposta pré-modernista, movimento literário precursor do Modernismo.

Após a morte de Alexandre, o personagem Juó Bananère ficou esquecido por décadas, sendo eventualmente lembrado pela coletânea La Divina Increnca. Atualmente, reeditados, seus textos têm sido objeto de estudos de historiadores, críticos e teóricos da literatura.

Poema publicado na revista O Pirralho. Criação de Oswald de Andrade. Poema de Juó Bananére

Apesar das colunas nos jornais, a principal obra de Juó foi mesmo o livro La Divina Increnca, paródia de Divina Comédia, de Dante Alighieri, editado pela primeira vez em 1915 e reeditado em 1924, 1966 e 1993. Atualmente a editora Livronovo está procurando viabilizar uma nova edição através de financiamento coletivo.

Juo Bananére

Com efeito, críticos consagrados, como Otto Maria Carpeaux, atribuíram a ele o papel de precursor do modernismo. A inventividade linguística do personagem seria o equivalente tupiniquim às ousadias de James Joyce e ao movimento dadaísta europeu. O professor Carlos Eduardo Capela, de teoria literária da Universidade Federal de Santa Catarina e autor da obra Juó Bananére — Irrisor, Irrisório (2009, Nankin Editorial/Edusp, 538 páginas), não encara as comparações como piadas, mas acredita que tais teses sejam absurdas.

“Há coisas em comum, como o humor. Mas o modernismo é um movimento literário, articulado, tem um manifesto. Já o Bananére é um piadista, nunca quis ser nada além disso. O espaço dele é o efêmero, a coisa pequena, o cotidiano.”  Mais apropriado, acredita ele, é enxergar em Alexandre/ Bananére um rico caso de testemunho histórico e de criação de um personagem.

“Ele confronta um ambiente intelectual conservador e projeta, por via paródia, o desclassificado, os tipos marginais. Hoje se fala muito em dar voz às minorias, mas ele já fazia isso há quase cem anos.”

Sua coluna em O Pirralho chamava-se O diário do Abax’o Piques. Abaixo Piques era o nome da atual Ladeira da Memória, local tombado em 1974 na cidade de São Paulo. Mais tarde, após romper com Oswald de Andrade, Alexandre fundou o Diário do Abax’o Piques — Diario Semanale di Grande Impurtanza, em associação com o ilustrador Voltolino (1884 – 1926). Nele, Juó se intitulava poeta, barbieri i giurnaliste e, em sua logomarca, estava escrito Lasciate ogni speranza. 

Lasciate ogni speranza, voi che entrate (“Deixai qualquer esperança, vós que entrais”) é o famoso verso que se encontra na porta de entrada do Inferno, a primeira parte de La Divina Commedia, a obra-prima de Dante, da literatura italiana e da cultura da Idade Média.

O jornal caracterizava-se por apresentar temas essencialmente políticos, discutidos em tom satírico, por meio de uma linguagem humorística escrachada. O periódico apresentava duas seções fixas Taka – Shumbo Shimbum e um “sumplemento” esportivo – Sport que finalizava cada edição. Os colaboradores usavam pseudônimos para assinar suas colaborações. Ali, Juó Bananére registrava uma linguagem própria à mesclagem cultural que gerou paulistano.

Tal como aconteceu com o Barão de Itararé e seu inventor Aparício Torelly, o Juó Bananére inventado por Alexandre Marcondes Machado acabou por reinventar seu inventor como escritor. Hoje, pode-se dizer que existe Juó Bananére e não Alexandre Marcondes Machado. Juó, com seu italiano de imigrante pobre em São Paulo, aparecia como uma voz viva e afrontosa dos despossuídos do país.

A principal fonte de inspiração de Alexandre Machado estava nas ruas, e era para essas mesmas ruas que retornava a obra pronta, de enorme sucesso, tendo em vista as repercussões em textos de outros autores e relatos de pesquisadores. Está mais do que hora de recuperarmos Bananére como parte de nossa história literária.

Fontes:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Ju%C3%B3_Banan%C3%A8re
http://www.bookstart.com.br/pt/juo
http://bananere.art.br/increnca.html
http://www.unicamp.br/iel/site/alunos/publicacoes/textos/l00004.htm

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100 Livros Essenciais da Literatura Mundial

100 Livros Essenciais da Literatura Mundial

Há algumas semanas, li a lista da extinta revista Bravo sobre os 100 livros essenciais da literatura mundial. A edição vendeu muito, disse o dono da banca de revistas meu vizinho. No final da revista, há uma página de Referências Bibliográficas de razoável tamanho, mas o editor esclarece que a maior influência veio dos trabalhos de Harold Bloom.

Vamos à lista? Depois farei alguns comentários a ela.

A lista é a seguinte (talvez haja erros de digitação, talvez não):

1. Ilíada, Homero
2. Odisseia, Homero
3. Hamlet, William Shakespeare
4. Dom Quixote, Miguel de Cervantes
5. A Divina Comédia, Dante Alighieri
6. Em Busca do Tempo Perdido, Marcel Proust
7. Ulysses, James Joyce
8. Guerra e Paz, Leon Tolstói
9. Crime e Castigo, Dostoiévski
10. Ensaios, Michel de Montaigne
11. Édipo Rei, Sófocles
12. Otelo, William Shakespeare
13. Madame Bovary, Gustave Flaubert
14. Fausto, Goethe
15. O Processo, Franz Kafka
16. Doutor Fausto, Thomas Mann
17. As Flores do Mal, Charles Baldelaire
18. Som e a Fúria, William Faulkner
19. A Terra Desolada, T.S. Eliot
20. Teogonia, Hesíodo
21. As Metamorfoses, Ovídio
22. O Vermelho e o Negro, Stendhal
23. O Grande Gatsby, F. Scott Fitzgerald
24. Uma Estação No Inferno,Arthur Rimbaud
25. Os Miseráveis, Victor Hugo
26. O Estrangeiro, Albert Camus
27. Medéia, Eurípedes
28. A Eneida, Virgilio
29. Noite de Reis, William Shakespeare
30. Adeus às Armas, Ernest Hemingway
31. Coração das Trevas, Joseph Conrad
32. Admirável Mundo Novo, Aldous Huxley
33. Mrs. Dalloway, Virgínia Woolf
34. Moby Dick, Herman Melville
35. Histórias Extraordinárias, Edgar Allan Poe
36. A Comédia Humana, Balzac
37. Grandes Esperanças, Charles Dickens
38. O Homem sem Qualidades, Robert Musil
39. As Viagens de Gulliver, Jonathan Swift
40. Finnegans Wake, James Joyce
41. Os Lusíadas, Luís de Camões
42. Os Três Mosqueteiros, Alexandre Dumas
43. Retrato de uma Senhora, Henry James
44. Decameron, Boccaccio
45. Esperando Godot, Samuel Beckett
46. 1984, George Orwell
47. Galileu Galilei, Bertold Brecht
48. Os Cantos de Maldoror, Lautréamont
49. A Tarde de um Fauno, Mallarmé
50. Lolita, Vladimir Nabokov
51. Tartufo, Molière
52. As Três Irmãs, Anton Tchekov
53. O Livro das Mil e uma Noites
54. Don Juan, Tirso de Molina
55. Mensagem, Fernando Pessoa
56. Paraíso Perdido, John Milton
57. Robinson Crusoé, Daniel Defoe
58. Os Moedeiros Falsos, André Gide
59. Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis
60. Retrato de Dorian Gray, Oscar Wilde
61. Seis Personagens em Busca de um Autor, Luigi Pirandello
62. Alice no País das Maravilhas, Lewis Caroll
63. A Náusea, Jean-Paul Sartre
64. A Consciência de Zeno, Italo Svevo
65. A Longa Jornada Adentro, Eugene O’Neill
66. A Condição Humana, André Malraux
67. Os Cantos, Ezra Pound
68. Canções da Inocência/ Canções do Exílio, William Blake
69. Um Bonde Chamado Desejo, Teneessee Williams
70. Ficções, Jorge Luis Borges
71. O Rinoceronte, Eugène Ionesco
72. A Morte de Virgilio, Herman Broch
73. As Folhas da Relva, Walt Whitman
74. Deserto dos Tártaros, Dino Buzzati
75. Cem Anos de Solidão, Gabriel García Márquez
76. Viagem ao Fim da Noite, Louis-Ferdinand Céline
77. A Ilustre Casa de Ramires, Eça de Queirós
78. Jogo da Amarelinha, Julio Cortazar
79. As Vinhas da Ira, John Steinbeck
80. Memórias de Adriano, Marguerite Yourcenar
81. O Apanhador no Campo de Centeio, J.D. Salinger
82. Huckleberry Finn, Mark Twain
83. Contos de Hans Christian Andersen
84. O Leopardo, Tomaso di Lampedusa
85. Vida e Opiniões do Cavaleiro Tristram Shandy, Laurence Sterne
86. Passagem para a Índia, E.M. Forster
87. Orgulho e Preconceito, Jane Austen
88. Trópico de Câncer, Henry Miller
89. Pais e Filhos, Ivan Turgueniev
90. O Náufrago, Thomas Bernhard
91. A Epopéia de Gilgamesh
92. O Mahabharata
93. As Cidades Invisíveis, Italo Calvino
94. On the Road, Jack Kerouac
95. O Lobo da Estepe, Hermann Hesse
96. Complexo de Portnoy, Philip Roth
97. Reparação, Ian McEwan
98. Desonra, J.M. Coetzee
99. As Irmãs Makioka, Junichiro Tanizaki
100 Pedro Páramo, Juan Rulfo

A lista é ótima, mas há critérios bastante estranhos.

Se não me engano, só três semideuses têm mais de um livro na lista: Homero, Shakespeare e Joyce. OK, está justo.

No restante, é uma lista mais de autores do que de livros e muitas vezes são escolhidos os livros mais famosos do autor e dane-se a qualidade da obra. Se a revista faz um gol ao escolher Doutor Fausto como o melhor Thomas Mann, erra ao escolher Crime e Castigo dentro da obra de Dostoiévski – Os Irmãos Karamázovi e O Idiota são melhores; ao escolher Guerra e Paz de Tolstói – por que não Ana Karênina? -; na escolha de O Complexo de Portnoy, de Philip Roth; que tem cinco romances muito superiores, iniciando por O Avesso da Vida (Counterlife) e ainda ao eleger Retrato de Uma Senhora na obra luminosa de Henry James. Li por aí reclamações análogas sobre as escolhas de Brás Cubas e não de Dom Casmurro, de Cem Anos de Solidão ao invés de O Amor nos Tempos do Cólera e de As Cidades Invisíveis de Calvino, mas acho que é uma questão de gosto pessoal e não de mérito. Ah, e é absurda a presença do bom O Náufrago e não dos imensos e perfeitos Extinção, Árvores Abatidas e O Sobrinho de Wittgenstein na obra de Thomas Bernhard.

Saúdo a presença de grandes livros pouco citados como Tristram Shandy, obra-prima de Sterne muito querida deste que vos escreve, de Viagem ao Fim da Noite, de Céline, de A Consciência de Zeno, genial livro de Ítalo Svevo, de O Deserto dos Tártaros (Buzzati) e do incompreendido e brilhante Grandes Esperanças, de Charles Dickens, de longe seu melhor romance.

Porém é estranha a escolha de A Comédia Humana, de Balzac. Ora, a Comédia são 88 romances! Não vale! Estranho ainda mais a presença de autores menores como Kerouac e Malraux, além do romance que não é romance — ou do romance que só é romance em 100 de suas 1200 páginas: O Homem sem Qualidades, de Robert Musil.

Também acho que presença de McEwan e de Coetzee prescindem do julgamento do tempo, o que não é o caso de alguns ausentes, como Lazarillo de Tormes, de Chamisso com seu Peter Schlemihl, de George Eliot com Middlemarch, de Homo Faber de Max Frisch e de O Anão, de Pär Lagerkvist, só para citar os primeiros que me vêm à mente. E, se McEwan e Coetzee esttão presentes, por que não Roberto Bolaño?

E Oblómov??? Não poderia ficar de fora!

(O Bender escreve um comentário reclamando a ausência de Grande Sertão, Veredas, de Guimarães Rosa. É claro que ele tem razão! Esqueci. Coisas da idade.)

Com satisfação pessoal, digo que este não-especialista não leu apenas Os Miseráveis, o livro de Blake e os de Lautréamond, Mallarmé, Ovídio e Hesíodo. Isto é, seis dos cem. Tá bom.

P.S.- Milton mentiroso! Não li Finnegans também!

Este post foi publicado em 13 de dezembro de 2007, mas quase nada mudou.

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Eu, estudando… O Mestre e Margarida, de Bulgákov (I)

Eu, estudando… O Mestre e Margarida, de Bulgákov (I)

Vou dividir este texto em vários capítulos, aproveitando coisas que já escrevi e escrevendo e pesquisando e copiando de outros, ladrão que sou. Apesar dos vários capítulos, este texto estará dividido em três grandes partes:

I — O Diabo de Bulgákov (capítulo curto, que pretendo terminar neste post);
II — As circunstâncias em que foi escrito O Mestre e Margarida;
III — O livro.

O Mestre e Margarida apresenta sua própria epígrafe — retirada do Fausto de Goethe — e ela trata do diabo, mas acho que preciso de outra, que pesquei do próprio livro de Bulgákov:

O que seria do bem se o mal não existisse, e como veríamos a Terra se as sombras desaparecessem? Afinal, as sombras resultam dos objetos e das pessoas.

Mikhail Bulgákov — O Mestre e Margarida

Então tratemos do demônio, do diabo, de Satã.

I — O Diabo de Bulgákov

A figura do demônio ganhou força na Idade Média. As mais variadas religiões jamais tiveram pudor de invocá-lo. Até hoje, nossos bispos evangélicos gritam que algumas saias e posturas são coisas de Satanás. E faz tempo que é assim.

Em parte de A Divina Comédia (1321), Dante Alighieri descreve os horrores que aguardam os pecadores no inferno. O foco do poema é a busca de Dante por sua amada Beatriz, que começa justamente no inferno, em cuja entrada há a famosa advertência: “Deixai toda esperança, vós que entrais”. Lá dentro há nove círculos, onde são julgados os vários tipo de delitos. Há vários demônios, mas no nono círculo está o maior deles, Lúcifer, o que julga os traidores. Ali não é quente, é frio e Lúcifer está lá, aprisionado da cintura para baixo, com suas grandiosas asas.

Lucífer no Nono Círculo do Inferno – Gustave Doré

Em Paraíso Perdido (1667), John Milton narra a expulsão de Lúcifer do Paraíso. Na obra, um despeitado Lúcifer diz que é “melhor ser rei no Inferno do que servir no Céu”.

A Queda de Lúcifer, ilustração de Gustave Doré para ‘O Paraíso Perdido’

Em O Diabo Enamorado (1772), Jacques Cazotte faz com que o Demônio se apaixone por um jovem que o invocou, assumindo a figura de uma bela mulher. Aqui, o demônio já adquire a característica da sedução, mas ele mesmo não tem uma imagem humana. Vejam abaixo a mulher sedutora e como ele é de verdade na imaginação dos ilustradores…

Ilustração para o livro de Cazotte

A lenda alemã de Fausto inspirou o clássico de Goethe (1808 e 1832), que inova ao dar aparência humana ao demônio. Mefistófeles aparece cheio de seduções, enganando, mentindo e propondo negócios.

Imagem de August von Kreling para o Fausto de Goethe (1874)

E há uma ópera de Gounod, de 1859, baseada no Fausto de Goethe. Faço questão de citá-la aqui pelo fato de Bulgákov tê-la assistido 41 vezes! Sabe-se disso porque ele guardava todos os ingressos de peças e concertos que assistia.

Cartaz original da ópera de Gounod.

E notem como o Mefistófeles de Gounod foi retratado no Municipal do Rio há poucos anos:

Foto: Ana Clara Miranda

Por que coloco todas essas imagens? Ora, para mostrar que a representação artística do Diabo mudou paulatinamente. Ele não somente passou a ter forma humana como adquiriu primeiro a sedução e depois o ar zombeteiro.

E como é o Woland de Bulgákov? Bem, vejamos o caso russo.

Nos contos populares russos, as esferas Deus/Diabo — o Bem e o Mal — são interligadas, unidas. Assim, Baba-Iagá, a bruxa das florestas, a fiel ajudante do Diabo, ora faz maldades — rouba crianças, mata, envenena heróis –, ora se transforma numa criatura bondosa — ajuda o herói, fornecendo-lhe a comida, o cavalo, a poção mágica, etc. Baba-Iagá não encarna o mal.

O séquito dos vários diabos tem diferentes membros: a coruja, o gato, os defuntos, os vampiros, etc. E também os lobos, os corvos, as cobras. Entretanto, todos eles, em algumas ocasiões, podem muito bem ajudar ao herói. Como em Bulgákov.

E há mais seres que carregam o diabólico, o demoníaco: os poetas, os músicos e outras “almas perdidas e pecadoras” como os orgulhosos, os solitários, os rebeldes, os ateus, os ladrões, os bandidos, os bêbados, os jogadores, os vagabundos, os ciganos, os amantes… Isso explicaria a simpatia que o diabo de Bulgákov tem pelo Mestre — que é um bom escritor e que, além disso, escreveu um romance não só sobre os sofrimentos e a sabedoria de Jesus, como também sobre a fraqueza e o padecimento moral de Pôncio Pilatos. E isso explicaria também a simpatia que Woland tem por Margarida — uma adúltera, amante do Mestre.

No folclore russo, o Diabo tem algumas características bem determinadas e estas mesmas características marcam o Diabo e seu séquito no romance de Bulgákov:

— os olhos verdes, ou, então, um olho diferente do outro em cor: “ele aparentava ter bem uns quarenta anos. Boca ligeiramente torcida. Bem escanhoado. Trigueiro. O olho direito negro, o esquerdo — não se sabe por quê — verde”;

Woland: ilustração de uma edição de O Mestre e Margarida
Woland num filme

— a força poderosa, orgulhosa de um “super-homem” ou então uma força brincalhona, mas briguenta (o gato Behemoth e Korôviev — os membros do séquito diabólico no romance de Bulgákov — são possuidores desta força brincalhona). Sim, em Moscou, o demônio (Woland) vem acompanhado de uma improvável claque composta por Korôviev — altíssimo com seu monóculo rachado –, o enorme gato Behemoth (hipopótamo, que rima com gato em russo), o pequeno e forte Azazello e a bruxa Hella, sempre nua. O povo russo relaciona também a ventania, a nevasca, o incêndio — lembremos que foi justamente o incêndio que acabou com a casa de escritores e com o misterioso apartamento n.° 50 — com o Diabo;

—  a cor preta ou vermelha. O vermelho é a cor da paixão, do sangue e do fogo. Outra cor diabólica é o preto. Os personagens diabólicos costumam ter os cabelos pretos — ou o pelo preto, como o Gato, que era “negro como corvo, ou como fuligem” — ou, então, o cabelo vermelho, como Korôviev, que tinha “cabelos ruivos brilhantes”;

— a marginalidade caracteriza os “filhos queridos” do Diabo. Este “marginal” pode ser uma espécie de um gênio, um poeta, um músico, mas pode também ser uma variante baixa: um ladrão, um bandido. Com a marginalidade vem a solidão e a ausência de filhos. Margarida, há vários anos casada, não tem filhos, é uma pessoa solitária, que sente-se abandonada pelo marido. Tudo isso a colocaria naturalmente ao lado do Diabo. O Mestre também não tem familia;

— o Diabo é o proibido e a rebeldia. Tudo o que não poderia haver na União Soviética. O Diabo (Deus) está com Margarida, está com o Mestre, está com Ivan Bezdômny, no final do romance, quando este se recusa a escrever poesia encomendada;

— o Diabo é um mestre do jogo, da sedução, da representação teatral e da arte em geral. A própria palavra ‘arte’ — em russo ‘iskusstvo’ — vem do verbo ‘iskusit’, “seduzir”, “representar”, “ser falso”. Na Rússia, o Diabo troca as máscaras e os papéis, e no romance de Bulgákov, ele também é um ator por excelência.

Eco do Fausto de Goethe, pelas reflexões filosóficas, o romance começa com esta epígrafe:

— Pois bem, quem és então?

— Sou uma parte desta força que sempre o Mal pretende e que o Bem sempre cria.

Goethe, Fausto.

O Diabo aparece já nas primeiras páginas do romance e passa a desempenhar o papel substancial no texto. Mas, conhecendo o contexto histórico da União Soviética da época — é nosso próximo assunto –, quando o romance foi escrito, o leitor atento logo deixa de encarar o livro como “fantástico”, começa a sentir que “tem mais”. O objetivo do livro é fazer com que o leitor hesite em escolher entre a explicação natural e a sobrenatural dos acontecimentos. O efeito produzido pelas situações grotescas é desorientador. O mundo de O Mestre e Margarida é cheio de milagres, um mundo teatral.

Só que não é uma fantasia livre. Tudo aquilo que de sobrenatural acontece tem o outro pé na realidade. Por exemplo, quando, no epílogo, Bulgákov conta a perseguição aos gatos pretos, pois a polícia está atrás do gato Behemoth:

Cerca de uns cem desses animais pacíficos, dedicados e úteis ao homem tinham sido fuzilados ou exterminados por outros meios em diversos pontos do país. (…) Gatos, de aspecto às vezes bastante estropiado, foram entregues a destacamentos policiais de diversas cidades. Por exemplo, em Armavir, um desses bichos, sem culpa alguma, foi levado à polícia com as patas dianteiras amarradas por um cidadão. (Pág. 384, edição da 34)

Mas não se enganem, a maior parte do livro é pura sátira. Ele tem cenas belas, a maioria delas hilariantes e, se você pensar que Bulgákov viu a URSS dos anos 30 como Doutor Jivago estará navegando num mar de enganos.

.oOo.

Texto parcialmente adaptado e copiado do trabalho Quem é o Diabo?” de Elena Godoy. 

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Lasciate ogni speranza, voi ch'entrate ou Abandonai toda esperança, vós que ficastes

Abandonai toda esperança, vós que entrastes, escreveu Dante Alighieri em A Divina Comédia, Canto III do Inferno, 9º verso.

O site Publishnews me dá a compreensão de que talvez o mundo já tenha acabado, que todas as ameaças de fim dos tempos e de arrebatamento realmente ocorreram de forma muito mais sutil do que alcança nossa vã compreensão, de que os desígnios de Deus são mesmo super-inescrutáveis e que nossa terrível punição foi a de ter permanecido para ver isso. Isto é, enquanto os puros foram para o céu, nós ficamos aqui para queimar lendo a Veja e a Época, para nos consumirmos com jabores, políbios, mônicas e reinaldos, naquilo que os religiosos chamam de inferno. Dante teria errado seu verso. O correto seria Abandonai toda esperança, vós que ficastes.

Mas o pior de tudo nem são as publicações ou os celetistas citados, o pior é a lista de livros mais vendidos de nosso inferno. Isso acaba com qualquer esperança. A lista dos 20 livros mais vendidos de 2011 é decididamente demoníaca e estou pensando seriamente em salvar minha alma de modo mais eficiente da que fez o pobre Hans Castorp. Confira a lista e reflita. Não imagino em que círculo do inferno estamos, mas o calor já é demasiado. Leia e queime.

Lista de livros mais vendidos em 2011:

1 Ágape, Padre Marcelo, 302763 exemplares vendidos em 2011
2 A cabana, William P. Young, 47839
3 Querido John, Nicholas Sparks, 44005
4 1822, Laurentino Gomes, 39837
5 Diário de uma paixão, Nicholas Sparks, 37485
6 Comer, rezar, amar, Elizabeth Gilbert, 33451
7 A última música, Nicholas Sparks, 32268
8 O pequeno príncipe, Antoine Saint-Exupéry, 29979
9 Por que os homens amam as mulheres poderosas?, Sherry Argov / Andrea Holcbeg, 29876
10 Deixe os homens aos seus pés, Marie Forleo, 29758
11 1808, Laurentino Gomes, 28050
12 Guia politicamente incorreto da história do Brasil, Leonardo Narloch, 25242
13 O monge e o executivo, James Hunter, 22267
14 Água para elefantes, Sara Gruen, 20781
15 O semeador de idéias, Augusto Cury, 20459
16 Diário de um banana – Dias de cão, Jeff Kinney, 20106
17 50 anos a mil, Lobão, 19167
18 O milagre, Nicholas Sparks, 18606
19 Comprometida, Elizabeth Gilbert, 18210
20 Os segredos da mente milionária, T. Harv Eker, 15930

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Relato de uma Viagem à Itália (VII)

No outro dia, fomos à cidade de Trento. Definitivamente inseridos em postais de natal, como nesta foto tirada de dentro do carro, na estrada entre Riva Del Garda e Trento,

Flavio levava nosso grupo – eu, Claudia, Julio e Marcelo – por uma estrada sinuosa e absolutamente inesquecível, quase sobrenatural sob a neve. Lembro de lagos com castelos em ilhas, lembro de vinhedos sem fim, de pontes, de subidas e descidas belíssimas e de curvas, curvas, curvas. Riva é uma pequena cidade e sei que o Flavio, que é arquiteto, realiza seus projetos nas redondezas, tendo que viajar diariamente. Pergunto se ele não enche o saco de tantas viagens e curvas e ele me dá a resposta óbvia que, penso, também daria em seu lugar: “Gosto de viajar pela região”. Não me incomodaria de ser seu motorista. Livramo-nos do carro e fomos caminhar pela cidade, tomando parte na interminável guerra de neve protagonizada pelo Marcelo e pelo Julio. A sensação de frio, apesar do zero grau, não era algo que nos fizesse sofrer muito.

Os filhos do Flavio caíam e molhavam-se na neve a todo o momento, mas, apesar de nossas advertências, não estavam nem aí e não sentiam nenhum desconforto com a meleca do chão da cidade. Fomos a um parque – cujo nome deve, tem que ser Dante Alighieri – e conversamos à beira de um lago perfeitamente congelado, enquanto o Flavio, apesar do sábado, atendia telefonemas que pareciam ser de clientes.

Fomos tirar fotos frente a uma estátua bastante diferente de Dante Alighieri, mais um monumento fascista dos muitos que há na Itália. Desta vez, o mau gosto ultrapassa todo o palatável e o Duce nos faz ver uma versão de Dante fazendo uma saudação fascista em direção ao resto da Europa. Eu e Flavio, tomados de compreensível entusiasmo histórico-ideológico, não resistimos àquela demonstração insofismável e inventiva da direita e imitamos o cara, fazendo uma pose de faria morrer de inveja certos blogs por aí.

Foi surpreendente quando o tal “cliente”, que telefonava a cada dez minutos desejando saber onde o Flavio se encontrava, chegou. Fomos a um bar esperá-lo. O Flavio direcionou-o e não aguardamos muito tempo. Chegou dizendo que vinha entregar uma encomenda ao grande Milton Ribeiro… Ele era, apenas e simplesmente, o Allan, do Carta da Itália, um verdadeiro e completo cronista, dono de uma das prosas mais finas da blogosfera e que mora em Piacenza. Ele chegou com um pequeno e valioso presente, um CD de Pino Daniele que provocou imediato entusiasmo na Claudia e incompreensão em mim. Até hoje este CD é polêmico aqui em casa. Eu e a Claudia gostamos muito e o ouvimos com freqüência. O Bernardo e a Bárbara o detestam; o Dado costuma a cantar Arriverá L´Aurora, num tom agudíssimo quando quer me irritar. Enfim, coisas do esporte bretão. O fato é que o Allan viera especialmente de Piacenza e eu fiquei felicíssimo com aquilo. Notem, na foto abaixo, além do Allan, a cara diabólica do Marcelo e o CD do Pino em primeiríssimo plano.

Fomos comer numa pizzeria e seguimos caminhando pela cidade, realizando gravações para a obra cinematográfica Milton Ribeiro na Itália, que está orgulhosamente instalada neste micro e agora no YouTube. No intervalo das complexas gravações, mais fotos.

De Trento fomos fazer uma visita à Vinícola e “Distilleria” Francesco Poli, em Santa Massenza di Vezzano. Degustamos vinhos e grappas absolatemente maravilhosas. Posso dizer que bebi um pouco além da conta, mas como não dirigir mesmo, tudo certo. Além de mim, as crianças demonstraram claramente que seu prazo de validade estava vencido. Compramos vinhos e lamentamos que nossas malas estivessem tão cheias. De outro modo, traríamos a produção da vinícola para Porto Alegre. Voltamos a Riva para realizarmos as tomadas finais do hoje clássico Milton Ribeiro na Itália, com a participação do inglês Allan Robert no papel de testemunha da assinatura do Kontracto de Flavio Prada com a Verbeat. Após firmarmos o compromisso, Flavio Prada e eu fomos tirar uma última foto. Ainda no papel do Almodóvar de Riva, ele ordenou que fizéssemos caras de idiotas. Vejam no resultado como ele é melhor ator.

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