100 Livros Essenciais da Literatura Mundial

100 Livros Essenciais da Literatura Mundial

Há algumas semanas, li a lista da extinta revista Bravo sobre os 100 livros essenciais da literatura mundial. A edição vendeu muito, disse o dono da banca de revistas meu vizinho. No final da revista, há uma página de Referências Bibliográficas de razoável tamanho, mas o editor esclarece que a maior influência veio dos trabalhos de Harold Bloom.

Vamos à lista? Depois farei alguns comentários a ela.

A lista é a seguinte (talvez haja erros de digitação, talvez não):

1. Ilíada, Homero
2. Odisseia, Homero
3. Hamlet, William Shakespeare
4. Dom Quixote, Miguel de Cervantes
5. A Divina Comédia, Dante Alighieri
6. Em Busca do Tempo Perdido, Marcel Proust
7. Ulysses, James Joyce
8. Guerra e Paz, Leon Tolstói
9. Crime e Castigo, Dostoiévski
10. Ensaios, Michel de Montaigne
11. Édipo Rei, Sófocles
12. Otelo, William Shakespeare
13. Madame Bovary, Gustave Flaubert
14. Fausto, Goethe
15. O Processo, Franz Kafka
16. Doutor Fausto, Thomas Mann
17. As Flores do Mal, Charles Baldelaire
18. Som e a Fúria, William Faulkner
19. A Terra Desolada, T.S. Eliot
20. Teogonia, Hesíodo
21. As Metamorfoses, Ovídio
22. O Vermelho e o Negro, Stendhal
23. O Grande Gatsby, F. Scott Fitzgerald
24. Uma Estação No Inferno,Arthur Rimbaud
25. Os Miseráveis, Victor Hugo
26. O Estrangeiro, Albert Camus
27. Medéia, Eurípedes
28. A Eneida, Virgilio
29. Noite de Reis, William Shakespeare
30. Adeus às Armas, Ernest Hemingway
31. Coração das Trevas, Joseph Conrad
32. Admirável Mundo Novo, Aldous Huxley
33. Mrs. Dalloway, Virgínia Woolf
34. Moby Dick, Herman Melville
35. Histórias Extraordinárias, Edgar Allan Poe
36. A Comédia Humana, Balzac
37. Grandes Esperanças, Charles Dickens
38. O Homem sem Qualidades, Robert Musil
39. As Viagens de Gulliver, Jonathan Swift
40. Finnegans Wake, James Joyce
41. Os Lusíadas, Luís de Camões
42. Os Três Mosqueteiros, Alexandre Dumas
43. Retrato de uma Senhora, Henry James
44. Decameron, Boccaccio
45. Esperando Godot, Samuel Beckett
46. 1984, George Orwell
47. Galileu Galilei, Bertold Brecht
48. Os Cantos de Maldoror, Lautréamont
49. A Tarde de um Fauno, Mallarmé
50. Lolita, Vladimir Nabokov
51. Tartufo, Molière
52. As Três Irmãs, Anton Tchekov
53. O Livro das Mil e uma Noites
54. Don Juan, Tirso de Molina
55. Mensagem, Fernando Pessoa
56. Paraíso Perdido, John Milton
57. Robinson Crusoé, Daniel Defoe
58. Os Moedeiros Falsos, André Gide
59. Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis
60. Retrato de Dorian Gray, Oscar Wilde
61. Seis Personagens em Busca de um Autor, Luigi Pirandello
62. Alice no País das Maravilhas, Lewis Caroll
63. A Náusea, Jean-Paul Sartre
64. A Consciência de Zeno, Italo Svevo
65. A Longa Jornada Adentro, Eugene O’Neill
66. A Condição Humana, André Malraux
67. Os Cantos, Ezra Pound
68. Canções da Inocência/ Canções do Exílio, William Blake
69. Um Bonde Chamado Desejo, Teneessee Williams
70. Ficções, Jorge Luis Borges
71. O Rinoceronte, Eugène Ionesco
72. A Morte de Virgilio, Herman Broch
73. As Folhas da Relva, Walt Whitman
74. Deserto dos Tártaros, Dino Buzzati
75. Cem Anos de Solidão, Gabriel García Márquez
76. Viagem ao Fim da Noite, Louis-Ferdinand Céline
77. A Ilustre Casa de Ramires, Eça de Queirós
78. Jogo da Amarelinha, Julio Cortazar
79. As Vinhas da Ira, John Steinbeck
80. Memórias de Adriano, Marguerite Yourcenar
81. O Apanhador no Campo de Centeio, J.D. Salinger
82. Huckleberry Finn, Mark Twain
83. Contos de Hans Christian Andersen
84. O Leopardo, Tomaso di Lampedusa
85. Vida e Opiniões do Cavaleiro Tristram Shandy, Laurence Sterne
86. Passagem para a Índia, E.M. Forster
87. Orgulho e Preconceito, Jane Austen
88. Trópico de Câncer, Henry Miller
89. Pais e Filhos, Ivan Turgueniev
90. O Náufrago, Thomas Bernhard
91. A Epopéia de Gilgamesh
92. O Mahabharata
93. As Cidades Invisíveis, Italo Calvino
94. On the Road, Jack Kerouac
95. O Lobo da Estepe, Hermann Hesse
96. Complexo de Portnoy, Philip Roth
97. Reparação, Ian McEwan
98. Desonra, J.M. Coetzee
99. As Irmãs Makioka, Junichiro Tanizaki
100 Pedro Páramo, Juan Rulfo

A lista é ótima, mas há critérios bastante estranhos.

Se não me engano, só três semideuses têm mais de um livro na lista: Homero, Shakespeare e Joyce. OK, está justo.

No restante, é uma lista mais de autores do que de livros e muitas vezes são escolhidos os livros mais famosos do autor e dane-se a qualidade da obra. Se a revista faz um gol ao escolher Doutor Fausto como o melhor Thomas Mann, erra ao escolher Crime e Castigo dentro da obra de Dostoiévski – Os Irmãos Karamázovi e O Idiota são melhores; ao escolher Guerra e Paz de Tolstói – por que não Ana Karênina? -; na escolha de O Complexo de Portnoy, de Philip Roth; que tem cinco romances muito superiores, iniciando por O Avesso da Vida (Counterlife) e ainda ao eleger Retrato de Uma Senhora na obra luminosa de Henry James. Li por aí reclamações análogas sobre as escolhas de Brás Cubas e não de Dom Casmurro, de Cem Anos de Solidão ao invés de O Amor nos Tempos do Cólera e de As Cidades Invisíveis de Calvino, mas acho que é uma questão de gosto pessoal e não de mérito. Ah, e é absurda a presença do bom O Náufrago e não dos imensos e perfeitos Extinção, Árvores Abatidas e O Sobrinho de Wittgenstein na obra de Thomas Bernhard.

Saúdo a presença de grandes livros pouco citados como Tristram Shandy, obra-prima de Sterne muito querida deste que vos escreve, de Viagem ao Fim da Noite, de Céline, de A Consciência de Zeno, genial livro de Ítalo Svevo, de O Deserto dos Tártaros (Buzzati) e do incompreendido e brilhante Grandes Esperanças, de Charles Dickens, de longe seu melhor romance.

Porém é estranha a escolha de A Comédia Humana, de Balzac. Ora, a Comédia são 88 romances! Não vale! Estranho ainda mais a presença de autores menores como Kerouac e Malraux, além do romance que não é romance — ou do romance que só é romance em 100 de suas 1200 páginas: O Homem sem Qualidades, de Robert Musil.

Também acho que presença de McEwan e de Coetzee prescindem do julgamento do tempo, o que não é o caso de alguns ausentes, como Lazarillo de Tormes, de Chamisso com seu Peter Schlemihl, de George Eliot com Middlemarch, de Homo Faber de Max Frisch e de O Anão, de Pär Lagerkvist, só para citar os primeiros que me vêm à mente. E, se McEwan e Coetzee esttão presentes, por que não Roberto Bolaño?

E Oblómov??? Não poderia ficar de fora!

(O Bender escreve um comentário reclamando a ausência de Grande Sertão, Veredas, de Guimarães Rosa. É claro que ele tem razão! Esqueci. Coisas da idade.)

Com satisfação pessoal, digo que este não-especialista não leu apenas Os Miseráveis, o livro de Blake e os de Lautréamond, Mallarmé, Ovídio e Hesíodo. Isto é, seis dos cem. Tá bom.

P.S.- Milton mentiroso! Não li Finnegans também!

Este post foi publicado em 13 de dezembro de 2007, mas quase nada mudou.

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Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis

Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis

Reli o super clássico Memórias póstumas de Brás Cubas, a obra que marcou uma mudança radical na produção de Machado de Assis. Na época, Machado tinha 41 anos — a história foi publicada em folhetim em 1880, tomando a forma de livro no ano seguinte — e ele era considerado um excelente escritor do romantismo. Pois então veio Brás Cubas veio para mudar e dar um salto de qualidade não somente dentro de sua obra como no panorama da literatura brasileira. Memórias Póstumas é o livro que faz a transição do romantismo para o realismo, incutindo audácia e graça, refinamento e pessimismo, sensualidade e humor (às vezes negro) em nossa literatura. Os críticos torceram o nariz e depois se curvaram ao novo estilo livre de Machado, fã confesso de Laurence Sterne.

Anos depois, ao escrever o prefácio de Helena, romance de sua fase romântica (1876), Machado comenta rapidamente sua revolução:

Não me culpeis pelo que lhe achardes romanesco. Dos que então fiz, este me era particularmente prezado. Agora mesmo, que há tanto me fui a outras e diferente páginas, ouço um eco remoto ao reler estas, eco de mocidade e fé ingênua. E claro que, em nenhum caso, lhes tiraria a feição passada; cada obra pertence ao seu tempo.

Brás Cubas é narrado por um defunto e dedicado ao primeiro verme que roeu as frias carnes de seu cadáver e é a celebração do nada que foi a vida do personagem principal. Brás Cubas é um rentista canalha, uma daquelas pessoas que nasceram podendo fazer exatamente nada, para apenas ficar administrando a herança recebida do pai e tentando vagamente uma carreira na política. Boa-vida, ele representa maravilhosamente nossa elite endinheirada, fútil e amante de privilégios. Sua vida é basicamente a narração de seus amores, por onde vazam suas características pessoais.

Primeiro vem Marcela, uma bela cortesã que trata de obter ganho financeiro de Brás Cubas, fato que só cessa com a intervenção de papai, que o manda estudar em Coimbra, de onde ele volta formado em Direito. De seu curso, ele mesmo diz que colheu “de todas as coisas a fraseologia, a casca, a ornamentação”. O resto foram festas. Quando volta, seu pai quer vê-lo casado e deputado… E aparece Eugênia, a flor da moita, uma coxa que se enamora dele, mas que não se deixa humilhar com a certa rejeição. Depois vem Vírgília, o grande amor de sua vida. Num episódio que demonstra que Virgília não é flor que se cheire, ela se casa com Lobo Neves. Depois, Brás e ela tornam-se amantes por longos anos. Vírgília toma as páginas do livro, porém ainda há Eulália, a flor do pântano.

Por onde passa, Brás não somente conta de forma sedutora sua vida medíocre, como faz observações bastante cínicas sobre a vida e a política nacionais. Um dos personagens muitas vezes admirados por Brás é seu cunhado Cotrim, uma figura abjeta que trafica escravos e ganha muito com isso. Ao mesmo tempo, Cotrim seria “ferozmente honrado”, um “filantropo dotado de sentimentos pios”, mas com um detalhe: mandava “com frequência escravos para o calabouço, donde eles desciam a escorrer sangue”.

O texto é maravilhoso. Dividido em 160 capítulos curtos e ziguezagueantes, muitos deles meros exercícios de prosa, o livro é que há de sedutor e grudento. Machado não julga, não dá lições, apenas mostra e deixa seu crápula tagarelar, argumentando à vontade seus motivos e contando os acontecimentos. É uma leitura toda de viés, com o autor não deixando clara sua opinião certamente desfavorável sobre o “herói” do romance. Ao final, quando Brás diz “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”, respondemos no mesmo estilo dele: sorte nossa. Só que não adiantou muito, pois ainda estamos lotados de  de Brás Cubas — e de todo gênero de privilegiados — em nosso amado Brasil.

Claro, trata-se de um clássico que merece o lugar-comum: Memórias Póstumas de Brás Cubas é incontornável!

O grande Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908)

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Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XXVII – Dom Casmurro, de Machado de Assis

Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XXVII – Dom Casmurro, de Machado de Assis

Sim, aos poucos estou relendo Machado. E me surpreendendo, pois li Dom Casmurro na adolescência e tinha a memória de um bom livro, mas não a clara noção da autêntica obra-prima que é. Publicado em 1899, o Casmurro é o terceiro da série de 5 grandes romances finais de Machado. Os anteriores são Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) e Quincas Borba (1891) e os seguintes são Esaú e Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908). (De entremeio, também temos o desconhecido Casa Velha, de 1885). A história é contada na primeira pessoa por Bentinho. Ele é o célebre narrador não confiável, ainda mais que relata, no tom de uma longa conversa com leitor, um drama: a dupla traição que teria sofrido por parte de sua mulher, Capitu (Capitolina) e de seu melhor amigo, Escobar.

O romance começa numa situação posterior a todos os acontecimentos. Bentinho (Bento Santiago), já velho, conta ao leitor como recebeu o apelido de Dom Casmurro. A expressão fora inventada por um jovem poeta, que tentara ler para ele no trem alguns de seus versos. Como Bentinho cochilara durante a leitura, o rapaz ficou chateado e começou a chamá-lo daquela forma.

O narrador começa então a rememorar sua existência, o que ele chama de “atar as duas pontas da vida”. O leitor é apresentado à infância de Bentinho, quando ele vivia com a família num casarão da rua de Matacavalos.

Bentinho mora com a mãe amorosa, Dona Glória, o tio Cosme, a mal-humorada prima Justina e o agregado José Dias, um esplêndido modelo de chato. É uma família bem brasileira, destas que geram filhos mimados. Sua vida pode ser dividida em três fases: Bentinho, Dr. Bento Fernandes Santiago e Dom Casmurro.

Bentinho é o menino tímido e sem iniciativa que provavelmente acabará num seminário e depois padre — pois era uma promessa de D. Glória tornar seu filho padre. Mas há uma vizinha, uma vizinha de quintal, um dos maiores personagens da literatura brasileira, Capitu. Quando a ação começa, ela tem 14 anos e ele 15.

Capitu era Capitu, isto é, uma criatura muito particular, mais mulher do que eu era homem.

Os dois se apaixonam, prometem que vão se casar um com o outro haja o que houver, só que a família de Bentinho quer vê-lo padre. Capitu e Bentinho vão crescendo e não são mais aquelas duas crianças que brincavam no quintal, a coisa esquenta e eles passam aos beijos e carícias… As brincadeiras e a rotina dos quintais passam da infância para o erótico, sempre puxadas por Capitu.

— Sou homem!

Quando repeti isto, pela terceira vez, pensei no seminário, mas como se pensa em perigo que passou, um mal abortado, um pesadelo extinto; todos os meus nervos me disseram que homens não são padres. O sangue era da mesma opinião. Outra vez senti os beiços de Capitu.

Capitu é linda. Bentinho também arranca suspiros, mas só tem olhos para ela, que, por sinal, puxa-o com os belos olhos e o engole.

Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá ideia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros; mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me.

Ele vai para o seminário, o que se torna uma tortura. Bentinho gosta de mulheres. Certa vez, no caminho para o seminário, vê uma muito bonita cair na rua e…

No seminário, a primeira hora foi insuportável. As batinas traziam ar de saias, e lembravam-me a queda da senhora. Já não era uma só que eu via cair; todas as que eu encontrara na rua mostravam-me agora de relance as ligas azuis. De noite, sonhei com elas. Uma multidão de abomináveis criaturas veio andar à roda de mim, tique-taque… Eram belas, umas finas, outras grossas, todas ágeis como o diabo. Acordei, busquei afugentá-las com esconjuros e outros métodos, mas tão depressa dormi como tornaram, e, com as mãos presas em volta de mim, faziam um vasto círculo de saias, ou, trepadas no ar, choviam pés e pernas sobre a minha cabeça.

Ele consegue livrar-se do seminário e casa com Capitu. E então começa uma certa estranheza que apenas aumenta.

A alegria com que pôs o seu chapéu de casada, e o ar de casada com que me deu a mão para entrar e sair do carro, e o braço para andar na rua, tudo me mostrou que o ar de impaciência de Capitu eram os sinais exteriores do novo estado. Não lhe bastava ser casada entre quatro paredes e algumas árvores; precisava do resto do mundo também.

E depois eu deixo para você descobrir o que e como acontece.

Mais detalhes, sem spoilers decisivos. No seminário, ele tinha conhecido Escobar, de quem se tornou inseparável. Eles tinham tudo em comum, inclusive o plano de sair de lá e não como padres. Escobar casa-se com Sancha, uma amiga de Capitu. Logo têm uma filha que recebe o nome de Capitolina… Depois de alguns anos e após penosas tentativas, Capitu finalmente tem um filho, e o casal pôde retribuir a homenagem que Escobar e Sancha lhes haviam prestado: o filho é batizado com o nome de Ezequiel, como Escobar.

Só que Ezequiel vai ficando cada vez mais parecido com Escobar… E Bentinho desconfia. A temática do ciúme, abordada com brilhantismo nesse livro, provoca polêmicas em torno do caráter de uma das principais personagens femininas da literatura brasileira: Capitu.

Escobar vinha assim surgindo da sepultura, do seminário e do Flamengo para se sentar comigo à mesa, receber-me na escada, beijar-me no gabinete de manhã, ou pedir-me à bênção do costume. Todas essas ações eram repulsivas; eu tolerava-as e praticava-as, para me não descobrir  mim mesmo e ao mundo. Mas o que pudesse dissimular ao mundo, não podia fazê-lo a mim, que vivia mais perto de mim que ninguém.

Assim como o enorme afeto e amor entre Capitu e Bentinho, a história do adultério (?) é composta por poucas pinceladas. Tudo é meio vago. Machado foi um mestre absoluto e deixa enorme espaço para nossa imaginação. Ele não apenas conta a história sem grandes detalhes como deixa para nós discutirmos se houve a traição de Capitu. Mas Bentinho enxerga no filho a figura do amigo e fica convencido de que fora traído pela mulher.

Cada um acha uma coisa. Como mais ou menos escreve Hélio Guimarães no posfácio desta linda edição da Carambaia — pois escrevo de memória — o livro pode ser sobre um adultério (traiu!), sobre o ciúme masculino (não traiu!), ou ainda uma denúncia a respeito do violento comportamento dos homens detentores do poder e da narrativa (sem dúvida não traiu, seus misóginos!) ou ainda uma gloriosa afirmação e reivindicação do desejo (pfff, e daí se traiu?).

Carlos Drummond de Andrade dizia que ler Machado de Assis era uma tentação permanente, quase um vício a ser combatido. Perguntem a um drogado (ou ex) quão fácil é livrar-se de um vício.

Machado de Assis (Rio de Janeiro, 21 de junho de 1839 — Rio de Janeiro, 29 de setembro de 1908)

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Carolina, a mulher que “não deu filhos” a Machado de Assis

Carolina, a mulher que “não deu filhos” a Machado de Assis

CARTADEmachadoecarolinaLi hoje contrariado um texto que dizia que a esposa de Machado de Assis — a muito amada Carolina Augusta Xavier de Novais — “não tinha lhe dado filhos”. Céus, que expressão boba. Se Carolina não deu a filhos a Joaquim Maria, também Joaquim Maria não os deu a Carolina. E não creio que ninguém considere Machado incompleto porque não teve filhos. “…não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”, escreveu o personagem-título de Memórias Póstumas de Brás Cubas. E se isto vale para um homem, vale para uma mulher.

Mas é fato que algumas pessoas com filhos veem com desconfiança os que não têm. Parece que traem a espécie humana. Em nosso passado agrário, ter filhos até podia ser uma questão fundamental. Afinal, famílias grandes podiam trabalhar extensões maiores de terra, produzindo maior prosperidade e alimento. Além disso, os pais contavam com os filhos para suportarem melhor a velhice.

Lembro que alguns antigos casais narravam com orgulho o fato de terem voltado da lua-de-mel com uma encomenda. E, se a coisa demorasse a acontecer, o mundo passava a ver a mulher — e exclusivamente ela — como portadoras de algum distúrbio, como a Carolina de Machado. E se o problema fosse com o cara?

Porém, em nossos dias, sabemos que a maioria de nossos filhos não cuidará de nós na velhice e nem renderá grana.

Outro fato atual é que o sexo parece estar cada vez mais afastado da reprodução. O cara não precisa ser um Bach para ser considerado viril e nem a mulher super parideira é um sucesso. Também nunca ouvi um amigo dizer publicamente que gostaria de ter filhos com uma mulher, só ouvi que “essa é pra casar”, quase sempre dito em tom de brincadeira para uma mulher linda e inteligente.

Para mim, ter filhos foi e é motivo de enorme grande alegria. Mas e daí que alguns não tenham? É uma escolha facultativa mesmo neste país atrasado, evangélico e sem aborto legal. É uma escolha que não é simples, pois significa a forma de vida que alguém quer para si. E, para os que não conseguem tê-los por algum motivo físico, há milhares de crianças necessitadas de pais que lhes deem amor.

Mas tudo isso só pela frase sobre Carolina?

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Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): VI – A Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy, de Laurence Sterne

Obs.: não encontrei a capa de edição nacional para colocar ao lado…

Beethoven gostava de temas curtos e afirmativos. O crítico Otto Maria Carpeaux também, até demais. Beethoven repetia seus temas à exaustão, mas não enchia o saco. Carpeaux não os repete, mas larga aqui e ali juízos curtos, afirmativos e terríveis que às vezes me deixam louco. A literatura não prescinde de justificativas mais, digamos, alongadas. Eu gosto de Beethoven e de Carpeaux, só que o austríaco tem uma capacidade de me irritar que o alemão só utilizou n`A Batalha de Wellington e na Pastoral. Pobre do grande LAURENCE STERNE: na História da Literatura Ocidental, o maravilhoso amansa-burro de 2300 páginas de Carpeaux, ganhou a curta e grossa má vontade do mestre:

Não é romancista, e não compreendemos como seus contemporâneos puderam dar o nome de romance a esse aglomerado de conversas, digressões e anedotas, sem ação novelística, que é o Tristram Shandy.

Que equívoco! Fico curioso sobre o que diz Carpeaux sobre outro livro notável, também quase exclusivamente um aglomerado de conversas e digressões filosóficas: O Homem Sem Qualidades, de Robert Musil. Consulto e ele demonstra coerência, fazendo questão de chamar a obra-prima inacabada de romance-ensaio. OK. Romance-ensaio é mais que um aglomerado de conversas e digressões, porém Carpeaux sempre ensina muito e conta com minha INDULGÊNCIA.

Mas creio que Carpeaux, se se alongasse um pouco mais, não ousaria falar mal da espetacular prosa de Sterne. Seu principal romance (ou não), A Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy, é uma de minhas melhores lembranças literárias. Este livro extravagante, publicado em capítulos entre os anos de 1759-67, tem importantes admiradores. James Joyce, Luigi Pirandello, Samuel Beckett e MACHADO DE ASSIS, que o cita com conhecimento, foram alguns dos escritores que se declararam influenciados pelo irlandês Sterne, um pároco muito bem sucedido e amante de intermináveis digressões pontuadas de anedotas escabrosas e alusões cínicas. Agrada-me intensamente a forma como Sterne decepciona seus leitores ao não dar seguimento às ações que esboça, coisa que Roberto Bolaño se esmera em realizar (ou não).

A cena inicial nos conta sobre o nascimento de Tristram. Seu pai costumava fazer duas coisas no primeiro domingo do mês. A primeira era dar corda no relógio da sala; a segunda era cumprir seus deveres conjugais. Porém, num destes domingos, sua mãe, JÁ PENETRADA mas sem o menor interesse, pergunta repentinamente (a pontuação, sempre originalíssima, é puro Sterne):

– Por favor, meu caro, não te esqueceste de dar corda ao relógio? ————-Por D—–! gritou meu pai, lançando uma exclamação, mas cuidando ao mesmo tempo de moderar a voz. ——–Houve jamais mulher, desde a criação do mundo, que interrompesse um homem com pergunta assim tão tola?

Com a interrupção, o velho Shandy, desconcertado, descuidou-se de fazer outra coisa: o coitus interruptus. E é desta forma que nasce o HOMÚNCULO ou, para nós, o feto daquele que seria o protagonista da “ação”. A piada fez enorme sucesso e por anos não apenas as prostitutas da Inglaterra perguntaram a seus candidatos QUERES DAR CORDA EM MEU RELÓGIO?, como as senhoras de respeito deixaram de comprar relógios para suas casas com receio dos comentários que tal ato poderia provocar… Que os comprassem os maridos!

É também notável o momento em que Shandy desiste de narrar sua própria vida – o livro é escrito na primeira pessoa. Isto acontece lá pela página 80 de um livro de 600 páginas. Ele observa que gastou alguns meses escrevendo a respeito das primeiras horas de sua vida. Constata assim que demora muito mais para escrever do que para viver e que os acontecimentos narrados estão afastando-se mais rapidamente do que a narrativa avança… Impossível alcançar. Conclui que o melhor é parar de perseguir a si mesmo e conversar com os leitores. A vida de Tristram segue seu curso e Sterne, bem, Sterne sabe e declara-se consciente de que a literatura existe primeiro para SATISFAZER O AUTOR… Danem-se os leitores.

Tudo é desrespeito neste romance moderno com raízes no Quixote. Riso e melancolia brincam sob a batuta de Sterne. Como se não bastasse ser um excêntrico romance sobre quem escreve um romance, Tristram Shandy apresenta uma série de artifícios antes nunca vistos: uma página inteiramente pintada de preto, tentativas de desenhar graficamente a evolução do romance, alguns capítulos em branco (em que nada é escrito) e uma página também em branco, limpinha, para que o leitor desenhe sua amada.

Acima, Sterne nos brinda com o esquema gráfico da história do tio Toby…

Hoje, poucos lêem o descontrolado e desprogramado Tristram Shandy, mas os estragos causados por ele fez foram grandes: Joyce adorava seus jogos de palavras e trocadilhos ab-so-lu-ta-men-te malucos, Beckett — “Nada tenho a dizer, mas somente eu sei como fazê-lo” — deliciava-se com o fato de Sterne ter, por assim dizer, inviabilizado seu próprio romance e Machado de Assis aprendeu com ele a dialogar frequentemente com o leitor e a brincar com aqueles pequenos capítulos em que nada, mas nada mesmo, acontece. Aliás, há cenas de Memórias Póstumas de Brás Cubas que demonstram toda a admiração de Machado por Tristram.

Li este livro em 1985, na brilhante tradução de José Paulo Paes em edição da Nova Fronteira, depois reeditada pala Cia. das Letras e despeço-me com mais um trecho do Tristram Shandy. A pontuação é a do autor, claro:

O que é a vida de um homem! Pois não é um rolar daqui para lá?——–De infortúnio em infortúnio?—— Abotoar uma ca(u)sa de aflição!—–e desabotoar outra?

(…)

—Entrementes, tenho umas poucas coisas a fazer—uma coisa a nomear—uma coisa a lamentar—uma coisa a esperar, uma coisa a prometer, e uma coisa a ameaçar.—Tenho uma coisa a imaginar—uma coisa a declarar—uma coisa a esconder, e uma coisa por que rezar. ——A este capítulo chamarei, portanto, o capítulo das COISAS——e o capítulo a ele subsequente, isto é, o primeiro do volume seguinte, se eu viver o bastante, será o capítulo das SUÍÇAS, a fim de manter algum tipo de nexo entre as minhas obras.

A coisa que lamento é terem as coisas se apinhado de tal modo sobre mim que não consegui chegar àquela parte de minha obra a que visei durante todo o caminho com tamanha ansiedade, qual seja a parte das campanhas, e mais especialmente a dos amores do tio Toby; os acontecimentos e eles respeitantes são de natureza tão singular e de cunho tão cervantino que se eu conseguir transmitir a outro cérebro as impressões que as ocorrências suscitam por si sós em meu próprio cérebro—garanto que o livro abrirá caminho no mundo muito melhor do que nele abriu seu autor.—Oh Tristram! Tristram! poderá jamais acontecer, uma vez que seja—que o prestígio de que venhas a desfrutar como autor compense os muitos infortúnios que te afligiram como homem?—Festejarás o primeiro—quando tiveres perdido toda a sensação e lembrança dos outros!—

Não estranha eu estar tão inquieto por chegar a estes amores.—Eles são o acepipe mais refinado de toda a minha história! E quando eu chegar enfim a eles—asseguro-vos, boa gente,—(não me importam os estômagos delicados aos quais possa desgostar) que não serei nada cuidadoso na escolha das minha palavras;—a coisa que tenho a DECLARAR——–é que receio não poder chegar-lhes ao fim em apenas cinco minutos—e a coisa que ESPERO é que vossas referendas senhorias não se ofendam—se vos ofenderdes, podeis contar, minha boa gentry, que no próximo ano eu vos darei algo com que de fato vos ofenderdes—assim o faz minha querida Jenny—mas quem seja a minha Jenny—e qual a extremidade certa e a extremidade errada de uma mulher, essa é a coisa a ser ESCONDIDA—ser-vos-á contada dois capítulos após meu capítulo acerca das casas de botão—e em nenhum outro capítulo anterior.

E agora que chegastes ao fim destes quatro volumes—a coisa que tenho a PERGUNTAR é, como estão vossas cabeças? A minha dói horrivelmente—quanto às vossas saúdes, sei que estão bem melhores…

Estão mesmo, Laurence, ao menos a minha está.

 A descrição da morte de Yorick: uma página preta, de luto.

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