100 Livros Essenciais da Literatura Mundial

100 Livros Essenciais da Literatura Mundial

Há algumas semanas, li a lista da extinta revista Bravo sobre os 100 livros essenciais da literatura mundial. A edição vendeu muito, disse o dono da banca de revistas meu vizinho. No final da revista, há uma página de Referências Bibliográficas de razoável tamanho, mas o editor esclarece que a maior influência veio dos trabalhos de Harold Bloom.

Vamos à lista? Depois farei alguns comentários a ela.

A lista é a seguinte (talvez haja erros de digitação, talvez não):

1. Ilíada, Homero
2. Odisseia, Homero
3. Hamlet, William Shakespeare
4. Dom Quixote, Miguel de Cervantes
5. A Divina Comédia, Dante Alighieri
6. Em Busca do Tempo Perdido, Marcel Proust
7. Ulysses, James Joyce
8. Guerra e Paz, Leon Tolstói
9. Crime e Castigo, Dostoiévski
10. Ensaios, Michel de Montaigne
11. Édipo Rei, Sófocles
12. Otelo, William Shakespeare
13. Madame Bovary, Gustave Flaubert
14. Fausto, Goethe
15. O Processo, Franz Kafka
16. Doutor Fausto, Thomas Mann
17. As Flores do Mal, Charles Baldelaire
18. Som e a Fúria, William Faulkner
19. A Terra Desolada, T.S. Eliot
20. Teogonia, Hesíodo
21. As Metamorfoses, Ovídio
22. O Vermelho e o Negro, Stendhal
23. O Grande Gatsby, F. Scott Fitzgerald
24. Uma Estação No Inferno,Arthur Rimbaud
25. Os Miseráveis, Victor Hugo
26. O Estrangeiro, Albert Camus
27. Medéia, Eurípedes
28. A Eneida, Virgilio
29. Noite de Reis, William Shakespeare
30. Adeus às Armas, Ernest Hemingway
31. Coração das Trevas, Joseph Conrad
32. Admirável Mundo Novo, Aldous Huxley
33. Mrs. Dalloway, Virgínia Woolf
34. Moby Dick, Herman Melville
35. Histórias Extraordinárias, Edgar Allan Poe
36. A Comédia Humana, Balzac
37. Grandes Esperanças, Charles Dickens
38. O Homem sem Qualidades, Robert Musil
39. As Viagens de Gulliver, Jonathan Swift
40. Finnegans Wake, James Joyce
41. Os Lusíadas, Luís de Camões
42. Os Três Mosqueteiros, Alexandre Dumas
43. Retrato de uma Senhora, Henry James
44. Decameron, Boccaccio
45. Esperando Godot, Samuel Beckett
46. 1984, George Orwell
47. Galileu Galilei, Bertold Brecht
48. Os Cantos de Maldoror, Lautréamont
49. A Tarde de um Fauno, Mallarmé
50. Lolita, Vladimir Nabokov
51. Tartufo, Molière
52. As Três Irmãs, Anton Tchekov
53. O Livro das Mil e uma Noites
54. Don Juan, Tirso de Molina
55. Mensagem, Fernando Pessoa
56. Paraíso Perdido, John Milton
57. Robinson Crusoé, Daniel Defoe
58. Os Moedeiros Falsos, André Gide
59. Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis
60. Retrato de Dorian Gray, Oscar Wilde
61. Seis Personagens em Busca de um Autor, Luigi Pirandello
62. Alice no País das Maravilhas, Lewis Caroll
63. A Náusea, Jean-Paul Sartre
64. A Consciência de Zeno, Italo Svevo
65. A Longa Jornada Adentro, Eugene O’Neill
66. A Condição Humana, André Malraux
67. Os Cantos, Ezra Pound
68. Canções da Inocência/ Canções do Exílio, William Blake
69. Um Bonde Chamado Desejo, Teneessee Williams
70. Ficções, Jorge Luis Borges
71. O Rinoceronte, Eugène Ionesco
72. A Morte de Virgilio, Herman Broch
73. As Folhas da Relva, Walt Whitman
74. Deserto dos Tártaros, Dino Buzzati
75. Cem Anos de Solidão, Gabriel García Márquez
76. Viagem ao Fim da Noite, Louis-Ferdinand Céline
77. A Ilustre Casa de Ramires, Eça de Queirós
78. Jogo da Amarelinha, Julio Cortazar
79. As Vinhas da Ira, John Steinbeck
80. Memórias de Adriano, Marguerite Yourcenar
81. O Apanhador no Campo de Centeio, J.D. Salinger
82. Huckleberry Finn, Mark Twain
83. Contos de Hans Christian Andersen
84. O Leopardo, Tomaso di Lampedusa
85. Vida e Opiniões do Cavaleiro Tristram Shandy, Laurence Sterne
86. Passagem para a Índia, E.M. Forster
87. Orgulho e Preconceito, Jane Austen
88. Trópico de Câncer, Henry Miller
89. Pais e Filhos, Ivan Turgueniev
90. O Náufrago, Thomas Bernhard
91. A Epopéia de Gilgamesh
92. O Mahabharata
93. As Cidades Invisíveis, Italo Calvino
94. On the Road, Jack Kerouac
95. O Lobo da Estepe, Hermann Hesse
96. Complexo de Portnoy, Philip Roth
97. Reparação, Ian McEwan
98. Desonra, J.M. Coetzee
99. As Irmãs Makioka, Junichiro Tanizaki
100 Pedro Páramo, Juan Rulfo

A lista é ótima, mas há critérios bastante estranhos.

Se não me engano, só três semideuses têm mais de um livro na lista: Homero, Shakespeare e Joyce. OK, está justo.

No restante, é uma lista mais de autores do que de livros e muitas vezes são escolhidos os livros mais famosos do autor e dane-se a qualidade da obra. Se a revista faz um gol ao escolher Doutor Fausto como o melhor Thomas Mann, erra ao escolher Crime e Castigo dentro da obra de Dostoiévski – Os Irmãos Karamázovi e O Idiota são melhores; ao escolher Guerra e Paz de Tolstói – por que não Ana Karênina? -; na escolha de O Complexo de Portnoy, de Philip Roth; que tem cinco romances muito superiores, iniciando por O Avesso da Vida (Counterlife) e ainda ao eleger Retrato de Uma Senhora na obra luminosa de Henry James. Li por aí reclamações análogas sobre as escolhas de Brás Cubas e não de Dom Casmurro, de Cem Anos de Solidão ao invés de O Amor nos Tempos do Cólera e de As Cidades Invisíveis de Calvino, mas acho que é uma questão de gosto pessoal e não de mérito. Ah, e é absurda a presença do bom O Náufrago e não dos imensos e perfeitos Extinção, Árvores Abatidas e O Sobrinho de Wittgenstein na obra de Thomas Bernhard.

Saúdo a presença de grandes livros pouco citados como Tristram Shandy, obra-prima de Sterne muito querida deste que vos escreve, de Viagem ao Fim da Noite, de Céline, de A Consciência de Zeno, genial livro de Ítalo Svevo, de O Deserto dos Tártaros (Buzzati) e do incompreendido e brilhante Grandes Esperanças, de Charles Dickens, de longe seu melhor romance.

Porém é estranha a escolha de A Comédia Humana, de Balzac. Ora, a Comédia são 88 romances! Não vale! Estranho ainda mais a presença de autores menores como Kerouac e Malraux, além do romance que não é romance — ou do romance que só é romance em 100 de suas 1200 páginas: O Homem sem Qualidades, de Robert Musil.

Também acho que presença de McEwan e de Coetzee prescindem do julgamento do tempo, o que não é o caso de alguns ausentes, como Lazarillo de Tormes, de Chamisso com seu Peter Schlemihl, de George Eliot com Middlemarch, de Homo Faber de Max Frisch e de O Anão, de Pär Lagerkvist, só para citar os primeiros que me vêm à mente. E, se McEwan e Coetzee esttão presentes, por que não Roberto Bolaño?

E Oblómov??? Não poderia ficar de fora!

(O Bender escreve um comentário reclamando a ausência de Grande Sertão, Veredas, de Guimarães Rosa. É claro que ele tem razão! Esqueci. Coisas da idade.)

Com satisfação pessoal, digo que este não-especialista não leu apenas Os Miseráveis, o livro de Blake e os de Lautréamond, Mallarmé, Ovídio e Hesíodo. Isto é, seis dos cem. Tá bom.

P.S.- Milton mentiroso! Não li Finnegans também!

Este post foi publicado em 13 de dezembro de 2007, mas quase nada mudou.

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Lolita – Um comentário a partir do romance de Vladimir Nabokov

Publicado em 18 de agosto de 2012 no Sul21.

Durante a semana, entramos em contato com a psicanalista Lucia Serrano Pereira. Nossa intenção era utilizá-la como fonte para uma matéria sobre o romance Lolita, de Vladimir Nabokov, que foi lançado nos EUA em 18 de agosto de 1955. O livro é fascinante do ponto de vista literário, mas descreve um caso de pedofilia sem culpa que não ousaríamos analisar sem consultar alguém especializado. Durante a conversa, notamos que Lucia tinha profundo conhecimento a respeito da obra. Não nos surpreendemos quando a psicanalista nos informou que era autora de um longo comentário sobre o livro e que este estava disponível para o Sul21. Deste modo, recuamos de nossa intenção de escrever sobre Lolita para dar lugar ao texto de nossa fonte e colaboradora na Coluna da APPOA – Associação Psicanalítica de Porto Alegre. (Milton Ribeiro)

Vladimir Nabokov (1899-1977)

Por Lucia Serrano Pereira

Desejo, agora, apresentar a seguinte ideia. Entre um limite de idade que vai dos nove aos catorze anos, existem raparigas que, diante de certos viajantes enfeitiçados, revelam sua verdadeira natureza, que não é humana, mas “nínfica” (isto é, demoníaca), e a essas dadas criaturas proponho designar como nymphets.”

Trecho do diário de Humbert Humbert, o personagem.

A narrativa é um incrível tecido de linguagem e de estilo, onde Nabokov nos traz a trajetória de Humbert, esse viajante enfeitiçado, e de sua nymphet, Lolita. Quando se trata de feitiço, dessa natureza não humana, um pouco nínfica, é inevitável evocar a representação das sereias que deslumbram com seu canto irresistível e depois arrastam para a morte os enfeitiçados.

Lolita (Sue Lyon) e Humbert Humbert (James Mason) no filme de Stanley Kubrick baseado no romance (1962).

Humbert relata o turbilhão em que foi jogado, a paixão, o amor, o desejo vividos loucamente, delirantemente, “Lolita, luz de minha vida, fogo de meu lombo. Meu pecado, minha alma”, são as primeiras palavras do texto. Mas para além do que ali se apresenta enquanto paixão, amor e desejo, e, de certa maneira transitando por todos eles, temos essa enigmática magia da nymphet, que, como a da sereia, é demoníaca. Essa magia do diabo, ela tem nome próprio. Chama-se sedução. O diabo, por sinal, é o mestre em matéria de sedução, é o sedutor- mor, sempre.

O livro foi recusado por quatro editores norte americanos. | Foto: Dominique Swain na segunda versão do livro para o cinema.

Seduzir vem do latim seducere, “levar para o lado”, ou seja, algo que alude ao desviar do caminho, sair da rota esperada, da estrada principal, para seguir com a ideia do viajante. Assim, algo do seduzir nos situa, nos desvela o que poderíamos chamar uma figura do desviante. Figura fundamental em Lolita, sob vários aspectos. A começar pela repercussão que teve na época de sua publicação, no contexto dos anos cinquenta. A estória do europeu de meia idade, culto, glamouroso, bem nascido e educado que se apaixona e faz de tudo, vida e morte por essa ninfeta norte-americana de vida e valores bem banais (revistinhas de artistas de cinema, vitrola, mau humor, uma mãe com quem brigar, entre o sofá velho e as bugigangas mexicanas) provocou um verdadeiro escândalo. Os desvios estão ali postos em cena, no que concerne a moral sexual vigente. O texto escancara esse viés do desejo de um homem por uma jovenzinha que, no fim das contas, nem era tão guria assim. O livro foi recusado por quatro editores norte americanos. Tema tabu, dizia Nabokov. Ainda mais que Humbert casa com a mãe de Lolita somente para ficar com a filha, sem a menor culpa, para ser, além de tudo, o seu papaizinho. Esse “frisson” acerca de um homem e sua garotinha nos EUA, nos anos cinquenta, teve também sua expressão pública e internacional com a polêmica que se armou em torno da vida amorosa e sexual de dois músicos bem conhecidos, dois “pais” do rock, Chuck Berry e Jerry Lee Lewis. Ambos pelas mesmas razões, escolheram jovens passando da puberdade para a adolescência. Jerry Lee Lewis casa com a prima de 13 anos. Os dois músicos terão suas vidas e carreiras musicais atacadas, afetadas, marcadas por essa escolha. Ficaram na história também como representantes do “desviante” no social. Chuck Berry era negro, já atraia a visada racista, Jerry Lee, branco mas tocando música de negros, e logo o rock, que era explicitamente apontado como música do diabo, sedutora, desencaminhadora, perigosa. Jerry Lee e Chuck Berry, por sua vez, não deixavam por menos, faziam jus a essa imagem do desviado com suas reações fortes e agressivas. Quem viu o filme Great Balls of Fire pode ter bem essa dimensão. Jerry Lee Lewis aparece em seus shows incendiando os pianos, enquanto sua jovem esposa, em outra cena, faz as compras como se estivesse numa grande loja de brinquedos, literalmente brincando de casinha.

“Tema tabu”, dizia Nabokov

Em Lolita, a marca do desviante é desdobrada pelo menos em três vias : na caracterização do personagem, Humbert, no rumo que vai tomar a vida de Lolita, e ainda no que se estabelece como a viagem e seus roteiros. Humbert já nas primeiras frases dirige-se aos senhores e senhoras do júri, nisso tomando para si o lugar do réu e a denominação de criminoso. Mais adiante nos faz saber de suas várias internações em hospitais psiquiátricos, onde descobria suas fichas com as classificações que o divertiam — “potencialmente homossexual” ou “completamente impotente”. Defende-se pedindo simplesmente à comunidade a permissão para prosseguir na chamada “conduta aberrante, mas praticamente inofensiva nos seus pequenos, ardentes e úmidos atos de anormalidade sexual”, sem que a polícia e a sociedade se lancem contra. “Somos cavalheiros infelizes, suaves, de olhar humilde, suficientemente integrados na sociedade para que controlemos nossos impulsos em presença de adultos, mas dispostos a dar anos e anos de vida em troca da oportunidade de acariciar uma nymphet.” É curioso o deslizamento de sentido nesta frase — controlamos nossos impulsos em presença de adultos — pois é como se ele pode nisso estar excluído de “adultos”, se posicionar fora do lugar “adultos”.

Lolita. Saída da puberdade, entrada na adolescência com tudo o que se tem direito nessa idade. Instável, ora de mau humor, ora alegre, respondona, um pouco desleixada e suja, meio metida, curiosa, provocadora, graciosa e desengonçada, e, aos olhos de Humbert, desejável da cabeça aos pés. Lolita, ao ser alvo de sua paixão, vai ter a vida revirada. A mãe casa com Humbert e morre atropelada quando sai de casa enlouquecida ao descobrir o interesse do marido novo pela filha. Assim que Lolita perde a mãe, ganha um padrasto apaixonado, e sai direto de um acampamento de férias desses que a gente vê nos filmes, para a vida nos motéis. Sai da adolescência comum para virar uma pequena rainha/tirana.

Jeremy Irons (Humbert Humbert) e Dominique Swain (Lolita) na versão de Adrian Lyne (1997)

Terceiro ponto — a viagem. O inicio da viagem que vai ser a vida em comum, por alguns anos, de Humbert e Lolita, já é um desvio cuidadoso do fato de que a mãe morreu. Ele a busca no acampamento, sem revelar essa morte. O que vem na sequência é uma sucessão de roteiros, é por onde Nabokov vai apresentando a América “on the road”, (boa parte do livro foi escrita em casas de campo e motéis nas regiões do Arizona e do Oregon por onde Nabokov foi se hospedando) mas é ao mesmo tempo uma sequência de hotéis e motéis de todos os tipos, dos mais tradicionais, caseiros, aos mais baratos “beira de estrada”, um desenrolar de entradas e saídas, não é para que eles sejam descobertos nem localizados — é o cuidado com os quartos, as marcas nos lençóis, os recepcionistas e os hóspedes. Mesmo quando eles se instalam em uma pequena cidade onde Lolita vai à escola, é para manter a fachada de pai e filha, a fachada da estrada principal aos olhos do social. Esse jogo eles jogam em parceria.

Me pareceu interessante o elemento da viagem, do trilhar os Estados Unidos pelas estradas pois evoca justamente esse rumo da literatura norte-americana “on the road” que surge no final da década de 40, poucos anos antes de Lolita, então, como a expressão da chamada “geração beat”, aqueles jovens desviantes que criam este estilo de narrativa em poesia e em prosa.

Talvez a mestria de Nabokov em desdobrar a dimensão dos desviantes seja de alguma maneira tributária da sua própria história. Em 1919 um “rebanho de Nabokovs”, como ele diz em sua autobiografia, fugiu da Rússia para a Europa Ocidental, saídos em função da Revolução Russa, iniciando aí seu exílio. Foi estudar em Cambridge, tempo do qual não guardou muito boas recordações. Relata ter ficado, nesse primeiro passo no exílio com um medo mórbido — o de perder ou corromper, devido à influência estrangeira, a única coisa que trouxera da Rússia : a língua.

Nabokov viajou pelas estradas do interior dos EUA fazendo anotações antes de criar sua “road novel”.

Podemos dizer que Nabokov foi, ele próprio um viajante encantado, pois além dos escritos em russo acabou sendo um dos maiores escritores contemporâneos em língua inglesa. Para fazer o que fez em termos de obra em uma outra língua que não a sua de origem é preciso ter se deixado mergulhar, seduzir por essa outra estrangeira. É bem verdade que isso aconteceu desde muito cedo na sua vida, tendo ele escrito primeiro em inglês, antes do russo. Uma das lembranças infantis que relata em seu Speak Memory é a da mãe lendo para ele à noite, antes de dormir, histórias em inglês.

Seduzir é também, por definição, atrair, encantar, fascinar, deslumbrar. Se por um lado Humbert planeja e executa um plano de sedução sobre Lolita, ele é, ao mesmo tempo o seduzido, o atraído, o deslumbrado. Em Don Juan isto também acontece, ele é aquele que seduz as mulheres, mas tem seu caminho desviado a cada vez em que se apresenta o “odor di femina”. Guardadas as diferenças. O que Humbert ressalta é que a nymphet não é uma “femina”. É uma figura pubescente perfeita, tão diferente de uma mulher como alhos de bugalhos. O “que” portado pela nymphet não é uma qualidade do senso comum como beleza ou graça, e vai depender justamente do olhar de quem a vê. Nabokov nos mostra muito bem através de Humbert o poder da sedução, o brilho, o fascínio representado em uma parcialidade. Em um momento são as maçãs do rosto, noutro o tom da pele, ou os anéis do cabelo cobrindo um joelho esfolado, ou esse momento exemplar : “outra ocasião, uma colegial de cabelos ruivos dependurou-se sobre mim no metrô, e uma revelação de pelos axilares que obtive permaneceu em meu sangue durante semanas.” O que aparece “amplificado” aí é relativo a essa qualquer coisa, um detalhe, um relance. É uma parcialidade que faz a captura.

Na vida pessoal, o autor de Lolita foi um estudioso das borboletas, tendo formulado teoria sobre a evolução dos lepidópteros.

Fascinar é um termo que contém fasces, o feixe latino que também origina fascismo, onde seu sentido original é o de amarrar (como num feixe), atar, prender, assujeitar (ref. R. Mezan, vide notas). Nesse sentido seduzir tem a ver também com essa violência refinada, com o ganho de um poder sobre o objeto da sedução. Talvez este seja o recanto onde Lolita se instale frente a seu parceiro. Uma das condições de sustentação da sedução é a não entrega, é esse jogo de subtração. “Ela jamais vibrou sob o meu contato”, Humbert se queixa. “Ao país das maravilhas que eu tinha para oferecer-lhe, a minha tola preferia o mais reles cinema de esquina, o mais enjoativo bombom.” No entanto Lolita negociava com Humbert — tantos dólares, ou cents por um abraço especial, uma carícia mais demorada (suborno é também um dos termos presentes entre os que designam o seduzir). Fica difícil de situar nessas promessas, negociações e concessões quem é que começou. “ A sedução é um jogo em cadeia, e o bom seduzido é sempre um bom sedutor” (ref. L. P. Moisés, vide notas). O seduzido consente em ser enganado, e também engana o sedutor. Lolita nisso tinha seu espaço, jogava os seus dados, mesmo que por vezes ao estilo infantil, para que Humbert a deixasse fazer isso ou aquilo, tal ou qual programa. Os roteiros das viagens seguiam em grande parte seus caprichos, as montanhas de presentes frequentemente eram para adoçá-la, e por aí vai. O assujeitamento, o aprisionamento em que eles se encontram aparece. Nos dois sentidos, mão e contramão : “a minha nymphet colegial me mantinha escravizado”, “eu era fraco e ela se aproveitou disso”; como o inverso : “…na posse e escravidão de uma nymphet, o viajante encantado se encontra, por assim dizer, para além da felicidade.”

As fantasias se apresentam. Lolita, ao referir-se ao hotel em que ficaram e transaram pela primeira vez diz algo como — Ah, aquele hotel em que você me estuprou… Enquanto que a versão de Humbert para a mesma cena é até de uma certa surpresa por Lolita se oferecer a ele tentando mesmo mostrar alguma técnica, alguma experiência. Em outra passagem, num momento de irritação ela diz — tem nome para isso que a gente faz : incesto! Uma fala que o instalaria muito diretamente no lugar de pai. Então, em Lolita poderia haver a tentativa de realização da fantasia de ser violentada pelo papai, o que não é nada incomum para as meninas nas suas fantasias sexuais adolescentes — serem forçadas ao sexo por um homem adulto que se aproveite delas. Humbert, por sua vez, sabe que o que possuía em Lolita não era ela mas sim sua própria criação, uma outra e fantasiosa Lolita, sobrepondo-se a ela, envolvendo-a, transformando-a. Dolores, Lo, Dolly, Lola, Annabel, o amor da adolescência, ou mesmo Carmen, a cigana sedutora. Ele chega a estabelecer o seguinte : “pode ser que a mesma atração que a imaturidade exerce sobre mim resida não tanto na limpidez de uma pura, clara e proibida beleza de criança, como na certeza de uma situação em que infinitas perfeições preenchem a lacuna entre o pouco que é dado e o muito que é prometido…”

Humbert aspirava ser o pai, o professor, o pediatra, o “tudo” para Lolita.

A sedução navega nas promessas.

Nós sabemos que essa visada de realização perfeita, sem faltas, está fadada ao fracasso, é impossível. Humbert aspirava ser o pai, o professor, o pediatra, o “tudo” para Lolita. Um impossível faz com que as promessas, inerentes a toda sedução, não possam se cumprir na perfeição, a decepção é inevitável. Num belo dia Lolita some, vai embora. As coisas acontecem como se a sedução terminasse por levar a uma destruição do desejo, no seguinte sentido: seduzir é tornar-se senhor do desejo do outro, o que termina proibindo o outro de ser desejante. Do outro lado, ser seduzido é deixar-se escravizar ao desejo do outro para não precisar desejar mais nada. Nessa via, fixar-se no canto da sereia é imobilizante, é mortífero. No texto temos a morte de Charlotte, o assassinato de Quilty, a prisão de Humbert e a morte de Lolita. Isso não vai no sentido da moral, parece um pouco mais com as tragédias, como Carmem, tão citada.

Uma observação a mais — o nascimento da psicanálise passa de uma forma muito particular pela questão da sedução. Freud, quando escuta suas primeiras pacientes, vai chegando à conclusão de que praticamente todas tinham passado na infância por uma experiência de sedução por parte de um adulto, uma espécie de abuso sexual acontecido na infância. Ele estranha, será que todas as histéricas foram abusadas por seus pais? Mais tarde chega à conclusão de que isso não correspondia a uma ação acontecida na realidade, mas que fazia parte da fantasia de suas pacientes. É o caminho para formular a concepção de uma outra realidade, não a realidade sensível, mas a realidade psíquica. O que se apresenta a Freud pela trilha da sedução não é uma “mentira” das pacientes, mas sim a fantasia que indica o caminho do desejo. Nesse sentido, desviantes somos todos nós, humanos, que temos nossos desejos sustentados pelas fantasias que nos atravessam.

O que Nabokov traz com Lolita é uma marca da condição humana. Dito nas palavras fortes, com seu estilo impressionante: a labareda na carne.

Lucia Serrano Pereira é psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), doutora em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Nabokov em 1947

Referências Bibliográficas:

NABOKOV, Vladimir. Lolita. São Paulo. Abril S. A Cultural e Industrial, 1981.
NABOKOV, Vladimir. Lolita. São Paulo. Companhia das Letras, 1994.
NABOKOV, Vladimir. A pessoa em questão – uma autobiografia revisitada. São Paulo. Companhia das Letras, 1994.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Flores da escrivaninha. São Paulo. Companhia das Letras, 1990.
RIBEIRO, Renato Janine (organizador). A sedução e suas máscaras : ensaios sobre D. Juan. São Paulo. Companhia das Letras, 1988.

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Crítica gonzo ao On The Road (Na Estrada) de Walter Salles

Eu gosto dos filmes de Salles e costumo defendê-lo em rodas de amigos, mas creio que Na Estrada — adaptação do célebre On the road ,de Jack Kerouac — , tenha tantos defeitos que… Olha, amigo Salles, desta vez vou ter que atacar. Antes gostaria de citar algo curioso: a produção, de fria recepção no Festival de Cannes, foi coberta por um estranho silêncio, os comentadores davam pistas de sua decepção, mas negavam-se a falar mal dela. Agora os compreendo. O filme não é ruim nem bom, tem antes o efeito de uma ducha de água fria, de uma mulher que nos alega estar com dor de cabeça, de um homem que alega cansaço — o filme promete e não cumpre. Após a sessão, eu olhei para minha filha Bárbara. Ela me fazia uma careta interrogativa e a mais terrível das acusações (que repasso a Salles):

— Tu não tinhas me avisado que o filme tinha 3 horas.
— Não dura 3 horas, dura 137 minutos. É que é chato mesmo.

Chato. Exatamente. Os atores realizam boas atuações, o filme é muito bonito e aí temos o primeiro problema. Salles não se afastou de seu elegante cinema de belas imagens, mesmo contando uma história onde as amizades, amores e parcerias são submetidos a alongamentos que rompem quaisquer fibras. E eram um bando de drogados, alguns com objetivos, outros não. Então, o drama deveria ser contado sob som e fúria e, quando há fúria, a fotografia não precisa ser de propaganda de cigarro. Salles cometeu o pecado mortal de não conseguir ser visceral como Kerouac exige e contou uma história fora do tom, tornando a música incompreensível e deixando os personagens meio bobos em meio daquilo que deveria ser — e é no livro — um decisivo drama existencial. Como se não bastasse, há o tamanho da história: o romance de Kerouac é uma verdadeira avalanche narrativa com fatos e opiniões e, bem, não cabe no filme.

Ou seja, o principal ingrediente do On the Road original era sua forma narrativa e esta não recebeu resposta. Como os encontros entre os personagens são espaçados por meses e nunca há um conflito latente para precipitar-se no próximo, depois de 90 minutos a gente pensa que o filme acabará a qualquer momento numa daquelas interrupções. Quando achamos e até desejamos que a cena do estacionamento seja a final, Dean resolve ir para o México e o filme segue por mais mais meia hora… A gente fica meio desesperado. Isto é, estrutura do filme faz com que pensemos “agora acaba, agora acaba”. Sai daí a sensação de “três horas” da Bárbara.

A única ilha de perfeição do filme tem nome e cena. O nome é Kirsten Dunst, que faz uma papel menor em Na Estrada, e a cena é aquela em que ela rompe com Dean Moriarty após mais uma bebedeira com Sal Paradise. Sozinhos num quarto, com um bebê no berço e outro na barriga, Dunst quase salva o filme. É mesmo uma excelente atriz, mas que só pode exercer seu papel num quarto, sem paisagens e em enorme conflito. A cena está tão fora do padrão do filme que não encontrei fotos dela no mar de fotografias de divulgação. Mas é a coisa mais Kerouac de Na Estrada.

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