Não sou nada dado à classificações. Não costumo ler um livro e colocá-lo neste ou naquele escaninho, mas classifiquei este livro num pequeno vídeo que fiz ontem. Para minha própria surpresa, eu enfiei um “neorregionalista”. Agora, com mais espaço e sem a pressão de uma câmera, tentarei explicar meus motivos. Ora, entendo regionalismo quando o autor se utiliza de uma grupo particular de palavras, expressões e maneirismos linguísticos de uma determinada localização geográfica. Geralmente, tal linguagem origina-se em fatores históricos da cultura regional. O prefixo neo correu por conta de minha insegurança e da minha necessidade de diferenciá-lo do romance regionalista dos anos 30 do século passado. Mas comparei-o a Sergio Faraco — na minha opinião e na de muita gente o maior contista brasileiro vivo — e esta é uma comparação válida pelos temas e região.
Sem contrapor As Irmãs com outros livros, digo-lhes que aqui o gauchismo está misturado à mitos e tragédias gregas, havendo inclusive um mapa para a melhor compreensão da relação contos x mitos ao final do livro. Novamente sem querer confrontar alhos e bugalhos, explico que o mapa é parecido com aquele que temos no Ulysses de Joyce, só que aqui os mitos passeiam por Rosário do Sul, Cruz Alta ou São José dos Ausentes, cidades deste nosso pobre e malgovernado Rio Grande do Sul, e os textos não são nada intrincados.
Li os contos inteiramente esquecido dos mitos a que se referiam porque as histórias são realmente boas e interessantes. Ou seja, o livro é uma delícia que pode ser lida como literatura de alta qualidade sem mais. Mas alguém mais culto ou curioso irá notar ou pulará direto ao mapa para ver que mito é aquele, coisa que, repito, não fiz.
O que fiz foi me divertir com as histórias de Prates nestes dias terríveis em nosso estado. Destaco os contos que têm a presença de Nhô Salustiano, o peão contador de histórias, além de As Trovoadas, A Travessia, As Irmãs, A Lanterna e O Retorno.
Recomendo!
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James Joyce apresentou o manuscrito de “Dublinenses” pela primeira vez a uma editora em 1905. Foi rejeitado 18 vezes antes de ser finalmente publicado, em 1914. Seu contrato estabelecia que ele não receberia royalties a menos que o livro vendesse pelo menos 500 cópias — vendeu 499, informaram-lhe.
Uma parte significativa da grande literatura inglesa foi escrita por irlandeses — Oscar Wilde, William Butler Yeast, Bram Stoker, George Bernard Shaw, James Joyce e Samuel Beckett são um exemplo perfeito. Nenhum deles alguma vez negou a sua dívida para com Laurence Sterne, um compatriota nascido em Clonmel, condado de Tipperary, um século antes. Esta dívida não se limita exclusivamente aos autores irlandeses: o francês Denis Diderot, para escrever Jacques, o fatalista”, baseou-se na construção paródica, na rejeição das convenções narrativas e na figura do anti-herói proposta por Sterne que, aliás, foi contemporâneo de Diderot: ambos nasceram em 1713. Dostoiévski em O Idiota narra como o príncipe Mishkin conta a Yelizabeta e suas três filhas a história de uma pobre mulher humilhada em uma aldeia suíça que é literalmente retirada de Viagem Sentimental pela França e Itália, de Sterne. A sua influência também pode ser percebida em autores tão diversos como ETA Hoffmann, Victor Hugo e Charles Dickens. “Eu li Sterne. É admirável”, confessou Tolstói, e traduziu-o imediatamente para o russo; uma admiração que Goethe também não escondeu. Nietzsche considerou que “ele é o escritor mais livre de todos os tempos e o grande mestre da incompreensão… este é o seu propósito, ter razão e não estar certo ao mesmo tempo, misturar profundidade e bufonaria… É preciso render-se à sua fantasia benevolente, sempre benevolente.” Schopenhauer sustentou que os melhores romances de todos os tempos foram: Dom Quixote de La Mancha, Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister, Julia, ou a Nova Heloísa e A Vida e Opiniões de Tristram Shandy, Cavaleiro. A influência de Laurence Sterne não parou, ultrapassou línguas e continentes. Descobriremos que a escrita destemperada, cáustica e insubordinada nos textos de Julio Cortázar, José Lezama Lima e Guillermo Cabrera Infante e até Borges — a estratégia de apresentar autores e livros inexistentes como verdadeiros é típica de Sterne.
A contracapa de Tristram Shandy, que Planeta publicou em 1976, com prólogo de Víctor Sklovski e tradução de Ana María Aznar, traz uma gravura que supostamente seria o rosto de Laurence Sterne. A ironia que se percebe em seu olhar e a expressão mordaz que seus lábios refletem dão uma medida completa do personagem. Ao ver aquela gravura e ao ler seu romance, tende-se a pensar que sua biografia também poderia ser parte de uma farsa, outro truque do próprio Sterne. Porém, os dados são verdadeiros: ele nasceu em 24 de novembro de 1713, numa pequena cidade do condado de Tipperary, no sul da Irlanda. Estudou em Cambridge e em 1738, aos 25 anos, foi ordenado sacerdote da Igreja da Inglaterra. Em 1741 casou-se com Elizabeth Lumley, com quem, nas palavras de Alfonso Reyes, “não soube manter uma relação cordial”. Em 1760 obteve o vicariato de Coxwold, no norte da Inglaterra. Um ano antes, ele havia começado a publicar “Life and Opinions of Tristram Shandy, Gentleman”. Os nove livros que hoje compõem a obra foram publicados, os dois primeiros em 1759 e os restantes sete ao longo dos oito anos seguintes. Sterne morreria alguns meses depois.
Começou a escrever tarde e morreu cedo. Sua vida como escritor não durou mais que nove anos, mas foi tempo suficiente para forjar um romance que criou uma nova forma de narrar a partir da paródia. Em 1760, ele publicou Mister Yorick’s Sermons, um volume no qual compilou os excêntricos sermões que proferiu como vigário na Igreja de Coxwold. Em 1767, sob o título Cartas de Yorick para Eliza, publicou a correspondência que mantinha com sua amante Eliza Draper. Tanto para os sermões quanto para as cartas de amor, ele escolheu o nome do padre Yorick, um dos personagens de Tristram Shandy e por sua vez uma espécie de alter ego do próprio Sterne. Não é por acaso que seu nome era Yorick, como o bobo da corte que Hamlet evoca no quinto ato do drama de Shakespeare. Um mês antes de morrer, apareceu A Sentimental Journey through France and Italy, que alguns consideram ser o epílogo de Tristram Shandy.
Admirador confesso de Cervantes, Rabelais, Swift, Pope e Locke, a influência de cada um deles foi essencial para que Sterne construísse uma obra-prima que, em suas quase quinhentas páginas, antecipa muitos dos recursos narrativos da vanguarda literária de final do século 19. Século 19 e início do século 20, desde peculiaridades tipográficas: duas páginas inteiramente pretas no capítulo 36 do livro terceiro e os capítulos 18 e 19 do livro nono completamente em branco, até capítulos que consistem em uma única frase ou a prévia do monólogo interior que Joyce desenvolveria em Ulisses um século e meio depois.
Pouco depois do aparecimento dos dois primeiros livros, The Life and Opinions of Tristram Shandy, Gentleman tornou-se um sucesso, embora não para todos: o prestigiado Samuel Johnson destacou que o romance ignorava quase todas as regras gramaticais. “Senhor, você não sabe inglês”, disse ele a Sterne, e quando Sterne, sarcástico, reconheceu que era efetivamente ignorante dessa língua, Johnson, definitivamente, declarou: “nada extravagante pode durar”. Samuel Johnson é considerado o melhor crítico literário de língua inglesa de todos os tempos. É claro que mesmo os grandes críticos às vezes cometem erros.
Virginia Woolf nasceu no dia 25 de janeiro de 1882. James Joyce em 2 de fevereiro do mesmo ano. São 8 dias de diferença.
James Joyce publicou seu primeiro livro, Música de Câmara, em 1907. Woolf estreou na literatura em 1915, com The Voyage Out. São 8 anos de diferença.
A curiosidade leva a gente a lugares estranhos. Deste modo, descobrimos que, adulto, Joyce media 1,78m. E que Woolf media 1,70m. 8 centímetros de diferença.
Por justificadas razões, James Joyce escolheu o dia 16 de junho de 1904, uma quinta-feira, para a ação de Ulysses. Já Virginia Woolf marcou Mrs. Dalloway, um romance que também se passa em um dia, para uma quarta-feira também de junho, mas não nos disse dia nem ano. Talvez seja 8 dias antes ou depois do dia 16, mas já estaríamos forçando um pouco, até porque ela falou em meados do mês.
Ulysses foi publicado em 1922, Mrs. Dalloway em 1925, o que quebra de vez nossa numerologia.
Enquanto o Bloomsday é comemorado há décadas, o Dalloway`s Day é bem mais recente, o que talvez seja uma prova de tudo o que Virginia sempre disse: há a ausência da voz das mulheres.
Em fevereiro de 1922, logo após o lançamento de Ulysses, Virginia Woolf escreveu para sua irmã Vanessa, então em Paris: “Pelo amor de Deus, faça amizade com Joyce. Quero saber como ele é”. Ao que tudo indica, Vanessa fracassou em sua missão, porém, em abril, Virginia adquiriu um exemplar de Ulysses por caríssimas – na época – 4 libras. Quando fez a compra, trabalhava em um romance chamado Mrs. Dalloway em Bond Street.
Sim, Virginia leu Ulysses e escreveu em seu diário uma série de considerações que ficavam entre um decidido não gostei e o respeito. Após ler as primeiras 200 páginas, sentenciou: E Tom (T. S. Eliot), o grande Tom, acha que isso se equipara a Guerra e Paz! Parece-me um livro analfabeto e malcriado. (…) É claro que o gênio pode explodir na página 652, mas tenho minhas dúvidas.
Porém, ainda parada na página 200, ela elogiou publicamente o capítulo 6…
Após finalizar a leitura, novas críticas: Terminei Ulysses e acho que foi um erro. É genial, mas difuso e pretensioso. (…) Um escritor de primeira linha, (…) surpreendente; fazendo acrobacias. Lembrou-me o tempo todo algum colegial imaturo, cheio de inteligência e poderes, mas tão autoconsciente e egoísta que perde a cabeça, torna-se extravagante, barulhento, pouco à vontade, faz com que as pessoas gentis sintam pena dele, e as severas apenas se irritem. (…) mas como Joyce tem 40 anos, não amadurece mais. Não o li com atenção; & apenas uma vez; & é muito obscuro.
Enquanto isso, o amigo T. S. Eliot rebatia: Considero Ulysses a expressão mais importante que a era atual encontrou; é um livro ao qual todos devemos e do qual nenhum de nós poderá escapar. As palavras de Eliot se aplicam também a Virginia Woolf – não importa o quanto ela tentasse escapar de Ulysses – ela nunca conseguiu parar de pensar no romance de Joyce. Como observa Suzette Henke, Joyce era uma espécie de “duplo artístico, um aliado masculino na batalha modernista pelo realismo psicológico”.
Já Joyce não parece ter lido Virginia.
Há muitas coisas em comum entre Ulysses e Mrs. Dalloway. Ambos utilizam fluxo de consciência, referências ao passado, epifanias e histórias que se cruzam. Leopold Bloom sai de casa, trabalha, vai a um enterro, caminha pela praia, discute com um antissemita, vai a um bordel, pensa na mulher, volta, etc. Já Clarissa Dalloway flana por Londres a fim de comprar flores para um jantar que dará naquela noite, atravessa um parque, olha vitrines, volta. Notem que os verbos que cabem à Bloom são trabalhar e caminhar, já para Mrs. Dalloway são flanar e passear. Sim, há uma leveza que perpassa o livro de Woolf que é rara em Ulysses. Mas voltemos às semelhanças: ambos os livros dão espaço aos personagens que cruzam com os protagonistas e tocam em fatos bastante rotineiros assim como em outros nem tanto – a guerra no caso de Woolf e o papel da igreja na Irlanda, no caso de Joyce.
Woolf nasceu em berço de ouro e convivia com a nobreza e com os grandes personagens de sua época. Joyce foi um exilado sem recursos que teve lutar duramente pela sobrevivência e para ter sua obra reconhecida. Há outra curiosidade: o casal Leonard e Virginia Woolf tinha uma pequena editora, a Hogarth Press, e um dia eles escreveram a James Joyce a fim de rejeitar o manuscrito de Ulysses. Era muito longo, além da capacidade de sua editora, declararam os Woolf em carta. Era exatamente o tipo de declaração da qual eles teriam se ressentido e desconfiado como escritores.
Lendo Mrs. Dalloway, temos a impressão de que Woolf absorveu muito do livro de Joyce, por mais que o desgostasse.
São duas obras-primas, livros fundamentais da ficção moderna.
Os dois escritores morreram em 1941. Joyce em 13 de janeiro em Zurique e Virginia 74 dias depois, no dia 28 de março, em Lewes, próximo de Londres.
Marco da moderna literatura ocidental, Ulysses, de James Joyce, completou 100 anos de publicação em 2022. E completou bem vivo. Como muitas das grandes obras de arte, o Ulysses de James Joyce tem existência para além da página impressa. Prova disso são as festas anuais, os Bloomsdays, que ocorrem a cada 16 de junho, dia em que se passa a ação do romance em 1904. Trata-se de um livro que deixa obcecadas muitas pessoas, que acabam passando boa parte de seu tempo refletindo sobre suas páginas. O livro refere-se a tantas coisas, deixando tantas pontas soltas, que puxar uma delas pode trazer um novelo de cor inesperada. Poderíamos falar do fato de Leopold Bloom ser judeu e o novelo começaria por sua briga, num bar, com um antissemita. Mas poderíamos tocar nas conexões com a Odisseia de Homero e acabaríamos certamente considerações sobre o paralelismo entre os livros; ou sobre o homem-feminino que Bloom também representa e concluiríamos que esta é uma das primeiras desconstruções do macho; ou quem sabe sobre o verdadeiro paroxismo de invenções linguísticas promovido pelo autor para falar de uma possível loucura – dele. Mas não seria melhor falarmos sobre o monólogo ultra franco e moderno de Molly Bloom – uma verdadeira DR noturna em solilóquio? Ou ainda sobre o medo que o calhamaço de Joyce causa em algumas pessoas?
“Coloquei tantos enigmas e quebra-cabeças que vou manter os eruditos ocupados por séculos, discutindo sobre o que eu quis dizer. Essa é a única maneira de garantir a imortalidade.” A postura de Joyce é irreverente, mas o fato é que Ulysses intriga de verdade. Ele desconcerta a sabedoria convencional, ignora crenças, ataca lugares-comuns, desafia padrões. Muitas das emoções e ações inseridas no romance são contraditórias e inquietantes.
É curioso, apesar de toda a erudição e de todos os enigmas e quebra-cabeças, Ulysses é um romance ao qual parece faltar sutileza, ao menos na superfície. Há águas profundas, mas elas estão sob uma série de coisas que parecem pouco literárias. É um texto nada empolado e que não tem relação com a literatura praticada no século XIX. Fica fácil imaginar a surpresa que causou em 1922.
A história do livro, aquilo que ocorre nas aproximadamente 18 horas do Bloomsday, é muito simples e humano. No dia 16 de junho de 1904, Stephen Dedalus, professor de escola secundária, conversa com o amigo Buck Mulligan, dá uma aula e passeia. Leopold Bloom, vendedor, pensando em uma possível traição de Molly, sua mulher, toma café da manhã, recebe uma carta de amor endereçada ao seu alter ego, vai a um funeral, visita um editor de jornal, lancha num bar, olha um anúncio de jornal na biblioteca, responde a carta recebida, quase leva uma surra de um antissemita, masturba-se na praia observando uma garota, encontra-se com Dedalus num hospital, leva-o a um bordel e convence-o a acompanhá-lo até a sua casa. Ambos urinam no jardim, Bloom entra e se deita ao lado de Molly, que fecha o romance com um monólogo cheio de indignação, lirismo e pornografia. Fim. Isso em apenas um dia. São 18 horas e 18 capítulos, sendo que cada capítulo tem estilo próprio, cada cena faz mil referências – os tais enigmas a que Joyce se referiu acima –, principalmente à Odisseia de Homero.
Este anti-épico por excelência fala muito sobre o fracasso do casamento dos Bloom, com Leopold e Molly finalmente reconhecendo suas responsabilidades no impasse. Molly, a substituta irônica da Penélope da Odisseia de Homero, fica, como sua contraparte clássica, em casa, tendo sido privada de relações sexuais com o marido por 10 anos, 5 meses e 18 dias após a morte do filho Rudy aos 11 dias de vida. Bloom sente-se impotente e desimportante. Em parte devido ao seu conteúdo sexual, o livro de Joyce foi processado por imoralidade em vários países. Há realmente um sentimento de desafio na decisão do autor de apresentar o prazer sexual em uma obra publicada em 1922. E, de fato, os enigmas do romance criaram debates contínuos. O que será de Molly e seu amante Blazes Boylan? Leopold, como o Ulysses de Homero, colocará sua própria casa em ordem? Molly e Leopold conseguirão fazer reviver seu relacionamento moribundo? Essas perguntas podem facilmente se tornar obsessões. Este, é claro, é um resumo muito parcial de um livro que é todo um mundo.
Mas vamos puxar com cuidado a primeira das pontas. Elas parecem montar umas por cima das outras, procurando ganhar importância. Acho que os 18 estilos narrativos têm papel fundamental. Acho que o paralelismo com a Odisseia é lindo. O labirinto das referências nem se fala. Acho que o homem feminil Leopold Bloom, cujo comportamento causa até hoje tanta discussão — um homem sensível, que fazia café para a mulher com a qual não tinha mais relações sexuais, que se preocupava com os filhos, que tolerava o amante em sua cama na sua ausência, isso em 1904 –, é um tipo fundamental, claro. Ou será que as piadas grossas, os incríveis e coloridos trocadilhos, a falta de limite entre erotismo, pornografia e higiene é ainda mais central no livro? Por exemplo, na cena com Gerty MacDowell em que ele se masturba na praia, embevecido pela beleza da moça, ela vê o que ele faz (sem problemas), ele ejacula nas calças (OK), mas Joyce vai além: Bloom caminha, a coisa seca, gruda. o prepúcio fica fora do lugar, ele precisa ajeitar as coisas no púbis. Vamos por este caminho?
Também quando Molly — à noite, sempre à noite, antes de dormir, como as mulheres gostam (pedimos escusas pela joyceana fraqueza) — faz sua DR em solilóquio, num furioso fluxo de consciência, o autor não recua, usa todos os termos e diz o que até em nossos dias ainda evitamos. Esta é uma das razões pelas quais todos nós dizemos “sim, eu digo sim” à Ulysses. Tem muito sexo no romance. Ele não é nada conservador. Ele totalmente diz na cara. E o mundo parece não ter evoluído suficientemente para absorvê-lo. Enquanto não o fizer, as quase mil páginas do livro permanecerão pulando, vivas, na nossa frente.
Os monólogos interiores de Ulysses ainda eram uma novidade na época do lançamento do livro. Na verdade, o stream of consciousness não foi uma invenção de Joyce e sim do francês Édouard Dujardin, cujo livro Os loureiros estão cortados foi lançado pela editora porto-alegrense Brejo, em 2005, com prefácio explicativo de Donaldo Schüller. O monólogo interior permite ao leitor de Joyce, fazer o contraste entre a riqueza da vida imaginativa de um indivíduo contra o fundo da pobreza de suas relações sociais. Quando comparados com a vida interior dos personagens, os diálogos de Ulysses não são grandemente satisfatórios. Leopold Bloom não perdoa as traições de Molly verbalmente, porém sabemos detalhadamente, por seu íntimo, que ela está perdoada. Os personagens do Ulysses são enormes, imensamente fluentes em seus interiores, mas não são nada articulados verbalmente. Vão embora sem dizer o que têm em mente e é apenas na solidão que alcançam suas verdadeiras vozes. O que dizer do monólogo final de Molly Bloom? Ali ela se expõe ao leitor de uma forma muito transgressora — mas está sozinha enquanto o marido dorme ao lado — , tem fantasias que surpreendem mesmo um século depois. Joyce, escrevendo os pensamentos do cérebro de Molly, constrói o gozo feminino primeiro com liberdade e depois com humor, celebrando como nunca antes o desejo da mulher numa época em que a literatura ainda não o fazia.
Os encontros, como o de Bloom com Gerty MacDowell, são em geral sem palavras, conduzidos pelo corpo. Há muitas frases pela metade. Por exemplo, após masturbar-se na praia, Bloom escreve na areia “sou um”. O casamento com Molly também serve para ilustrar a falta de articulação. É uma ligação silenciosa de duas pessoas que compartilham uma casa, uma cama, quem sabe amor, mas não uma vida.
E Bloom, como dissemos, comporta-se estranhamente para um homem da virada do século. Arruma a cama, limpa o lençol, tem sentimentos de empatia para com uma mulher grávida, preocupa-se com a filha, morre de saudades do filho, têm fantasias de que está grávido. Mais: Bloom sente-se inconformado e invejoso pela centralidade da mulher no processo dar à luz. Seis semanas antes de seu filho Rudy nascer, é visto comprando uma lata de alimento infantil, o que prova para seus amigos que ele não é bem um homem. Pior: eles dizem que ele, uma vez por mês, fica com dor de cabeça “como uma franguinha com as regras”. Também como talvez uma mulher fizesse, ele evita que Gerty o veja de perfil, quer que ela o veja em seu melhor ângulo. Depois, Gerty faz o mesmo.
Ulysses borra a distinção entre os sexos. No episódio “Penélope”, o do monólogo de Molly, é revelada sua promiscuidade, suas lembranças de relacionamentos anteriores e memórias de sua família. Quando lembra da amamentação de Milly, ela fala que algumas vezes amamentou simultaneamente também a Bloom: “Eu pedi para chupar meus seios, ele disse que o que saía era doce e mais espesso do que o das vacas”. Enquanto muitos acharam e ainda acham isso o cúmulo da pornografia, talvez seja melhor relacionar a cena à sugestão de que a mulher pode ser uma provedora familiar ou que pode rebaixar o homem a uma posição infantil. Nas duas hipóteses, o texto de Joyce subverte a masculinidade.
Na verdade, Bloom e sua esposa comportam-se como verdadeiros andróginos. Eles seriam “encarnações das palavras de Freud de que mulheres dominadoras e viris são atraídas e atraentes para os homens femininos”. A sensibilidade associada à feminilidade e a agressividade associada à masculinidade não funcionam para o casal. No entanto, as qualidades femininas de Bloom e as dominadoras de Molly não garantem uma vida sexual em comum e a impressão que fica é de uma incompatibilidade confortável para ambos. No monólogo, Molly exibe suas características masculinas na recapitulação de seu primeiro encontro sexual com Bloom em Howth Head, em consonância com que já sabíamos de Bloom: “Ela me beijou. Fui beijado. Estava à sua mercê e ela arrumou meu cabelo. Beijado. Ela me beijou.” (A simbologia adquire mais força quando ele recorda que Molly, em seu primeiro encontro, mastigou um pedaço de bolo e, beijando-o, colocou-o quente e mastigado em sua boca), como se fosse uma mamãe pássaro.
Bloom não deseja impedir o adultério de Molly com Blazes Boylan. Ele chega a imaginar uma cena na qual entrega sua esposa a Boylan. Essencialmente, ele permite a infidelidade da esposa para que ela possa experimentar o prazer enquanto ele procura a sua própria e particular satisfação com as mulheres de Dublin.
Em Ulysses, Joyce tenta descrever outras situações da sexualidade humana, ainda não presentes em romances. Joyce não julga nem demonstra desejo de advogar como acertadas, entre aspas, determinadas práticas ou condutas sexuais, mas revela a inconsistência dos comportamentos estereotipados de gênero, ao mesmo tempo que coloca o desejo no centro de muitas, de muitíssimas de nossas ações.
Além de contradizer a sociedade, Joyce igualmente contradiz a religião. A masturbação de Bloom é justaposta a um serviço religioso, claramente a fim de comentar as restrições que a religião coloca sobre as expressões sexuais pessoais. Descrevendo o Bloom onanista, com o serviço religioso ocorrendo ao fundo, Joyce faz várias citações bíblicas, transformando Gerty num piedoso emblema de uma Virgem Maria de natureza libidinosa, que incita (e excita) Bloom. Joyce parece fazer piada com a possibilidade da religião dominar o desejo carnal, apresentando a concupiscência como um componente óbvio e intrínseco à existência humana. E segue desafiando modelos quando Bloom se envolve em encontros voyeuristas durante sua jornada em Dublin.
Joyce conhecia e respeitava Freud, porém Ulysses não necessariamente se encaixa nas obras dos psicanalistas da época. A incorporação da sexualidade pelo livro exemplifica principalmente um não-conformismo. Durante todo aquele 16 de junho, os protagonistas tiveram que enfrentar muitas coisas. Porém, quando focamos uma lente crítica sobre as representações de sexo no romance, podemos notar como Joyce foi cuidadoso ao construir e apresentar os apetites sexuais de cada personagem. Ao usar o sexo como uma ligação entre personagens e leitores, James Joyce foi capaz de criar representações universais formadas por muitas camadas. Notem como o romance é finalizado com o orgásmico “sim” de Molly, algo que é final e evidentemente muito afirmativo. Foi certamente a primeira vez que tivemos acesso a tamanha interioridade. O recurso narrativo do fluxo de consciência, despregado das limitações dialogais, demonstra claramente cada identidade.
Segundo Álvaro Lins, Joyce foi “um revelador do caos num mundo em desordem”. Consciência e subconsciência, angelitude e animalidade, ideias e instintos, natureza física e natureza psíquica, é o ser humano sempre por inteiro que Joyce busca apresentar em sua obra. No imenso mar joyceânico nenhuma concepção é ignorada, elas estão no livro e nas mentes dos personagens bem como estão as realidades que as representam. Segundo Edmund Wilson, Joyce, a partir desses eventos, “edificou um quadro espantosamente vivo e fiel do mundo cotidiano, o qual possibilita uma devassa e um acompanhamento das variações e complexidades de tal mundo, como nunca foi feito antes”.
Estilisticamente pantagruélico, Joyce, em Ulysses, não apenas constrói o romance moderno como o ameaça com um catálogo aparentemente interminável de temas e estilos. E, dentro deste amplo cenário, invoca Eros como metáfora universal da condição humana.
As frequentes transgressões linguísticas, a justaposição de frases ostensivamente poliglotas, a mistura de estilos — épico, lírico, drama, comédia — são os percursos seguidos por Joyce com a finalidade de quebrar os protocolos estabelecidos do gênero do romance para chegar à essência das coisas e à exploração do inconsciente, escondido pelas aparências. Fico fascinado também pelos 18 estilos diferentes, os 18 “escritores diferentes” chamados por Joyce para escreverem o maior romance do século XX.
Desde que acorda até voltar à cama — onde sua Penélope-Molly tece enorme teia de fantasias eróticas que nunca serão do conhecimento do marido –, Leopold Bloom protagoniza um monumento de rara sutileza, difícil de penetrar, mas só quem tenta obtém chegar a suas grandes iluminações.
Voltemos ao assunto da censura. O livro foi proibidíssimo e apenas chegou a nós por milagre. Por exemplo, um episódio do livro, entregue a uma datilógrafa, chocou de tal forma seu marido que este o arremessou às chamas. Mas havia outra cópia, menos revisada, com Joyce. Durante a Primeira Guerra Mundial, um capítulo inteiro — Sereias — foi interceptado por autoridades militares que desconfiaram que aquilo era uma longa mensagem escrita em código, algo vital para o inimigo…
Suas características satíricas, viscerais e brutalmente realistas, chocaram profundamente a sensibilidade do leitor médio, decepcionado ainda pela fascinação do autor pela linguagem, pelas várias formas narrativas, pela louca musicalidade e certamente pela descontrolada potência semântica.
Sim, ainda é o mais extravagante, divertido e sujo dos livros.
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* Milton Ribeiro é escritor, jornalista e livreiro, proprietário da Livraria Bamboletras em Porto Alegre / RS.
1 – Querido Lula: cartas a um presidente na prisão, de Maud Chirio (Boitempo)
2 – O Avesso da Pele, de Jeferson Tenório (Companhia das Letras)
3 – Os Supridores, de José Falero (Todavia)
4 – A Boa Sorte, de Rosa Montero (Todavia)
5 – Escravidão vol. 3, de Laurentino Gomes (Globo Livros)
6 – Violeta, de Isabel Allende (Bertrand Brasil)
7 – Gabo & Mercedes: uma despedida, de Rodrigo García (Record)
8 – Ulysses, de James Joyce (Penguin)
9 – Tudo é rio, de Carla Madeira (Record)
10 – Com quantos rabinos se faz um Raimundo, de Nurit Bensusan (Confraria do Vento)
Neste próximo sábado (18), vou moderar o Bloomsday de 2022 no Instituto Ling. Abaixo, algumas anotações.
A Casa de Cultura Mario Quintana e Instituto Ling apresentam esta edição especial do Bloomsday, comemorativa aos 100 anos da publicação de Ulysses, de James Joyce.
O Bloomsday é celebração do romance Ulysses, do irlandês James Joyce, e ocorre anualmente no dia 16 de junho, data em que ocorre a ação do romance. Há controvérsias sobre o ano em que começou a ser comemorado. Alguns indicam o ano de 1925 (três anos após o lançamento do livro); outros afirmam que foi na década de 1940, logo após a morte de Joyce. A hipótese mais aceita indica que foi em 1954, na data do quinquagésimo aniversário do dia retratado em Ulysses, o célebre 16 de junho de 1904. O que sabemos é que ele hoje é comemorado não apenas em Dublin, mas no mundo inteiro, onde haja admiradores do livro.
Como muitas das grandes obras de arte, o Ulysses de James Joyce tem existência além da página impressa. É um romance que deixa obcecadas muitas pessoas, que podem passar boa parte de suas vidas refletindo sobre suas páginas. No entanto, muitos leitores não iniciados veem o épico de Joyce com um medo paralisante, algo que o autor não amenizou nesta carta de meados da década de 1920: “Coloquei tantos enigmas e quebra-cabeças que vou manter os eruditos ocupados por séculos, discutindo sobre o que eu quis dizer. Essa é a única maneira de garantir a imortalidade.” A postura é claramente irreverente, mas o fato é que Ulysses não é fast-food. Ele desconcerta a sabedoria convencional, ignora crenças, ataca lugares-comuns, desafia padrões. Muitas das emoções e ações inseridas no romance são são contraditórias, multifacetadas e inquietantes.
A história do livro, aquilo que ocorre nas aproximadamente 18 horas do Bloomsday, é simples e humano. No dia 16 de junho de 1904, Stephen Dedalus, professor de escola secundária, conversa com seu amigo Buck Mulligan, dá uma aula e passeia nas margens do rio. Leopold Bloom, vendedor, atormentado por uma possível traição de Molly, sua mulher, toma café da manhã, recebe uma carta de amor endereçada ao seu alter ego, vai a um funeral, visita um editor de jornal, lancha num bar, olha um anúncio de jornal na biblioteca, responde a carta recebida, quase leva uma surra de um anti-semita, masturba-se na praia observando uma garota, encontra-se com Dedalus num hospital, leva-o a um bordel e convence-o a acompanhá-lo até a sua casa. Ambos urinam no jardim, Bloom entra e se deita ao lado de Molly, que fecha o romance com um monólogo cheio de pornografia. Fim.
Tudo isso em apenas um dia. São 18 capítulos que cobrem aproximadamente 18 horas. Cada capítulo é escrito tem estilo próprio, cada cena fazendo mil referências, principalmente à Odisseia de Homero. Não é uma epopeia do cotidiano, mas sim uma obra anti-épica. As frequentes transgressões linguísticas, a justaposição de frases ostensivamente poliglotas, a mistura de estilos — épico, lírico, drama, comédia — são os percursos seguidos por Joyce com a finalidade de quebrar os protocolos estabelecidos do gênero do romance para chegar à exploração do inconsciente, escondido pelas aparências.
Joyce era um criador incomparável de palavras e trocadilhos. Também foi um explorador aventureiro de como a mente funciona, de como pensamentos aleatórios podem provocar imagens por livre-associação, causando saltos ou recuos. Os pensamentos e sentimentos dos três personagens principais — Leopold Bloom, Molly Bloom e Stephen Dedalus — muitas vezes lutam com a natureza escorregadia e incontrolável da memória. Eles são indivíduos extremamente críveis. E é por isso, apesar dos obstáculos que o autor conscientemente estabelece para seu público, que o livro é tão atraente hoje quanto era há um século. Há uma clareza escondida em Ulysses, apesar de suas muitas complexidades.
O romance é principalmente sobre o fracasso do casamento dos Bloom, com Leopold e Molly finalmente reconhecendo suas responsabilidades no impasse. Molly, a substituta irônica da Penélope da Odisseia de Homero, fica em casa como sua contraparte clássica, tendo sido privada de relações sexuais com o marido por 10 anos, 5 meses e 18 dias. Por que essa abstinência épica? Porque, após a morte de seu filho de 11 dias, Rudy, Leopold não conseguiu ou não quis fazer o que geralmente é considerado amor convencional com sua esposa.
Dublin. Poucos romances estão tão ligados ao seu cenário quanto Ulysses está. Antes da publicação do romance em 1922, a cidade, que no início de 1900 tinha uma população de pouco mais de 400.000 habitantes, fora visitada por Joyce pela última vez em 1912. Ele se exilou de propósito, ciente de que nem sua vida nem seu trabalho poderiam florescer naquele mundo reprimido, empobrecido e culpado, dominado pela Igreja Católica Romana e pelo colonialismo inglês. No entanto, mentalmente, ele nunca se ausentou da cidade de seu nascimento. Suas principais obras – Dublinenses (1914), Retrato do artista quando jovem (1916), Ulysses (1922) e Finnegans Wake (1939) – são todas ambientados nesse local “tão amado e sujo”.
Leopold Bloom está constantemente em movimento pela cidade, durante todo o dia e metade da noite, está sempre alerta ao seu entorno, mas na verdade ele está ciente da presença de Blazes Boylan — o homem que se tornará amante de Molly naquela tarde. Ao longo do dia retratado pelo épico, Bloom é atormentado pelo candidato aos favores amorosos de sua esposa. Blazes Boylan parece estar em toda parte. Ele conta as horas para as quatro da tarde, horário programado por Molly.
Em parte devido ao seu conteúdo sexual, o épico de Joyce foi processado por imoralidade. Há um sentimento de desafio na decisão do autor de apresentar o prazer sexual em uma obra publicada em 1922. Mas o romance não é um tratado de sensualidade sobre as alegrias e as decepções de eros.
De fato, os enigmas do romance criaram debates contínuos. O que será de Molly e Blazes Boylan? Leopold, como seu progenitor épico Ulysses, colocará sua própria casa em ordem? Molly e Leopold conseguirão fazer reviver seu relacionamento sexual moribundo? Essas perguntas podem facilmente se tornar obsessões para toda a vida.
Neste sábado, dia 18, no Instituto Ling, serei o mais incapaz dos membros das mesas do Bloomsday. Imaginem que lá estarão Jeferson Tenório, Donaldo Schuler, Edson Luiz André de Sousa, Carlos Gerbase, Elida Tessler, além do ator João Petrillo, da Banda Irish Fellas e da Cervejaria FIL.
Sim, você não é trouxa e entendeu: haverá cerveja da boa em evento sobre o Ulysses de Joyce. Bebam com moderação, mas o bastante para esquecer tudo que eu disser. COMPAREÇAM!!!
Abaixo, a programação:
15h45 – Banda Irish Fellas mais Cervejaria Fil abrem a festa
16h – Leopold Bloom dá as boas-vindas aos presentes
16h10 – Painel Literatura
Ulysses 100 anos e o legado de Joyce: Jeferson Tenório e Donaldo Schuler, com mediação de Milton Ribeiro
16h40 – Banda Irish Fellas
16h50 – Performance Teatral, com Leopold Bloom
17h – Painel Arte e Psicanálise
James Joyce era louco? Divagações sobre Arte e Psicanálise: Edson Souza, Elida Tessler e Carlos Gerbase, com mediação de Milton Ribeiro
Este volume é uma coletânea de dois contos de James Joyce — Os Mortos e Arábias, ambos de Dublinenses — e do capítulo final de Ulysses, o monólogo de Molly Bloom. Comprei o livro em razão do monólogo — queria relê-lo, mas não queria carregar o pesado Ulysses completo por aí — só que também gostei muito de revisitar os dois contos, que são perfeitos em sua melancolia.
Os Mortos é o último conto da coleção Dublinenses de 1914. É de longe a história mais longa da coleção, quase longa o suficiente para ser descrita como uma novela. A história lida com temas de amor e perda, além de levantar questões sobre a natureza da identidade irlandesa.
Arábias conta a paixão de um menino pela irmã de seu amigo. Narrado em primeira pessoa, o leitor mergulha na vida monótona da North Richmond Street, que parece ser iluminada apenas pela imaginação das crianças que, apesar da crescente escuridão do inverno, insistem em brincar “até que seus corpos brilhassem”. Esses meninos estão à beira da consciência sexual e, impressionados com o mistério de outro sexo, estão famintos por conhecimento.
Difícil imaginar duas histórias que sejam mais bem escritas. E estão dentro de um formato rigorosamente clássico.
Já o Monólogo de Molly Bloom traz o Joyce revolucionário de Ulysses. Aqui, temos mais uma torrente do que um fluxo de consciência. É um texto implacável e sem pontuação. No final do gigantesco romance experimental de 1921 de James Joyce, depois que seu herói finalizou suas andanças e voltou para casa, sua esposa, Molly, dá a última palavra. Ou melhor, dá muitas, muitas palavras. “Sim” é o primeira delas e também a última: “e sim eu disse sim eu quero Sim” – uma frase tão famosa que você pode conhecê-la mesmo que não seja familiarizado com o livro.
Molly Bloom é a esposa de Leopold Bloom, o personagem central do livro. Ela nasceu em Gibraltar em 1870, filha de um oficial militar irlandês e um gibraltino de ascendência espanhola. Em Dublin, onde o romance se passa, Molly é uma conhecida cantora de ópera. Molly e Leopold tem um casamento já sem sexo, mas Molly ainda está em seu auge sexual e dormiu com muitos homens — fato de que seu marido está bem ciente.
O solilóquio de Molly começa depois que Leopold se acomoda na cama, murmurando algo sobre ovos. Na cama, deitada ao lado do marido, Molly não consegue dormir. Sua mente começa a vagar dos ovos de Leopold para os eventos do dia anterior (16 de junho de 1904) e para memórias mais distantes. O solilóquio, de aproximadamente 22.000 palavras, consiste em oito “frases” extremamente longas. Os pensamentos de Molly vão da saúde de Leopold para a lembrança de suas tentativas bastante lamentáveis de infidelidade e para as memórias de suas próprias aventuras sexuais muito mais gratificantes. Naquele mesmo dia, ela estava com seu amante mais recente, Blazes Boylan, um empresário de shows, para o que seu marido sabia não ser uma reunião de negócios. Molly descreve seus encontros sexuais em detalhes. (Suas palavras, especialmente as referências a funções excretoras e sexuais, encheram páginas de relatórios da censura de diversos países na primeira metade do século XX).
A mente de Molly também volta para sua infância em Gibraltar, ou avança para sua preparação para as músicas que ela cantará em uma próxima turnê. Quando ela finalmente adormece, seus últimos pensamentos voltam-se para seu primeiro encontro com Leopold, e no momento em que ela soube que estava apaixonada por ele.
Em uma carta de 1921, Joyce disse: “A última palavra (humana, humana demais) é deixada para Penélope”. descrita como “a palavra feminina” e que ele disse desejar indicar “aquiescência, abandono, relaxamento, o fim de toda resistência”.
Três livros bem diferentes. Sem bossa não há quem possa descreve os antigos bailes do interior e seus causos. Quando deixamos de entender o mundo é um grande sucesso editorial ao perfilar cientistas que perderam a razão (Karl Schwarzschild, Erwin Schrödinger, Werner Heisenberger e outros). O livro tem mais ou menos a mesma proporção de ficção e não ficção. A ficção aponta a estranheza, a ambiguidade, que a História, a ciência e a não ficção não admitem. Já Exílios e Poemas é uma demonstração do talento poético e da dramaturgia de James Joyce. Sim, foi muito difícil encontrar algo que una estes livro que não seja a (alta) qualidade.
Uma excelente semana com boas leituras!
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Imagine reunir em um mesmo lugar as melhores orquestras do Brasil e do exterior e as mulheres mais bonitas, elegantes e charmosas da região. Festas com atrações desse nível marcaram gerações. Em General Câmara, o glamour, a alegria e a diversidade dos bailes atraíam casais para a famosa pista do Cassino dos Operários. Tempo de romance ao som de inocentes marchinhas de carnaval, danças de rosto colado e troca de olhares que poderiam significar muito mais do que uma simples paquera. Neste livro, além e acima de tudo, o leitor se divertirá com relatos inéditos e engraçados, contados a rigor e a passeio. Pequenos flashes que exaltam lembranças que os anos não apagam.
Em 2012, o matemático japonês Shinichi Mochizuki publicou artigos provando uma das mais importantes conjecturas da teoria dos números. Quando sua prova foi considerada impossível de entender pelos maiores especialistas da área, Mochizuki terminou por se excluir da sociedade, evocando o autoexílio de outro matemático, o lendário Alexander Grothendieck. Haveria alguma conexão enigmática entre esses dois homens? Esse é o ponto de partida de “O coração do coração”, uma das narrativas que o chileno Benjamín Labatut reuniu neste livro que o tornaria uma sensação mundial. Elementos parecidos figuram nos outros textos: cientistas tão geniais quanto atormentados perseguem suas ambições ao custo da saúde física e mental, enquanto os desdobramentos pessoais e históricos de suas descobertas atravessam o tempo e o espaço. Baseando-se em biografias e teorias reais, mas recorrendo à ficção para produzir efeitos estéticos e associações de ideias, o autor explora em seus relatos o entrelaçamento entre a vida íntima e o desbravamento científico. Com um estilo em que ouvimos ecos de W. G. Sebald e Roberto Bolaño, o leitor pode sentir que está diante da montagem hábil de um belo quebra-cabeças.
Este volume reúne toda a poesia publicada em vida por James Joyce, a peça “Exílios” – que contém temas posteriormente explorados em Ulysses – e um conjunto de notas elaboradas pelo autor durante o processo de escrita. Antes da publicação de Ulysses, James Joyce lançou a peça Exílios em 1918. Nela, o autor explora temas que aparecerão em sua obra magna, como as relações complexas de adultério e desejo. Neste volume estão reunidas a peça e também sua produção poética, sendo possível ter uma visão mais ampla das ideias do autor não só sobre o exílio, como também sobre a própria literatura.
Além da peça e dos poemas, esta edição conta com um conjunto de notas que Joyce elaborou durante o processo de escrita e alguns fragmentos de diálogos não incluídos na versão final do texto.
O mundo literário pode ser uma espécie de câmara de eco. Ou seja, se um número suficiente de pessoas diz que um livro é “ótimo”, o fato se torna oficial. Torna-se um Grande Livro, e olhares horrorizados são dirigidos a quem ousar menosprezá-lo. Reputações como essa podem ser feitas mesmo quando quase ninguém leu o livro em questão, apenas passando alguns “ouvi dizer que é incrível”. Mas mesmo quando todos parecem concordar, é uma aposta segura que existem alguns — em alguns casos mais do que alguns — dissidentes por aí. Eles podem estar apenas escondidos.
Parece uma pena hoje em dia que muitos escritores sentem que não podem expressar publicamente quaisquer sentimentos negativos sobre um livro — isto é ruim para os leitores, que cada vez mais contam com seus autores favoritos para sugestões, e também para a indústria do livro, que corre o risco de exagerar em seus esquecimentos. Entendo por que isso acontece, mas isso é um ensaio para outra hora.
Tudo isso para dizer que é divertido ver um gigante levar uma surra (especialmente se você secretamente não gostou tanto daquele gigante), e ainda mais divertido ver gigantes lutarem — que é mais ou menos como eu me sinto lendo grandes escritores menosprezando o trabalho de outros grandes escritores. Todas as lendas em questão são seguras, o que torna a dissensão literária — e convenhamos, comentários maldosos — um prazer sem culpa.
Então, sem mais delongas, uma seleção de escritores que odiavam livros que se tornaram clássicos e o que diziam sobre eles. Se eles estavam certos ou errados ainda está em debate.
.oOo.
Virginia Woolf em Ulysses, de James Joyce
De seus diários:
Quarta -feira , 16 de agosto de 1922:
Eu deveria estar lendo Ulysses e inventando o meu a favor e contra. Li 200 páginas até agora — nem um terço — e foram momentos divertidos, estimulantes, encantadores, interessantes os primeiros dois ou três capítulos, até o fim da cena do cemitério. E então tudo ficou entediante, irritante e desiludido como se fosse escrito por um estudante enjoado. Tom, o grande Tom [TS Eliot], acha que isso está no mesmo nível de Guerra e Paz! Um livro analfabeto, mesquinho, parece-me. O livro de um trabalhador autodidata, e todos sabemos como são angustiantes, como são egoístas, insistentes, crus e, em última análise, nauseantes. Quando se pode comer a carne cozida, por que servir-se da crua? Mas acho que se você é anêmico como Tom, há glória no sangue. Posso revisar isso mais tarde sem comprometer minha sagacidade crítica. Eu planto um graveto no chão, marcando a página 200.
Quarta-feira, 6 de setembro de 1922:
terminei Ulysses e acho que é falho. É também genial, eu acho; mas de extração inferior. O livro é difuso. É salobro. É pretensioso. É um subproduto não apenas no sentido óbvio, mas também no sentido literário. Um escritor de primeira linha que quer escrever para ser complicado, que gosta de acrobacias. Lembrou-me o tempo todo de algum garoto de escola inexperiente, cheio de inteligência e poderes, mas tão autoconsciente e egoísta que perde a cabeça, torna-se extravagante, barulhento, inquieto, faz as pessoas gentis sentirem pena ele e deixa as pessoas severas irritadas; esperando que ele cresça com isso. Só que, como Joyce tem 40 anos, isso não parece provável… É totalmente absurdo compará-lo com Tolstói.
Outro fragmento encontrado no meu micro. Sim, no dia 2 de fevereiro, Ulysses completará 100 anos incomodando.
Quando nos encontramos com Leopold Bloom, ele está fazendo café da manhã para sua esposa e falando carinhosamente com um gato. Se você passasse por Bloom na rua, nunca o notaria. Sua vida exterior é circunscrita pelas ruas de Dublin e pelas exigências de sua carreira totalmente inconsequente (publicitário), mas sua vida interior é vasta e cheia de humor. Ele está totalmente à vontade com suas próprias sombras e contradições. Ele aceita o mundo e sente prazer nas menores coisas. Conheceu a tragédia — o suicídio de seu pai, a morte de seu filho recém-nascido — e conheceu a alegria, como marido de Molly e pai de Milly. Ele ama animais, abomina a violência e aceita o fato de que sua esposa está transando com outra pessoa. Esta última parte lhe causa dor, mas ele aprendeu há muito tempo que o mundo é maior do que sua dor e possessão não faz parte de sua compreensão do amor.
Bloom é o filho de um imigrante judeu e, portanto, não é a escolha óbvia para ser o herói de um épico irlandês. Bloom é Dublin por completo, mas ele ainda é um estranho. Seus concidadãos gostam muito dele, mas ele ainda é um mistério e eles não confiam nele. Em suas mentes, ele é passivo e “feminino”. Todos sabem que sua esposa está tendo um caso. O que está errado com ele? Que tipo de homem é esse?
Bloom é rapidamente ridicularizado por expressar essa queixa sentimental, mas ele não parece se importar. Ele tem acesso a uma palavra, a um sentimento, a um universo — o amor — que homens como os seus contemporâneos fazem tudo o que podem para evitar. Porque deixar entrar aquela palavra, esse sentimento, destruiria a fachada de força que eles passam todo o tempo tentando manter.
O labirinto de Ulysses parece ter sido projetado com um propósito, dentre outros: neste dia comum, 16 de junho, um jovem, Stephen Dedalus, conhecerá um homem mais velho, Leopold Bloom, que é totalmente livre das definições de masculinidade que fizeram o mundo tão miserável. Bloom acorda Stephen de seu pesadelo.
Este fragmento estava no meu micro. Não lembro de tê-lo escrito, mas tenho tantos arquivos esquecidos por aí que sei lá se é meu ou copiado. Minha dúvida vem dos muitos parênteses. Não costumo usá-los tanto assim. Bem, vocês devem saber que Ulysses completa 100 anos no próximo dia 2 de fevereiro, não?
O tema da sexualidade é essencial no Ulysses de James Joyce. Este romance é pontuado de passagens que descreve sexo e, principalmente, falam a respeito. Tal onipresença da sexualidade conduz o leitor através do romance como um tema central: a maioria das ações centra-se no encontro das 16h entre a esposa de Leopold Bloom, Marion (Molly) Bloom e Hugh Boylan. Este encontro é muito significativo durante aquele 16 de junho de 1904. Engraçado meu relógio parou às quatro e meia, ele vem à tarde, Bloom está sempre com isso na cabeça. São apenas duas as passagens que se referem ao encontro de Molly com Boylan e, portanto, a seu caso com outro homem.
Desde sua publicação, Ulysses criou grande polêmica devido a suas passagens obscenas. O livro foi classificado como escandaloso e se tornou um objeto de censura. Hoje, não parece tão obsceno, porém o caráter de Leopold Bloom surpreende e é moderno até hoje.
Leopold Bloom tem enorme admiração pela esposa, acha-a linda, parece envaidecido com os elogios que ela recebe, mas não dorme com ela desde a morte de seu filho Rudy, mais de uma década antes. Como alternativa, procura por pequenas “aventuras eróticas” em sua vida cotidiana. No açougue, ele dá uma boa olhada no traseiro de uma mulher. Caminha atrás dela. Agradável ver isso logo de manhã. Em outra passagem, Bloom observa uma bela dama na rua enquanto está conversando com McCoy até que de repente um bonde passa e bloqueia sua visão.
A história está cheia desses pequenos incidentes, que são uma alternativa à antiga vida sexual de Bloom com Molly. Lembrando-se de um momento íntimo com sua esposa, Leopold Bloom, nota uma diferença entre ele mesmo há 10 anos: “Eu. E eu agora. ”. Ele de certa forma se apieda e anseia por afeição física, que ele compensa com a masturbação.
Ao longo da história, o leitor descobre vários encontros sexuais de Leopold Bloom com outras mulheres.
Leopold Bloom tem uma correspondência erótica com uma mulher chamada Martha, para o qual ele usa o pseudônimo “Henry Flower”. Ao ler a carta de Martha, pode-se supor que Martha está ansiosa para conhecer Bloom, e também que Bloom deve ter negado esse pedido várias vezes: “Oh, como eu anseio em conhecê-lo. Henry querido, não negue meu pedido antes que minha paciência se esgote.”. No geral, a carta de Martha parece ser muito apaixonada e íntima, já que ela se refere a Bloom como “desobediente”. Bloom, por outro lado, parece estar bastante entediado, ou talvez até incomodado com essa correspondência, o que pode ser visto na passagem em que ele responde à carta de Martha. Sentado em um hotel, ele casualmente escreve sua carta, fingindo que é um anúncio e observando que ninguém perceba que na verdade não é.
No entanto, Leopold Bloom quer manter contato com Martha e tenta “continuar assim”. Ele só pode usar essa correspondência para aumentar sua autoconfiança, já que Martha adora ‘Henry Flower’.
O 13º episódio Nausicaa fala sobre Bloom estar na praia assistindo uma jovem garota chamada Gerty MacDowell. Este episódio pode ser visto como uma das passagens centrais sobre a sexualidade em Ulysses. Também pode ter sido recebido como a passagem mais “obscena” do romance, quando Leopold Bloom observa a uma jovem garota, que provavelmente tem mais ou menos a mesma idade de sua própria filha, com uma conotação erótica. Além disso, o protagonista se masturba na praia, o que teve um caráter ofensivo nos tempos de Joyce.
O capítulo está dividido em duas partes. A primeira parte é contada por um narrador onisciente em um estilo feminino de escrita. A segunda parte de Nausicaa muda novamente para o monólogo interior de Leopold Bloom.
No início do capítulo, Gerty é descrita como extremamente bela, quase parecida com uma deusa: “A palidez do rosto era quase espiritual em sua pureza de marfim, embora sua boca de rosa fosse um arco genuíno de Cupido, grega perfeito”. Esta menina está passando a tarde na praia com duas de suas amigas, até que Leopold Bloom aparece. Gerty percebe e olha para ele de uma maneira bastante romântica. Ela reconhece o rosto triste de Bloom (“[…] o rosto que encontrou seu olhar lá no crepúsculo, pálido e estranhamente desenhado, pareceu-lhe o mais triste que já vira” e sente uma atração por ele baseado na imaginação romântica . Gerty pergunta a si mesma se esse homem pode se casar (“Havia a questão mais importante e ela estava morrendo de vontade de saber se ele era um homem casado ou um viúvo que perdera a esposa”) e, portanto, pensa em uma vida futura com Leopold Bloom: “Mais querida do que o mundo inteiro, ela seria para ele e douraria seus dias de felicidade”. Apesar do fato de que Gerty tem uma perspectiva muito romântica, ela também está ciente de seu impacto sexual no estranho.
Fazem exatamente 100 anos que o intrincado romance de James Joyce, que fortaleceu minha vocação de escritor, chegou à livraria Shakespeare and Company como se fosse o Santo Graal.
Há 100 anos, em Paris, um escritor irlandês à beira do desespero escreveu cartas e telegramas e fez telefonemas para garantir que seu novo romance saísse no dia programado. James Joyce já havia publicado dois livros que teriam sido suficientes para abrir um espaço para ele na história: Dubliners, que às vezes me parece o melhor livro de contos em língua inglesa, e Portrait of the Artist as a Young Man, um romance cujas últimas páginas me fazem estremecer hoje, os mesmos arrepios que me causaram quando os li pela primeira vez, mais ou menos na idade de seu protagonista. Mas em janeiro de 1922, Joyce ficou mais conhecido por um romance que não havia sido publicado na íntegra, mas já era uma lenda: Ulysses. Vários capítulos haviam aparecido em várias revistas, dividindo os leitores da época como estão hoje: metade achou o romance uma obra-prima; a outra metade, que era de uma obscenidade incompreensível. Nenhuma editora ousara publicá-lo, prevendo — corretamente — que receberia ações judiciais e tentativas de censura. Joyce abordou o assunto desconsoladamente a um amigo livreiro e ficou tão surpresa quanto ela quando a ouviu perguntar: “Você daria à Shakespeare and Company a honra de ser sua editora?”
O nome da livreira era Sylvia Beach: uma jovem americana de olhos arregalados e lábios finos que viera a Paris para escapar das restrições de sua família presbiteriana e cuja livraria da Rue de l’Odéon era um ponto de encontro para expatriados. (Hemingway e Pound o frequentavam, também Gertrude Stein, mentora de todos). A ideia de que esta livraria se encarregasse da publicação de Ulysses era inusitado, para dizer o mínimo, mas foi feito: em abril de 1921 Joyce e Sylvia Beach concordaram em publicar mil livros, desde que fossem vendidos antecipadamente, e lembro-me da carta que George Bernard Shaw escreveu quando recebeu um convite para comprar um cópia: “Se você acha que um irlandês, já velho, pagaria 150 francos por um livro, você sabe muito pouco sobre meus compatriotas”. Durante o resto do ano, Joyce se dedicou a terminar aquele romance impossível, corrigindo os capítulos publicados e procurando alguém para limpar os impenetráveis manuscritos dos inéditos. O processo já teria sido bastante difícil mesmo se Joyce não tivesse imposto adicionalmente a data de publicação: 2 de fevereiro.
Era seu aniversário de 40 anos, e Joyce era um homem supersticioso. Ele nunca quis, por exemplo, que o romance fosse publicado em 1921: os números do ano somam 13. No verão ele saiu para beber vinho com um amigo, e não apenas ficou preocupado quando encontrou o conjunto de talheres estranhamente disposto, mas quase lhe deu uma síncope quando o amigo viu passar um rato: era sinal certo de azar. Por volta dos mesmos dias, para piorar a situação, ele teve um ataque de irite que o deixou acamado em um quarto escuro pelas próximas semanas. Mas ele continuou revisando as provas, enviando novos acréscimos ao seu impressor — um bom homem de Dijon que quase enlouqueceu no processo — o tempo todo lembrando-lhe que o romance deveria ser publicado em 2 de fevereiro. No primeiro dia do mês, passeando em um parque com sua esposa, Nora, e a escritora Djuna Barnes, ouviu um homem dizer-lhe: “Você é um escritor abominável”. Mas ele disse isso em latim, e Joyce achou que era um horrível presságio.
Incrivelmente, como diz Borges em um conto, o dia prometido chegou. No dia 2 de fevereiro, às sete da manhã, o motorista do expresso Dijon-Paris trouxe um pacote com os dois primeiros exemplares da primeira edição do Ulysses. Sylvia Beach os esperou na estação de trem, como se fossem dignitários de algum governo estrangeiro, levou um para a casa dos Joyce e levou o outro para mostrá-lo em sua livraria. Richard Ellmann, autor de uma biografia de Joyce que teve um lugar na minha vida que as biografias normalmente não têm, diz que a livraria estava cheia até o final da tarde. Ele conta ainda que Joyce, por sua vez, foi jantar com a família e vários casais de amigos para comemorar o evento, mas só no final do jantar ele se atreveu a tirar o livro do pacote que guardava embaixo do assento. . “Era um volume”, escreve Ellmann, “encadernado nas cores gregas — letras brancas sobre fundo azul — que Joyce considerava como boa sorte.”
Por duas vezes tive nas mãos um exemplar dessa edição. A primeira foi quando eu tinha 21 anos, no verão de 1994, quando o feitiço inexplicável causado por Ulysses estava no auge. Eu havia lido o romance um ano antes com uma espécie de reverência, e ainda não entendo que ligação misteriosa aquele livro hermético estabeleceu comigo. Li-o com uma dedicatória que nunca mais tive, acompanhada de dois livros paralelos que explicavam ou iluminavam todas as referências; hoje ainda acho que é a única maneira de ler este romance cheio de piscadelas e sinais, grandes e pequenos, e que lê-lo sem ajuda bem escolhidas é perda de tempo e explica por que tantos leitores ficam de fora. Em todo o caso, essa leitura dos meus vinte anos teve muito a ver com a consolidação da minha vocação e também — por razões mais pessoais e sem dúvida mais frívolas — com a minha decisão de arranjar um pretexto para ir a Paris.
A primeira coisa que fiz quando cheguei a Paris, aos 23 anos e com a obsessão devoradora de aprender a escrever romances, foi caminhar até o número 12 da Rue de l’Odéon. A livraria Shakespeare and Company já não existia, claro, e a que existia e existe com o seu nome não é a mesma, ainda que seja uma digna herdeira. Mas havia (e há) a placa que nos conta friamente o que aconteceu ali. Pois bem, em poucas semanas fará 100 anos que uma cópia daquela primeira edição foi exposta como um Santo Graal naquele lugar desaparecido, e nestes dias não pude evitar voltar à minha própria edição, publicada 70 anos depois, e percorrer minhas passagens favoritas: os três primeiros capítulos, o capítulo da biblioteca, a cidade da noite (ainda hilário) e o famoso monólogo de Molly Bloom. Hoje não admiro as coisas que admirava quando tinha 20 anos – nem dificuldades gratuitas nem pirotecnias sem propósito – mas encontrei outras para admirar. E há quase um ano, quando um amigo madrileno me pôs nas mãos um desses exemplares, voltei a sentir uma emoção um tanto ridícula e de qualquer modo incomunicável, porque naquele momento o passado, a amizade e a literatura se misturavam, três coisas que sempre levei muito a sério.
Juan Gabriel Vasquez é escritor. Seu último romance é Olhando para trás (Alfaguara).
(Espero que Caetano W. Galindo não se assuste com incrível número de anotações justo na sua tradução. É o que acontece quando GOSTO MUITO. Imagine se ele abre o meu exemplar… Há quase outro Ulysses dentro… E escrito com caneta…)
Trecho final do poema “James Joyce”, de Jorge Luis Borges:
“Entre a aurora e a noite está a história
universal. E vejo desde o breu,
junto a meus pés, os caminhos do hebreu,
Cartago aniquilada, Inferno e Glória.
Dai-me, Senhor, coragem e alegria
para escalar o cume deste dia”.
Escalei o cume do 16 de junho por 3 vezes e escalaria a quarta.
James Joyce deixou Dublin em dezembro de 1902 para estudar medicina em Paris. Voltou às pressas em abril de 1903 depois de receber um telegrama do Pai, John Joyce: “MÃE MORRENDO VOLTE PARA CASA PAI”. May Joyce morreu em agosto daquele ano e Joyce permaneceu em Dublin, onde, em 10 de junho do ano seguinte, conheceu Nora Barnacle, a camareira do Finn’s Hotel que à primeira vista pensou que ele fosse um marinheiro sueco. Marcado o primeiro encontro para o dia 14, ela não compareceu. Joyce renovou o convite e o primeiro encontro amoroso do casal se passou em 16 de junho de 1904. Estava plantada a semente do Bloomsday.
Um dos principais romances do século 20, Ulisses levou sete anos (1914-1921) e três cidades (Trieste-Zurique-Paris) para ser escrito. Quando os primeiros exemplares desembarcaram do expresso Dijon-Paris, saídos da tipografia de Maurice Darantiere, em 2 de fevereiro de 1922, data do quadragésimo aniversário do escritor, puderam enfim os leitores acompanhar toda a odisseia de Leopold Bloom entre a manhã do dia 16 de junho e a madrugada do dia 17.
A fama do livro já corria quando a tiragem inicial de mil exemplares chegou aos compradores, muitos dos quais já tinham se comprometido com a aquisição da obra depositando uma ficha na livraria Shakespeare and Company, da norte-americana Sylvia Beach.
Mas foi preciso lutar contra a acusação de obscenidade que pesava sobre o livro. As vidas das personagens do romance, com idas a pubs e banheiros, igrejas e bordéis, afrontava à moral, o que fez com que exemplares do livro fossem incinerados nos Estados Unidos e na Inglaterra. E houve também quem reclamasse do mau gosto de Joyce, como o dublinense Bernard Shaw:
Na Irlanda procura-se instilar bons hábitos de higiene nos gatos esfregando-lhes o focinho em sua própria sujeira. O senhor Joyce tentou empregar o mesmo tratamento à temática humana. [Mas] se a senhora imagina que algum irlandês, principalmente em idade avançada, seria capaz de pagar 150 francos por tal livro, pouco conhece dos meus compatriotas.” (Sylvia Beach, Shakespeare and Company, trad. Cristiana Serra, Casa da Palavra).
Flores brancas e azuis
Mas o romance resistiu, e a aventura de Joyce e Nora também, que a essa altura já tinham dois filhos: Giorgio e Lucia. Eles, no entanto, só se casariam em 1931.
Em 16 de junho de 1924, um grupo de amigos presenteou Joyce com hortênsias coloridas de branco e azul, cores da capa da primeira edição de Ulisses, para marcar o que chamaram de Bloom’s day. Joyce, que se recuperava de uma cirurgia oftalmológica na clínica Borsch, em Paris, achou graça e se perguntou se aquela data seria lembrada no futuro.
Em 27 de junho de 1929, ocorreu o primeiro Bloomsday importante: Adrienne Monnier, proprietária da livraria Maison des Amis des Livres, na Rue de l’Odéon, também endereço da Shakespeare and Company, organizou um almoço para comemorar a publicação da tradução francesa de Ulisses. O déjeuner Ulysse, como ficou conhecida a ocasião, ocorreu no Hotel Leopold (que belo nome!), com a presença de Paul Valéry, Édouard Dujardin, entre outros.
As críticas ao nacionalismo e à Igreja Católica fizeram com que Joyce demorasse a ter seu talento reconhecido no país de origem. O primeiro Bloomsday dublinense ocorreu em 16 de junho de 1954. A comemoração contou com John Ryan, Anthony Cronin, Brian O’Nolan, Patrick Kavanagh e Tom Joyce e, para nossa sorte, um curto vídeo amador foi realizado e pode ser facilmente encontrado na internet.
O Bloomsday passou a ser celebrado em diversas partes do mundo. É um evento que reúne acadêmicos e não acadêmicos, especialistas em Joyce e curiosos. Regada à literatura, cerveja, whisky e, às vezes, até rim, é uma festa literária espontânea que demonstra a atualidade e o alcance da obra joyciana e de seu herói-homem-comum Bloom, Poldy para os íntimos. Em Dublin, e agora online, o James Joyce Centre organiza atividades para o Bloomsday desde 1994. Vale a pena ver a programação deste ano em bloomsdayfestival.ie.
O Bloomsday no Brasil
A tradição chegaria ao Brasil nos anos 1980 e hoje é impossível falar de Ulisses por aqui sem pensar no papel dessa festa literária. O primeiro Bloomsday paulistano aconteceu no dia 16 de junho de 1988, no Finnegan’s Pub, organizado por Haroldo de Campos e Munira Mutran. Foi especial porque a ocasião viu nascer a Associação Brasileira dos Amigos de James Joyce, que um ano depois se tornaria a atual Associação Brasileira de Estudos Irlandeses – ABEI. Munira Mutran e Marcelo Tápia organizaram uma ótima síntese dos primeiros anos do Bloomsday de São Paulo em Joyce no Brasil. Antologia Bloomsday 1988-1997.
Em 1998, ocorreu o primeiro Bloomsday no Rio de Janeiro, marcado pela participação de Antônio Houaiss, primeiro tradutor de Ulisses para o português, e da futura tradutora da obra, Bernardina da Silveira Pinheiro. O evento carioca nasceu da iniciativa de José Rache de Almeida e Peter O’Neill. Todos os anos, diversas atividades acontecem no Brasil na semana do Bloomsday. Fiquem atentos.
Um Bloomsday no cemitério
Muitas vezes ouvimos falar no Bloomsday como uma celebração de Joyce, ou da obra de Joyce, ou de Ulisses. Se isso não é errado, é impreciso. No Bloomsday celebramos Bloom. Por isso Bloom’s day, dia de Bloom, personagem central da odisseia joyciana. Tanta coisa saiu errado para Leopoldo naquele 16 de junho de 1904, vamos ao menos deixar que ele tenha um dia só dele.
Mas, claro, cabe de tudo nessa festa que, aliás, pode ocorrer em qualquer lugar. Se pubs são locais propícios a animadas leitura de Ulisses, ambientes mais tranquilos também podem dar lugar à festa. Assim é que em Northampton, na Inglaterra, Peter Mulligan organiza um Bloomsday no cemitério Kingsthorpe. A razão: Lucia Joyce, a filha do escritor, está enterrada lá.
Em 2018, Richard Rose e James Vollmar escreveram a peça Letters to Lucia (Cartas a Lucia), baseada na biografia de Joyce e sua filha. A peça foi encenada – adivinhem onde – perto do túmulo de Lucia.
O talento de Lucia e seu papel na vida de Joyce, aliás, têm sido reavaliados nos últimos anos. Neste mês do Bloomsday, Carol Loeb Shloss, biógrafa de Lucia Joyce, será nossa convidada especial no II Workshop in Progress. Quem quiser acompanhar sua fala pode se inscrever gratuitamente no evento aqui.
Feliz Bloomsday!
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Vitor Alevato do Amaral leciona Literaturas de Língua Inglesa na Universidade Federal Fluminense. Organiza o II Workshop in Progress do grupo de pesquisa Estudos Joycianos no Brasil, que ocorrerá entre 31 de junho e 2 de julho.
Hoje é o Bloomsday, mas pelo visto apareceu outra efeméride para ser comemorada pertinho, quase na mesma data, neste ano exatamente na mesma data. O curioso é que Virginia Woolf não gostava nada do Ulysses de James Joyce, mas olha só:
Todos os anos, na “quarta-feira de meados de junho”, a Royal Society of Literature celebra o trabalho e o legado de Virginia Woolf. Este ano, o Dalloway Day cai na quarta-feira, 16 de junho (que também é Bloomsday), e as comemorações marcarão o centenário da Monday or Tuesday, a única coleção de contos de Woolf.
A Lit Hub tem o orgulho de fazer parte das festividades, que este ano incluem um workshop de redação de contos, uma discussão explorando a relação entre Woolf e Katherine Mansfield, passeios a pé, um podcast e uma mesa redonda. Você pode ver o programa completo aqui , mas é claro que recomendamos o podcast, no qual a editora sênior do Lit Hub, Corinne Segal, moderou uma conversa entre Deborah Levy e Merve Emre enquanto discutiam o que Virginia Woolf significava para eles e a influência duradoura de seu trabalho sobre sua própria escrita. Esta ampla conversa apresentará uma exploração da força e fragilidade de Woolf, e de como a leitura de escritores do passado muda os autores de hoje e o que ainda temos que aprender com Virginia Woolf. Registre-se aquipara ouvir e tenha um ótimo Dalloway Day!
Bloom acorda. Prepara o café da manhã para sua mulher, Molly. Assiste a um enterro. Visita um editor de um jornal. Almoça. Olha um anúncio de jornal na biblioteca. Responde a uma carta recebida. Janta. Encontra o amigo Dedalus. Vagueia pela praia. Masturba-se olhando uma moça. Reencontra Dedalus. Vão a um puteiro. Encaminham-se para a casa de Bloom. Entabulam uma conversa filosófica. Dedalus vai embora e Bloom retorna ao leito conjugal, onde dormirá enquanto sua mulher tem fantasias quentíssimas.
Tudo isso em apenas um dia, 16 de junho de 1904. São 18 capítulos que cobrem aproximadamente 18 horas. Cada capítulo escrito de forma totalmente diferente, cada cena fazendo mil referências, principalmente à Odisseia de Homero. Não é uma epopeia do cotidiano, mas sim uma obra anti-épica, cujo naturalismo não se percebe no nível mais superficial da narrativa. As frequentes transgressões linguísticas, a justaposição de frases ostensivamente poliglotas, a mistura de estilos — épico, lírico, drama, comédia — são os percursos seguidos por Joyce com a finalidade de quebrar os protocolos estabelecidos do gênero do romance para chegar à essência das coisas e à exploração do inconsciente, escondido pelas aparências. O que mais me fascina são os 18 estilos diferentes, os 18 escritores chamados por Joyce para escreverem o maior romance do século XX.
Desde que acorda até voltar à cama — onde sua Penélope-Molly tece enorme teia de fantasias eróticas que nunca serão do conhecimento do marido –, Leopold Bloom protagoniza um monumento de rara sutileza, difícil de penetrar, mas só quem tenta obtém chegar a suas grandes iluminações.
O livro foi proibidíssimo e apenas chegou a nós por milagre. Por exemplo, um episódio do livro, entregue a uma datilógrafa, chocou de tal forma seu marido que este o arremessou às chamas. havia outra cópia menos revisada, com Joyce. Durante a Primeira Guerra Mundial, um capítulo inteiro — Sereias — foi interceptado por autoridades militares que desconfiaram que aquilo era uma longa mensagem escrita em código… Algo vital para o inimigo, certamente…
Suas características satíricas, viscerais e brutalmente depreciadoras do real, chocaram profundamente a sensibilidade do leitor médio, decepcionado ainda pela fascinação do autor pela linguagem, pelas várias formas narrativas, louca musicalidade e certamente pela descontrolada e incerta potencialidade semântica.
O mais extravagante, divertido e sujo dos livros.
Ah, as edições da Penguin são baratíssimas e a tradução é excelente e recente. Para aproveitar!
A artograffia muderna é una maniera de scrivê, chi a gêntil scrive uguali come dice.
Juó Bananére
Hoje, se poucos sabem quem foi Juó Bananére, o que dizer de sua obra magna La Divina Increnca? Porém, durante as primeiras décadas do século XX, Juó foi um dos nomes mais famosos da imprensa paulistana e brasileira. Ele foi um personagem fictício, imigrante italiano criado por Alexandre Ribeiro Marcondes Machado (1892-1933), e que era assunto tanto nas feiras e ruas quanto nos salões da alta sociedade.
Formado em engenharia pela Escola Politécnica da USP, alto e elegante, Alexandre em nada correspondia à imagem de Bananére que o caricaturista Voltolino imortalizou: um sujeito de meia-idade, baixo, gordo e maltrapilho. Bananére escrevia textos que parodiavam o sotaque da grande colônia italiana de São Paulo. Como quase todo imigrante, os italianos recém-chegados eram obrigados a aceitar quaisquer trabalhos. Um deles era o de puxar carroças de frutas para vendê-las. Daí o pseudônimo: um João Bananeiro qualquer virou Juó Bananére. Ele era o autor de versos como estes:
Migna terra tê parmeras,
Che ganta inzima o sabiá.
As aves che stó aqui,
Tambê tuttos sabi gorgeá.
A abobora celestia tambê,
Chi tê lá na mia terra,
Tê moltos millió di strella
Chi non tê na Ingraterra.
O leitor certamente reconhecerá neles uma paródia ao poema Canção do exílio de Gonçalves Dias. Além de brincar com poemas famosos, Juó escrevia os também os seus próprios, além de crônicas satíricas que narravam a vida dos imigrantes e faziam piadas com figuras da época, como os presidentes Venceslau Brás, Hermes da Fonseca, o jurista Ruy Barbosa e muitos outros. Também há paródias inspiradas em romances de Machado de Assis, mantendo sempre a mistura dos idiomas italiano e português.
Por mais de 20 anos, Juó se fez presente nos meios culturais e jornalísticos paulistas. Eterno Gandidato á Gademia Baolista de Letras, ele, infelizmente, nunca obteve uma cadeira para si, apesar dos imensos e macarrônicos elogios que fazia a si mesmo.
Nomes ilustres não lhe pouparam elogios. Oswald de Andrade referiu-se a ele como “o mestre da sátira no Brasil”. O escritor Antônio de Alcântara Machado não deixou por menos: o personagem teria sido “o melhor cronista” de São Paulo.
Apesar de não ter ascendência italiana, Alexandre apaixonou-se pela cultura surgida nos bairros operários que se expandiram na capital paulista, como Brás, Barra Funda, Belenzinho, Mooca e Bexiga — bairro de Adoniran Barbosa, que adorava e deixou-se influenciar por Juó –, após a grande onda imigratória que fez com que a população da cidade passasse rapidamente de 130 mil habitantes em 1895 a 580 mil em 1920. Metade destes habitantes consistiam de imigrantes estrangeiros e outro quarto de seus filhos já nascidos no Brasil.
Como jornalista, Alexandre escrevia artigos para o jornal O Estado de S. Paulo e, em outubro de 1911, começou a assinar uma coluna na revista semanal O Pirralho, um periódico literário, político e de humor recém lançado por Oswald de Andrade. É lá que ele passa a usar o pseudônimo Juó Bananère. O novo jornal tinha uma proposta pré-modernista, movimento literário precursor do Modernismo.
Após a morte de Alexandre, o personagem Juó Bananère ficou esquecido por décadas, sendo eventualmente lembrado pela coletânea La Divina Increnca. Atualmente, reeditados, seus textos têm sido objeto de estudos de historiadores, críticos e teóricos da literatura.
Apesar das colunas nos jornais, a principal obra de Juó foi mesmo o livro La Divina Increnca, paródia de A Divina Comédia, de Dante Alighieri, editado pela primeira vez em 1915 e reeditado em 1924, 1966 e 1993. Atualmente a editora Livronovo está procurando viabilizar uma nova edição através de financiamento coletivo.
Com efeito, críticos consagrados, como Otto Maria Carpeaux, atribuíram a ele o papel de precursor do modernismo. A inventividade linguística do personagem seria o equivalente tupiniquim às ousadias de James Joyce e ao movimento dadaísta europeu. O professor Carlos Eduardo Capela, de teoria literária da Universidade Federal de Santa Catarina e autor da obra Juó Bananére — Irrisor, Irrisório (2009, Nankin Editorial/Edusp, 538 páginas), não encara as comparações como piadas, mas acredita que tais teses sejam absurdas.
“Há coisas em comum, como o humor. Mas o modernismo é um movimento literário, articulado, tem um manifesto. Já o Bananére é um piadista, nunca quis ser nada além disso. O espaço dele é o efêmero, a coisa pequena, o cotidiano.” Mais apropriado, acredita ele, é enxergar em Alexandre/ Bananére um rico caso de testemunho histórico e de criação de um personagem.
“Ele confronta um ambiente intelectual conservador e projeta, por via paródia, o desclassificado, os tipos marginais. Hoje se fala muito em dar voz às minorias, mas ele já fazia isso há quase cem anos.”
Sua coluna em O Pirralho chamava-se O diário do Abax’o Piques. Abaixo Piques era o nome da atual Ladeira da Memória, local tombado em 1974 na cidade de São Paulo. Mais tarde, após romper com Oswald de Andrade, Alexandre fundou o Diário do Abax’o Piques — Diario Semanale di Grande Impurtanza, em associação com o ilustrador Voltolino (1884 – 1926). Nele, Juó se intitulava poeta, barbieri i giurnaliste e, em sua logomarca, estava escrito Lasciate ogni speranza.
Lasciate ogni speranza, voi che entrate (“Deixai qualquer esperança, vós que entrais”) é o famoso verso que se encontra na porta de entrada do Inferno, a primeira parte de La Divina Commedia, a obra-prima de Dante, da literatura italiana e da cultura da Idade Média.
O jornal caracterizava-se por apresentar temas essencialmente políticos, discutidos em tom satírico, por meio de uma linguagem humorística escrachada. O periódico apresentava duas seções fixas Taka – Shumbo Shimbum e um “sumplemento” esportivo – Sport que finalizava cada edição. Os colaboradores usavam pseudônimos para assinar suas colaborações. Ali, Juó Bananére registrava uma linguagem própria à mesclagem cultural que gerou paulistano.
Tal como aconteceu com o Barão de Itararé e seu inventor Aparício Torelly, o Juó Bananére inventado por Alexandre Marcondes Machado acabou por reinventar seu inventor como escritor. Hoje, pode-se dizer que existe Juó Bananére e não Alexandre Marcondes Machado. Juó, com seu italiano de imigrante pobre em São Paulo, aparecia como uma voz viva e afrontosa dos despossuídos do país.
A principal fonte de inspiração de Alexandre Machado estava nas ruas, e era para essas mesmas ruas que retornava a obra pronta, de enorme sucesso, tendo em vista as repercussões em textos de outros autores e relatos de pesquisadores. Está mais do que hora de recuperarmos Bananére como parte de nossa história literária.
Há algumas semanas, li a lista da extinta revista Bravo sobre os 100 livros essenciais da literatura mundial. A edição vendeu muito, disse o dono da banca de revistas meu vizinho. No final da revista, há uma página de Referências Bibliográficas de razoável tamanho, mas o editor esclarece que a maior influência veio dos trabalhos de Harold Bloom.
Vamos à lista? Depois farei alguns comentários a ela.
A lista é a seguinte (talvez haja erros de digitação, talvez não):
1. Ilíada, Homero
2. Odisseia, Homero
3. Hamlet, William Shakespeare
4. Dom Quixote, Miguel de Cervantes
5. A Divina Comédia, Dante Alighieri
6. Em Busca do Tempo Perdido, Marcel Proust
7. Ulysses, James Joyce
8. Guerra e Paz, Leon Tolstói
9. Crime e Castigo, Dostoiévski
10. Ensaios, Michel de Montaigne
11. Édipo Rei, Sófocles
12. Otelo, William Shakespeare
13. Madame Bovary, Gustave Flaubert
14. Fausto, Goethe
15. O Processo, Franz Kafka
16. Doutor Fausto, Thomas Mann
17. As Flores do Mal, Charles Baldelaire
18. Som e a Fúria, William Faulkner
19. A Terra Desolada, T.S. Eliot
20. Teogonia, Hesíodo
21. As Metamorfoses, Ovídio
22. O Vermelho e o Negro, Stendhal
23. O Grande Gatsby, F. Scott Fitzgerald
24. Uma Estação No Inferno,Arthur Rimbaud
25. Os Miseráveis, Victor Hugo
26. O Estrangeiro, Albert Camus
27. Medéia, Eurípedes
28. A Eneida, Virgilio
29. Noite de Reis, William Shakespeare
30. Adeus às Armas, Ernest Hemingway
31. Coração das Trevas, Joseph Conrad
32. Admirável Mundo Novo, Aldous Huxley
33. Mrs. Dalloway, Virgínia Woolf
34. Moby Dick, Herman Melville
35. Histórias Extraordinárias, Edgar Allan Poe
36. A Comédia Humana, Balzac
37. Grandes Esperanças, Charles Dickens
38. O Homem sem Qualidades, Robert Musil
39. As Viagens de Gulliver, Jonathan Swift
40. Finnegans Wake, James Joyce
41. Os Lusíadas, Luís de Camões
42. Os Três Mosqueteiros, Alexandre Dumas
43. Retrato de uma Senhora, Henry James
44. Decameron, Boccaccio
45. Esperando Godot, Samuel Beckett
46. 1984, George Orwell
47. Galileu Galilei, Bertold Brecht
48. Os Cantos de Maldoror, Lautréamont
49. A Tarde de um Fauno, Mallarmé
50. Lolita, Vladimir Nabokov
51. Tartufo, Molière
52. As Três Irmãs, Anton Tchekov
53. O Livro das Mil e uma Noites
54. Don Juan, Tirso de Molina
55. Mensagem, Fernando Pessoa
56. Paraíso Perdido, John Milton
57. Robinson Crusoé, Daniel Defoe
58. Os Moedeiros Falsos, André Gide
59. Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis
60. Retrato de Dorian Gray, Oscar Wilde
61. Seis Personagens em Busca de um Autor, Luigi Pirandello
62. Alice no País das Maravilhas, Lewis Caroll
63. A Náusea, Jean-Paul Sartre
64. A Consciência de Zeno, Italo Svevo
65. A Longa Jornada Adentro, Eugene O’Neill
66. A Condição Humana, André Malraux
67. Os Cantos, Ezra Pound
68. Canções da Inocência/ Canções do Exílio, William Blake
69. Um Bonde Chamado Desejo, Teneessee Williams
70. Ficções, Jorge Luis Borges
71. O Rinoceronte, Eugène Ionesco
72. A Morte de Virgilio, Herman Broch
73. As Folhas da Relva, Walt Whitman
74. Deserto dos Tártaros, Dino Buzzati
75. Cem Anos de Solidão, Gabriel García Márquez
76. Viagem ao Fim da Noite, Louis-Ferdinand Céline
77. A Ilustre Casa de Ramires, Eça de Queirós
78. Jogo da Amarelinha, Julio Cortazar
79. As Vinhas da Ira, John Steinbeck
80. Memórias de Adriano, Marguerite Yourcenar
81. O Apanhador no Campo de Centeio, J.D. Salinger
82. Huckleberry Finn, Mark Twain
83. Contos de Hans Christian Andersen
84. O Leopardo, Tomaso di Lampedusa
85. Vida e Opiniões do Cavaleiro Tristram Shandy, Laurence Sterne
86. Passagem para a Índia, E.M. Forster
87. Orgulho e Preconceito, Jane Austen
88. Trópico de Câncer, Henry Miller
89. Pais e Filhos, Ivan Turgueniev
90. O Náufrago, Thomas Bernhard
91. A Epopéia de Gilgamesh
92. O Mahabharata
93. As Cidades Invisíveis, Italo Calvino
94. On the Road, Jack Kerouac
95. O Lobo da Estepe, Hermann Hesse
96. Complexo de Portnoy, Philip Roth
97. Reparação, Ian McEwan
98. Desonra, J.M. Coetzee
99. As Irmãs Makioka, Junichiro Tanizaki
100 Pedro Páramo, Juan Rulfo
A lista é ótima, mas há critérios bastante estranhos.
Se não me engano, só três semideuses têm mais de um livro na lista: Homero, Shakespeare e Joyce. OK, está justo.
No restante, é uma lista mais de autores do que de livros e muitas vezes são escolhidos os livros mais famosos do autor e dane-se a qualidade da obra. Se a revista faz um gol ao escolher Doutor Fausto como o melhor Thomas Mann, erra ao escolher Crime e Castigo dentro da obra de Dostoiévski – Os Irmãos Karamázovi e O Idiota são melhores; ao escolher Guerra e Paz de Tolstói – por que não Ana Karênina? -; na escolha de O Complexo de Portnoy, de Philip Roth; que tem cinco romances muito superiores, iniciando por O Avesso da Vida (Counterlife) e ainda ao eleger Retrato de Uma Senhora na obra luminosa de Henry James. Li por aí reclamações análogas sobre as escolhas de Brás Cubas e não de Dom Casmurro, de Cem Anos de Solidão ao invés de O Amor nos Tempos do Cólera e de As Cidades Invisíveis de Calvino, mas acho que é uma questão de gosto pessoal e não de mérito. Ah, e é absurda a presença do bom O Náufrago e não dos imensos e perfeitos Extinção, Árvores Abatidas e O Sobrinho de Wittgenstein na obra de Thomas Bernhard.
Saúdo a presença de grandes livros pouco citados como Tristram Shandy, obra-prima de Sterne muito querida deste que vos escreve, de Viagem ao Fim da Noite, de Céline, de A Consciência de Zeno, genial livro de Ítalo Svevo, de O Deserto dos Tártaros (Buzzati) e do incompreendido e brilhante Grandes Esperanças, de Charles Dickens, de longe seu melhor romance.
Porém é estranha a escolha de A Comédia Humana, de Balzac. Ora, a Comédia são 88 romances! Não vale! Estranho ainda mais a presença de autores menores como Kerouac e Malraux, além do romance que não é romance — ou do romance que só é romance em 100 de suas 1200 páginas: O Homem sem Qualidades, de Robert Musil.
Também acho que presença de McEwan e de Coetzee prescindem do julgamento do tempo, o que não é o caso de alguns ausentes, como Lazarillo de Tormes, de Chamisso com seu Peter Schlemihl, de George Eliot com Middlemarch, de Homo Faber de Max Frisch e de O Anão, de Pär Lagerkvist, só para citar os primeiros que me vêm à mente. E, se McEwan e Coetzee esttão presentes, por que não Roberto Bolaño?
(O Bender escreve um comentário reclamando a ausência de Grande Sertão, Veredas, de Guimarães Rosa. É claro que ele tem razão! Esqueci. Coisas da idade.)
Com satisfação pessoal, digo que este não-especialista não leu apenas Os Miseráveis, o livro de Blake e os de Lautréamond, Mallarmé, Ovídio e Hesíodo. Isto é, seis dos cem. Tá bom.
P.S.- Milton mentiroso! Não li Finnegans também!
Este post foi publicado em 13 de dezembro de 2007, mas quase nada mudou.