A ascensão e a ascensão dos negociantes II

Parte II – A primeira ascensão dos negociantes

No dia seguinte à vitória na Libertadores, Tinga e Bolívar anunciaram suas saídas. Eu mal tinha dormido. Chegara em casa às 2 da manhã e, assim que pudera deitar minha campeã cabeça sobre o travesseiro, meu sobrinho começou a ligar perguntando sobre um ou outro endereço de gremistas amigos, pois estava inteiramente entregue à atividade de soltar rojões frente a suas casas. Porém, voltemos à nossa história, não sem antes dizer que, pela manhã, deixei a porta bater e fiquei lá fora, de pijama. Minha mulher já tinha saído e eu tive que pedir o celular de um passante a fim de ligar para minha sogra, suplicando-lhe que trouxesse a chave reserva. Fiquei no jardim da casa, lendo o jornal. Então, como vemos, o dia 17 de agosto de 2006 teve tantos sucessos quanto o dia anterior. Mais alguns dias e Rafael Sóbis e Jorge Wagner fizeram o mesmo que Tinga e Bolívar. Estava começando o desmonte, involuntário apenas no último caso.

Enquanto isso, a direção do clube, feliz com o título como todos nós, ia de festa em festa curtindo o ganho político e etílico da conquista. De forma ilógica, havia confiança de que os substitutos estavam dentro do Beira-rio. A torcida discordava e lembro de fortes críticas à diretoria no Fórum do extinto Portão 8. Isto acontecia antes do maior título do clube completar uma semana: o Inter ganhara a Libertadores e já anunciávamos – todos – o fim. E, pior, não estávamos paranoicos. É horrível quando somos obrigados a dar razão ao paranoico (como hoje temos que fazer diariamente com os DC’s, que atacaram Tite antes da letal assinatura de contrato).

As substituições aos vendidos, dentro de um time formado à base de contratações (como demonstramos na Parte I), não foram realizadas e apenas um deles tinha suplente à altura: Bolívar, que foi substituído com vantagem por Índio. A posição de Rafael Sóbis ficou em aberto, ou melhor, ficou com o imprevisível velhinho legal Iarley. Para a posição de Tinga, a torcida, o Fórum do Portão 8, os jornalistas e o mundo indicavam Guiñazu, do Libertad do Paraguai. Mas seu custo era de US$ 1 milhão, valor considerado alto para nossos padrões. Qual não foi nossa surpresa nossos negociantes adquirirem, por US$ 1,5 milhão, o obscuro Pinga, um meia-esquerda que atuara no Torino, Siena e Treviso, sempre na segunda divisão italiana e cujo maior mérito era o de ter deixado Kaká na reserva em uma das seleções sub-algo da CBF, fato que parece não ter traumatizado Kaká e sim Pinga, coitado. Ora, trocar Tinga por Pinga foi muito mais do que trocar uma consoante, foi uma tragédia. Mas outros diziam que seria Vargas, ex-volante do Boca Juniors, aquele que entraria no lugar de Tinga. Vargas era bom jogador, mas só era parecido com Tinga… Não, não o era em nada. Para piorar, o colombiano contou com a antipatia gratuita de Abel Braga, que chegou a criticá-lo publicamente sem ninguém entender o motivo… O câmbio mais ridículo foi o de Jorge Wagner por Hidalgo. Quando todos pensavam que estávamos no Paraguai buscando Guiñazu ou articulando a futura vitória de Lugo, estávamos trazendo o lateral-esquerdo do Libertad chamado Hidalgo. Ninguém que vira nossos jogos contra o time paraguaio dera-se conta de que ali estava um craque… Saía um lateral brilhante no apoio e entrava um que só sabia marcar e olhe lá. Ou seja, a direção, meramente para contentar a torcida, pegou qualquer jogador de segunda linha com a única intenção de silenciá-la. Éramos chatos incompreensivos que, uma semana após ganhar a Libertadores, reclamavam.

Enfim, em alguns dias perdemos metade do time, uma metade bem boa., diga-se. A participação no Brasileiro de 2006 já demonstrava claramente o equívoco. Sem Tinga e Jorge Wagner, ficamos com poucas opções de ataque. Dependíamos das subidas de Ceará, baseadas na força, dos lampejos de Fernandão e dos raros – mas quase sempre belos – gols de Iarley, o goleador legal. Aos poucos, a ausência de Jorge Wagner foi sendo suprida inesperadamente por Fabiano Eller, que vinha de trás com a bola, deixando o Hidalgo na cobertura e passando por cima dos volantes Edinho e Wellington Monteiro, ambos de passes medonhos. A coisa ainda funcionava precariamente e a participação num Campeonato Brasileiro de baixo nível técnico ainda foi razoável.

Chegamos ao Japão para disputar o Mundial sem um grande time, porém muito bem preparados, com grandes conhecimentos sobre o Barcelona. Com enorme disciplina tática e sorte, vencemos o Al Ahly e, com enorme disciplina tática e merecimento, ao Barcelona. Nova festa e mais motivos para imobilismo…

O notável na nova diretoria é que ela não dava sinais de ter visto decadência alguma no segundo semestre de 2006, vira apenas uma vitória e seguiu fazendo bobagens. Por pura desídia – preferiu tirar férias em vez de ir à Turquia -, deixou Fabiano Eller decidir seu destino sozinho junto ao clube que detinha seus direitos federativos. (Explico: os turcos têm uma milenar “cultura de negociação”, querem falar sentados e cara a cara até quando compramos um paninho qualquer, querem abraço e amizade ao final e ficam ofendidíssimos se não sentamos para negociar e tomar chá – sempre excelente – com eles. Se não tomamos chá, não vendem nada. Onde estava o Império Otomano num momento desses?) Igualmente, ignorou a importância do multi-campeão Paulo Paixão em nosso vestiário e deixou-o ir para Rússia. Da forma mais arrogante imaginável, confiou na capacidade de renovação do próprio clube – o qual, como mostramos na Parte I, não subsiste de suas divisões inferiores – e tivemos que ouvir, derrota após derrota, a falta de conhecimento futebolístico de nosso presidente pronunciar-se:

– Somos o Campeão do Mundo, não precisamos de reforços. Temos grupo.

Discurso que, semanas depois, foi mudado para:

– Não entendemos o motivo de nossas derrotas, 90% do time Campeão do Mundo está aí…

Qualquer um sabe que, a cada início de temporada, há que se fazer algumas mexidas motivadoras. Jogador de futebol é assim. Então, Vitório Píffero, é culpa sua se o Inter do começo de 2007 espantava-se com limitações intransponíveis – “limitações intransponíveis” significam um Grêmio pouco respeitador no Gauchão e uma cômica Libertadores. Faltava um Paulo Paixão para evitar as panelinhas que tanto atrapalham. Erraste também, Vitório, nisto: se a saída de Jorge Wagner foi compensada por Fabiano Eller, a saída deste não teve substituto, ou melhor, o plano era substituí-lo por Rafael Santos… Erraste, Píffero, ao deixar tua arrogância tornar-te surdo à torcida, que sempre pediu reforços. Erraste também ao não te livrar dos jogadores protegidos por Abel ou por empresários influentes no clube: poderias ter começado por Michel ou pelo recém valorizado Gabiru ou talvez por Clemer, merecedor desde aquela época de uma aposentadoria dourada… Erraste mais ainda ao deixar que ele trouxesse mais amigos como o ridículo Jean, que foi inscrito na Libertadores sem nunca ter jogado, como se fosse um craque indiscutível, desses que entram como uma luva em qualquer time…

E, para matar de vez com nossas pretensões, tornou-se finalmente claro um erro cometido desde a época de Fernando Carvalho: os contratos longos para qualquer perna-de-pau. O Inter sempre se orgulhou de não perder jogadores de graça para o exterior. Casos como o de Ronaldinho Gaúcho nunca aconteceram no Beira-Rio e isto era motivo de ufanismo. Só que a profilaxia foi exagerada. Na metade de 2007, o Inter mantinha 66 jogadores sob contrato. Todos recebiam bem e em dia. Só que a maioria destes jogadores jamais revelou-se apta para ser titular. Era um enorme grupo de come-dormes (ou seria comes-dormes ou comem-dormem?…) que, ao receberem propostas de Figueirense e Goiás, como aconteceu, não fecharam seus empréstimos porque ganhariam menos e ainda tinham quatro ou cinco anos de contrato com o grande Campeão do Mundo. Diego, Mossoró, Ramón, Gustavo, Leo, Chiquinho e outros (muitos outros) são exemplos de atletas que não passaram de promessas e que ficaram meses confortavelmente instalados e com salários em dia. É difícil negociar jogadores ruins, caros e com longos contratos a cumprir. Imaginem qual era o nível do Inter B se o Inter A mantinha Michel e Gabiru em suas fileiras! Não chega a ser surpreendente que só haja negócios para quem é visto em campo, atuando bem. Atualmente, nem os coreanos são trouxas. Houve muita confiança nos come-dormes… (ou o correto seria “naqueles que, exclusivamente, comiam e dormiam”?) Só que, como diz o Barão de Itararé, “de onde menos se espera, daí mesmo é que não sai nada”. Contratos longos é para quem joga muito e não para todo o Inter B, que hoje viaja pelo interior jogando a segunda divisão gaúcha a fim não ficar parado.

Quando chegamos a 16 de agosto de 2007, éramos um amontoado de lembranças.

Publicado em 11 de setembro de 2008 no Impedimento.

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A ascensão e a ascensão dos negociantes I

Parte I – Ascensão

Desejo fazer um registro histórico do que aconteceu com o Internacional desde julho de 2004 até sua atual decadência. Minha intenção é tentar entender e explicar como o Inter chegou a Campeão da Libertadores – seu auge como time de futebol -, a Campeão Mundial – já em decadência técnica -, até chegar à situação superavitária e sem perspectivas futebolísticas de hoje, apenas vinte meses após sua maior conquista. Escolho a data de julho de 2004 para iniciar minha análise e, especificamente, o Gre-Nal do primeiro turno do Brasileiro daquele ano, pois foi ali que Fernandão estreou, marcando o Gol 1000 em Gre-Nais.

Até 2005, o Inter passou mais de quinze anos como o nono ou décimo time do país. Chegamos ao segundo lugar em 1997 e quase caímos para a segunda divisão em 1999 e em 2002, mas, em média, sempre ficávamos por detalhe fora dos oito classificados para as finais do Campeonato Brasileiro. Lembram que os gremistas diziam – com razão – que nadávamos, nadávamos e morríamos na praia? Foram muitos anos nesta situação de décimo time brasileiro. Tinha para mim que, apesar de nossa colocação do ranking da CBF, era torcedor de um time mediano. Hoje, não por coincidência, estamos na 11ª colocação.

Porém, naquele ano de 2004, o presidente Fernando Carvalho – maior criador e vilão desta história – iniciou uma pequena revolução. Tendo recebido em 2002 um clube com R$ 50 milhões em dívidas e sem jogadores, ele finalmente estava conseguindo manter os credores tranqüilos e começava a tomar atitudes anormais em uma instituição tão pacata como a nossa (e não por desejo da torcida!). Sem grande alarde, Fernando Carvalho seguiu vendendo nossas revelações jovens (Nilmar, Daniel Carvalho, etc), porém, do outro lado, principiou a montagem de uma equipe com jogadores de mais de 25 anos, com experiência na Europa e que, afinal, eram diferenciados ou, no mínimo, experientes.

A equipe que recebeu a contratação de Fernandão naquele Gre-Nal de julho de 2004 não era nada extraordinária: Clemer; Sangaletti, Wilson (Fernandão, int.) e Vinícius; Bolívar, Edinho, Marabá, Élder Granja e Alex; Rafael Sobis (Dauri, 43/2) e Danilo.

Os colorados sabem o quanto é curioso ver Bolívar na ala direita, Elder Granja no meio de campo e Alex na ala esquerda, mas era assim. Fernandão, fato hoje esquecido por muitos gaúchos, fracassara na Europa, rolando de um time francês para outro (Olimpique, Toulouse, Paris St. Germain…), mas chegou jogando demais em Porto Alegre. Seu segundo semestre de 2004 foi espetacular.

Mesmo assim, no Brasileiro de 2004, o Inter manteve sua característica de ficar lá pelo 8º e 10º lugares. Porém, ao final da temporada, quando foi desclassificado pelo Boca Juniors na Copa Sul-americana, o time-base já tinha uma cara mais reconhecível: Clemer; Wilson, Edinho e Sangaletti; Élder Granja, Marabá, Gavilán, Fernandão e Chiquinho; Rafael Sobis e Diego (Fernandão, lesionado, não jogou contra o Boca, mas era o titular; jogou Wellington).

O começo de 2005 foi o momento mais marcante para a formação do campeão da Libertadores do ano seguinte. Após complicadas negociações, trouxemos Jorge Wagner, Tinga e Índio. Seus perfis? Ora, os mesmos de Fernandão: Tinga, de 27 anos, voltava do Sporting de Lisboa onde era reserva; Jorge Wagner, também de 27 anos, fugia do gelado Lokomotiv de Moscou e Índio era o único não “europeu”, mas chegava aqui com 30 anos e com um invejável currículo no Juventude de Caxias. Naquele início daquele ano, o time mudava sua fotografia para melhor. Em maio daquele ano, vencemos – como costumávamos fazer – o Atlético-PR em Curitiba por 3 x 1 e o time já era este: Clemer; Élder Granja, Índio, Wilson e Jorge Wagner; Edinho, Gavilán, Tinga e Fernandão; Rafael Sóbis e Gustavo.

Na metade do ano, Fernando Carvalho seguiu em sua política e trouxe do México Iarley, também na faixa dos 30 anos e ex-jogador do Boca Juniors. Recebeu Perdigão e Ediglê que, se não são craques, chegaram aqui com 28 anos e muitos times da bagagem e Ricardinho, vindo do Paulista de Jundiaí, aos 29 anos. Todos experientes. Havia um projeto claro. Nossas contratações não eram de garotos, era de gente com rodagem, de jogadores que não se apavorariam com vaias ou ambientes hostis.

Observem pela escalação como a formação de nosso grande time veio não através de atletas formados no Beira-rio, mas por gente vinda de fora. Na partida em que Márcio Resende de Freitas nos roubou – e depois desculpou-se… – em São Paulo, contra o Corinthians, a formação de nossa equipe era a seguinte: Clemer; Élder Granja, Edinho, Ediglê e Alex; Gavilán, Perdigão (Márcio Mossoró), Tinga e Ricardinho (Wellington); Fernandão (Iarley) e Rafael Sobis. Jorge Wagner não jogou esta partida por estar punido.

Na virada do ano de 2005 para 2006, não precisávamos de quase nada. Era só impedir que o grupo se desfizesse. Perdemos apenas um jogador: Gavilán, para o Newell`s Old Boys de Rosário. Mesmo assim, contratamos um que mostrou-se fundamental – Fabiano Eller, 28 anos -, um que foi útil – Fabinho, 30 anos -, e o mais importante, Adriano Gabiru… Estava pronto o time.

Quando, no dia 16 de agosto de 2006, vencemos a Libertadores da América, a equipe era esta: Clemer; Índio, Bolívar e Fabiano Eller; Ceará, Edinho, Alex, Tinga e Jorge Wagner; Fernandão e Rafael Sóbis.

Ou seja, éramos uma equipe formada por

– Dois ex-juniores: Edinho e Sóbis;

– Sete jogadores muito bem pagos em razão de suas biografias, Clemer, Índio, Eller, Alex, Tinga, Jorge Wagner e Fernandão; e

– Dois jogadores baratos, “apostas” mesmo: Bolívar e Ceará.

Quais eram, então, os principais pontos da política de formação de grupo de Fernando Carvalho:

1. Contratações de jogadores experientes, baseadas em seu enorme conhecimento de mercado e de futebol.

2. Poucas contratações caras de jogadores jovens. E a maioria das que foram feitas não deram certo. Principais casos: Márcio Mossoró, Rentería e Leo. Apenas uma funcionou: Alex, contratado em 2003.

3. Contratos longos para lucrar na venda de jogadores. Tal política deu certo para os melhores jogadores, mas revelou-se catastrófica ao incluir um monte de “promessas” em contratos que durariam quatro ou cinco anos. Estamos pagando um monturo de ruindades até hoje. Por quê? Porque ninguém os quer, claro, e porque as multas rescisórias, que existem para beneficiar o clube, neste caso o prejudica. São contratos que serão cumpridos sem resultados até seu último dia.

4. Investimentos num Inter B e tentativas de formar jogadores no clube. Nada disso funcionou. Em média, formamos apenas um bom jogador por ano. 2004 foi o ano em que conhecemos Sóbis; 2005 foi o ano de não conhecer ninguém; em 2006 apareceu Renan como goleiro confiável; em 2007, os novos dirigentes passaram o papel de “grande estrela” a um menino de 17 anos e neste ano, novamente nada.

Ou seja, o Inter vencedor foi formado convencionalmente pela contratação jogadores bons e experientes que haviam fracassado na Europa ou que estavam em clubes menores e não através de suas divisões inferiores, cuja contribuição, ao menos recentemente, é uma espécie de mito. Quando paramos de contratar bem e seguimos vendendo, o time acabou, mesmo com um grupo de 66 profissionais que tínhamos em maio de 2007. Sim, sessenta e seis atletas contratados em maio de 2007.

Mas estou antecipando fatos. A decadência começou na gestão do próprio Fernando Carvalho, no dia 17 de agosto de 2006, um dia após a conquista da América. Faltavam 4 meses e meio para seu mandato acabar e, apesar de haver o Campeonato Mundial em dezembro, havia a necessidade de realizar lucros. Na semana que vem, veremos como pode ser rápida a destruição de uma grande equipe de futebol.

Publicado no Impedimento em 4 de setembro de 2008.

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Maria, de Leonard Bernstein (como nunca dantes ouvida)

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Meus livros (Mis libros), de Jorge Luis Borges

Meus livros (Mis libros), de Jorge Luis Borges

Mis libros (que no saben que yo existo)
son tan parte de mí como este rostro
de sienes grises y de grises ojos
que vanamente busco en los cristales
y que recorro con la mano cóncava.
No sin alguna lógica amargura
pienso que las palabras esenciales
que me expresan están en esas hojas
que no saben quién soy, no en las que he escrito.
Mejor así. Las voces de los muertos
me dirán para siempre.

.oOo.

Os meus livros (que não sabem que existo)
São uma parte de mim, como este rosto
De têmporas e olhos já cinzentos
Que em vão vou procurando nos espelhos
E que percorro com a minha mão côncava.
Não sem alguma lógica amargura
Entendo que as palavras essenciais,
As que me exprimem, estarão nessas folhas
Que não sabem quem sou, não nas que escrevi.
Melhor assim. As vozes desses mortos
Me falarão para sempre.

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A estranha abordagem de Knausgård a Hitler

A estranha abordagem de Knausgård a Hitler

A tradução deste artigo parte mais de minha curiosidade do que pela necessidade de enquadrar Knausgård num escaninho de incorreção política. Tinha curiosidade pela origem do título da série “Minha Luta” e fui procurar textos a respeito. Como a autora do artigo — bastante equilibrado, apesar de perplexo –, eu absolutamente não recuo em minha admiração pelo autor. 

Por Maja Hagerman, no NordEuropa em 22 de maio de 2017.

Esta semana, a parte final da autobiografia de Karl Ove Knausgård, Min Kamp VI, será publicada em alemão como Kämpfen. Neste romance, há um longo ensaio sobre Hitler e o nazismo. Foi criticado na Escandinávia, por mim e por outros, porque Knausgård deseja retratar Hitler como um homem comum, ao mesmo tempo omitindo fatos importantes.

Deixe-me começar dizendo o quanto gosto de ler Knausgård quando ele descreve sua própria vida. Há uma presença nervosa e enérgica mesmo nos dias mais cinzentos e comuns, quando ele escreve sobre suas atividades diárias em Malmö, na Suécia, nos anos de 2009 a 2011, como pai de três filhos pequenos e com companheira: é uma leitura tremenda. Mas eu realmente não gosto da maneira como ele escreve sobre Hitler e o nazismo no ensaio de mais de 400 páginas, inserido no meio do romance.

Obviamente, não se trata apenas de história. Muitas coisas acontecendo em nossos dias ressoam assustadoramente nos escritos de Knausgård.

Quando Panfletos de Violência se Tornam Realidade

No exato momento em que o romance se passa em Malmö, há — na própria cidade não ficcional — um assassino em série nas ruas. Mas isso nem é mencionado no livro, pelo que posso ver. Quando Karl Ove no romance vai para o parquinho com seus filhos, existe — na vida real de Malmö — um homem limpando suas armas não muito longe. Ele mira em completos desconhecidos em qualquer lugar e atira para matar. Mas ele apenas direciona sua visão a laser para aqueles que parecem estranhos a seus olhos. O assassino em Malmö é um nazista e, para ele, a guerra racial tem um significado mais profundo; é uma espécie de cruzada. Ninguém sabe quantas pessoas ele tentou matar entre 2003 (época do primeiro assassinato conhecido) e novembro de 2010, quando foi finalmente preso pela polícia. Ele foi condenado por dois assassinatos e pela tentativa de assassinato de outras oito pessoas. A Filosofia Teutônica estava em seu computador no momento de sua prisão. [i]

O título da autobiografia de Knausgård é Min kamp em norueguês e sueco; uma tradução literal em alemão seria Mein Kampf. Knausgård está brincando de forma sofisticada com espelhos e identidades na sexta e última parte de sua obra. Seu personagem principal no romance é Karl Ove Knausgård, que está escrevendo um livro com o mesmo título daquele que o leitor está segurando. Neste livro, há uma longa sequência de não ficção de várias centenas de páginas sobre Hitler e o nazismo. Mas é o verdadeiro autor ou o personagem autor do romance que é o seu escritor? Isso é ficção ou realidade? Não importa qual seja, o texto está lá. O texto existe na realidade — e afeta a realidade.

No romance, lemos sobre como os primeiros escritos de Knausgård — sobre ele mesmo e outras pessoas — começam a influenciar sua vida e a vida de outras pessoas, quando os textos são publicados como autobiografia. Isso também afeta a percepção do texto. O personagem do autor — Knausgård no romance — observa cuidadosamente todos esses reflexos no corredor de espelhos que ele mesmo criou com seu texto.

E ele faz uma comparação com o Mein Kampf de Hitler. Ele discute como a percepção daquele texto mudou após o Holocausto e a guerra, uma vez que sua mensagem monstruosa se tornou realidade. Knausgård pergunta: mas quem era Hitler quando escreveu o livro quinze anos antes? Ele encontra um jovem sério e idealista, pronto para ir a extremos na defesa de suas ideias, um jovem com forte apego à mãe, mas com medo das mulheres e do contato humano mais próximo, o que leva o autor a pensar que Hitler era na verdade, um pouco como o próprio Karl Ove quando jovem.

Knausgård tem um sentimento de fascínio, um sentimento que deseja examinar. O nazismo também está presente na história de sua família; ele encontra um distintivo de lapela nazista entre as coisas deixadas após a morte de seu pai e descobre que a avó tinha uma cópia antiga do Mein Kampf em um baú na sala de estar. Ela não se livrou dele depois da guerra.

Knausgård explica (no jornal norueguês Dagsavisen, 10 de maio de 2016) que deseja compreender o nazismo examinando-o com sua própria empatia e sentimentos. Assim, ele se deixa seduzir pelos ambientes e explosões emocionais fundamentais para o nazismo.

Uma história sobre um homem comum?

Há uma passagem importante no livro em que ele permite que seu próprio texto se confunda com o de Hitler. Aqui, os leitores finalmente obtêm uma explicação de sua surpreendente escolha de nome para o ciclo autobiográfico de romances. Knausgård escreve: “Adolf Hitler era um homem comum; quando o escreveu, não matou ninguém, não ordenou a ninguém que matasse, não roubou nem incendiou nada ”. [ii]

Isso é uma coisa estranha para Knausgård escrever. Hitler era um criminoso quando escreveu a primeira e mais conhecida parte de Mein Kampf. Enquanto redigia seu trabalho, ele estava cumprindo pena em uma prisão por um crime muito grave; ele havia sido condenado por alta traição e uma tentativa de golpe de estado. Em 8 de novembro de 1923, quando milhares de pessoas se reuniram em um bierkeller de Munique para ouvir o governo bávaro falar sobre a situação política, Hitler deixou 600 de seus homens da SA cercarem o bierkeller e bloquearem a entrada enquanto ele disparava sua arma, atirando no teto e gritando: “A revolução nacional estourou!”. Sob a mira de uma arma, os membros do governo bávaro foram forçados a deixar o palco e foram feitos reféns. Mas no dia seguinte o “Beer Hall Putsch” foi derrotado pela polícia em uma batalha que deixou 19 mortos. Não sei por que Knausgård escreveu que o líder desse partido violento e antidemocrático que liderou o golpe era um homem inocente. Mas o texto esta aí.

Knausgård está principalmente interessado no jovem Hitler. Ele lida longamente com eventos que ocorreram mais de dez anos antes de Hitler escrever Mein Kampf. Mas ele tem muito pouco a dizer sobre as ações de Hitler um ano antes. Ele discute o sucesso de Hitler como orador público e se pergunta qual pode ser o segredo de um orador que pode hipnotizar as massas. Mas ele não tem muito a dizer sobre o fato de que esse envolvimento político e agitação também incluíram violência. O tempo de Hitler com o “Kampfbund” quase não é mencionado, embora ele tenha sido nomeado líder de todos os corpos armados privados que marchavam nas ruas de Munique, demonstrando sua força e sua capacidade de introduzir violência na política, no outono de 1923. Milhares de combatentes organizados, não apenas as SA, mas uma coalizão de vários “Kampfbünde” nacionalistas diferentes, estavam treinando suas habilidades de combate e organizando manifestações armadas nas ruas e nos parques de Munique, para assustar e provocar o governo da Baviera. Isso não é explicado adequadamente na obra de Knausgård.

Knausgård quer que entendamos que o nazismo não se destacou como obviamente monstruoso ou maligno no início. Esta é uma abordagem perigosa, pois abre o caminho para uma espécie de cegueira para o que a ideologia racial realmente é e que efeito pode ter na mente das pessoas. A violência organizada fez parte do movimento nazista desde o início. A violência foi fundamental, e a ideologia, em seu cerne, uma explicação da legitimidade da guerra racial. Isso significava que você tinha que se livrar dos velhos padrões éticos e impor novos – com base na suposição explícita de que as vidas humanas têm valores diferentes .

Knausgård escreve que os alemães abraçaram o nazismo como se o amassem, e que Hitler acendeu o fogo em todos que o ouviram falar. Mas isso não é verdade: muitas pessoas achavam o nazismo repelente na década de 1920. Omitir-se de mencionar isso equivale, de certa forma, a “elevá-lo”, transformá-lo em algo sedutor. A verdade é que Hitler, após sete anos como líder do partido e orador público, não acendeu o fogo em mais do que uma mera fração dos que o ouviram. Na eleição geral de maio de 1928, o NSDAP obteve apenas 2,6% dos votos. E, até a quebra do mercado de ações em 1929, a passagem dos nazistas ao poder não era de forma alguma evidente. No entanto, acontecimentos dramáticos em todo o mundo assustaram as pessoas e isso levou ao sucesso do NSDAP nas eleições. Hitler obteve 30% dos votos na primeira eleição presidencial em 1932, e no segundo e último segundo turno, entre apenas dois candidatos, obteve 36%. Isso é menos da metade dos votos.

Fascinado, Knausgård descreve um entendimento profundo e misterioso entre as massas e Hitler. Mas minha impressão é que ele reproduz algo que viu em imagens de propaganda nazista de comícios partidários, etc., produzidas depois que os nazistas chegaram ao poder em 1933, quando a democracia foi abolida e os oponentes políticos foram colocados atrás das grades, assassinados ou assustados silêncio.

Ao descrever Hitler como um homem comum, Knausgård deseja desafiar o leitor. No entanto, ele também contribui para minar os limites e tabus que cercam essas ideias perigosas. A escrita afeta a realidade; texto e vida estão interligados. Um dos autores mais apreciados da Escandinávia opta por ter uma atitude estranha em relação à verdade sobre Hitler — ao mesmo tempo em que o nazismo, como ideologia por trás da guerra racial, encontra novos seguidores na Europa.

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Este texto de Maja Hagerman é uma versão editada de um artigo escrito para o jornal norueguês Klassekampen e reflete a visão do autor sobre o livro de Karl Ove Knausgård.

Maja Hagerman é uma autora, historiadora, jornalista e produtora de TV sueca que vive em Estocolmo (www.majahagerman.se).

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[i] Um livro sobre o serial killer Peter Mangs em Malmö, Suécia, é Raskrigaren (2015) de Mattias Gardell.

[ii] “[…] Adolf Hitler, quando o escreveu, era um homem comum, não havia assassinado ninguém, não havia ordenado o assassinato de ninguém, não havia roubado nada nem incendiado nada.” Página 481 na edição norueguesa do Min kamp 6, página 480 na edição sueca.

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A Descoberta da Escrita (Minha Luta 5), de Karl Ove Knausgård

A Descoberta da Escrita (Minha Luta 5), de Karl Ove Knausgård

A Descoberta da Escrita é o quinto volume da série autobiográfica Minha Luta, de Karl Ove Knausgård.

(A propósito, a Companhia das Letras acaba de anunciar a publicação do sexto e último volume, chamado O Fim, para a segunda metade deste mês. O novo livro tem mais de mil páginas, enquanto que este que acabo de ler tem 628… Sim, os livros foram crescendo).

A Descoberta da Escrita é o melhor que li até agora. Com texto permanentemente intenso e envolvente, Knausgård conta ao mesmo tempo a história de sua luta para tornar-se escritor, sua vida amorosa e familiar e as tentativas de livrar-se de certas tendências absolutamente delinquentes e autodestrutivas que se manifestavam cada vez que bebia demais, o que ocorria com frequência.

Sem spoilers, digo que aos 20 anos Knausgård ingressou numa oficina literária como o mais jovem membro. Seus textos era rejeitados ou ignorados. A bebida e suas atitudes não melhoravam muito as coisas. Participar daquele grupo era uma grande honra para um jovem ambicioso. Ele se juntava a um grupo de escritores mais velhos, alguns já publicados, em uma classe de elite, mas… A ideia de uma luta travada internamente ganha corpo neste romance. É um aprendizado angustiante e tenso, cheio de leituras e tentativas a maioria das vezes fracassadas. Todos os escritores em algum momento pensam que são uma fraude, que o talento que pensam possuir é apenas uma ilusão — provavelmente porque, para a maioria, é a realidade. É raro um jovem escritor não se perguntar se o inferno da mediocridade tomará conta de sua vida definitivamente.

Este volume nos leva dos 19 anos até a dissolução de seu primeiro casamento, 14 anos depois. Trata de bebedeiras, constrangimento social, das bandas de rock das quais participou e do bloqueio criativo do escritor, sua única, constante e real ambição.

Ao mesmo tempo em que procura sua voz, temos toda a vida amorosa de Karl Ove. Bastante movimentado é seu amor por Tonje, uma doce figura pela qual ele é apaixonado. Como disse, ele absolutamente ama Tonje, mesmo de seu modo egoísta que deixa tudo de lado para tentar escrever. Aliás, Knausgård é o escritor que fez o egoísmo trabalhar a seu favor.

O limbo que A Descoberta da Escrita nos demonstra não é uma exclusividade de Karl Ove, ele é familiar para todos nós. É aquele período da juventude em que tudo parece uma questão de vida ou morte, e um enorme período de tempo é gasto querendo, planejando e esperando sexo, sensações ou inspiração literária.

Como sempre, temos as melhores descrições da natureza — efetivamente lindas — e as narrativas impecáveis de casos amorosos que dão mais ou menos certo, mais ou menos errado. E que nos encantam.

Um grande livro!

Recomendo!

Tonje e Karl Ove

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Poème symphonique for 100 metronomes, de György Ligeti

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100 Livros Essenciais da Literatura Mundial

100 Livros Essenciais da Literatura Mundial

Há algumas semanas, li a lista da extinta revista Bravo sobre os 100 livros essenciais da literatura mundial. A edição vendeu muito, disse o dono da banca de revistas meu vizinho. No final da revista, há uma página de Referências Bibliográficas de razoável tamanho, mas o editor esclarece que a maior influência veio dos trabalhos de Harold Bloom.

Vamos à lista? Depois farei alguns comentários a ela.

A lista é a seguinte (talvez haja erros de digitação, talvez não):

1. Ilíada, Homero
2. Odisseia, Homero
3. Hamlet, William Shakespeare
4. Dom Quixote, Miguel de Cervantes
5. A Divina Comédia, Dante Alighieri
6. Em Busca do Tempo Perdido, Marcel Proust
7. Ulysses, James Joyce
8. Guerra e Paz, Leon Tolstói
9. Crime e Castigo, Dostoiévski
10. Ensaios, Michel de Montaigne
11. Édipo Rei, Sófocles
12. Otelo, William Shakespeare
13. Madame Bovary, Gustave Flaubert
14. Fausto, Goethe
15. O Processo, Franz Kafka
16. Doutor Fausto, Thomas Mann
17. As Flores do Mal, Charles Baldelaire
18. Som e a Fúria, William Faulkner
19. A Terra Desolada, T.S. Eliot
20. Teogonia, Hesíodo
21. As Metamorfoses, Ovídio
22. O Vermelho e o Negro, Stendhal
23. O Grande Gatsby, F. Scott Fitzgerald
24. Uma Estação No Inferno,Arthur Rimbaud
25. Os Miseráveis, Victor Hugo
26. O Estrangeiro, Albert Camus
27. Medéia, Eurípedes
28. A Eneida, Virgilio
29. Noite de Reis, William Shakespeare
30. Adeus às Armas, Ernest Hemingway
31. Coração das Trevas, Joseph Conrad
32. Admirável Mundo Novo, Aldous Huxley
33. Mrs. Dalloway, Virgínia Woolf
34. Moby Dick, Herman Melville
35. Histórias Extraordinárias, Edgar Allan Poe
36. A Comédia Humana, Balzac
37. Grandes Esperanças, Charles Dickens
38. O Homem sem Qualidades, Robert Musil
39. As Viagens de Gulliver, Jonathan Swift
40. Finnegans Wake, James Joyce
41. Os Lusíadas, Luís de Camões
42. Os Três Mosqueteiros, Alexandre Dumas
43. Retrato de uma Senhora, Henry James
44. Decameron, Boccaccio
45. Esperando Godot, Samuel Beckett
46. 1984, George Orwell
47. Galileu Galilei, Bertold Brecht
48. Os Cantos de Maldoror, Lautréamont
49. A Tarde de um Fauno, Mallarmé
50. Lolita, Vladimir Nabokov
51. Tartufo, Molière
52. As Três Irmãs, Anton Tchekov
53. O Livro das Mil e uma Noites
54. Don Juan, Tirso de Molina
55. Mensagem, Fernando Pessoa
56. Paraíso Perdido, John Milton
57. Robinson Crusoé, Daniel Defoe
58. Os Moedeiros Falsos, André Gide
59. Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis
60. Retrato de Dorian Gray, Oscar Wilde
61. Seis Personagens em Busca de um Autor, Luigi Pirandello
62. Alice no País das Maravilhas, Lewis Caroll
63. A Náusea, Jean-Paul Sartre
64. A Consciência de Zeno, Italo Svevo
65. A Longa Jornada Adentro, Eugene O’Neill
66. A Condição Humana, André Malraux
67. Os Cantos, Ezra Pound
68. Canções da Inocência/ Canções do Exílio, William Blake
69. Um Bonde Chamado Desejo, Teneessee Williams
70. Ficções, Jorge Luis Borges
71. O Rinoceronte, Eugène Ionesco
72. A Morte de Virgilio, Herman Broch
73. As Folhas da Relva, Walt Whitman
74. Deserto dos Tártaros, Dino Buzzati
75. Cem Anos de Solidão, Gabriel García Márquez
76. Viagem ao Fim da Noite, Louis-Ferdinand Céline
77. A Ilustre Casa de Ramires, Eça de Queirós
78. Jogo da Amarelinha, Julio Cortazar
79. As Vinhas da Ira, John Steinbeck
80. Memórias de Adriano, Marguerite Yourcenar
81. O Apanhador no Campo de Centeio, J.D. Salinger
82. Huckleberry Finn, Mark Twain
83. Contos de Hans Christian Andersen
84. O Leopardo, Tomaso di Lampedusa
85. Vida e Opiniões do Cavaleiro Tristram Shandy, Laurence Sterne
86. Passagem para a Índia, E.M. Forster
87. Orgulho e Preconceito, Jane Austen
88. Trópico de Câncer, Henry Miller
89. Pais e Filhos, Ivan Turgueniev
90. O Náufrago, Thomas Bernhard
91. A Epopéia de Gilgamesh
92. O Mahabharata
93. As Cidades Invisíveis, Italo Calvino
94. On the Road, Jack Kerouac
95. O Lobo da Estepe, Hermann Hesse
96. Complexo de Portnoy, Philip Roth
97. Reparação, Ian McEwan
98. Desonra, J.M. Coetzee
99. As Irmãs Makioka, Junichiro Tanizaki
100 Pedro Páramo, Juan Rulfo

A lista é ótima, mas há critérios bastante estranhos.

Se não me engano, só três semideuses têm mais de um livro na lista: Homero, Shakespeare e Joyce. OK, está justo.

No restante, é uma lista mais de autores do que de livros e muitas vezes são escolhidos os livros mais famosos do autor e dane-se a qualidade da obra. Se a revista faz um gol ao escolher Doutor Fausto como o melhor Thomas Mann, erra ao escolher Crime e Castigo dentro da obra de Dostoiévski – Os Irmãos Karamázovi e O Idiota são melhores; ao escolher Guerra e Paz de Tolstói – por que não Ana Karênina? -; na escolha de O Complexo de Portnoy, de Philip Roth; que tem cinco romances muito superiores, iniciando por O Avesso da Vida (Counterlife) e ainda ao eleger Retrato de Uma Senhora na obra luminosa de Henry James. Li por aí reclamações análogas sobre as escolhas de Brás Cubas e não de Dom Casmurro, de Cem Anos de Solidão ao invés de O Amor nos Tempos do Cólera e de As Cidades Invisíveis de Calvino, mas acho que é uma questão de gosto pessoal e não de mérito. Ah, e é absurda a presença do bom O Náufrago e não dos imensos e perfeitos Extinção, Árvores Abatidas e O Sobrinho de Wittgenstein na obra de Thomas Bernhard.

Saúdo a presença de grandes livros pouco citados como Tristram Shandy, obra-prima de Sterne muito querida deste que vos escreve, de Viagem ao Fim da Noite, de Céline, de A Consciência de Zeno, genial livro de Ítalo Svevo, de O Deserto dos Tártaros (Buzzati) e do incompreendido e brilhante Grandes Esperanças, de Charles Dickens, de longe seu melhor romance.

Porém é estranha a escolha de A Comédia Humana, de Balzac. Ora, a Comédia são 88 romances! Não vale! Estranho ainda mais a presença de autores menores como Kerouac e Malraux, além do romance que não é romance — ou do romance que só é romance em 100 de suas 1200 páginas: O Homem sem Qualidades, de Robert Musil.

Também acho que presença de McEwan e de Coetzee prescindem do julgamento do tempo, o que não é o caso de alguns ausentes, como Lazarillo de Tormes, de Chamisso com seu Peter Schlemihl, de George Eliot com Middlemarch, de Homo Faber de Max Frisch e de O Anão, de Pär Lagerkvist, só para citar os primeiros que me vêm à mente. E, se McEwan e Coetzee esttão presentes, por que não Roberto Bolaño?

E Oblómov??? Não poderia ficar de fora!

(O Bender escreve um comentário reclamando a ausência de Grande Sertão, Veredas, de Guimarães Rosa. É claro que ele tem razão! Esqueci. Coisas da idade.)

Com satisfação pessoal, digo que este não-especialista não leu apenas Os Miseráveis, o livro de Blake e os de Lautréamond, Mallarmé, Ovídio e Hesíodo. Isto é, seis dos cem. Tá bom.

P.S.- Milton mentiroso! Não li Finnegans também!

Este post foi publicado em 13 de dezembro de 2007, mas quase nada mudou.

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Processo mundial de enlouquecimento

O mundo começou a enlouquecer em grande escala quando Bob Dylan ganhou o Nobel (de Literatura) em outubro de 2016. Três semanas depois, Trump foi eleito presidente trazendo uma onda planetária de loucura. Depois vieram uns golpes, uma eleições estranhas no leste europeu, Bolsonaro, a invasão evangélica, a pandemia e, quando parecia que íamos começar a reverter a coisa, bammmm, Trump está quase reeleito. Podiam dar um Nobel pro Roberto Carlos (de Química, talvez) e fechar o ciclo, né?

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Bilhete

Meus queridos. Papai saiu cedo para trabalhar e deixou vocês dormindo. Vocês estavam tão lindos e tranquilos nas camas que achei sacanagem acordar. Volto ao meio-dia e trinta para buscá-los. Enquanto isso, espero que vocês sobrevivam. Sofia, sei que vais acordar primeiro, ali pelas 8h30. Olha para o relógio e confere. Guria, olha agora! Teus iogurtinhos estão na geladeira, à altura da tua cabeça, do lado esquerdo. Bebe no mínimo dois. Tenta também COMER alguma coisa, dizem que é importante. Há pães de ontem à noite sobre a mesa da cozinha e outros novinhos no freezer, é só deixar um deles por 30 segundos no microondas e estará perfeito para receber e desmanchar a manteiga. Hummm. A geleia de morango está também na geladeira, pega a que não for light. Se tiveres tema para fazer, por favor, faze-o. Não deixa a TV com o som muito alto para não acordar teu irmão e, quando ele acordar, não briga com ele. Lembra-te de que ele é maior e que eu não estarei aí para te defender. O melhor mesmo é que fiques brincando com o pensamento ou no computador. Poderias também aproveitar o tempo e o silêncio da casa para ler um pouquinho, não, dona Sofia? Quando eu era pequeno, adorava acordar para acompanhar o movimento do sol. O sol entrava por minha janela de manhã. Eu colocava um lápis no chão, exatamente sobre a fronteira entre sol e sombra. E lia; lia umas dez páginas e depois conferia quantos centímetros a luz do sol tinha caminhado em seu percurso para fora. Eu estudava no turno da tarde e ficava no quarto até que o sol o abandonasse inteiramente. Aí sim, podia fazer outra coisa. Não sei se isso acontece aqui em casa, não lembro, não faço mais isso e que sei eu da orientação solar? Coisa nenhuma. Sou um adulto chato. No máximo, sei que nosso apartamento tem boa orientação, pois ainda não morremos assados nem congelados em nossa cidade maluca. Quando o teu irmão acordar, mostra este recado a ele, ele é muito desatento. Felipe, teus toddynhos estão ao lado dos iogurtes da Sofia na geladeira. Não precisas comer todo o conteúdo da geladeira e não mates tua irmã sem eu estar aí para te matar junto. Deixa o computador para ela, porque ontem tu já ficaste demais nele. Sei que tu tens de ler O Visconde Partido ao Meio para o colégio, então manda bala. Se quiseres sair, há uns trocados no balcão da cozinha; acho que falaste em ir ao Centro comprar uns CDs usados com um amigo teu, do inglês. O dinheiro que está ali dá para ir e vir de lotação. Usa o teu para as compras. Só não te atrases, pois eu chego ao meio-dia e trinta. Marca o encontro no centro do Mercado Público que é um lugar bom para esperar alguém. Tem sempre brigadianos por ali. Cuida, pois há assaltos e ladrões e as pessoas somem, mesmo sendo tu um adulto de 14 anos… O cara vai e não volta. Volatiliza-se. Porto Alegre é perigosa e não quero a tua mãe no meu pé. Já pensou eu falando pra ela? Olha, ele foi fazer umas compras nuns sebos de CDs e não voltou mais. Imagina, somem tantas pessoas anualmente numa cidade como Porto Alegre que talvez jamais sejas encontrado. Uma vez, em 2004, ou 5, sumiu o próprio chefe de polícia que saíra à tarde para uma volta no Parque da Redenção e até hoje nada. Minha mãe leu no Correio do Povo, ficou com o jornal embrulhado na memória. Mas vá. Lembra que o “pãe” te ama e que as ruas não mudarão seus traçados para que demores além da conta. Se sobrar algum dinheiro, pergunta pra mim sobre um CD que procuro há anos, tá? É aquele em que Carlos Drummond de Andrade recita Desaparecimento de Luísa Porto. Mas, se ficares em casa, não te esqueças do Calvino e trata tua irmã com calma, senão te acuso de pedofilia e te mando para a FEBEM, ou FASE. Hoje tem jogo à noite, queres ir ao estádio? Então faça tudo direitinho, senão não te levo. Hoje de manhã tenho que fazer um monte de coisas, algumas para vocês. O pessoal do colégio me chamou para conversar porque tu, Felipe, inventaste de chamar uma menina de lobisomem e agora ela não quer ir mais à aula. Tá certo que ela é peludinha nos braços, mas – caramba – chamá-la de lobisomem! Há que ser mais delicado. Por falar em delicadeza, no final de semana vou apresentar a Mônica para vocês. Chega de adiamentos, né? Sofia, não é preciso ter ciúmes, ela não me tirará de ti e nem eu vou descuidar de vocês só porque estou namorando. São necessidades adultas. Vocês têm as de vocês, nós temos as minhas as nossas. A Mônica também não será outra mãe, será mais uma amiga para conviver conosco. Ela não é chata e gosta de crianças, mas é claro que ela vai se embananar com vocês, pois não tem filhos e, de repente, estará recebendo um kit completo de namorado, dois filhos, duas calopsitas e uma cachorra. Não é fácil para nenhum de nós, então tolerância, educação e delicadeza são as palavras. Como digo sempre: “Nada de flatulências ou eructações!”. Eu mato vocês. Putz, são sete e meia. Estou atrasado. Beijos do pai.

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