Estudiosos italianos descobriram a verdadeira identidade de Elena Ferrante?

Estudiosos italianos descobriram a verdadeira identidade de Elena Ferrante?

Elisa Sotgiu faz uma leitura de gênero e classe sobre um dos grandes mistérios literários de nosso tempo.

Traduzido por Milton Ribeiro. Daqui, ó

Quando Claudio Gatti publicou uma investigação sobre a identidade de Elena Ferrante, há alguns anos, ele levantou protestos na Itália e no exterior. Ele havia invadido a privacidade da autora e violado seu direito de permanecer anônima. Era injusto, era irrelevante, não queríamos saber.

Verdade? Sim e não. Havia uma conclusão importante no artigo de Gatti: quem escrevia os romances de Ferrante era a tradutora Anita Raja, uma mulher.

Isso foi um alívio. Se você não sabe como os acadêmicos e jornalistas italianos podem ser sexistas, fica difícil imaginar a importância do gênero de Ferrante para todos nós que estudamos seu trabalho ao longo dos anos. Antes mesmo de Minha Amiga Genial ser publicado, correram rumores de que a obra de Ferrante tinha sido de autoria de um homem, e eles se intensificaram após o sucesso dos romances napolitanos nos Estados Unidos. Lembro de meu orientador me contando sobre essas especulações quando comecei a trabalhar com Ferrante em 2015; nós dois zombamos da misoginia que esse tipo de fofoca implicava, sentindo-nos como se estivéssemos nas trincheiras de uma mini guerra cultural.

Portanto, quando me deparei com uma série de artigos acadêmicos que, por meio de uma análise estilométrica, identificaram Elena Ferrante como o romancista italiano Domenico Starnone (marido de Anita Raja), não estava pronta para depor minhas armas. Naquela época, eu não tinha lido nenhum dos romances de Starnone. Eu sabia que ele era um autor prolífico, que havia escrito bastante sobre o ensino médio e que seu longo romance semiautobiográfico sobre sua juventude em Nápoles, Via Gemito, ganhara o prestigioso Prêmio Strega. Mas eu realmente não me importava com ele. Quando confrontado com a ideia de que ele poderia ser o autor de meus amados romances napolitanos, meu primeiro impulso foi deixar essa informação de lado, não falar sobre ela, e nem pensar muito a respeito.

Eu não estava sozinha. Embora o primeiro desses artigos estilometricos, de Arjuna Tuzzi e Michele A Cortelazzo, tenha saído em 2018 — exatamente no momento em que as publicações internacionais sobre Ferrante se multiplicavam exponencialmente –, quase nunca era citado fora do campo das humanidades digitais. Nas raras ocasiões em que foi mencionado, foi rapidamente descartado: abordar o problema da identidade de Ferrante, ao que parece, seria bastante prejudicial para qualquer análise séria de seus escritos, na opinião de alguns estudiosos.

É uma boa prática entre os estudiosos de Ferrante declarar que, seja qual for o seu gênero, o que conta é que ela escolheu adotar a persona de uma mulher. Mas permanece o fato de que os críticos frequentemente (embora com reprovação) citam Gatti quando querem discutir as ideias de Anita Raja sobre tradução em relação a Ferrante, enquanto ignoram cuidadosamente Tuzzi, Cortellazzo, Jacques Savoy e os outros nove estudiosos que confirmaram que os estilos de Ferrante e Starnone costumam ser indistinguíveis. Rachel Donadio foi a única que tentou (com sucesso) comparar os romances de Ferrante e Starnone, mas o fez nas páginas do The Atlantic e do The New York Times, pois a comparação é um tabu na academia.

Comecemos do início, então, e vejamos que quadro de Ferrante esses artigos nos permitem traçar. Em primeiro lugar, é útil saber que Tuzzi e Cortellazzo montaram um grande corpus para suas análises: 150 romances de 40 romancistas italianos contemporâneos, equilibrados por gênero e origem regional. Este corpo de textos foi então usado por um grupo de especialistas internacionais que participaram de um workshop de verão na Universidade de Padova em 2017. Eles trabalharam de forma independente e com abordagens metodológicas diferentes, mas chegaram a conclusões semelhantes (os anais do workshop foram publicados pela editora da Universidade de Padova). Georgios Mikros, da Universidade de Atenas, por exemplo, usou o corpus textual para treinar um algoritmo (aplicativo) de aprendizado de computador para criar perfis de autores (ou seja, identificar seu sexo, idade e procedência) com um alto grau de precisão. Este algoritmo concluiu que a pessoa por trás de Elena Ferrante era um homem com mais de 60 anos da região da Campânia, onde fica Nápoles).

E aquele velho napolitano se parece suspeitosamente com Domenico Starnone: na representação visual do corpus de Maciej Eder e Jan Rybicki, os romances de Ferrante e Starnone ocupam o mesmo lugar marginal, distante da maioria dos outros textos e conectados a eles apenas pelos três primeiros romances de Starnone, que foram escritos entre 1987 e 1991. Em outras palavras, Starnone e Ferrante são autores altamente originais, diferentes de todos os outros escritores italianos, mas muito próximos um do outro.

No estudo de Margherita Lalli, Francesca Tria e Vittorio Loreto (Universidade La Sapienza de Roma), um algoritmo de compressão de dados atribui erroneamente Um Amor Incômodo, de Ferrante, a Starnone, e Excesso de Zelo, Via Gemito e A Primeira Execução, de Starnone, a Ferrante. Em sua introdução ao volume, Tuzzi e Cortellazzo também fornecem uma lista muito longa de termos e expressões que podem ser encontrados apenas (e frequentemente) nos escritos de Starnone e Ferrante, mas em nenhum trabalho de outro escritor.

Em seu último estudo, Tuzzi e Cortellazzo também nos permitem delinear uma evolução paralela no tempo: depois de seus primeiros romances relativamente convencionais, Starnone desenvolve um estilo muito reconhecível no início dos anos 1990. Entre 1992 e o início dos anos 2000, diferentes romances são publicados com os nomes de Ferrante e Starnone, mas todos parecem pertencer à mesma família: o romance de Ferrante de 1992 (Um Amor Incômodo) é semelhante aos romances de Starnone de 1993 e 1994 (Excesso de Zelo e Dentes), a Ferrante de 2002 e 2006 (Dias de Abandono e A Filha Perdida) são mais semelhantes ao Starnone de 2005 (Responsabilidade). Então, por volta da década de 2010, vemos um desenvolvimento estilístico: tanto Ferrante quanto Starnone adquirem um certo distanciamento de seus eus mais velhos. Os romances napolitanos são mais semelhantes entre si — compreensivelmente, já que são um longo romance dividido em quatro volumes — e com o romance de Ferrante de 2019, A vida mentirosa dos adultos. Além disso, os romances mais recentes de Starnone podem ser agrupados, pois suas características são mais marcadamente únicas.

Esses dados podem ser interpretados de diferentes maneiras. No início, parece claro que Starnone está usando o nome de Ferrante quando quer adotar uma narradora feminina em primeira pessoa, sem se preocupar em mudar sua voz característica. Mais tarde, ele pode ter trabalhado para uma diferenciação mais acentuada dos dois estilos — ou outra coisa pode ter acontecido. Talvez uma colaboração com Raja. Um autor, Rybicki, que teve experiência anterior em analisar os esforços de escrita de um casal, não exclui essa possibilidade. Tuzzi e Cortellazzo também mostram que os escritos de não ficção de Ferrante — aqueles reunidos no volume Frantumaglia –– não são tão estilisticamente coerentes quanto sua ficção. Seu algoritmo atribui os diferentes ensaios, cartas e entrevistas a três autores diferentes: Starnone, Raja e um autor coletivo que representa os proprietários e materiais de publicidade da editora E/O (a editora de Ferrante desde o início). Em todo caso, parece quase fora de dúvida que Starnone, sozinho ou em dupla com sua esposa sentou-se e datilografou os romances que foram publicados sob o nome de Elena Ferrante.

Mas esta é uma história que vai além de Starnone. Para quem se interessa, como eu, pela história cultural do nosso presente, a criação de Elena Ferrante é um caso notável.

No início da década de 1990, Domenico Starnone tinha contrato com uma das principais editoras italianas, a Feltrinelli, para a qual havia publicado três romances entre 1989 e 1991. Nesse ponto, começou a colaborar com a jovem e pouco conhecida editora a casa Edizioni E/O, onde sua esposa Anita Raja trabalhou como tradutora freelancer de alemão durante os anos 1980. No catálogo da E/O, o nome de Starnone aparece apenas entre 1991 e 1992. Ele escreveu um posfácio para uma coleção de contos de Mark Twain, um ensaio em um volume sobre literatura infanto juvenil, e Sottobanco, uma adaptação teatral de seu primeiro livro, o único que Feltrinelli não publicou. 1992 foi também o ano em que O Amor Incômodo, o primeiro dos romances de Ferrante, saiu pela E/O.

Sandro Ferri e Sandra Ozzola, os fundadores da editora, devem ter feito questão de manter Starnone entre seus autores, mas Starnone — talvez por causa de obrigações contratuais, talvez por escolha — decidiu continuar a publicar em seu nome real para a Feltrinelli e sob o pseudônimo de Ferrante para a E/O. Afinal, uma escritora estava mais de acordo com o projeto editorial de Ferri e Ozzola, e a escolha de Starnone de escrever como homem para uma editora de prestígio e como mulher para uma editora marginal era consistente com a estrutura do espaço literário italiano dominado por homens.

O segundo capítulo dessa história começa em 2005, quando Ferri e Ozzola fundaram a Europa Editions em Londres e Nova York. Sua missão — de publicar autores periféricos e servir como ponte entre diferentes nações e culturas — não encontrou muita ressonância na Itália, mas estava perfeitamente alinhada com o novo entusiasmo pela “literatura mundial” que estudiosos, críticos culturais e editores independentes compartilhavam no mundo anglófono. Para conquistar seu nicho neste mundo, Ferri e Ozzola decidiram apostar em Elena Ferrante: Dias de Abandono foi um dos dois livros que a Europa Editions publicou em seu primeiro ano, e todos os seus outros romances foram traduzidos para o inglês imediatamente depois que eles saíram em italiano.

Foi uma aposta vencedora, mas eles não tiveram apenas sorte. Se ser uma autora era uma desvantagem na Itália, era muito menos nos Estados Unidos. Na década de 2010 a 2019, as mulheres constituíram 60% dos autores selecionados e 60% dos vencedores do National Book Award for Fiction, 52% dos indicados e 60% dos vencedores do Prêmio PEN / Faulkner e 80% dos vencedores do National Book Critics Circle Award, só para citar alguns dos reconhecimentos mais importantes. Enquanto Ferrante levou seus leitores globais a uma “febre”, Domenico Starnone recebeu atenção da crítica nos Estados Unidos apenas com seu romance de 2014, Laços, que pode ser lido como uma sequência de Dias de Abandono, de Ferrante.

Não estou sugerindo que a invenção de Elena Ferrante foi apenas um empreendimento editorial astuto. Um pseudônimo feminino pode ter sido uma forma de evitar críticas: se você pesquisar no Google “escritores masculinos que escrevem personagens femininos”, os primeiros resultados (com títulos como “30 vezes que autores masculinos mostraram que mal sabem alguma coisa sobre mulheres” e “escritores masculinos não têm nenhuma ideia de como escrever sobre personagens femininos”) deixam claro que essa prática sofre de enorme má reputação. Escrever sobre gênero da perspectiva de uma mulher também poderia ter sido uma forma de chamar a atenção para a questão da dinâmica de classe e mobilidade social que muitas vezes esteve no centro da escrita de Starnone. Perto do final do Quarteto Napolitano, a protagonista Elena Greco diz que sem sua brilhante amiga Lila, toda a sua vida “seria reduzida apenas a uma batalha mesquinha para mudar de classe social”.

Poderia ser útil, então, redirecionar nossa atenção do assunto de gênero para o de classe. O último romance de Ferrante, A Vida Mentirosa dos Adultos, tem pouco a acrescentar sobre a questão da identidade das mulheres. Especialmente no início, a história parece se repetir com pequenas variações a todos os tropos de Ferrante: a ideia de não ser nada além de “um nó emaranhado”, o apagamento de mulheres em fotos e na carne, a ideia de mães espiando através de suas filhas, a amizade feminina baseada na emulação e desejo de fusão, o ciúme e possessividade em relação à mãe, a sexualidade dos filhos. Frases de livros anteriores, e especialmente do Quarteto Napolitano, são repetidas quase inalteradas. A única diferença é que desta vez o ponto de vista parece ser o de uma reencarnação mais jovem de Lila em vez de outra Elena.

A principal novidade da história, ao contrário, é o que ela diz sobre classe social. Os romances napolitanos foram construídos na contraposição dos bairros proletários e subproletários de Nápoles ao centro da cidade burguesa. Uma ética de responsabilidade e realização educacional e um grande investimento em status eram as pedras angulares das crenças de Elena Greco. Em A Vida Mentirosa, porém, a protagonista Giovanna e seus amigos abraçam valores pós-materialistas e se atualizam: eles podem viajar livremente e ainda reconhecer a importância das periferias mais pobres de Nápoles, eles não se preocupam com boas notas, mas estão interessados ​​em ler e escrever como um meio de cultivar seu eu autêntico. Eles são a nova classe média cosmopolita e rejeitam as dicotomias de classe da geração mais velha.

Estudar os romances de Ferrante junto com os de Starnone pode nos tornar melhores leitores de ambos e abrir novos caminhos para os estudiosos. Mas reconhecer que Elena Ferrante é provavelmente um homem também pode mudar as coisas para pior. Ela nos serviu bem: as acadêmicas que se dedicam a estudos italianos de repente tiveram um ingresso confiável em conferências internacionais, revistas online, edições especiais, em editoras. Essas vantagens podem chegar ao fim. Mas isso não é motivo para ficar triste; Elena Ferrante ainda é um prazer de ler. E ela também é o maior mistério literário de nosso tempo.

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Elisa Sotgiu é candidata ao doutorado em Literatura Comparada em Harvard. Ela estudou na Scuola Normale Superiore em Pisa e publicou sobre Edoardo Sanguineti, Henry James e Elena Ferrante.

Anita Starnone e Domenico Ferrante? Ou Elena Raja?

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100 Livros Essenciais da Literatura Mundial

100 Livros Essenciais da Literatura Mundial

Há algumas semanas, li a lista da extinta revista Bravo sobre os 100 livros essenciais da literatura mundial. A edição vendeu muito, disse o dono da banca de revistas meu vizinho. No final da revista, há uma página de Referências Bibliográficas de razoável tamanho, mas o editor esclarece que a maior influência veio dos trabalhos de Harold Bloom.

Vamos à lista? Depois farei alguns comentários a ela.

A lista é a seguinte (talvez haja erros de digitação, talvez não):

1. Ilíada, Homero
2. Odisseia, Homero
3. Hamlet, William Shakespeare
4. Dom Quixote, Miguel de Cervantes
5. A Divina Comédia, Dante Alighieri
6. Em Busca do Tempo Perdido, Marcel Proust
7. Ulysses, James Joyce
8. Guerra e Paz, Leon Tolstói
9. Crime e Castigo, Dostoiévski
10. Ensaios, Michel de Montaigne
11. Édipo Rei, Sófocles
12. Otelo, William Shakespeare
13. Madame Bovary, Gustave Flaubert
14. Fausto, Goethe
15. O Processo, Franz Kafka
16. Doutor Fausto, Thomas Mann
17. As Flores do Mal, Charles Baldelaire
18. Som e a Fúria, William Faulkner
19. A Terra Desolada, T.S. Eliot
20. Teogonia, Hesíodo
21. As Metamorfoses, Ovídio
22. O Vermelho e o Negro, Stendhal
23. O Grande Gatsby, F. Scott Fitzgerald
24. Uma Estação No Inferno,Arthur Rimbaud
25. Os Miseráveis, Victor Hugo
26. O Estrangeiro, Albert Camus
27. Medéia, Eurípedes
28. A Eneida, Virgilio
29. Noite de Reis, William Shakespeare
30. Adeus às Armas, Ernest Hemingway
31. Coração das Trevas, Joseph Conrad
32. Admirável Mundo Novo, Aldous Huxley
33. Mrs. Dalloway, Virgínia Woolf
34. Moby Dick, Herman Melville
35. Histórias Extraordinárias, Edgar Allan Poe
36. A Comédia Humana, Balzac
37. Grandes Esperanças, Charles Dickens
38. O Homem sem Qualidades, Robert Musil
39. As Viagens de Gulliver, Jonathan Swift
40. Finnegans Wake, James Joyce
41. Os Lusíadas, Luís de Camões
42. Os Três Mosqueteiros, Alexandre Dumas
43. Retrato de uma Senhora, Henry James
44. Decameron, Boccaccio
45. Esperando Godot, Samuel Beckett
46. 1984, George Orwell
47. Galileu Galilei, Bertold Brecht
48. Os Cantos de Maldoror, Lautréamont
49. A Tarde de um Fauno, Mallarmé
50. Lolita, Vladimir Nabokov
51. Tartufo, Molière
52. As Três Irmãs, Anton Tchekov
53. O Livro das Mil e uma Noites
54. Don Juan, Tirso de Molina
55. Mensagem, Fernando Pessoa
56. Paraíso Perdido, John Milton
57. Robinson Crusoé, Daniel Defoe
58. Os Moedeiros Falsos, André Gide
59. Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis
60. Retrato de Dorian Gray, Oscar Wilde
61. Seis Personagens em Busca de um Autor, Luigi Pirandello
62. Alice no País das Maravilhas, Lewis Caroll
63. A Náusea, Jean-Paul Sartre
64. A Consciência de Zeno, Italo Svevo
65. A Longa Jornada Adentro, Eugene O’Neill
66. A Condição Humana, André Malraux
67. Os Cantos, Ezra Pound
68. Canções da Inocência/ Canções do Exílio, William Blake
69. Um Bonde Chamado Desejo, Teneessee Williams
70. Ficções, Jorge Luis Borges
71. O Rinoceronte, Eugène Ionesco
72. A Morte de Virgilio, Herman Broch
73. As Folhas da Relva, Walt Whitman
74. Deserto dos Tártaros, Dino Buzzati
75. Cem Anos de Solidão, Gabriel García Márquez
76. Viagem ao Fim da Noite, Louis-Ferdinand Céline
77. A Ilustre Casa de Ramires, Eça de Queirós
78. Jogo da Amarelinha, Julio Cortazar
79. As Vinhas da Ira, John Steinbeck
80. Memórias de Adriano, Marguerite Yourcenar
81. O Apanhador no Campo de Centeio, J.D. Salinger
82. Huckleberry Finn, Mark Twain
83. Contos de Hans Christian Andersen
84. O Leopardo, Tomaso di Lampedusa
85. Vida e Opiniões do Cavaleiro Tristram Shandy, Laurence Sterne
86. Passagem para a Índia, E.M. Forster
87. Orgulho e Preconceito, Jane Austen
88. Trópico de Câncer, Henry Miller
89. Pais e Filhos, Ivan Turgueniev
90. O Náufrago, Thomas Bernhard
91. A Epopéia de Gilgamesh
92. O Mahabharata
93. As Cidades Invisíveis, Italo Calvino
94. On the Road, Jack Kerouac
95. O Lobo da Estepe, Hermann Hesse
96. Complexo de Portnoy, Philip Roth
97. Reparação, Ian McEwan
98. Desonra, J.M. Coetzee
99. As Irmãs Makioka, Junichiro Tanizaki
100 Pedro Páramo, Juan Rulfo

A lista é ótima, mas há critérios bastante estranhos.

Se não me engano, só três semideuses têm mais de um livro na lista: Homero, Shakespeare e Joyce. OK, está justo.

No restante, é uma lista mais de autores do que de livros e muitas vezes são escolhidos os livros mais famosos do autor e dane-se a qualidade da obra. Se a revista faz um gol ao escolher Doutor Fausto como o melhor Thomas Mann, erra ao escolher Crime e Castigo dentro da obra de Dostoiévski – Os Irmãos Karamázovi e O Idiota são melhores; ao escolher Guerra e Paz de Tolstói – por que não Ana Karênina? -; na escolha de O Complexo de Portnoy, de Philip Roth; que tem cinco romances muito superiores, iniciando por O Avesso da Vida (Counterlife) e ainda ao eleger Retrato de Uma Senhora na obra luminosa de Henry James. Li por aí reclamações análogas sobre as escolhas de Brás Cubas e não de Dom Casmurro, de Cem Anos de Solidão ao invés de O Amor nos Tempos do Cólera e de As Cidades Invisíveis de Calvino, mas acho que é uma questão de gosto pessoal e não de mérito. Ah, e é absurda a presença do bom O Náufrago e não dos imensos e perfeitos Extinção, Árvores Abatidas e O Sobrinho de Wittgenstein na obra de Thomas Bernhard.

Saúdo a presença de grandes livros pouco citados como Tristram Shandy, obra-prima de Sterne muito querida deste que vos escreve, de Viagem ao Fim da Noite, de Céline, de A Consciência de Zeno, genial livro de Ítalo Svevo, de O Deserto dos Tártaros (Buzzati) e do incompreendido e brilhante Grandes Esperanças, de Charles Dickens, de longe seu melhor romance.

Porém é estranha a escolha de A Comédia Humana, de Balzac. Ora, a Comédia são 88 romances! Não vale! Estranho ainda mais a presença de autores menores como Kerouac e Malraux, além do romance que não é romance — ou do romance que só é romance em 100 de suas 1200 páginas: O Homem sem Qualidades, de Robert Musil.

Também acho que presença de McEwan e de Coetzee prescindem do julgamento do tempo, o que não é o caso de alguns ausentes, como Lazarillo de Tormes, de Chamisso com seu Peter Schlemihl, de George Eliot com Middlemarch, de Homo Faber de Max Frisch e de O Anão, de Pär Lagerkvist, só para citar os primeiros que me vêm à mente. E, se McEwan e Coetzee esttão presentes, por que não Roberto Bolaño?

E Oblómov??? Não poderia ficar de fora!

(O Bender escreve um comentário reclamando a ausência de Grande Sertão, Veredas, de Guimarães Rosa. É claro que ele tem razão! Esqueci. Coisas da idade.)

Com satisfação pessoal, digo que este não-especialista não leu apenas Os Miseráveis, o livro de Blake e os de Lautréamond, Mallarmé, Ovídio e Hesíodo. Isto é, seis dos cem. Tá bom.

P.S.- Milton mentiroso! Não li Finnegans também!

Este post foi publicado em 13 de dezembro de 2007, mas quase nada mudou.

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A Aventura do Estilo, de Henry James e Robert Louis Stevenson

A Aventura do Estilo, de Henry James e Robert Louis Stevenson

Este é um curioso livro que reúne dois escritores muito diferentes: Henry James (1843-1916) e Robert Louis Stevenson (1850-1894). O volume abre com dois ensaios, um de James sobre A Arte da Ficção e a devastadora resposta de Stevenson na forma de outro ensaio. Depois vemos formar-se uma improvável amizade entre ambos — escritores de estilos, interesses e forma de viver muito diversos — que ficou registrada em numerosa correspondência que pode ser lida em A Aventura do Estilo.  O livro finaliza com mais dois ensaios de James, ambos, é claro, sobre Stevenson.

Li muitos livros de James durante a juventude. Adorava suas análises psicológicas, seus personagens sofisticados e sua forma literária de fazer muito com pouco. A literatura de James dá imensa importância ao psicológico e, durante o ensaio A Arte da Ficção, ele cita de passagem Robert Louis Stevenson.

Já Stevenson é uma admiração mais recente. Este escocês é totalmente diferente ao inserir fatos espetaculares e muito de romanesco em suas histórias. Em seu ensaio-resposta, Stevenson detona James principalmente ao dizer que o romance não tem a capacidade de imitar a vida, mas apenas de  representá-la. Ademais, seu projeto literário é totalmente diferente, dando grande importância ao entretenimento e à imaginação.

O resultado é que, de forma surpreendente, James admite tacitamente os argumentos de Stevenson e eles se tornam grandes amigos, tendo acontecido inclusive o fato de James ter alterado (de leve) sua forma de escrever sob a influência do amigo. Ambos eram escritores conhecidos e respeitados. James era tido por profundo enquanto Stevenson era mais popular.

A correspondência entre ambos fala sobre literatura, mas também sobre as dificuldades de cada um. Stevenson é um britânico cuja saúde não pode com o frio e ele se muda para Samoa, no meio do Oceano Pacífico. Lá, pode viver. Ele tem sucesso literário e talvez fosse rico na Inglaterra. Já em Samoa, tem que lavrar a terra para poder comer. Enquanto isso, James é um norte-americano naturalizado inglês que é mais inglês do que qualquer outro escritor. Ama Londres e a cultura da Europa, mas ganha muito pouco com seus livros. Na correspondência, ficamos sabendo que ele até tenta escrever peças de teatro a fim de levantar alguma grana.

No final do livro, após a morte de Stevenson, James faz dois ótimos ensaios laudatórios ao amigo.

A Aventura do Estilo é bom livro, principalmente se você tem familiaridade com a dupla de autores.

O aristocrata norte-americano James e aventureiro britânico Stevenson.

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Uma(s) lista(s) de melhores contos, na minha humilde opinião e na do El País

Uma(s) lista(s) de melhores contos, na minha humilde opinião e na do El País
Machado de Assis e Guimarães Rosa.
Machado de Assis e Guimarães Rosa.

O Brasil sempre privilegiou o conto, mas os europeus nunca deram grande importância ao gênero. O Caderno de Cultura Babelia do jornal espanhol El País publicou uma notícia que fala sucintamente da recente valorização do conto naquele país, pedindo para que autores espanhóis citem seus contos favoritos da literatura não espanhola. Curiosamente, nenhum conto foi citado duas vezes. Depois, coloco uma relação de contos favoritos deste blogueiro.

Relatos universales que no hay que perderse

Escritores, editores y libreros que han participado en este especial sobre el renacer y la nueva valoración del cuento en España comparten con los lectores títulos de sus cuentos favoritos en español y otras lenguas.

— El llano en llamas, de Juan Rulfo, y Bartleby, el escribiente, de Herman Melville (Berta Marsé).

— Carta a una señorita en París, de Julio Cortázar, y La dama del perrito, de Antón Chéjov (Cristina Cerrada).

— La Resucitada, de Emilia Pardo Bazán, y El bailarín del abogado Kraykowsky, de Witold Gombrowicz (Cristina Fernández Cubas).

— El Aleph, de Jorge Luis Borges, y Una casa con buhardilla, de Antón Chéjov (Eloy Tizón).

— El espejo y la máscara, de Jorge Luis Borges; Una luz en la ventana, de Truman Capote, y Donde su fuego nunca se apaga, de May Sinclair (Fernando Iwasaki).

— Bienvenido, Bob, de Juan Carlos Onetti; El álbum, de Medardo Fraile; En medio como los jueves, de Antonio J. Desmonts; Alguien que me lleve, de Slawomir Mrozek; Los gemelos, de Fleur Jaeggy; La colección de silencios del doctor Murke, de Heinrich Böll, y Guy de Maupassant, de Isaak Babel (Hipólito G. Navarro).

— Un tigre de Bengala, de Víctor García Antón, y La revolución, de Slawomir Mrozek (José Luis Pereira).

— No oyes ladrar los perros, de Juan Rulfo; El veraneo, de Carmen Laforet; La corista, de Antón Chéjov, y Rikki-tikki-tavi, de Rudyard Kipling (José María Merino).

— Continuidad de los parques, de Julio Cortázar, y El nadador, de John Cheever (Juan Casamayor).

— El Sur, de Jorge Luis Borges; Parientes pobres del diablo, de Cristina Fernández Cubas; Tres rosas amarillas, de Raymond Carver, y La dama del perrito, de Antón Chéjov (Juan Cerezo).

— El infierno tan temido, de Juan Carlos Onetti, y Los muertos, de James Joyce (Juan Gabriel Vásquez).

— Las lealtades (de Largo Noviembre de Madrid), de Juan Eduardo Zúñiga, y El nadador, de John Cheever (Miguel Ángel Muñoz).

— Continuidad de los parques, de Julio Cortázar, y William Wilson, de Edgar Allan Poe (Patricia Estebán Erlés).

— Ojos inquietos, de Medardo Fraile; Noche cálida y sin viento, de Julio Ramón Ribeyro, y Míster Jones, de Truman Capote (Pedro Ugarte).

Minha relação saiu um pouco grande, apesar de ter sido escrita improvisadamente. Mas se pensasse mais, talvez não mudasse demais. Vamos a ela.

Contos estrangeiros:

— A Viagem, de Luigi Pirandello;
— O Velho Cavaleiro Andante, de Isak Dinesen (Karen Blixen);
— Ponha-se no meu lugar, de Raymond Carver;
— A Fera na Selva, de Henry James;
— Bartleby, o Escrivão, de Herman Melville;
— A Enfermaria Nº 6, de Anton Tchékhov;
— Queridinha (ou O Coração de Okenka), de Anton Tchékhov;
— A Corista, de Anton Tchékhov;
— A Dama do Cachorrinho, de Anton Tchékhov;
— Olhos Mortos de Sono, de Anton Tchékhov;
— Os Sonhadores, de Isak Dinesen (Karen Blixen);
— A Morte de Ivan Ilitch, de Leon Tolstói;
— Uma Alma Simples, de Gustave Flaubert;
— As Jóias, de Guy de Maupassant;
— Os Mortos, de James Joyce;
— O Licenciado Vidriera, de Miguel de Cervantes;
— O Artista da Fome, de Franz Kafka;
— A Colônia Penal, de Franz Kafka;
— A Queda da Casa de Usher, de Edgar Allan Poe;
— Berenice, de Edgar Allan Poe;
— William Wilson, de Edgar Allan Poe;
— O Primeiro Amor, de Ivan Turguênev;
— Três Cachimbos, de Ilya Ehrenburg;
— A Loteria da Babilônia, de Jorge Luis Borges;
— A procura de Averróis, de Jorge Luis Borges;
— O jardins dos caminhos que se bifurcam, de Jorge Luis Borges;
— Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, de Jorge Luis Borges.

Contos brasileiros:

— Missa do Galo, de Machado de Assis;
— Uns Braços, de Machado de Assis;
— Noite de Almirante, de Machado de Assis;
— Um Homem Célebre, de Machado de Assis;
— A Terceira Margem do Rio, de Guimarães Rosa;
— Meu tio, o Iauaretê, de Guimarães Rosa;
— A Hora e a Vez de Augusto Matraga, de Guimarães Rosa;
— O Duelo, de Guimarães Rosa;
— Guapear com Frangos, de Sérgio Faraco;
— O Voo da Garça-pequena, de Sergio Faraco;
— Corvos na Chuva, de Ernani Ssó;
— Contrabandista, de João Simões Lopes Neto;
— Baleia, de Graciliano Ramos (não é um conto, mas pode funcionar como tal);
— O homem que sabia javanês, de Lima Barreto;
— O Vitral, de Osman Lins;
— O Afogado, de Rubem Braga;
— Venha Ver o Pôr do Sol, de Lygia Fagundes Telles;
— Feliz Aniversário, de Clarice Lispector;
— Uma Galinha, de Clarice Lispector;
— O Japonês dos Olhos Redondos, de Zulmira Ribeiro Tavares.

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O Clube do Suicídio e outras histórias, de Robert Louis Stevenson

O Clube do Suicídio e outras histórias, de Robert Louis Stevenson

O_CLUBE_DO_SUICIDIO_E_OUTRAS_HISTORIASAs rev(f)erências de outros grandes autores a Stevenson (1850-1894) são mais do que justas. Nabokov, Borges e James, fora alguns que se apaixonaram pela obra do escocês. O que impressiona é sua qualidade como narrador, coisa que Nabokov esmiúça ao final do volume ao analisar longamente todos os artifícios que tornam O estranho caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde a obra-prima que é. Stevenson tem uma arrebatadora capacidade narrativa que envolve não somente uma cuidadosa distribuição de spoilers — corretos ou dúbios — como dá ao leitor uma curiosa noção de espaço, o que o torna muito visual, como se escrevesse para o cinema.

O belo volume da Cosac Naify abre com O Clube do Suicídio, uma novela de quase 100 páginas que conta sobre um clube privado que apenas pode ser frequentado por quem quer morrer e ou não tem coragem de fazê-lo ou não deseja deixar sobre si ou sobre sua família a vergonha de um suicídio. E mais não digo sobre os esquemas ficcionalmente geniais do clube. O príncipe Florizel, da Boêmia, é um homem com gosto por aventuras. Ele fica sabendo da existência do clube e lá entrando convence a todos que deseja morrer. Então, tem sua morte providenciada, mas, contra toda a prudência e os conselhos de seu amigo e escudeiro, o Coronel Geraldine…

O estranho caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde é conhecidíssimo. Ao final do volume, há um texto de Vladimir Nabokov onde o russo examina os artifícios de Stevenson praticamente parágrafo a parágrafo. O médico e o monstro é um clássico de primeira linha da literatura fantástica.

Markheim é pura música de câmara, é uma pequena e rara joia. Um perdulário contumaz vai a um antiquário antes da noite de Natal, quer comprar um presente para uma mulher e ficamos por aqui. Por alguma razão, amo O demônio da garrafa, outro conto fantástico. O argumento do conto não é de Stevenson, mas de uma famosa peça teatral de sua época. Especie de Fausto matemático do qual todos desconfiam, no fundo é uma bela história de amor. A base é a história do gênio da lâmpada das 1001 Noites, só que a garrafa onde ele reside TEM DE SER vendida por um preço menor do que foi comprada da última vez. Seu dono pode pedir o que quiser ao gênio e será atendido, mas tem de vendê-la sempre por um preço menor, correto? Caso morra com ela, sua alma irá para o inferno. Bem, um dia, ela terá de ser vendida por um 1 centavo, concordam?

O ladrão de cadáveres é outro conto soberbo e terrível. Dois colegas trabalhavam na sala de dissecação de um grande médico, um certo Dr. K. Ele roubavam cadáveres para que ele os dissecassem em uma universidade. Mas descobrem que há mais do que o simples roubo. O que se passava? Uma bela história de horror, sem dúvida. O vestíbulo é a brevíssima, esplêndida muito original narrativa de um assassinato. Ela é muito, mas muito Jorge Luis Borges.

Ah, sim, Nabokov, James e Borges… Os três juntos jamais errariam. A tradução, excelente, é de Andréa Rocha.

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30 anos sem a bela, rebelde e perfeccionista Ingrid Bergman

Publicado em 2 de setembro de 2012 no Sul21

Ingrid Bergman em Notorious (1946).

Ingrid Bergman nasceu e faleceu na data de 29 de agosto, tendo vivido entre os anos de 1915 e 1982. A última quarta-feira foi o dia dos 30 anos de sua morte. Seu rosto de impressionante beleza era o cartão de apresentação de uma mulher de muitos predicados além dos visíveis: talentosa, perfeccionista, inteligente, rebelde. Teve quatro filhos, protagonizou várias peças de teatro, estrelou uma relação de filmes europeus e norte-americanos difíceis de bater em quantidade e qualidade, além de colecionar um bom número de escândalos complicados de serem engolidos pela moral da época. Alfred Hitchcock a admirava tanto quanto costumava criticá-la. “É apenas um filme, Ingrid”, era a resposta que dava à extrema dedicação de Ingrid para encarnar seus personagens. “Ingrid, você está totalmente equivocada”, dizia-lhe quando ela sonhava em fazer filmes imortais e de personagens históricos como Joana d`Arc (bem, ele avisou…): “Se quiseres ser lembrada como grande atriz, faça filmes bons e baratos”, acrescentava a seu favor, um tanto desonestamente.

Com Alfred Hitchcock, em Sob o Signo de Capricórnio

Pois Bergman foi uma explosiva mistura de ambição artística e inconformismo. Foi uma atriz que não descuidou do teatro: levou ao palco, mais de uma vez, peças de Strindberg, Ibsen, Turguenev, Shaw e O`Neil. Para a televisão, atuou em textos de Henry James e Cocteau. No cinema, quando chegou a Hollywood, após o sucesso no cinema sueco, ela empilhou uma virtualmente irrepetível sequência de onze bem sucedidos filmes que fazem parte da história do cinema norte-americano:

Com Humphrey Bogart, em Casablanca

1939 – Intermezzo, uma História de Amor (Intermezzo, a Love Story)
1941 – Os Quatro Filhos de Adão (Adam Had Four Sons)
1941 – O Médico e o Monstro (Dr. Jekyll and Mr. Hyde)
1941 – Fúria No Céu (Rage in Heaven)
1942 – Casablanca (Casablanca)
1943 – Por Quem os Sinos Dobram (For Whom the Bell Tolls)
1944 – À Meia-Luz (Gaslight)
1945 – Os Sinos de Santa Maria (The Bells of St. Mary’s)
1945 – Mulher Exótica (Saratoga Trunk)
1945 – Quando Fala o Coração (Spellbound)
1946 – Interlúdio (Notorious)

Dez grande sucessos, um Oscar por À Meia Luz, duas indicações ao prêmio, por Por Quem os Sinos DobramOs Sinos de Santa Maria e uma mega bilheteria, Casablanca.

Compreensivelmente, era a mais requisitada atriz do cinema norte-americano quando cometeu dois erros. O primeiro, previsto por Hitchcock, foi Joana D`Arc (1948), filmado quando era estrela de Alfred Hitchcock. Ela já fizera três de seus filmes — Quando fala o coração (1945), Interlúdio (1946) e Sob o signo de Capricórnio (1949) — e faria tantos quantos quisesse.

No ano seguinte, 1949, quando filmava com Roberto Rosselini, cometeu outro equívoco, este moral, segundo a opinião da época: o de aparecer grávida do diretor, mesmo sendo casada com o médico sueco Petter Lindström. Como Rosselini também era casado, a união causou enorme polêmica. Ambos abandonaram as respectivas famílias para viverem juntos. A filha do casal Lindström-Bergman, Pia, foi deixada com o pai.

Essa paixão fez com que Ingrid fosse acusada de adúltera e de mau exemplo para as mulheres americanas, o que a levou a ficar anos sem filmar nos Estados Unidos. O escândalo que hoje daria apenas algumas manchetes às revistas de fofocas teve o envolvimento de políticos. O influente senado Edwin Johnson, do Colorado, denunciou o comportamento de Ingrid como “um ataque contra a instituição do casamento” e descreveu-a como uma “poderosa influência do mal”. E Ingrid permaneceu alguns anos na Europa.

Ingrid Bergman em Stromboli

Quando a conheceu, Ingmar Bergman chamou Ingrid de anarquista. Foi dentro deste espírito que ela completou sua obra. Numa atitude de puro desafio, casou-se com Rosselini antes do divórcio com Lindström… O casamento com o italiano só foi declarado ilegal quando eles já não eram mais um casal. Além do casamento com Rosselini, Ingrid teve casos com Gary Cooper, Victor Fleming, Robert Capa, Yul Brynner e Anthony Quinn, o que a tornava um prato cheio para as revistas e mau exemplo de comportamento.

Só que bastava ver Ingrid atuando para imaginar o que ocorreria. Ela seria perdoada e, cinco anos depois, ela retornou aos EUA para fazer Anastácia, receber mais um Oscar e namorar Yul Brunner.

Os depoimentos a seu respeito são unânimes. Uma pessoa de grande inteligência e concentração, que deixava todos de alguma forma sob seu domínio. Diferentemente de outras atrizes contemporâneas suas, trabalhou continuamente e permaneceu bela mesmo depois dos 50 anos. Só decaiu com a doença. Antes de morrer, ela declarou que pensava que sua vida tinha sido muito boa. “Nunca tive medo de fazer o que queria e de me aventurar, sempre mantive um grande senso de humor e bem pouco bom senso. Tive uma vida rica”.

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Ingrid Bergman nasceu em Estocolmo, perdeu a mãe aos 3 anos e o pai aos 13, indo morar com uma tia solteira e depois com seus tios paternos. Aos 17, decidiu tornar-se atriz. Logo obteve uma ponta no filme sueco, Landskamp.  No ano seguinte, inscreveu-se no Teatro Real de Arte Dramática, mas, como sempre teve por objetivo o cinema, acabou não concluindo o curso.

Em 1935, trabalhou como atriz coadjuvante no filme Munkbrogreven.  No ano seguinte, recebeu a primeira oportunidade como protagonista de Intermezzo, também sueco. Após vê-la atuando neste filme, o produtor David O. Selznick mandou à Estocolmo um representante da Metro-Goldwyn-Mayer a fim de adquirir os direitos sobre a história e  contratá-la para um remake em Hollywood. Antes de viajar para a Califórnia, Ingrid cumpriu contratos que a obrigavam a mais cinco filmes suecos.

Em 1937, casou-se com o medico Petter Lindström, de quem teve sua primeira filha, Pia Lindström. Em maio de 1939, chegou aos Estados Unidos para fazer Intermezzo. O filme foi um sucesso, recebeu duas indicações ao Oscar e deu início à espetacular série de filmes americanos de Ingrid. Se sua beleza era indiscutível, logo ela mostraria uma versatilidade que a faria a preferida da maioria dos diretores.

Ingrid com as gêmeas Isotta e Isabella Rossellini

O início da 2ª Guerra Mundial fez com que ela e a família se fixassem nos EUA. Quando voltou à Europa para fazer Stromboli (1950) com o diretor italiano Roberto Rossellini houve o escandaloso adultério e a gravidez que já descrevemos. No mês da estréia do filme, nasceu Roberto. Em junho de 1952, ela deu à luz às gêmeas Isotta e Isabella Rossellini.

Entre 1951 e 1955, Bergman e Rosselini fizeram juntos alguns filmes que não foram bem recebidos por líderes religiosos, principalmente dos EUA. Alguns deles representavam grande novidade para a época, como o maravilhoso Siamo Donne, onde há um epísódio em que Ingrid Bergman tem por papel Ingrid Bergman, uma perfeita italiana a reclamar de uma galinha que destruía suas rosas.

Em 1956, Hollywood a chamou novamente. A volta foi triunfante à Hollywood com o filme Anastácia, a Princesa Esquecida, pelo qual recebeu o Oscar.

A partir de então, passou alternar temporadas na Europa e nos Estados Unidos. Logo após Anastácia, foi a França filmar As Estranhas Coisas de Paris (Elena et les hommes) com Jean Renoir. Voltou aos EUA para Indiscreta (Indiscreet), com Cary Grant, e seguiu em filmes menores até, em 1974, receber seu terceiro Oscar pela atuação em Assassinato no Expresso Oriente.

Em 1978, foi a atriz principal de Sonata de Outono, de Ingmar Bergman, seu melhor filme do ponto de vista artístico. Pouco tempo depois, descobriu os primeiros sintomas de um câncer de mama, sendo submetida a uma mastectomia.

O último papel de Ingrid foi na TV, na minissérie A woman called Golda, onde interpretava a primeira ministra de Israel Golda Meir. Já muito doente, com o câncer se espalhando pelo corpo, Ingrid morreu quatro meses após o fim das filmagens no dia de seu aniversário de 67 anos, após uma festa promovida por amigos.

Em Casablanca, olhando para Bogart

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Os Quatro Encontros, de Henry James

(Sem spoilers).

Os Quatro Encontros (Clube do Livro, 1986, 144 páginas) reúne três novelas de Henry James escritas na prosa e com a sutileza extraordinariamente bem trabalhadas do autor anglo-estadunidense. As três histórias têm como elo situações e desenlaces desconcertantes.

A primeira novela, Os Quatro Encontros narra, como diz o título, quatro encontros bastante espaçados no tempo entre um homem e uma mulher e como uma nesga de assunto avança entre eles. Só que aquela nesga de conhecimento em comum de certa forma os define. Depois é a vez de O Discípulo, história da relação entre um aluno, seu tutor e a família decadente que mal e mal o paga. É arrebatadora a forma com que James descreve o ambiente de fim de festa daqueles aristocratas. O volume é finalizado com a melhor história, O Mentiroso, onde o personagem principal é um militar que simplesmente não consegue parar de inventar histórias. Um dia, ele, espécie de Dorian Gray, pousa para um retrato, no qual o artista faz de tudo para deixar clara sua personalidade. E consegue. O final da história é sensacional. O curioso é que O Mentiroso (The Liar) foi publicado em 1888 e O Retrato de Dorian Gray em 1890… Wilde não copia James de modo algum, mas alguma inspiração veio dali, tenho certeza.

A tradução é bem mais ou menos.literatura

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O leitor na carona

Dos gigantes da literatura da virada do século XIX para o XX, talvez Henry James seja o mais desconcertante deles. Carrego na bolsa um pequeno livro chamado Os quatro encontros, edição do Clube do Livro dos anos 80. São três novelinhas que ainda não acabei de ler. O tema de fundo é a educação e as diferenças entre a vida na Europa e na América do Norte. Nada que não tenha sido esmiuçado pelo autor e por outros. Só que, com sua prosa clássica e elegante, James vai deixando tudo fora do lugar, tornando as coisas discretamente lesivas, levando-as lentamente à perversão. A criação de climas é tão bem feita que pouco a pouco vou-me sentindo cada vez mais confortável, como se estivesse na carona do gordinho James, um sujeito que me leva com tanta segurança que não consigo me dar conta de coisas menores como pneus, motor, câmbio.

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Anotações para a noite: Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf X A Volta do Parafuso, de Henry James

Hoje à noite, às 19h, haverá dois dos mais esperados embates do ano. No StudioClio, se enfrentarão os dois livros acima. Antes teremos Suicídios exemplares (Suicidios ejemplares, 1991), de Enrique Vila-Matas X Vésperas (2002), de Adriana Lunardi. Estarei no jogo entre Woolf e James junto com Nikelen Witter e as cervejas Corujas, sempre presentes ao evento. Abaixo, minhas anotações de fim-de-semana sobre os livros. Devido a problemas com a Fox Sports, a Net não transmitirá o evento ao vivo. Só indo lá assistir.

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Logo que soube da escolha deste jogo por parte do StudioClio, a ideia de uma partida que reunisse Mrs. Dalloway e A volta do parafuso pareceu-me algo muito aleatório, mas tal impressão não subsistiu a alguns minutos de reflexão. O livro de James foi escrito em 1898 e o de Woolf apenas 27 anos depois, em 1925. Porém, sabemos que o mundo foi virado de cabeça para baixo naquele período, quando o romance do século XIX foi, em parte, substituído pelo romance moderno.

Não foram anos quaisquer. Alguém pode me dizer que o critério evolutivo não serve para a história do romance. Afinal, Grande Sertão: Veredas foi escrito há 56 anos, mas quando comparado com os romances atuais, dá a impressão (ou a certeza) de ser mais moderno do que aquilo que os romancistas de hoje escrevem. Talvez fosse interessante refletir se os escritores de hoje escrevem para o passado ou, pior, para um leitor que não existe mais. Bem, acho que isto é em parte verdade, mas não tergiversemos.

O fato é que Guimarães Rosa foi um fenômeno isolado enquanto Virginia Woolf fez parte de um oceano que estava destinado a mudar a arte do romance. Para comprovar que era um tsunami completo, com direito a levar de roldão o que houvesse pela frente, nem invocarei a literatura. Invoco, por exemplo, a música. O Allegro Barbaro de Bartók é de 1911, A Sagração da Primavera é de 1913, as Sinfonias de Mahler de 4 a 10 estão também entre a obra de James e de Woolf, Brahms morrera em 1897 e seu cadáver nem estava muito frio quando Debussy já rascunhava seus Noturnos orquestrais. Mas não era só na música, na pintura havia uma revolução análoga e até mais charmosa e célebre. Na literatura, Tolstói morria em 1910 para dar lugar a James Joyce, T.S. Eliot, Rilke, Proust, Kafka, Pirandello, Svevo… Todos autores que produziram toda ou grande parte de sua obra entre 1898 e 1925. Ou seja, não quero dar uma de Juscelino Kubitschek que empolgou o país com seu bordão “cinquenta anos em cinco”, porém o fato é que o mundo adquiria outra feição e velocidade naqueles anos.

Pois bem, acabo de separar os dois livros como se houvesse 200 anos entre eles, agora é o momento de aproximá-los. Por mais que hoje nos pareça estranho, Henry James era um escritor de vanguarda em sua época. Seu desenvolvimento calmo e sua classe encontram boa analogia no Bruxo de Cosme Velho. Tal como Machado, a literatura de James apresentava-se bastante estranha em 1898. Era como se o escritor, cansado do meramente romanesco, passasse a abrir mão da trama complicada e da construção de conflitos para que o leitor pudesse fruir a linguagem. James, em seus romances e novelas da época, revela um virtuosismo arrebatador sobre um quase nada, assim como Machado fez em Memorial de Aires. A trama de A Volta do Parafuso é tão rarefeita que uma sinopse do livro pode destruir a boa intenção de qualquer leitor e é isso que vou fazer agora. Calma, não vou estragar o prazer de ninguém ao ler o livro, tudo o que descreverei está bem no início da novela.

Uma mulher jovem, solteira e precisando de emprego, vai a Londres em atendimento a um anúncio. Necessitava-se de uma preceptora para cuidar de dois órfãos. O tutor é um tio bonito e bon vivant e o casal de crianças sob sua tutela é um grande incômodo. O que ele oferece? Um bom salário para morar afastado numa residência burguesa no campo, Bly, com muitos serviçais. O que ele pede? Que a contratada permaneça lá, cuidando e ensinando as crianças como uma condição: ela não deve aborrecê-lo com quaisquer problemas. Ele paga para não se incomodar. Mandará o dinheiro e ela deve resolver tudo, sem encher o saco com picuinhas e não-picuinhas. O tio é encantador, percebe que ela é suscetível a esse encanto e eles fecham o acordo. Ela vai para a propriedade, faz amizade com uma servidora simples e confiável, Mrs. Grove; logo descobrirá que as crianças são uns amores, excepcionalmente inteligentes e belas, e então não se tem mais certeza de nada. A única estranheza é o fato de o encantador Miles, o irmão mais velho, ter sido expulso da escola. A narradora não questiona o fato junto ao menino para não melindrá-lo; afinal é tão fofo! A partir de então, tudo fica BEM ESTRANHO: a ex-preceptora aparece em forma de fantasma… Ou é a narradora que enlouqueceu? O serviçal Peter Quint é outro fantasma do qual temos dúvidas se está ali mesmo ou apenas na imaginação da narradora. Well…

(Intermezzo: Pesquisei e contei 24 adaptações de The turn of the screw. Seis filmes – um com Marlon Brando, outro com Deborah Kerr, outro com Harvey Keitel e outro com Shelley Duvall – , mais uma ópera de Benjamin Britten, balés, adaptações radiofônicas, teatrais, o diabo. Nestas, muita criatividade, talvez abuso. Muito sexo, principalmente. As cenas de sexo do filme de Brando são um show à parte. Ele recém saíra de O Último Tango em Paris e o diretor Michel Winner resolveu utilizá-lo sem Maria Schneider nem manteiga, mas usando a liberdade de interpretação que James permite).

Respondendo a meus parênteses: Winner errou? Não, certamente não. Mas a preceptora aproxima-se “fisicamente” do fantasma de Quint no livro? Olha, James não descreveu nada parecido, mas ela pensava muito nele. Os pensamentos eram libidinosos? Não, eram de horror, mas falemos sério e de nossa posição pós-Freud: o fantasma de Quint cria uma atração irresistível na preceptora. Ela afirma que se trata de um monstro, mas ela o acha bonito e Mrs. Grove – que o conheceu vivo – garante: Quint era muito bonito e permissivo. O narrador James – o livro é narrado em primeira pessoa pela preceptora – não diz nada, mas nos leva a desconfiar de muita bobagem. Quint não é, decididamente, um cavalheiro; antes é sempre comparado a um animal. Quem sabe um fauno permissivo, instintivo e execrável à moral da moça? Talvez apenas a sua moral, claro.

Tudo no romance é perfeito. E insuficiente. As aparições dos fantasmas são raras e espaçadas, as informações sobre o possível conchavo deles com as crianças podem ser fruto da imaginação tola da narradora. Sabe-se pouco e fica claro que um dos fatos principais do livro é a linguagem de James, sempre pronta a nos enganar e a levar nosso pensamento para qualquer direção, nenhuma delas inocente. A Volta do Parafuso é escrito com o óbvio propósito de iludir o leitor a cada página. A interpretação é livre, tão livre que, no Brasil, uma editora espírita do interior de São Paulo publicou Os Inocentes de Henry James, como uma novela espírita da possessão de duas almas infantis por dois espíritos malvados, obsessores. Acho que de modo nenhum podemos explicar o livro por aí. De meu ponto de vista, eu, que jamais acreditei em fantasmas nem em espiritismo, confesso que James me assustou. Sim, confesso ter ficado arrepiado, inteiramente envolvido pela linguagem de James. Aliás, se houver alguma explicação para o livro, ela não será nada, nada óbvia. O mínimo que sobrará a um leitor de inteligência mediana, como eu, será a certeza de que se trata de um livro absolutamente assustador e instigante.

Mrs. Dalloway é muito diferente. O que me salta imediatamente aos olhos é o trabalho de linguagem de Virginia Woolf, sua enorme leveza e feminilidade ao escrever. Mrs. Dalloway é o primeiro livro de VW que subverte a linguagem tradicional. O livro inicia com a seguinte frase: “A Sra. Dalloway disse que ela própria compraria as flores”. Depois o que se vê inicialmente é uma explosão de alegria de uma mulher casada que dará uma festa à noite em sua casa. Sim, o ambiente inicial é de festa, mas logo abrem-se frestas. O surgimento de Peter Walsh, o seu primeiro amor, que retorna da Índia, muda alguma coisa, trazendo consigo os desejos da juventude que acabaram num casamento morno. Há também Septimus Warren Smith, enlouquecido pelo trauma da Primeira Guerra Mundial e cujos medos parecem se refletir em Clarissa (Dalloway). Enquanto Septimus é uma chaga aberta, Clarissa cobre sua dor com festas, amigos e tarefinhas. O futuro parece assustador, a velhice – Clarissa tem 52 anos – também. Melhor que os convidados saiam de sua casa dizendo a frase que Francisco Marshall escreveu em seu Facebook logo após a última festa que demos em minha casa e na qual Nikelen  Witter também estava presente: “Tudo perfeito! Assim a vida fica bem mais leve e melhor!”. É outro contexto, mas serve a frase, que agradeço.

Assim como o Ulisses de Joyce, a ação de Mrs. Dalloway transcorre num único dia. Entre a manhã e a madrugada seguinte, com as horas (aliás, o primeiro título do romance era As Horas) bem marcadas pelas badaladas do Big Ben. Lendo-se de um ponto de vista estritamente idiota, é a narrativa de um dia na vida da esposa de um membro da Câmara dos Comuns, sobrecarregada de coisas para fazer e preocupada com o que não fez por falta de coragem. Indo um pouco mais longe, é um livro sobre o efeito de nossas opções, o que não é pouca coisa.

A trama (trama?) de Virginia Woolf é ainda mais rarefeita do que a de James. Como veremos a seguir, VW é muitíssimo mais informativa, porém são fatos desconexos, jogados pela autora em aparente livre-associação formando um mosaico completo, repleto dos detalhes que são nossas vidas. Vejamos: enquanto Clarissa Dalloway dirige-se à florista Miss Pym, o leitor vai conhecendo a sua vida: o marido chatinho Richard, a filha Elizabeth; a religiosa Miss Kilman, espécie de preceptora que influencia a filha Elisabeth e de quem Clarissa não gostava e recebia retribuição. Pensa em seu amigo Peter Walsh, a quem preterira em casamento. Retornando à casa, Clarissa encontra o marido Richard, que lhe diz que foi convidado para ir almoçar na casa de Lady Bruton. Clarissa fica com ciúmes, mas há mais em que pensar, pois não disse que ela receberá a visita de seu primeiro amor, o citado Peter Walsh? O passado emerge, as cenas entre os dois e as lembranças de ambos são belíssimas e tristes. Durante o jantar, Richard diz a Walsh  que se sente inseguro, que oferece com alguma frequência flores a Clarissa para poder dizer “eu te amo”, mas que a frase não sai, apenas as flores são entregues. Durante a festa, Peter conhece Sally Seton, uma velha amiga que depois de casada passou a ser conhecida como Lady Rosseter e deu luz a cinco filhos. Ela foi íntima de Clarissa, trocaram carícias, mas aconteceu com ela o mesmo que ocorreu com Walsh. Clarissa trocou-a por uma posição social. Simultaneamente, travamos conhecimento com Septimus Warren Smith, um herói da Primeira Guerra Mundial que tem alucinações, e com o sofrimento da sua esposa Lucrezia (Rezia).

Woolf utiliza uma técnica de fluxo de consciência conectando os pensamentos de seus personagens. O romance é uma narrativa contínua, sem grandes divisões ou seções. O Big Ben conta o tempo. Os pensamentos de personagens como Mrs. Dalloway e Septimus Warren Smith são conectados por eventos externos do mundo, como o som de um automóvel, ou a visão de um avião no céu.
O que há em comum entre as duas “heroinas”? Não gosto de ambas. Dalloway escolhe a  segurança e o convencionalismo. A narradora de James é muito chata e doida varrida…Clarissa ama o sucesso, odeia o desconforto, e tem necessidade de ser amada. Ela é atraída para homens e mulheres. Teme que sua filha seja cooptada por Miss Kilman. Clarissa teve uma doença recente, e descansa por uma hora depois do almoço. Pensa na morte. Bem, agora temos anotações mesmo!
Agora, a contagem dos gols. Tudo pode mudar até a noite.
1. Linguagem, foco narrativo

Empate. Fico mais feliz com Woolf, mas acho que há que respeitar o sabor clássico de James. Cada um faz um gol.

2. Construção de conflitos e estrutura do romance

James constrói uma miríade de conflitos dentro de um guarda-chuva maior. Todos eles são cuidadosa ou nervosamente analisados e revisados em seus muitos detalhes. Na verdade, A volta do parafuso é uma longa construção de um conflito que não é solucionado até o final muito bem definido até o final e até mesmo depois dele. Gol de James.

3. Construção de personagens

Tenho que pensar.

4. Relevância sociológica.

O romance de Woolf é, não obstante sua aparente leveza, lotado de observações à terceira década de século XX: as sobras da Primeira Guerra Mundial que traumatiza, culpa e enlouquece Septimus Warren Smith. Rezia, sua mulher expatriada e semi rejeitada por ser uma estrangeira, sentindo-se duplamente impotente frente ao marido que sucumbe e ao qual ama. O caso de Clarissa e Peter Walsh e de Clarissa e Sally que não vão adiante pelo puro preconceito de classe de Clarissa. Gol de Woolf, fácil.

5. Relevância ontológica.

Aqui também Woolf faz gol. O fluxo de consciência é um ganho enorme e ele garante enorme vantagem sobre o discurso livre indireto de James. Além do mais, os personagens de James estão obcecados pelos fantasmas e os problemas dos garotos. Mesmo que James vire e revire as ideias da narradora, ela não é páreo para a montanha de elementos que é exposta por Woolf.

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Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf X A volta do parafuso, de Henry James

Fortes e confirmados indícios dão conta de que este que vos escreve e Nikelen Witter estarão na próxima segunda-feira, 2 de abril, discutindo os dois títulos acima no StudioClio. A volta do parafuso é de 1898; Mrs. Dalloway, de 1925. Neste ínterim, a arte mudou muito. Não gosto da palavra ruptura, até porque Virginia Woolf, com seu respeito aos escritores que a antecederam, a rejeitaria, mas há que considerar que a distância temporal entre as obras, de 27 anos, parece ser maior se entremearmos James Joyce e seu Ulisses, Diaghilev, Mahler, T.S. Eliot, Rilke, Ravel, Proust, Kafka, Pirandello, Svevo, Stravinsky… ou seja, o modernismo. A distância entre as duas pequenas obras-primas assemelha-se a comparar a perfeição clássica de Brahms a Mahler ou Bartók.

Henry James era o grande estilista, um escritor cheio de artifícios e que foi ficando cada vez mais intrincado em sua prosa. Ele talvez seja um dos maiores representantes do fim de uma época que já forçava os limites do romance do século XIX, apontando para o que viria. Já Woolf gozava de uma liberdade que ainda escandalizava e criava seu primeiro grande romance, o saltitante Mrs. Dalloway.

Dá muito papo, ainda mais com a Nikelen, que é escritora e historiadora. Estaremos devidamente calibrados com cerveja Coruja. Acho que será bom.

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Como funciona a ficção, de James Wood

Só existe uma receita: ter o maior cuidado na hora de cozinhar.
HENRY JAMES

Esta citação abre Como Funciona a Ficção (232 páginas, Cosac Naify, tradução de Denise Bottmann), de James Wood, e é uma frase muito humilde e realista da parte do autor, pois no final quem decidirá o que será usado na  ficção serão as decisões do autor e de seu editor aliadas à apreensão do leitor, que dirá afinal se funcionou. São coisas realmente muito complicadas de se colocar num manual, pois há toda uma realidade complexa e inapreensível: o ouvido, a música, a qualidade das analogias, o uso dos detalhes, a criação de personagens, os diálogos, o bom uso do discurso livre indireto, o foco, a capacidade de fugir do convencional, etc. Ou quem sabe poderíamos chamar todos este itens simplesmente de bom gosto?

Wood sai avisando logo de cara:

Neste livro, tento responder algumas das perguntas fundamentais sobre a arte de ficção. (…) espero que seja um livro que faz perguntas teóricas e dá respostas práticas – ou, em outras palavras, que faz as perguntas do crítico e dá as respostas do escritor.

Nem tanto, Mr. Wood. As respostas vêm por exemplos, é mostrado o que funciona e tais demonstrações certamente são irrepetíveis — pois qualquer ingrediente alterado tem o condão de mudar inteiramente o sabor e se não fosse alterado teríamos casos de plágio… Desta forma, acho que é demais dizer que dá respostas práticas. (Fico pensando nas oficinas literárias. Como se aprende a fazer ficção? Com algumas instruções sai alguma coisa, mas é possível “formar o ouvido” lendo poesia, como sugere Wood? Ou seria mais eficiente ouvir Bach ou observar os trabalhos gráficos de Goya? Como se forma a sensibilidade, cara-pálida? Ah, não me perguntem. Acho que os “professores” das oficinas apenas podem dar uma melhorada, verificar que o aluno está pronto ou mandá-lo guardar seu dinheiro).

Apesar de ser organizado por assunto, o livro funciona por acumulação, tendo citações reutilizadas. Conhecer a maioria dos livros citados é bom, mas não é fundamental para a compreensão do todo. A primeira parte, “Narrando” trata basicamente do artifício do “discurso ou estilo indireto livre”, onde características dos personagens grudam num texto escrito em 3ª pessoa e quem passa a falar não é mais o autor. Os exemplos vem de Joyce, principalmente dos contos de Dublinenses, onde o irlandês usa e abusa do recurso. É um bom capítulo. Depois, grande parte dos argumentos derivam principalmente de Flaubert, mas também de James, Woolf, Dickens, Dostoiévski, Tolstói, Bellow, Saramago, Philip Roth e Muriel Spark. Há observações excelentes sobre o flâneur, os personagens, os detalhes, a linguagem e o melhor, o último, sobre verdade, convenção e realismo.

Leio estes livros sobre ficção por puro prazer. É como se sentasse com um amigo muito culto e gentil para trocarmos ideias num café. Não tenho a expectativa de aprender. No máximo, a discussão auxilia a organizar os pensamentos, o que já é muito e faz certamente parte de um aprendizado. Organizar o que se sabe É aprender, certamente, e é bom falar sobre literatura e lembrar passagens de livros.  Mas que ninguém leia este gênero de livro ou frequente oficinas na expectativa de que os horizontes se abram. São momentos enriquecedores e agradáveis. Se serão fecundos é outra história.

Leia mais e melhor: Aprendendo como funciona a ficção

P.S. — Há toda uma discussão sobre se Wood é conservador ou não. Não me pareceu sê-lo. O que é correto dizer é que ele parte via de regra do ícone e que cultiva grande amor pelo realismo. As pessoas fazem confusão entre realismo e naturalismo… E, bem, para ser compreendido há que dar exemplos de conhecimento comum, correto? Além do mais, vários autores recentes e muito diferentes entre si são citados. Esqueçam.

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O Grande Livro Doente de Machado de Assis

Memorial de Aires não é considerado um dos principais romances de Machado de Assis. A maioria fica com Dom Casmurro ou Brás Cubas e com o irretocável mosaico de contos. Até compreendo, mas prefiro o delicado Memorial. Provavelmente estou errado, pode tratar-se de simples idiossincrasia, porém, como velho leitor do Bruxo de Cosme Velho, vou tentar explicar minha opinião.

A publicação deste romance-diário ocorreu em 1908, ano da morte do escritor. O tema é quase nenhum. O Conselheiro Aires, que já havia narrado o romance anterior de Machado, Esaú e Jacó, escreve este diário-romance na posição de um mero observador da “ação” – e portanto não na posição de narrador onisciente -, observando as aventuras amorosas dos mais jovens e anotando de forma sedutora também outros acontecimentos a seu redor: amizades, pequenos casos, pequenos dramas, piadas.

O romance perpassa dois anos da velhice do personagem-autor; serenamente, ele leva o leitor com suas observações aleatórias de aposentado. Conta sobre o amor de Fidélia e Tristão, sobre a vida passada como diplomata, sobre leituras ou acontecimentos políticos, tudo sem muita ordem. O livro é quase destituído de enredo, descrevendo o final da existência de alguém muito experiente e perspicaz. O tom do Memorial fica entre a melancolia de quem está velho demais para conquistas amorosas e o bom humor indulgente da experiência. Parece uma crônica leve sem maiores objetivos mas é uma visão bastante amarga da solidão da velhice. Este paradoxo torna o livro irresistível para mim. O que esperar de um velho inteligente, aposentado, sem filhos e nada para fazer? Risonho e falsamente fútil, Aires vai habilmente descrevendo a vida dos amigos Dona Carmo e Aguiar, um casal sem filhos que toma a jovem Fidélia como se fosse sua filha e a vê mudar-se para Portugal com seu amor Tristão. Aires nos mostra a devoção com que o casal espera e recebe cada carta vinda de Portugal; a forma amiga e piedosa – ao mesmo tempo que irônica e crítica – com que Aires aborda o casal é encharcada da mais pura humanidade.

É evidente que Machado está, ao expor-nos Dona Carmo e Aguiar, expondo nostalgicamente a intimidade de sua própria vida com Carolina, a esposa de toda uma vida, recém falecida à época em que o romance foi escrito. Em grande parte, os méritos do livro estão na perfeita e contida descrição de seres tão pouco romanescos quanto o próprio Conselheiro Aires, Dona Carmo, Aguiar, Fidélia e Tristão, que aqui são cuidadosamente emoldurados por um mestre no auge de sua arte.

Talvez eu não tenha convencido você da qualidade do livro ou talvez minha avaliação seja um equívoco; então, para me auxiliar, invoco inesperadamente o depoimento do cineasta François Truffaut.

Truffaut criou a categoria dos Grandes Filmes Doentes. A definição deste tipo de filme está no parágrafo a seguir e reparem como ela serve para o Memorial. Peço-lhes que troquem as palavras relativas ao cinema por outras relativas à literatura. Por exemplo, troquem filme por livro, diretor por escritor, cinefilia por bibliofilia ou bibliofagia, etc. Com a palavra, François Truffaut, o diretor que amava os livros e um de meus heróis neste mundo:

Abro um parêntese para definir rapidamente o que chamo de um “grande filme doente”. Não é senão uma obra-prima abortada, um empreendimento ambicioso que sofreu erros de percurso. (…) Esta noção só pode aplicar-se, evidentemente, a diretores muito bons, àqueles que, em outras circunstâncias, demonstraram que podem atingir a perfeição. Um certo grau de cinefilia encoraja, por vezes, a preferir, na obra de um diretor, seu grande filme doente à sua obra-prima incontestada! (…) Se se aceita a idéia de que uma execução perfeita chega, na maior parte das vezes, a dissimular as intenções, admitir-se-á que os grandes filmes doentes deixam transparecer mais cruamente sua razão de ser. (…) Diria, enfim, que o “grande filme doente” sofre geralmente de um extravasamento de sinceridade, o que paradoxalmente o torna mais claro para os aficionados e mais obscuro para o público, levado a engolir misturas cuja dosagem privilegia o ardil de preferência à confissão direta.

Trecho da crítica de Truffaut sobre o filme Marnie – Confissões de uma Ladra, de Alfred Hitchcock. Retirado de Hitchcock / Truffaut – Entrevistas (Ed. Brasiliense – 1986).

O Memorial é isto mesmo. É um Grande Livro Doente. O ex-diplomata Aires é, certamente, o próprio Machado sexagenário. Tranqüilo, irônico e pessimista, goza sua aposentadoria escrevendo pequenos acontecimentos em seu diário. Nada de romanesco alterará sua existência e ele se compraz na companhia de seus velhos amigos e na observação dos jovens. O ambiente do livro é o mesmo de suas crônicas e até a relativa vergonha de sentir-se atraído por uma jovem viúva é descrita, ao lado do bom senso que o faz aconselhá-la a um casamento com um jovem. Trata-se de um calmo “extravasamento de sinceridade”. Porém… Claro que um livro assim move-se a passos de tartaruga e seu verdadeiro personagem deve ser o texto – no caso uma notável demonstração de virtuosismo literário talvez só repetível por alguém do porte de Henry James. Pode ser que a imobilidade e os gentis saraus de uma velhice esclarecida tenham afastado o público do livro, mas não afastou os loucos por Machado.

Para terminar, uma citação que bem demonstra o espírito de Memorial de Aires:

Em verdade, dá certo gosto deitar ao papel coisas que querem sair da cabeça, por via da memória ou da reflexão.

Machado de Assis, MEMORIAL DE AIRES

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O caso do blog "Não gosto de plágio"

O excelente e combativo Não gosto de plágio foi processado por ter acusado… mais um plágio. Há um gênero de trapaça pouco conhecida e muito, mas muito sacana. É o plagiador (ou copiador) de traduções alheias. Imaginem que o plagiador, normalmente o próprio editor ou um funcionário, faz a tradução de uma obra de, digamos, Philip Roth; porém, em vez de traduzir a obra, pega uma edição portuguesa, dá uma “tropicalizada” e manda bala.

Denise Bottmann foi processada por denunciar uma tradução suspeita. Trata-se de uma tradutora  profissional que apenas deseja manter o espaço que é dos tradutores autênticos, daqueles que suam para compreender e mimetizar um autor. Minha mulher faz traduções do italiano e já me mostrou livros que continham 10 erros — de todo gênero — por página. Erros incríveis, que talvez fossem herança de um mau tradutor de primeira mão. O que Denise apontou afeta muito a mim: uma versão da editora Landmark para Persuasão, de Jane Austen…

Neste post, Denise nos dá detalhes sobre o que seria um indiscutível crime. O tradutor é o Sr. Fábio Cyrino, um dos proprietários da Landmark; sua versão do clássico apresentaria grandes semelhanças com a tradução portuguesa de Isabel Sequeira, publicada pelas edições Europa-América em 1996. Ao que tudo indica seria mais um caso de editor que rouba mercado de trabalho de quem sabe traduzir — e cobra adequadamente por isto. A Landmark costuma editar principalmente obras sobre maçonaria, mas também gosta de ornamentar seu marasmático catálogo com coisa mais divertidas e inteligentes como A volta do parafuso e O morro dos ventos uivantes. Espero que James e Brontë estejam tranquilos em seus túmulos. Tenho pena de Jane Austen, que deve estar louca por um chá de camomila, preocupada com o destino de nossa heroína Anne Elliot.

Como vocês sabem, tenho alguma vivência nestas coisas de processos contra a blogosfera. Já digo que não vai dar em nada e peço a quem concordar comigo que dê o devido destaque ao caso. Também sugiro à Denise que publique ipsis litteris a inicial em seu blog. Afinal, o juiz declarou o processo como público — contra a posição do advogado do Sr. Cyrino — e penso que as pessoas ainda podem amparar-se em pressupostos morais como este: quem processa outrem deve estar pronto para sustentar e defender os motivos alegados em qualquer lugar e ocasião.

P.S. — A blogueira Raquel Sallaberry, do Jane Austen em Português, também está sendo processada pela editora.

P.P.S. — Sabem o que o Sr. Cyrino pediu? A retirada imediata do blog, além de uma indenização de 400 salários mínimos por calúnia e difamação. 400 mínimos? Retirada do blog do ar? O pior é que Denise vai perder tempo, gastar uma grana em advogado, etc. Tudo para nada.

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