Eu não sei quem é o autor para o português da tradução que copio abaixo. E é claro que o significado deste famoso discurso ultrapassa em muito o filme de Branagh, Henrique V, pois, afinal, o Discurso do Dia de São Crispim faz parte da peça histórica de William Shakespeare, Henrique V, Ato IV, Cena III.
Na véspera da Batalha de Azincourt (parte da Guerra dos 100 Anos), que caiu num dia de São Crispim — para ser mais exato, em 25 de outubro de 1415 –, Henrique V exorta seus homens, que estavam em número muito menor do que os franceses, a imaginar a glória e a imortalidade que teriam se fossem vitoriosos. O discurso foi repetido por Laurence Olivier para elevar o espírito britânico durante a Segunda Guerra Mundial, e por Kenneth Branagh no filme Henry V, de 1989. Nele, está a famosa expressão band of brothers. A peça foi escrita por volta de 1600, e vários escritores posteriores usaram partes dela em seus próprios textos.
Explicando melhor: o exército britânico estava em solo francês. Depois de uma campanha malsucedida, estavam procurando voltar para a Inglaterra, doentes e exaustos. Porém, foram alcançados pelos franceses. Logo antes de começar a batalha, os nobres ingleses discutiam entre si, comentando que o inimigo estava descansado, inteiro e, bem, em esmagadora superioridade numérica. Os ingleses tinham aproximadamente 7 mil homens, os franceses por volta de 20 mil. E o primo do rei suspirou, dizendo que gostaria de ter os homens que ficaram na Inglaterra fazendo nada.
A seguir, o vídeo do filme — Branagh faz alguns cortes –, o que diz Westmoreland e a resposta de Henrique V, em português e o original de Shakespeare:
O conde de Westmoreland, primo do rei, lamenta a falta de mais homens para pelo menos tentar equilibrar um pouco a enorme diferença dos efetivos de combatentes. O rei toma a palavra então:
Quem expressa esse desejo? Meu primo Westmoreland? Não, meu simpático primo; se estamos destinados a morrer, nosso país não tem necessidade de perder mais homens do que nós temos aqui; e , se devemos viver, quanto menor é o nosso número, maior será para cada um de nós a parte da honra. Pela vontade de Deus! Não desejes nenhum um homem a mais, te rogo! Por Júpiter! Não sou avaro de ouro, e pouco me importo se vivem às minhas expensas: sinto pouco que outros usem minhas roupas: essa coisas externas não encontram abrigo entre as minhas preocupações; mas se ambicionar a honra é pecado, sou a alma mais pecadora que existe.
Não, por fé, não desejeis nenhum homem mais da Inglaterra. Paz de Deus! Não quereria, pela melhor das esperanças, expor-me a perder uma honra tão grande, que um homem a mais poderia quiçá compartir comigo. Oh! Não ansieis por nenhum homem a mais! Proclama antes, através do meu exército, Westmoreland, que aquele que não for com coração à luta poderá se retirar: lhe daremos um passaporte e poremos na sua mochila uns escudos para a viagem; não queremos morrer na companhia de um homem que teme morrer como companheiro nosso.
Este dia é o da festa de São Crispim; aquele que sobreviver esse dia voltará são e salvo ao seu lar e se colocará na ponta dos pés quando se mencionará esta data, ele crescerá sobre si mesmo ante o nome de São Crispim. Aquele que sobrevier esse dia e chegar a velhice, a cada ano, na véspera desta festa, convidará os amigos e lhes dirá: “Amanhã é São Crispim”. E então, arregaçando as mangas, ao mostrar-lhes as cicatrizes, dirá: “Recebi estas feridas no dia de São Crispim.”
Os velhos esquecerão; mas, aqueles que não esquecem de tudo, se lembrarão todavia com satisfação das proezas que levaram a cabo naquele dia. E então nossos nomes serão tão familiares nas suas bocas com os nomes dos seus parentes: o rei Harry, Bedford, Exeter, Warwick e Talbot, Salisbury e Gloucester serão ressuscitados pela recordação viva e saudados com o estalar dos copos.
O bom homem ensinará esta história ao seu filho, e desde este dia até o fim do mundo a festa de São Crispim e Crispiano nunca chegará sem que venha associada a nossa recordação, à lembrança do nosso pequeno exército, do nosso bando de irmãos; porque aquele que verter hoje seu sangue comigo, por muito vil que seja, será meu irmão, esta jornada enobrecerá sua condição e os cavaleiros que permanecem agora no leito da Inglaterra irão se considerar como malditos por não estarem aqui, e sentirão sua nobreza diminuída quando escutarem falar daqueles que combateram conosco no dia de São Crispim.
(A vida do rei Henrique V, ato IV, cena III)
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O original sem cortes:
What’s he that wishes so? My cousin, Westmorland? No, my fair cousin; If we are mark’d to die, we are enough To do our country loss; and if to live, The fewer men, the greater share of honour. God’s will! I pray thee, wish not one man more.
By Jove, I am not covetous for gold, Nor care I who doth feed upon my cost; It yearns me not if men my garments wear; Such outward things dwell not in my desires. But if it be a sin to covet honour, I am the most offending soul alive. No, faith, my coz, wish not a man from England. God’s peace! I would not lose so great an honour As one man more methinks would share from me For the best hope I have. O, do not wish one more! Rather proclaim it, Westmorland, through my host, That he which hath no stomach to this fight, Let him depart; his passport shall be made, And crowns for convoy put into his purse; We would not die in that man’s company That fears his fellowship to die with us.
This day is call’d the feast of Crispian. He that outlives this day, and comes safe home, Will stand a tip-toe when this day is nam’d, And rouse him at the name of Crispian. He that shall live this day, and see old age, Will yearly on the vigil feast his neighbours, And say “To-morrow is Saint Crispian.” Then will he strip his sleeve and show his scars, And say “These wounds I had on Crispin’s day.”
Old men forget; yet all shall be forgot, But he’ll remember, with advantages, What feats he did that day. Then shall our names, Familiar in his mouth as household words— Harry the King, Bedford and Exeter, Warwick and Talbot, Salisbury and Gloucester— Be in their flowing cups freshly rememb’red.
This story shall the good man teach his son; And Crispin Crispian shall ne’er go by, From this day to the ending of the world, But we in it shall be rememberèd— We few, we happy few, we band of brothers; For he to-day that sheds his blood with me Shall be my brother; be he ne’er so vile, This day shall gentle his condition; And gentlemen in England now a-bed Shall think themselves accurs’d they were not here, And hold their manhoods cheap whiles any speaks That fought with us upon Saint Crispin’s day.
Há algumas semanas, li a lista da extinta revista Bravo sobre os 100 livros essenciais da literatura mundial. A edição vendeu muito, disse o dono da banca de revistas meu vizinho. No final da revista, há uma página de Referências Bibliográficas de razoável tamanho, mas o editor esclarece que a maior influência veio dos trabalhos de Harold Bloom.
Vamos à lista? Depois farei alguns comentários a ela.
A lista é a seguinte (talvez haja erros de digitação, talvez não):
1. Ilíada, Homero
2. Odisseia, Homero
3. Hamlet, William Shakespeare
4. Dom Quixote, Miguel de Cervantes
5. A Divina Comédia, Dante Alighieri
6. Em Busca do Tempo Perdido, Marcel Proust
7. Ulysses, James Joyce
8. Guerra e Paz, Leon Tolstói
9. Crime e Castigo, Dostoiévski
10. Ensaios, Michel de Montaigne
11. Édipo Rei, Sófocles
12. Otelo, William Shakespeare
13. Madame Bovary, Gustave Flaubert
14. Fausto, Goethe
15. O Processo, Franz Kafka
16. Doutor Fausto, Thomas Mann
17. As Flores do Mal, Charles Baldelaire
18. Som e a Fúria, William Faulkner
19. A Terra Desolada, T.S. Eliot
20. Teogonia, Hesíodo
21. As Metamorfoses, Ovídio
22. O Vermelho e o Negro, Stendhal
23. O Grande Gatsby, F. Scott Fitzgerald
24. Uma Estação No Inferno,Arthur Rimbaud
25. Os Miseráveis, Victor Hugo
26. O Estrangeiro, Albert Camus
27. Medéia, Eurípedes
28. A Eneida, Virgilio
29. Noite de Reis, William Shakespeare
30. Adeus às Armas, Ernest Hemingway
31. Coração das Trevas, Joseph Conrad
32. Admirável Mundo Novo, Aldous Huxley
33. Mrs. Dalloway, Virgínia Woolf
34. Moby Dick, Herman Melville
35. Histórias Extraordinárias, Edgar Allan Poe
36. A Comédia Humana, Balzac
37. Grandes Esperanças, Charles Dickens
38. O Homem sem Qualidades, Robert Musil
39. As Viagens de Gulliver, Jonathan Swift
40. Finnegans Wake, James Joyce
41. Os Lusíadas, Luís de Camões
42. Os Três Mosqueteiros, Alexandre Dumas
43. Retrato de uma Senhora, Henry James
44. Decameron, Boccaccio
45. Esperando Godot, Samuel Beckett
46. 1984, George Orwell
47. Galileu Galilei, Bertold Brecht
48. Os Cantos de Maldoror, Lautréamont
49. A Tarde de um Fauno, Mallarmé
50. Lolita, Vladimir Nabokov
51. Tartufo, Molière
52. As Três Irmãs, Anton Tchekov
53. O Livro das Mil e uma Noites
54. Don Juan, Tirso de Molina
55. Mensagem, Fernando Pessoa
56. Paraíso Perdido, John Milton
57. Robinson Crusoé, Daniel Defoe
58. Os Moedeiros Falsos, André Gide
59. Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis
60. Retrato de Dorian Gray, Oscar Wilde
61. Seis Personagens em Busca de um Autor, Luigi Pirandello
62. Alice no País das Maravilhas, Lewis Caroll
63. A Náusea, Jean-Paul Sartre
64. A Consciência de Zeno, Italo Svevo
65. A Longa Jornada Adentro, Eugene O’Neill
66. A Condição Humana, André Malraux
67. Os Cantos, Ezra Pound
68. Canções da Inocência/ Canções do Exílio, William Blake
69. Um Bonde Chamado Desejo, Teneessee Williams
70. Ficções, Jorge Luis Borges
71. O Rinoceronte, Eugène Ionesco
72. A Morte de Virgilio, Herman Broch
73. As Folhas da Relva, Walt Whitman
74. Deserto dos Tártaros, Dino Buzzati
75. Cem Anos de Solidão, Gabriel García Márquez
76. Viagem ao Fim da Noite, Louis-Ferdinand Céline
77. A Ilustre Casa de Ramires, Eça de Queirós
78. Jogo da Amarelinha, Julio Cortazar
79. As Vinhas da Ira, John Steinbeck
80. Memórias de Adriano, Marguerite Yourcenar
81. O Apanhador no Campo de Centeio, J.D. Salinger
82. Huckleberry Finn, Mark Twain
83. Contos de Hans Christian Andersen
84. O Leopardo, Tomaso di Lampedusa
85. Vida e Opiniões do Cavaleiro Tristram Shandy, Laurence Sterne
86. Passagem para a Índia, E.M. Forster
87. Orgulho e Preconceito, Jane Austen
88. Trópico de Câncer, Henry Miller
89. Pais e Filhos, Ivan Turgueniev
90. O Náufrago, Thomas Bernhard
91. A Epopéia de Gilgamesh
92. O Mahabharata
93. As Cidades Invisíveis, Italo Calvino
94. On the Road, Jack Kerouac
95. O Lobo da Estepe, Hermann Hesse
96. Complexo de Portnoy, Philip Roth
97. Reparação, Ian McEwan
98. Desonra, J.M. Coetzee
99. As Irmãs Makioka, Junichiro Tanizaki
100 Pedro Páramo, Juan Rulfo
A lista é ótima, mas há critérios bastante estranhos.
Se não me engano, só três semideuses têm mais de um livro na lista: Homero, Shakespeare e Joyce. OK, está justo.
No restante, é uma lista mais de autores do que de livros e muitas vezes são escolhidos os livros mais famosos do autor e dane-se a qualidade da obra. Se a revista faz um gol ao escolher Doutor Fausto como o melhor Thomas Mann, erra ao escolher Crime e Castigo dentro da obra de Dostoiévski – Os Irmãos Karamázovi e O Idiota são melhores; ao escolher Guerra e Paz de Tolstói – por que não Ana Karênina? -; na escolha de O Complexo de Portnoy, de Philip Roth; que tem cinco romances muito superiores, iniciando por O Avesso da Vida (Counterlife) e ainda ao eleger Retrato de Uma Senhora na obra luminosa de Henry James. Li por aí reclamações análogas sobre as escolhas de Brás Cubas e não de Dom Casmurro, de Cem Anos de Solidão ao invés de O Amor nos Tempos do Cólera e de As Cidades Invisíveis de Calvino, mas acho que é uma questão de gosto pessoal e não de mérito. Ah, e é absurda a presença do bom O Náufrago e não dos imensos e perfeitos Extinção, Árvores Abatidas e O Sobrinho de Wittgenstein na obra de Thomas Bernhard.
Saúdo a presença de grandes livros pouco citados como Tristram Shandy, obra-prima de Sterne muito querida deste que vos escreve, de Viagem ao Fim da Noite, de Céline, de A Consciência de Zeno, genial livro de Ítalo Svevo, de O Deserto dos Tártaros (Buzzati) e do incompreendido e brilhante Grandes Esperanças, de Charles Dickens, de longe seu melhor romance.
Porém é estranha a escolha de A Comédia Humana, de Balzac. Ora, a Comédia são 88 romances! Não vale! Estranho ainda mais a presença de autores menores como Kerouac e Malraux, além do romance que não é romance — ou do romance que só é romance em 100 de suas 1200 páginas: O Homem sem Qualidades, de Robert Musil.
Também acho que presença de McEwan e de Coetzee prescindem do julgamento do tempo, o que não é o caso de alguns ausentes, como Lazarillo de Tormes, de Chamisso com seu Peter Schlemihl, de George Eliot com Middlemarch, de Homo Faber de Max Frisch e de O Anão, de Pär Lagerkvist, só para citar os primeiros que me vêm à mente. E, se McEwan e Coetzee esttão presentes, por que não Roberto Bolaño?
(O Bender escreve um comentário reclamando a ausência de Grande Sertão, Veredas, de Guimarães Rosa. É claro que ele tem razão! Esqueci. Coisas da idade.)
Com satisfação pessoal, digo que este não-especialista não leu apenas Os Miseráveis, o livro de Blake e os de Lautréamond, Mallarmé, Ovídio e Hesíodo. Isto é, seis dos cem. Tá bom.
P.S.- Milton mentiroso! Não li Finnegans também!
Este post foi publicado em 13 de dezembro de 2007, mas quase nada mudou.
O Bardo sobreviveu à praga, referenciou-a em algumas de suas peças mais famosas e tornou suas quarentenas produtivas | Ilustração fotográfica da revista Slate. | Fotos da Biblioteca de Manuscritos Raros da Universidade de Yale e Wikipedia.
William Shakespeare (1564-1616) é considerado por muitos o maior escritor de língua inglesa de todos os tempos. Autor de clássicos da dramaturgia como Romeu e Julieta, Macbeth, Rei Lear, A Tempestade e Hamlet, o “Bardo” foi um escritor prolífico, que sabia como ninguém trabalhar e interpretar os caminhos e lacunas da psicologia humana. O que pouca gente sabe, porém, é que a epidemia de Peste Bubônica na Europa teve um papel fundamental em sua vida e obra.
É realmente verdade o pouco que se sabe sobre Shakespeare? Bem, talvez. Mas, certamente, é justo dizer que, como todos os elizabetanos, a carreira do dramaturgo foi afetada pela peste bubônica de maneira quase impossível de se conceber agora, mesmo em meio a pandemia do Covid-19. Quando criança, teve a sorte de sobreviver à doença: é que Stratford-upon-Avon foi devastada por um enorme surto no verão de 1564, logo após seu nascimento, e até um quarto da população da cidade morreu. Ao crescer, Shakespeare deve ter ouvido inúmeras histórias sobre esse evento apocalíptico e se ajoelhado na igreja em lembrança e respeito solenes aos mortos. Seu pai, John, esteve intimamente envolvido nos esforços de assistência e participou de uma reunião para ajudar os mais pobres de Stratford. Ela foi realizada ao ar livre em razão do risco.
Quando Shakespeare se tornou um ator profissional, além de dramaturgo e acionista de uma empresa de Londres, a peste representou uma ameaça tanto profissional quanto existencial, tanto econômica quanto médica. Por falar em médicos, os doutores elisabetanos não tinham ideia de que a doença era transmitida por pulgas de ratos e, no momento em que um surto explodia — muitas vezes durante os meses de primavera ou verão, estações de pico dos teatros –, as autoridades proibiam as reuniões de massa. Pior, isolavam pessoas em casas por onde os roedores passeavam com suas pulgas. Dado que as autoridades naturalmente suspeitavam da arte como um incentivo à indecência e às fantasias e Deus sabe o que mais, os teatros eram, invariavelmente, os primeiros a fechar. Além dos bordéis, claro. Como um pregador da época disse categoricamente: “A causa das pragas é o pecado, e a causa do pecado é a peça de teatro”. Entre 1603 e 1613, quando a capacidade de Shakespeare como escritor estava no auge, o Globe e outros teatros de Londres foram fechados por um total surpreendente de 78 meses…
Em tempos de isolamento social em razão do COVID-19, a revista americana Slate publicou um excerto do livro The Hot Hand: The Mistery and Science of Stakes, de Ben Cohen, que conta como isso aconteceu.
Como disse, Shakespeare já nasceu em meio a uma epidemia na pequena cidade de Stratford-upon-Avon. Foi o terceiro filho de oito, sendo o mais velho a sobreviver. De acordo com Cohen, apesar da peste ser “a força mais importante na vida dos seus contemporâneos”, ela era um tabu para Shakespeare e outros escritores. Eles não falavam dela, não era de bom tom.
Porém, ela surge num momento decisivo de sua obra. Em Romeu e Julieta, a principal reviravolta da história acontece por causa da peste. A trágica falha de comunicação entre os amantes mais famosos de todos os tempos acontece por um motivo insólito… O personagem Frei Lourenço, responsável por entregar a carta que revelaria os planos de Julieta a Romeu, não conseguiu sair de casa por causa de uma quarentena!
Foi a quarentena também a responsável por um dos períodos mais produtivos do “Bardo”. Entre os anos de 1605 e 1606, a maioria dos teatros da Inglaterra estavam fechados por medidas sanitárias, fazendo com que Shakespeare não pudesse se apresentar com sua companhia teatral. Ele se aproveitou disso para escrever. Foi nesses anos que produziu alguns dos seus maiores clássicos: Antônio e Cleópatra, Rei Lear e Macbeth.
Vamos ao texto de Cohen?
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A pestilência infecciosa reinou
Como a praga devastou o mundo de William Shakespeare e inspirou seu trabalho, de Romeu e Julieta a Macbeth
Traduzido livremente por mim da Revista Slate
Texto original de Ben Cohen
Num dia de verão em 1564, o aprendiz de um tecelão morreu em uma pequena vila no interior da Inglaterra, uma tragédia local que foi imortalizada nos registros da cidade. Ao lado do nome do aprendiz, foram escritas três palavras ameaçadoras em latim: “Hic incipit pestis” (Isso inicia pestes).
A epidemia destruiu uma porção considerável da vila. Sobreviver foi aparentemente uma questão de sorte. A praga poderia dizimar uma família e poupar a família ao lado. Em certa casa, numa rua chamada Henley Street, por exemplo, havia um jovem casal que já havia perdido dois filhos devido às ondas anteriores da peste, e seu filho recém-nascido tinha três meses quando eles trancaram as portas e janelas para tentar impedir que a praga invadisse sua casa novamente. Eles sabiam, por infelizes experiências, que os bebês eram especialmente vulneráveis a essa doença. Entenderam muito bem que seria um milagre se ele sobrevivesse. Era como se eles estivessem jogando uma moeda num cara ou coroa, apostando a vida de seu rebento. Mas quando a peste foi embora naquela pequena vila no interior da Inglaterra, chamada Stratford-upon-Avon, o casal deu um suspiro de alívio por seu filho ainda estar vivo. O nome dele era William Shakespeare.
Existe a possibilidade de Shakespeare ter desenvolvido imunidade em razão de sua exposição quando criança, mas essa especulação começou apenas séculos mais tarde e somente porque a peste foi um incômodo constante para Shakespeare. “A peste foi a força mais poderosa que moldou sua vida e a de seus contemporâneos”, escreveu Jonathan Bate, um de seus biógrafos. As epidemias eram naturalmente um assunto tabu na sociedade da época. Mesmo quando as pessoas só pensavam a respeito dela, ninguém falava a respeito. E os londrinos iam aos teatros da cidade para que pudessem esquecer temporariamente do medo.
Mas a peste também era uma arma de Shakespeare. Ele não a ignorou. Ele a usou.
Um exemplo deste curioso fenômeno é Romeu e Julieta. É basicamente impossível apreciar a natureza verdadeiramente louca dessa peça quando você a lê pela primeira vez. Então vamos apontar alguns detalhes agora. Você provavelmente se lembra do básico da trama: Romeu e Julieta nascem em famílias rivais; Romeu e Julieta se apaixonam; Romeu e Julieta morrem. Mas você se lembra como isso acontece? Talvez não. E você sabia que a peste é o que acaba separando Romeu e Julieta? Aposto que não lembra.
Há outra morte no 3º Ato de Romeu e Julieta, um assassinato. Romeu mata Tybalt, primo de Julieta. Isso é um problema, porque não somente porque a família de Romeu é inimiga jurada da de Julieta, mas porque, como consequência, Romeu é banido de Verona. Julieta não sabe o que fazer. Quando ela conversa com Frei Lourenço, ele decide que há uma maneira de acabar com a rixa entre as famílias: ele casará Romeu e Julieta. E traça um plano que exige que Julieta tome uma poção que a faça dormir por tanto tempo que sua família achará que ela está morta. Ao mesmo tempo, Lourenço escreverá uma carta para Romeu explicando o esquema preparado. Frei João entregará essa carta a Romeu na cidade de Mântua, onde ele está agora. Romeu voltará furtivamente e roubará Julieta para que eles possam se casar e viver felizes para sempre.
Era um plano absolutamente maluco que funcionará pessimamente — mas não pelas razões que você poderia esperar. Julieta bebe a poção. A família dela acha que ela está morta. Romeu volta furtivamente para vê-la. Por enquanto, tudo bem. Mas a parte mais confiável desse plano ridículo não funciona: Frei João nunca chega a Mântua e, assim, a carta de Frei Lourenço nunca chega a Romeu. O que acontece a seguir é uma série de eventos altamente infelizes. Romeu acha que Julieta está morta. Ele se mata. Julieta acorda de sua falsa morte e descobre que Romeu está morto de verdade. Ela se mata.
Vamos retroceder algumas cenas e ler como Frei João explica a Frei Lourenço o motivo pelo qual ele nunca chegou a Mântua. (Eu, Milton Ribeiro, reli na tradução de José Francisco Botelho e copio aqui para vocês). A conversa deles revela como o esquema se desfez.
FREI LOURENÇO
Vens de Mântua. E Romeu, o que nos diz?
Se ele escreveu, me entregue sua carta.
FREI JOÃO
Eu fui atrás de um outro irmão descalço,
Da nossa Ordem, pra me acompanhar
Na visita aos doentes da cidade
Fui atrás e encontrei, mas a patrulha,
Foi à casa onde estávamos, nós dois,
Suspeitando que a praga ali imperasse,
Selou as portas, nos prendeu lá dentro,
E, por isso, eu não pude ir a Mântua.
FREI LOURENÇO
E quem levou a carta até Romeu?
FREI JOÃO
Eis a carta. Não pude enviá-la,
Nem buscar mensageiro que a trouxesse,
Tamanha era a suspeita de contágio.
FREI LOURENÇO
Acidente infeliz!
Por que Frei João não entregou a carta de Frei Lourenço a Romeu? Porque ele ficou preso em QUARENTENA. Deste modo, Romeu e Julieta foram indiretamente atingidos pela peste. A praga é a reviravolta que transforma a mais famosa história de amor já contada em uma tragédia.
Toda a peça desemboca e gira em torno dessa cena final. Talvez você não lembrasse de como a praga criou a tragédia final. Shakespeare foi propositadamente discreto. Ele escreveu em linguagem velada, mas o subtexto era óbvio na época. Ele não precisava explicar o assunto. Mencionar a praga era o equivalente shakespeariano de terminar um tweet com ridículo emoticon. Não havia necessidade de qualquer tipo de explicação adicional. “A peste era onipresente”, diz James Shapiro, professor da Universidade Columbia. “Todo mundo na época sabia exatamente o que essas uma ou duas linhas significavam.”
Mas como Shakespeare usaria a praga mais tarde em sua vida?
Estudiosos acreditam que Shakespeare escreveu Rei Lear, Macbeth, e Antônio e Cleópatra em poucos meses entre 1605 e 1606. O consenso era o de que Shakespeare escrevia duas peças por ano, mas isso é dito por estudiosos de literatura nada estatísticos. Eles chegaram a esse número simplesmente dividindo o número de peças que ele escreveu pelo número de anos produtivos. Deu duas por ano. Segundo estes cálculos, se Shakespeare escreveu 10 peças em cinco anos, escreveu duas peças por ano… Bobagem, isso não é nem remotamente verdade.
Acontece que “Shakespeare não era um conta-gotas teatral, ele escrevia em espasmos, em grupos”, diz Shapiro. “Foi algo que demorei um pouco para entender, simplesmente porque eu sempre acreditei nas alegações infundadas de que ele produzia duas peças por ano. Mas nunca foi o que ele fez. Shakespeare escrevia em surtos de criatividade. Suas peças não foram espalhadas de forma homogênea ao longo de sua carreira. Elas vinham agrupadas. “E quando você começa a ver essas peças realmente agrupadas, começa a perguntar: o que explica tantas peças em um período muito curto de tempo?”
Ora, a peste. A praga fechou os teatros de Londres e forçou a companhia de atores de Shakespeare, os King’s Men, a serem criativos em suas apresentações. Enquanto viajavam pelo campo inglês, parando em cidades rurais que não haviam sido atingidas pela praga, Shakespeare notou que escrever era uma melhor utilização de seu tempo. “Isso significava que seus dias eram livres pela primeira vez desde o início da década de 1590”, escreveu Shapiro em seu livro The Year of Lear: Shakespeare in 1606, o melhor relato desse momento estranho em sua vida.
Além disso, Shakespeare também se beneficiou da praga por um motivo do qual não tinha controle: ela dizimou a concorrência que permaneceu em Londres… Os King’s Men acabariam recuperando seus espaços de teatro por causa da doença que atacava mais os jovens. A praga criou a circunstância que fez explodir o talento de Shakespeare, primeiro ele escrevia durante o dia nas viagens para fugir da peste, depois voltou e viu o campo livre . E ele tinha com ele Rei Lear, Macbeth e Antônio e Cleópatra.
“Três tragédias realmente extraordinárias”, diz Shapiro. “Estou sempre interessado em como e porque essa coisa misteriosa aconteceu. Shakespeare entendeu completamente o mundo em que estava e era capaz de falar com ele e por ele!”. Muitas vezes, é tentador para os estudiosos examinar determinados momentos da carreira de Shakespeare através das lentes de sua vida pessoal. O problema com essa linha de pesquisa é que eles ainda não sabem muito da vida do Bardo. “Não temos ideia do que ele estava sentindo”, escreveu Shapiro em seu livro. “Sabemos muito mais sobre como uma visita de roedores em 1606 alterou os contornos da vida profissional de Shakespeare, transformou e revigorou sua companhia de teatro, prejudicou a concorrência e mudou a composição do público para quem ele escreveria (e, por sua vez, os tipos de peças que ele poderia escrever).
Shakespeare não era um escritor com um metrônomo na mão. Ele era participante de sua época. Estava envolvido pelo ambiente. E escrevia em surtos de criatividade. E esses surtos eram possibilitados pelo que ocorria lá fora. Eram forças além de seu controle. Foi por causa da praga que ele conseguiu transformar um período de grande convulsão social em algo completamente diferente: num arrebatador nível artístico cujo brilho dura até nossos dias.
Ingmar Bergman, o cineasta que dedicou parte de sua obra a analisar o silêncio de Deus e a solidão do ser humano, morreu em Fårö no dia 30 de julho de 2007, na mesma data em que morria em Roma Michelangelo Antonioni, o cineasta da incomunicabilidade. Miguel de Cervantes faleceu em Madrid na data de 23 de abril de 1616, mesmo dia da morte de William Shakespeare em Stratford-upon-Avon. O fato de a morte dos dois maiores escritores da Idade Moderna ter ocorrido na mesma data apenas é deslustrado por uma verdade que destrói o mito temporal: Shakespeare faleceu sob a regência do calendário juliano, o que empurra sua morte para dez dias depois. Já Johann Sebastian Bach (1685-1750) não morreu no mesmo ano em que Antonio Vivaldi (1678-1741) faleceu, mas há muitas coincidências que ligam os dois maiores nomes da música barroca — para começar, ambos “escolheram” o 28 de julho como data de morte.
Bach e Vivaldi foram compositores totalmente diferentes. Basta uma audição de alguns segundos para que fique identificado um e outro. Eles criaram suas obras numa época especialmente complicada — são compositores do barroco tardio, ou seja, produziam no momento histórico em que se iniciava o período clássico. Eram, portanto, compositores antiquados em seu tempo. Os filhos compositores de Bach já encaravam o pai como alguém do passado e Frederico II, quando o convidou para visitar sua corte, ouviu-o sem o menor respeito, como quem ouve um animal em extinção, apesar do que dizem algumas lendas desinformadas. Já Vivaldi, il prete rosso, sem público em Veneza, vendeu grande parte de seus manuscritos para pagar uma viagem a Viena, onde Carlos VI o admirava, mas o imperador faleceu dias depois de sua chegada, frustrando os planos do italiano. A consequência é que ambos, Bach e Vivaldi, morreram pobres e fora de moda.
Se não havia relações de estilo, havia relações musicais entre ambos, ao menos no sentido de Bach ter sido um admirador do estilo italiano e de conhecer profundamente a obra de Vivaldi. Ele fez mais: transcreveu vários dos concertos de Vivaldi para o cravo e o órgão. Alguns concertos para violino do L’Estro Armonico (1712) e de outros ciclos foram transcritos por Bach e certamente interpretados por ele, seus filhos e alunos. Podemos citar também a quase inevitável religiosidade dos dois compositores numa época em que se ensinava religião por mais da metade do horário escolar. Por muito tempo, Bach foi considerado uma espécie de santo, ao menos até Emil Cioran colocar alguns empecilhos, separando Bach e Deus, com vantagem para aquele: Sem Bach, Deus seria apenas um mero coadjuvante. Sem Bach, a teologia seria desprovida de objetivo, a Criação fictícia, o nada peremptório. Se há alguém que deve tudo a Bach, é seguramente Deus. E Vivaldi? Vivaldi era padre. Il prete rosso, o padre ruivo, ou vermelho.
Apesar de sacerdote, Vivaldi teve muitos casos amorosos, um dos quais com uma de suas ex-alunas do conservatório de Ospedale della Pietà, a depois influente cantora Anna Giraud (ou Girò), com quem mantinha também relações profissionais na área da ópera veneziana. As biografias mais pudicas dizem que Anna foi a moça por quem o grande compositor se apaixonou, a inspiradora de suas óperas e a tormenta de todos os seus dias, até a morte. Ela teria muitas vezes beneficiado Vivaldi em troca de papéis adaptados a suas capacidades vocais. Tais trocas levaram outros compositores, como Benedetto Marcello, a escreverem panfletos contra Vivaldi e Giraud. Já Bach teve dois longos casamentos. O amor por suas esposas pode ser depreendido através de suas cartas e dos vinte filhos resultantes — sete com a prima Maria Bárbara e treze com Anna Magdalena, uma cantora profissional com metade de sua idade. O casamento com Maria Bárbara acabou em razão da inesperada morte da mulher e o com Anna Magdalena ocorreu em 1721. Bach tinha 36 anos; Anna, 18.
Bach escreveu mais de mil obras. Muitas são curtas, mas há mais de 200 Cantatas com duração aproximada de vinte minutos e Paixões com 3 horas de duração. Sua obra completa foi gravada numa coleção da Teldec: são 153 CDs, mais ou menos 153h ou 6 dias e 8 horas de música, sem repetições. Já Vivaldi escreveu 477 concertos — segundo o hostil Stravinsky, tratava-se de 477 concertos iguais — , mais 46 óperas e 73 sonatas. Em seu caso, ainda há muitas óperas não gravadas — porém, considerando o porte das óperas gravadas, é crível que o tamanho de sua obra seja semelhante ao de Bach.
Vivaldi parecia ter nascido pronto, seu estilo de composição variou pouco durante sua vida. Já a música de Bach, se não teve seu estilo alterado de forma radical, foi ganhando qualidade de forma inacreditável. Grosso modo, suas últimas composições foram as Variações Goldberg, A Oferenda Musical e A Arte da Fuga. Estas são monumentos, verdadeiras catedrais construídas em homenagem ao contraponto e à polifonia. No final de sua vida, Johann Sebastian Bach estava em seu auge, criando, se não suas obras mais perfeitas, aquelas que mais recebem tempo e dedicação dos especialistas.
Bach fora míope durante toda a vida e, durante a composição de A Arte da Fuga, sua visão se apagou. Porém, em fins de março de 1750, ano de sua morte, o famoso cirurgião oftalmológico John Taylor esteve de passagem em Leipzig. Ele foi levado até Bach e o operou. Taylor afirmou que em dois os três dias o paciente voltaria e enxergar. Depois de algumas semanas, como o paciente não apresentasse melhoras, houve uma nova operação, além de sangrias, ventosas e bebidas laxativas para limpá-lo. Apareceu um outro médico que brigou com Taylor. Então foi utilizado sangue de pombo nos olhos do compositor, além de açúcar moído e sal torrado. Dizem que em 18 de julho, dez dias antes de morrer, ele voltou a enxergar, mas no mesmo dia teve febre alta e caiu na inconsciência.
Não era alguém importante para a época. Nem sequer seu túmulo foi indicado. O corpo se perdeu. É um fato tristemente cômico que aquilo que está na catedral de São Tomás, em Leipzig, uma espécie de jazigo construído em sua honra em 1950 — por ocasião do bicentenário de sua morte — não sejam seus restos mortais, mas apenas o testemunho de seu esquecimento. Sua obra começou a ser recuperada por Felix Mendelssohn em meados do século XIX. Mas não é mera casualidade o fato de Mozart e Beethoven terem conhecimento de parte da obra do mestre. Eram estudiosos. Tanto que Beethoven escreveu que seu nome não deveria ser Bach (regato, ribeiro) e sim mar.
Já Vivaldi foi esquecido por muito mais tempo. Sua ressurreição começou apenas em 1939, quando o compositor italiano Alfredo Casella organizou uma exótica Semana Vivaldi. Depois veio a guerra e só em 1947 foi fundado um tímido Istituto Italiano Antonio Vivaldi com o propósito de promover a música de Vivaldi e publicar novas edições de seus trabalhos. O longo inverno vivaldiano começou logo após sua morte. Quando morreu, era um mendigo em Viena. Teria morrido de “infecção interna”. Em 28 de julho, ele foi enterrado em um túmulo simples no cemitério do hospital de Viena. Seu corpo, assim como o de Bach, foi perdido. Hoje existe apenas uma placa de homenagem na parede da Universidade de Viena registrando um dos possíveis locais do seu túmulo.
Para abordar qualquer autor, é bom antes medir seu tamanho, só que Shakespeare é tão alto que jamais este pobre comentarista poderá subir sobre seus ombros a fim de admirar com clareza sua criação. E o que digo não é exagerado. William Shakespeare, nascido e morto na mesma Stratford-upon-Avon, no mesmo dia 23 de abril, o primeiro de 1564, o segundo de 1616, ocupa a mesma posição de Johann Sebastian Bach na música, a de pedra fundamental, a de base, referência e refúgio, a de religião secular de escritores, dramaturgos, atores e interessados na cultura. Por exemplo, o ensaísta Harold Bloom, em seu livro Shakespeare: a Invenção do Humano, pergunta: O que era o homem antes de Shakespeare? E responde, com certo exagero, que era um Personagem de dimensão quase inexistente.
É difícil de acreditar que Shakespeare tenha vivido apenas 52 anos. Sua obra é imensa em extensão e em qualidade mesmo que se considere o aspecto colaborativo existente entre os autores elisabetanos. Explico: os escritores do século XVI produziam e tinham perfis muito pouco romantizados. Talvez apenas os poetas escreviam para “expressarem-se”. Os ficcionistas e dramaturgos eram operários com prazos a cumprir. A necessidade ditava o ritmo e as companhias teatrais muitas vezes recorriam a diversos autores para chegar ao texto final de uma peça. E os autores não tinham pudor para pegar emprestados trabalhos alheios.
Com isso, não desejo de modo algum diminuir Shakespeare — afinal, os manuscritos demonstram a autoria de suas peças –, mas ele mesmo dizia roubar trechos de outros e brincava que, às vezes, “boas filhas nascem em más famílias” e que cumpria corrigir a natureza… É claro que ocorria também o contrário, pois era comum uma filha bem estabelecida migrar para uma família disfuncional. Porém, se você é desses que odeia plágio, pense no que escreveu Jorge Luis Borges: Sou todos os autores que li, todas as pessoas que conheci, todas as aventuras que vivi.
Entre os plagiados por Shakespeare, há autores como Robert Greene, Marlowe e muitos outros. Mas, meus amigos, a obra é de Shakespeare. Carradas de versos de suas peças apareceram pela primeira vez… nas suas peças. Por falar em versos, como é complicado encontrar uma boa tradução de Shakespeare! Minha mulher conheceu Shakespeare em seu país, em traduções de Boris Pasternak e Samuil Marshak para o russo. Quando pegou uma edição brasileira de Sonhos de uma noite de verão, não entendeu nada. Sua primeira pergunta foi Cadê as rimas? Como não os encontrou na edição que ganhara de um (grande) amigo nosso, largou o volume. Sim, Shakespeare escreveu tudo aquilo em versos, mas o que se lê no Brasil é quase sempre prosa. As traduções em verso parecem coisa do passado. E não considero grande coisa as traduções disponíveis, apesar da liberdade autoconcedida. A escolha da estratégia poderia variar muito: traduzir em prosa ou em verso, com rima ou sem rima, em decassílabos ou dodecassílabos ou em verso livre, aproximar a linguagem do leitor contemporâneo ou procurar manter um certo distanciamento recorrendo a um vocabulário mais arcaico. Enfim.
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William Shakespeare foi poeta, dramaturgo e ator. Na verdade, como todos sabem, é tido como o maior escritor do idioma e o mais influente dramaturgo do mundo. É chamado frequentemente de poeta nacional da Inglaterra e de “O Bardo”. De suas obras, incluindo aquelas em colaboração, restaram até os dias de hoje 38 peças, 154 sonetos, dois longos poemas narrativos, e mais alguns versos esparsos. É bastante coisa. Suas peças foram traduzidas para todas as principais línguas modernas e são mais encenadas que as de qualquer outro dramaturgo. Muitos de seus textos e temas, especialmente os do teatro, permanecem vivos e são revisitados até hoje.
Shakespeare nasceu e foi criado em Stratford-upon-Avon. Aos 18 anos, casou-se com Anne Hathaway. Tiveram 3 filhos: Susanna e os gêmeos Hamnet e Judith. Entre 1585 e 1592, Shakespeare começou uma carreira bem-sucedida em Londres como ator, escritor e empresário teatral. Era um dos proprietários de uma companhia de teatro chamada Lord Chamberlain’s Men, mais tarde conhecida como King’s Men. Acredita-se que ele tenha retornado a Stratford em torno de 1613, morrendo três anos depois. Pouco se sabe da vida privada de Shakespeare, e há muitas especulações sobre sua aparência física, sexualidade, crenças religiosas, etc.
Shakespeare produziu a maior parte de sua obra entre 1590 e 1613. Suas primeiras peças eram principalmente comédias ou obras baseadas em eventos e personagens históricos, gêneros que levou ao ápice da sofisticação e do talento artístico. Depois, passou às tragédias, criando Hamlet, Rei Lear e Macbeth, consideradas algumas das obras mais importantes na língua inglesa. Na sua última fase, escreveu conjuntos de peças classificadas normalmente como tragicomédias, mas que mais parecem poesias, obras de alguém dotado de pleno e tranquilo domínio de sua arte.
Diversas edições de suas obras foram publicadas com variados graus de qualidade e precisão, durante sua vida. Em 1623, John Heminges and Henry Condell, dois atores e velhos amigos de Shakespeare, publicaram o chamado First Folio, uma coletânea de obras dramáticas que incluía todas as peças (com a exceção de duas) reconhecidas atualmente como sendo de sua autoria.
Shakespeare foi respeitado em sua própria época, porém mas sua reputação só viria a atingir níveis planetários duzentos anos depois, no século XIX. Foram os românticos vitorianos que aclamaram a genialidade de Shakespeare, idolatrando-o como herói. a tal “bardolatria” a que se referia George Bernard Shaw.
O pouco do que se sabe: os primeiros anos
William Shakespeare era filho de John Shakespeare, um bem-sucedido luveiro e sub-prefeito de Stratford, e Mary Arden, filha de um rico proprietário de terras. Embora sua data de nascimento seja desconhecida, admite-se o 23 de Abril de 1564 com base no registro de seu batizado. Shakespeare foi o terceiro filho de uma prole de oito e o mais velho a sobreviver.
Shakespeare foi educado em uma boa escola, no entanto, há indícios de que seu pai foi obrigado a retirá-lo da educação formal quando William tinha quinze ou dezesseis anos. O motivo foi financeiro. É que, na década de 1570, John foi rapidamente à falência. Tudo indica que Shakespeare precisou trabalhar cedo para ajudar a família, aprendendo, inclusive, a tarefa de esquartejar bois e abater carneiros.
Em 1582, aos 18 anos de idade, casou-se com Anne Hathaway, uma mulher de 26 anos que estava grávida dele. Anne era de uma família endinheirada e é quase certo que o casamento de Anne e Shakespeare teria sido forçado pelos Hathaway. Pouco se sabe dela. Anne apareceria escondida em vários escritos de seu famoso marido, como ao final do Soneto 145. Ele amava a mulher.
‘I hate’ from hate away she threw, And saved my life, saying ‘not you.’
Estes lábios que a mão do Amor criou,
Entreabriram-se para dizer, “Eu odeio”,
A mim que sofria de saudades dela:
Mas, ao ver meu estado desolado,
Seu coração se tomou de piedade,
Repreendendo a língua, que, sempre tão doce,
Foi gentilmente usada para me exterminar;
E ensinou-lhe, assim, a dizer, novamente:
“Eu odeio”, alterou-se, por fim, sua voz,
Que se seguiu como a noite
Segue o dia, que, como um demônio,
Do céu ao inferno é atirado.
“Eu odeio”, do ódio ela gritou,
E salvou-me a vida, dizendo – “Tu, não”.
Após o nascimento dos gêmeos, há pouquíssimos vestígios históricos a respeito de Shakespeare, até que ele é mencionado como parte da cena teatral de Londres em 1592. Os estudiosos referem-se aos anos de 1586 a 1592 como os “anos perdidos de Shakespeare”. As tentativas de explicar por onde andou William Shakespeare durante esses seis anos fizeram surgir dezenas de histórias, provavelmente mentirosas. Nicholagas Rowe, o primeiro biógrafo de Shakespeare, conta que ele fugiu de Stratford para Londres devido a uma acusação envolvendo o assassinato de um veado numa caça não permitida.
O período londrino e a morte
Não se sabe exatamente quando Shakespeare começou a escrever, mas registros de performances mostram que várias de suas peças foram representadas em Londres em 1592. A época, sob Elizabeth I, favorecia o desenvolvimento cultural e artístico. O teatro deste período, conhecido como elisabetano, foi de grande importância para os ingleses — da alta sociedade, claro. Na época, além de muito popular, o teatro também era também publicado, vendido e lido. Havia companhias que compravam os textos dos autores em voga e depois vendiam-nos para as tipografias. Estas tinham um grande público leitor, o qual fazia com que as obras se popularizassem rapidamente.
Certamente a carreira de Shakespeare começou em qualquer momento a partir de meados dos anos 1580. Ao chegar em Londres, há uma tradição que diz que Shakespeare não tinha amigos nem dinheiro. Não obstante a família de Anne, ele estaria arruinado. Segundo quase todos os biógrafos do século XVIII, ele foi arranjou um emprego numa companhia de teatro. Começou num serviço pequeno, e logo foi subindo de cargo, chegando a atuar. Ele dividiria suas atividades entre tomar conta dos cavalos dos espectadores do teatro, atuar no palco e auxiliar nos bastidores. Porém, segundo Rowe, Shakespeare entrou no teatro como ponto, encarregado de avisar os atores o momento de entrarem em cena.
Contudo, o grande Shakespeare era um mau ator e seu limitado talento o teria levado a experimentar escrever peças. Shakespeare teria voltado para Stratford algum tempo antes de sua morte; mas a aposentadoria ainda não tinha sido inventada e ele continuou a visitar Londres para ver sua filha que morava na cidade e apresentar novas peças suas a grupos teatrais.
William Shakespeare morreu em 23 de Abril de 1616, mesmo dia de seu aniversário. Há lendas a respeito. Dizem que ele, já doente, teria se embriagado com os dramaturgos e poetas Ben Jonson e Michael Drayton e seu estado se agravou.
Ele deixou a maior parte de sua herança para sua filha mais velha, Susanna. Isso intriga os biógrafos, porque Anne Hathaway sobreviveu dez anos ao dramaturgo. O escritor Anthony Burgess tem uma explicação ficcional sobre isso. Em Nada como o Sol, ele cita que Shakespeare viu seu irmão Richard com Anne. Nus e abraçados. Tudo invenção.
Os restos mortais de Shakespeare foram sepultados na igreja da Santíssima Trindade (Holy Trinity Church) em Stratford-upon-Avon. Parece que sem o crânio… Acredita-se que Shakespeare temia o costume de sua época de esvaziar as sepulturas mais antigas para abrir espaços a novas e, por isso, fez questão de colocar um claro epitáfio na sua lápide, que anunciava uma maldição para quem removesse seus ossos.
Bom amigo, por Jesus, abstém-te de profanar o corpo aqui enterrado. Bendito seja o homem que respeite estas pedras, e maldito o que remover meus ossos.
Rápidos comentários sobre as peças
Os estudiosos costumam dividir a dramaturgia de Shakespeare em quatro períodos. Até meados de 1590, ele escreveu principalmente comédias e dramas históricos, influenciado por modelos de peças romanas e italianas. O segundo período iniciou-se aproximadamente em 1595 e seria o “romântico”. De 1600 a 1608, seria o “período sombrio”, o de grandes como tragédias Hamlet, Rei Lear e Macbeth. E entre 1608 a 1613, os das tragicomédias.
Os primeiros trabalhos conhecidos de Shakespeare são os dramas históricos Ricardo III e Henry V, escritos em 1590. É complicado datar as primeiras peças de Shakespeare, mas estudiosos de seus textos sugerem que A Megera Domada, A Comédia dos Erros e Titus Andronicus pertencem também ao seu primeiro período. Suas primeiras histórias dramatizam os resultados destrutivos da corrupção do Estado. São textos influenciados por obras de outros dramaturgos elisabetanos, especialmente Thomas Kyd e Christopher Marlowe, assim como pelas tradições do teatro medieval.
Em meados da década de 1590, o amor e a comédia tomou conta de sua obra. Sonho de uma Noite de Verão é uma deliciosa mistura de romance espirituoso e fantasia. Muito Barulho por Nada, O Mercador de Veneza, Tudo está bem quando acaba bem, As Alegres Comadres de Windsor, Trabalhos de Amores Perdidos, Do jeito que você gosta (As you like it) e Noite de Reis fazem parte de uma sequência de ótimas comédias.
Depois, seus personagens tornam-se cada vez mais complexos e alternam entre o cômico e o dramático, expandindo suas identidades. O chamado período “trágico” começou com Romeu e Julieta e durou de 1600 a 1608, embora durante esse período ele tenha escrito também a cômica Medida por medida. O auge de sua obra seria Hamlet. Provavelmente, é o personagem shakespeariano mais discutido dentre todos. Hamlet pensa antes de agir, é inteligente, perceptivo e observador. Porém, ao contrário do reflexivo Hamlet, os heróis das tragédias que se seguiram, em especial Otelo e Rei Lear, são precipitados e mais agem do que pensam. Tais atitudes acabam por destruí-los assim como a quem amam. Em Otelo, o ciumento personagem-título acaba assassinando sua mulher, por quem estava apaixonado. Ela era inocente. Em Rei Lear, o velho rei comete o erro de abdicar de seus poderes. Outra obra-prima. Segundo o crítico Frank Kermode, “a peça não oferece nenhum personagem divino ou bom, e não supre da audiência qualquer tipo de alívio de sua crueldade”. Macbeth, a mais curta e compacta tragédia shakespeariana, narra a incontrolável ambição de Macbeth e sua esposa, Lady Macbeth, que matam o rei da Escócia para acabarem num mar de corrupção, culpa e sangue.
No seu último período, Shakespeare centrou-se na tragicomédia, escrevendo três importantes peças: Cimbelino, Conto de Inverno e A Tempestade. Menos sombrias do que as tragédias, estas revelam um tom mais grave de comédia, com suas personagens reconciliando-se ao final e perdoando todos os erros uns dos outros. É uma mudança de estilo para a serenidade. Na minha opinião, A Tempestade, com personagens como Próspero, Miranda e Caliban, é a maior de suas peças. Ou a que mais gosto de ler.
“Nós somos feitos da mesma matéria dos sonhos;
com nossa curta vida cercada por dois sonos”.
Sonetos
Publicado em 1609, Sonetos não tinham fins dramáticos, era apenas poesia. Não há certeza sobre quando cada um dos 154 sonetos da obra foram compostos, mas evidências sugerem que Shakespeare as escreveu durante toda sua carreira para leitores particulares. Também é incerto se foram escritos para pessoas reais. São profundas meditações sobre a natureza do amor, a paixão, a morte e o tempo.
Poemas
Em 1593 e 94, os teatros foram fechados por causa da peste. Sem trabalho, Shakespeare publicou dois poemas eróticos, hoje conhecidos como Vênus e Adônis e O Estupro de Lucrécia. Ele os dedica a Henry Wriothesley, o que fez com que houvesse várias especulações a respeito. Em Vênus e Adônis, um inocente Adônis rejeita os avanços sexuais de Vênus (mitologia); enquanto que o segundo poema descreve a virtuosa esposa Lucrécia que é violada sexualmente. Ambos os poemas, influenciados pelas Metamorfoses de Ovídio, demonstram a culpa e a confusão moral versus volúpia descontrolada. Ambos tornaram-se populares e foram diversas vezes republicados durante a vida de Shakespeare. Uma terceira narrativa poética acompanhava os Sonetos: em A Lover’s Complaint, uma jovem lamenta ter sido seduzida.
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O Globe, palco de Shakespeare em Londres
O Globe Theatre de Londres é associado ao maior dramaturgo de todos os tempos: William Shakespeare. A casa foi construída em 1599 por sua companhia de teatro. Shakespeare detinha 12,5 % das ações da mesma. Dois dos seis acionistas – Richard Burbage e seu irmão Cuthbert Burbage – possuíam 25% cada e um quarteto de 12,5% cada era formado por John Heminges, Agostinho Phillips, Thomas Pope e o famoso dramaturgo. Foi o primeiro teatro construído por atores para atores. Porém, após estrear várias peças do grande autor, o Globe foi destruído por um incêndio no dia 29 de junho de 1613, exatamente há 400 anos. O Globe foi inaugurado no outono de 1599, com Júlio César e a maioria das grandes peças de Shakespeare pós-1599 foram escritas para o teatro.
No século XVII, qualquer incêndio podia transformar-se numa grande tragédia, tanto que em 1666, um terço da cidade foi destruída pelo fogo. As ruas eram estreitas, herança da transformação urbana acelerada a partir do século XIII, quando Londres virou capital do reino. A técnica contra incêndios era muito prosaica: eram usados baldes d`água e, quando não funcionavam, era providenciada a derrubada das construções contíguas para impedir o espraiamento do fogo. Só que a decisão de derrubar casas dependia de uma autorização do prefeito da cidade, que analisava empiricamente os ventos e a umidade do ar e das casas. Risco completo.
A indecisão para se fazerem as derrubadas era compreensível diante de seus custos, tanto de demolição quanto de reconstrução. No grande incêndio de 1666, houve demasiada hesitação e, quando as demolições foram autorizadas, grande parte da cidade já estava em chamas. Então os imóveis passaram a ser simplesmente explodidos, o que criou outros focos de fogo. Também não se sabia o número de vítimas dos sinistros pelo simples fato de que os não nobres não eram registrados. Do ponto de vista do estado, sumia gente que não existia. No grande Incêndio foram destruídas, pelo fogo e pela ação humana, 13.200 casas e uma área de 1,7 km²
Antes do incêndio, nos quase 15 anos em que esteve ativo, o Globe foi um estrondoso sucesso. No século XVI, as companhias de teatro apresentavam-se em locais improvisados, geralmente em bares ou na rua. Em 1576, James Burbage construiu o The Theater, primeira casa do gênero do país. Em 1581, Shakespeare juntou-se a Burbage escrevendo peças e trabalhando como ator. Apesar da casa sempre lotada, sobrevieram problemas financeiros e a casa acabou fechada. A curiosidade é que o Globe foi construído com a madeira do desmonte do The Theater. Do mesmo modo que o Theater, o Globe vivia com a casa cheia e as peças apresentadas eram normalmente de seu famoso sócio.
Então, no dia 29 de junho de 1613, o Globe incendiou durante uma performance de Henrique VIII. Um canhão de luz pegou fogo, inflamando as vigas de madeira. De acordo com os poucos documentos existentes, ninguém ficou ferido, exceto um homem que perdeu as calças, tendo sido apagadas com cerveja por seus amigos. Era o que estava à mão. As peças teatrais, naquela época, recebiam um povo ruidoso e festivo, que vibrava com as cenas, vaiava os vilões e assobiava, desejando ou não as seduções . Não havia estatuto que impedisse o uso do álcool.
O Globe foi reconstruído no ano seguinte, porém, como todos os outros teatros de Londres, foi fechado e destruído pelos puritanos em 1642, dando lugar a outro tipo de construção. Atualmente, Londres ostenta o Globe na margem do Tâmisa, na região de Southwark. Não é o ponto exato do ex-teatro de Shakespeare. Ele se localizava há uns 230m de onde está hoje. Não ficava exatamente na margem. A reconstrução é fiel e foi feita com base nos edifícios de 1599 e 1614. O atual Globe apresenta exclusivamente peças de Shakespeare. O Grupo Galpão, de Belo Horizonte, é a única companhia brasileira que se apresentou lá. Houve uma temporada de Romeu & Julieta que está documentada em DVD.
Há em Shakespeare paixão, ambição, amor, inveja, traição, tudo isso temperado por poesia e lirismo absolutamente originais. O Globe era e é um edifício de forma octogonal, com abertura no centro. De dentro do teatro, vê-se o céu. Não existia cortina e, por causa disso, os personagens mortos – muita gente morre nas sanguinárias peças de Shakespeare – tinham que ser retirados por auxiliares. Todos os papéis eram representados pelos homens – mulheres eram proibidas de entrar em cena – , sendo os mais jovens os encarregados de fazerem papéis femininos. No período Globe, é certo que o autor estreou Hamlet, Otelo, Rei Lear e Macbeth, talvez Romeu e Julieta e Júlio César. Foi o chamado “Período Trágico”.
Falar de Shakespeare é como falar de um ser mitológico, de um produtor de tragédias, comédias, dramas históricos e sonetos geniais. Sua obra, assim como a de pouquíssimos outros artistas, é quase indiscutível. Em Shakespeare, a Invenção do Humano, do crítico literário Harold Bloom, nota-se a dificuldade de falar de um autor tão completo. Para Bloom, Shakespeare não apenas era dono de um cérebro muito privilegiado, como também criou personagens igualmente inteligentíssimos, que seriam capazes de refletirem sobre si próprios, sobre a interação com os outros para, a partir daí, crescerem dentro das histórias, modificando suas maneiras de pensar e agir. Mas a agudeza mental dos personagens são muito bem temperadas, não existem personagens meramente frios ou chatos. Os personagens têm humor, sarcasmo, poder de sedução e são muito diferentes entre si.
Bloom destaca Hamlet e Rosalinda (de As You like it), mas talvez seja Falstaff o maior de todos. Falstaff é o soldado que não quer saber da guerra. Foi o personagem mais popular na época em que Shakespeare estava vivo. Ele aparece no drama histórico Henrique IV e na comédia As Alegres Comadres de Windsor. “Não quero glória. Deem-me vida”. Hamlet é alguém que não acredita em nada, principalmente em si mesmo, não obstante estar entregue a uma permanente reflexão. Ele tem sete monólogos absolutamente céticos na enorme peça. E Rosalinda é uma mulher apaixonada que corteja homens e é irônica em relação àquilo que mais deseja: o amor.
Mas é impossível estabelecer a grandeza de Shakespeare em uma pequena crônica, que na verdade, era sobre aquela curiosa construção que restou queimada há 400 anos.
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Bar do bardo, por Nelson Moraes
Pensando aqui em montar o Bar do Bardo, todo erguido em arquitetura elisabetana, e com o cardápio e a carta de drinks, obviamente, também temáticos: teremos, de entrada, a Júlio César’s Salad e, nas guarnições, o filé Ricardo III (que você tem que pedir gritando “Meu cavalo por um bife!”) e o Hamlete (carne de hambúrguer com omelete); pra beber, a Bloody Mary à Lady MacBeth (onde a bartender, depois de acrescentar o suco de tomate, lava as mãos dizendo teatralmente “Sangue, sangue!”) e uma cerveja majestática, a Rei Beer. Além disso teremos a sobremesa mais óbvia de todos os tempos, o Mikshakespeare, e um maître especialista em responder contextualmente a eventuais reclamações de clientes:
– Você chama ISSO de porção?
– Assim é, se lhe parece…
Teremos também som ao vivo aos sábados, só com heavy metal, onde não cobraremos couvert artístico: é o circuito “Muito Barulho por Nada”, que…
As mortes de Cervantes e Shakespeare ocorreram no mesmo dia e no mesmo ano, em 23 de abril de 1616. A questão é complicada e está explicada aqui, no segundo parágrafo. A fim de homenagear estes dois imensos nomes da literatura de todos os tempos, em 1995, a XXVIII Conferência Geral da UNESCO escolheu o dia 23 de abril como o Dia Internacional do Livro e dos Direitos Autorais. Na data, fica também homenageado outro escritor falecido naquela popularíssima data de 1616: o historiador peruano Inca Garcilaso de la Vega, dito o “príncipe dos escritores do novo mundo”. O 23 de abril é tão bem frequentado que William Wordsworth, grande poeta romântico inglês, também a escolheu para morrer, só que de 1850.
Cervantes é um fundador. Talvez seja isto que nos emocione tanto quando folheamos as páginas do Quixote ou das Novelas Exemplares. Virginia Woolf escreveu em seu diário que sempre derramava algumas lágrimas quando pegava seu exemplar do Quixote. Eu a entendo. Não sou fácil para chorar, mas as páginas finais do grande romance foram lidas com extrema dificuldade. As letras movimentavam-se levemente e às vezes sumiam enquanto eu fungava. Para quem ama a literatura, parece “forte demais” tomar contato com o primeiro romance efetivamente moderno, por mais arrevesado que ele nos pareça hoje. Talvez ele tenha sido um dos primeiros livros escritos contra outros, trata-se de uma obra escrita com raiva e graça, muita graça. As últimas edições brasileiras do Dom Quixote e das Novelas, publicadas pela recém falecida Cosac Naify, receberam tratamento digno da comicidade e profundidade cervantinas através do tradutor Ernani Ssó. Ninguém mais precisa ler as principais obras de Cervantes naqueles antigos e terríveis textos como os que eu li quando adolescente.
Uma biografia sensacional, ou no mínimo, muito particular
Sabe-se bastante da vida pós-Quixote de Miguel de Cervantes Saavedra. Antes disso, sua biografia apresenta largos períodos sem notícias. A começar por seu próprio nascimento. Há indícios de que nasceu no seu onomástico, em 29 de setembro. O que é certo é que foi batizado em 9 de outubro de 1547. Também existem dúvidas sobre onde teria estudado e se. Sabe-se que era alguém muito indisciplinado, agitado e boêmio, sempre envolvido em querelas pessoais e atrás de guerras onde pudesse lutar a fim de ganhar algum.
Na verdade, sua vida foi espetacular. Após um duelo onde feriu seu oponente, fugiu em 1569 para onde hoje é a Itália, a fim de servir como soldado. Na Batalha de Lepanto, em 1571, lutando ao lado da Santa Liga (República de Veneza, Reino de Espanha, Cavaleiros de Malta e Estados Pontifícios), perdeu os movimentos da mão esquerda — ou a toda a mão, segundo alguns autores. Em 1575, participou da expedição contra Túnis. Preso por um corsário árabe, passou cinco anos numa prisão em Argel, junto com um de seus irmãos. Fugiu 4 vezes: na primeira foi apanhado e posto em um confinamento mais severo. Então, sua família reuniu algum dinheiro para a fiança, mas o dinheiro apenas foi suficiente para resgatar um dos irmãos e Cervantes preferiu dar a liberdade a Rodrigo. Então, libertado, este contratou uma embarcação para libertar Miguel, mas acabou novamente preso. Na terceira tentativa, Cervantes foi encontrado dias depois e permaneceu fechado por 5 meses no banheiro da cela… Na quarta vez, tentou subornar um mouro para facilitar-lhe a fuga, mas foi delatado. Como pena, o Sultão de Argel o mandou para uma prisão em Constantinopla. Mas, antes da viagem, dois frades espanhóis organizaram uma expedição à África e conseguiram, com auxilio da família Cervantes, pagar seu resgate.
Voltou às guerras entre 1581 e 1583, na expedição que Filipe mandou aos Açores, contra o prior do Crato, que pretendia o trono de Portugal. Lá, dirigiu galanteios a uma dama portuguesa 22 anos mais jovem. Tiveram uma filha, D. Isabel de Saavedra. Só após o nascimento, em 1584, é que Cervantes desposou legitimamente D. Catarina de Palácios Salazar y Vosnediano, dama de linhagem fidalga.
De volta à Espanha, escreveu cerca de 30 peças de teatro e seu primeiro livro, A Galateia (1585). Sem êxito e cometendo todos os excessos retóricos que depois condenaria em Dom Quixote, passou a trabalhar como coletor de impostos. Em 1597, foi preso de novo, desta vez por dívidas. Tudo indica que foi na prisão que começou escrever a primeira parte do Quixote.
O Quixote
El ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha é muito diferente de tudo o que se tinha publicado até então. O romance fala mal dos romances de cavalaria, a moda da época, com suas histórias totalmente fantasiosas de grandes feitos. Os cavaleiros, super-heróis da Idade Média, saíam pelo mundo corrigindo toda injustiça. Enfrentavam sozinhos — e venciam — exércitos tão grandes que fariam corar de vergonha a Beatrix Kiddo de Kill Bill, assim como Batman e Rambo. Para atacar tais livros – pois uma ideia genial pode nascer de um desejo de vingança – , Cervantes criou um grande leitor dos romances de cavalaria: um fantasioso, louco e esquálido herói, cheio de boas e nobres intenções, um personagem que fará rir a todos, desde os literatos até a lírica donzela da Andaluzia que só sonhava com barões e nobres.
Acompanha-o Sancho Pança, uma figura baixa, gorda e realista, que passa o tempo todo tecendo críticas ao sublime e ridículo Cavaleiro da Triste Figura. Com seu cavalo Rocinante e a a musa Dulcineia, estava criado o grupo central do mais engraçado e melancólico dos romances.
(…) dom Quixote perguntou a Sancho o que o tinha levado a chamá-lo “Cavaleiro da Triste Figura”, justamente agora.
— Foi porque — respondeu Sancho — estive olhando-o um instante, à luz do círio daquele pobre coitado, e realmente vossa mercê tem a pior figura que vi nos últimos tempos. Deve ser por causa do cansaço deste combate, ou pela falta dos molares. (Trad. de Ernani Ssó)
A fantasia do Quixote forma gloriosa e minuciosa antítese com o ultrarrealismo de Sancho Pança. É na oposição de Quixote ao senso comum de Sancho que está boa parte da riqueza do livro. A incrível capacidade do Quixote de adaptar-se às péssimas circunstâncias e de manter seu idealismo acima da vulgaridade, leva-nos a acreditar que haja outro senso a lutar contra o marasmo e o comum. Mas não pensem em Sancho como um personagem desagradável, politicamente correto ou como “um representante da vulgaridade”, nada disso. Ele é engraçado e inteligente, estando sempre disposto a piadas e a citar oportunos adágios populares ou outros, criados por Cervantes. É um realista.
O livro, publicado em 1605, fez estrondoso sucesso. Tanto que recebeu uma continuação apócrifa, assinada por um inexistente Alonso Fernández de Avellaneda, o qual demonstrou boas doses de incompreensão dos personagens cervantinos e que não podia ser comparado ao original em qualidade. Então, em 1615, Cervantes publicou o segundo tomo, onde o falso livro de Quixote é citado no prólogo.
Valha-me Deus, com quanta gana deves estar esperando agora este prólogo, leitor ilustre ou mesmo plebeu, pensando encontrar nele vinganças, reprimendas e vitupérios contra o autor do segundo Dom Quixote, digo, contra aquele que dizem que foi concebido em Tordesilhas e nasceu em Tarragona! Na verdade não vou te dar esta alegria, pois, ainda que os agravos despertem a cólera nos corações mais humildes, no meu esta regra há de padecer exceção. Tu gostarias que eu o chamasse de burro, de mentecapto e de insolente, mas isso não me passa pelo pensamento: que o pecado dele seja seu castigo, que coma o pão que amassou e faça bom proveito. (Trad. de Ernani Ssó)
Se o primeiro volume já era extraordinário, a continuação é ainda melhor e, ao final deste livro, o autor mata Dom Quixote para que sejam evitados novos abusos e continuações.
Cervantes é o fundador do romance moderno. No Quixote há personagens que representam ideias e as situações falam por si, sem a necessidade de maiores explicações do autor. Atualmente, talvez o livro soe verboso e com longos trechos desnecessários, mas ainda não foi inventado símbolo melhor do espírito idealista e aventureiro do ser humano.
Lembro que durante o Fórum Social Mundial de 2005 falou-se muito no Quixote como representante de uma utopia. Isto é um grande erro que foi apontado por José Saramago, presente ao evento. Utopia (palavra do latim moderno, com origem no grego oú, “não”, e no grego tópos, ‘lugar’), segundo Thomas Morus, é um local e uma situação ideais; isto é, refere-se a um país e a um governo imaginário que proporciona excelentes condições de vida a um povo feliz. Ironicamente, também significa não-lugar ou lugar nenhum… Esta definição não possui nada em comum com a história do Engenhoso Fidalgo, um personagem que aplicava a fantasia para transcender a circunstâncias imediatas e que era destituído de projetos para si ou, melhor dizendo, que refazia seu projeto cada vez que pensava ou via algo que o interessasse. Também desiludia-se e “reiludia-se” com extrema velocidade…
Entre as duas partes de Dom Quixote, aparecem o genial Novelas exemplares (1613), conjunto de doze narrativas breves de caráter didático e moral que podem servir de introdução ao mundo cervantino. Cervantes se ufanava, no prólogo, de ter sido o primeiro a escrever, em castelhano, novelas ao estilo italiano:
A isso se aplicou meu engenho, a isso me leva minha vocação, e penso, o que é verdade, que sou o primeiro que escreveu novelas em língua castelhana, porque as muitas que andam impressas nela são todas traduzidas de línguas estrangeiras, e estas são de minha autoria, não imitadas nem furtadas; meu talento as criou e minha pena as pariu, e vão crescendo nos braços da imprensa. (Trad. de Ernani Ssó)
Elas são habitualmente agrupadas em duas séries: as de caráter idealista e as de caráter realista. Também escreveu Viagem de Parnaso (1614) e peças teatrais como Oito comédias e oito entremezes novos nunca antes representados (1615). Porém, seu drama mais popular hoje, A Numancia, além de O trato de Argel, ficaram inéditos até ao final do século XVIII. Um ano depois de sua morte aparece a novela Os trabalhos de Persiles e Sigismunda.
Mas o que interessa em sua obra é o Quixote e as Novelas Exemplares. Como dissemos, o êxito de Dom Quixote foi colossal. A glória e a fama que Cervantes obteve em vida foi imensa para a época. No primeiro ano esgotaram-se quatro edições. O pequeno mundo literário espanhol estava em êxtase. Todos queriam conhecer Cervantes, todos o felicitavam: o conde de Lemos proclamava-se, orgulhoso, seu amigo e mecenas. Muitos estrangeiros — como os franceses que vieram na comitiva do embaixador da França à corte de Espanha para tratar de assuntos de estado — solicitavam, como graça excepcional, o favor de serem apresentados a ele. Era a glória, aquela que ele antes procurara nos acampamentos e nos teatros.
Cervantes reformou o gosto de um público que, após sua obra-prima, nunca mais foi o mesmo. Ele fez ruir um mundo numa risada colossal. E um novo caos surgiu.
Marion Cotillard disse que sua Lady Macbeth não é a personagem manipuladora frequentemente retratada. E é verdade. É que sua personagem simplesmente NÃO É Lady Macbeth. Aliás, este Macbeth — Ambição e Guerra não é o Macbeth de Shakespeare, só tem som, fúria e é contado por um idiota.
Por que alguns diretores de cinema pensam que são mais espertos do que Shakespeare? Por exemplo, Shakespeare tinha três bruxas — mas no filme de Kurzel temos 3,5. Shakespeare escreveu um discurso brilhante e seminal para elas… Que foi eliminado. A complexa psicologia entre os Macbeths e o declínio mental de cada um deles também foi limado.
O australiano Justin Kurzel orgulha-se de que seu Macbeth seja parecido com Game of Thrones, mas, sabem?… Bem, vamos tentar abordar a lambança por partes.
Lambança 1: Kurzel usa o texto original de Shakespeare, mas de forma muito incompleta. Até o ousado Romeu + Julieta — um bom filme — teve o bom senso de não retirar da adaptação a força dos diálogos. Ora, o autor é Shakespeare. Quem é Kurzel?
Lambança 2: Os castelos e a Escócia ficaram com um visual de videogame perverso. Tudo é escuro. Há cenas em câmera lenta, outras saturadas de filtros de cor e de intervenções digitais. Mas tudo sempre escuro. As palavras de Shakespeare são usadas apenas para ligar uma cena de visual injustificado à seguinte. Para deixar uma história terrível, não é necessário pintar tudo em tons de cinza e vermelho sangue, ainda mais com Shake à mão.
Lambança 3: A terrível lentidão do filme. Ora, Shakespeare requer ação. Harold Bloom disse que Shakespeare acelera muito e é verdade. O próprio teatro elisabetano era assim. As histórias eram longas e com constantes alterações para pegar um público de atenção fugidia que via as peças em pé. Há que ter ritmo. Em Shakespeare, especialmente, a ação é rápida, de profundidade filosófica e — milagre que só o bardo de Stratford-upon-Avov conseguia — com personagens complexos e bem caracterizados. Nada disso permaneceu neste filme.
Lambança 4: Há duas previsões feitas pelas bruxas em seu segundo encontro com Macbeth. São fundamentais na história. Elas dizem: Macbeth jamais será vencido, a menos que o Bosque de Birnam marche contra ele. E também dizem que ninguém nascido de mulher poderá fazer-lhe mal. A segunda predição está no filme e é demonstrada a Macbeth por Macduff, mas a primeira some. Onde está a ordem de Malcolm: “Que cada soldado derrube um galho e carregue-o à sua frente. Desse modo, estaremos camuflando o número exato de nosso contingente”. E o mensageiro não diz a Macbeth que o bosque está caminhando.
Lambança 5: O ambiente “escocês”. A maioria do elenco fala com um sotaque escocês horroroso, agravado por uma trilha sonora difusa e pelo incessante zumbido de fundo. Há, é claro, gaitas de foles. As batalhas do filme são travadas em meio à constante fumaça. A Escócia de Kurzel está eternamente em chamas.
Lambança 6: Os próprios apoiadores de Macbeth, ao final da história, voltam-se contra ele. Isto não fica claro no filme.
Lambança 7: Outra cena final que é fundamental é aquela em que Macduff aparece com a cabeça de Macbeth. Cadê?
Lambança 8: Em Macbeth, Shakespeare trata da ambição, da maldade, das grandes intenções e da pequenez do homem. Mas Kurzel disse que vê a história como um faroeste. Nunca vi nenhum xerife em Shakespeare. Vejo é que a grandiosidade de um texto que fala também sobre o poder e as formas de governar, foi substituída por imagens rebuscadas de vazia grandiloquência. E, se a vida é uma história “contada por um idiota cheia de som e fúria, que não significa nada”, Kurzel fez o papel de idiota.
Dica quente: veja o Macbeth de Kurosawa, Trono manchado de sangue, e o de Polanski. Esses sim!
Houve tempo em que elas eram poucas, houve tempo em que Erico Verissimo dizia com certa ironia à Lygia Fagundes Telles que era bela demais para ser escritora. Este panorama, porém, alterou-se completamente. Um tanto irresponsavelmente, pinçando nomes aqui e ali, temos uma nominata nada desprezível de escritoras mulheres no Brasil. Clarice Lispector, Cecilia Meireles, Maria Alice Barroso, Rachel de Queiroz, Lygia Fagundes Teles, Nélida Piñon, Sonia Coutinho, Ana Cristina César, Hilda Hilst, Adélia Prado, Zelia Gattai, Ana Miranda, Marina Colasanti, Lygia Bojunga Nunes, Maria Adelaide Amaral, Flora Sussekind, Leyla Perrone-Moisés, Cora Coralina, Walnice Nogueira Galvão, Lucia Abreu, Regina Zilbermann, Marilena Chauí, Zulmira Ribeiro Tavares, Patricia Melo, Jane Tutikian, Fernanda Young, Claudia Tajes, Carol Bensimon, Mariana Ianelli.
O fato é que há muito tempo o termo “Literatura de Mulherzinha” tornou-se anacrônico. Apesar da dificuldade para caracterizar os elementos que fazem a literatura feminina ser diversa, os leitores reconhecem sua poética, parecendo pressentir seus elementos próprios: de modo geral, acertaremos dizendo que ela é habitualmente mais sensorial, poética e livre. Não se pode falar em gênero, pois os estilos e as temáticas variam muito. “Não se pode dizer que a literatura feminina seja sempre feita por mulheres, assim como boas narrativas gays podem ser escritas por heterossexuais e boas narrativas carcerárias podem ser escritas por gente que nunca esteve presa. Ao menos não há nada, nenhuma barreira física ou moral, que impeça isso.”, escreveu Nelson de Oliveira. “Da mesma maneira que a literatura policial não é a literatura escrita apenas pelos policiais, a literatura feminina não precisa necessariamente ser a literatura escrita apenas pelas mulheres. É certo que há policiais escrevendo literatura policial, mas também há professores, psicanalistas, filósofos… O mesmo acontece com a literatura feminina da maneira como eu a vejo: há homens e mulheres trabalhando dentro dos limites desse gênero”, completa.
Mas, se hoje Lídia Jorge é acompanhada de muitas outras, tivemos precursoras seminais. E a maior delas foi Virginia Woolf, que escreveu um curioso — e muito feminino — livro fundador.
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Um teto todo seu (A Room of One`s Own, 1929) é um dos mais surpreendentes livros da célebre ficcionista inglesa Virginia Woolf. A primeira surpresa é o fato de não ser ficção; a segunda é a absoluta ousadia no trato do assunto abordado: o feminismo.
O livro nasceu a partir de duas palestras chamadas “As mulheres e a ficção”, proferidas por Virginia para uma plateia essencialmente feminina da Sociedade das Artes, na Londres de outubro de 1928. O texto de Virginia tem a qualidade estupenda de seus livros da época. Mrs. Dalloway (1925), Passeio ao Farol (1927) e Orlando (1928) foram seus predecessores; As Ondas (1931) deu continuidade à série de grande livros. Encrustado na sequência mais importante de romances de Virginia, o ensaio Um teto todo seu não decepciona de modo algum. O livro tem cerca de 140 páginas. Não pensem que ela o leu por inteiro nas duas palestras – algo como 70 páginas por dia; na verdade o texto foi bastante ampliado para publicação logo após as palestras.
O Globe Theatre de Londres é associado ao maior dramaturgo de todos os tempos: William Shakespeare. A casa foi construída em 1599 por sua companhia de teatro. Shakespeare detinha 12,5 % das ações da mesma. Dois dos seis acionistas – Richard Burbage e seu irmão Cuthbert Burbage – possuíam 25% cada e um quarteto de 12,5% cada era formado por John Heminges, Agostinho Phillips, Thomas Pope e o famoso dramaturgo. Foi o primeiro teatro construído por atores para atores. Porém, após estrear várias peças do grande autor, o Globe foi destruído por um incêndio no dia 29 de junho de 1613, exatamente há 400 anos. O Globe foi inaugurado no outono de 1599, com Júlio César e a maioria das grandes peças de Shakespeare pós-1599 foram escritas para o teatro.
No século XVII, qualquer incêndio podia transformar-se numa grande tragédia, tanto que em 1666, um terço da cidade foi destruída pelo fogo. As ruas eram estreitas, herança da transformação urbana acelerada a partir do século XIII, quando Londres virou capital do reino. A técnica contra incêndios era muito prosaica: eram usados baldes d`água e, quando não funcionavam, era providenciada a derrubada das construções contíguas para impedir o espraiamento do fogo. Só que a decisão de derrubar casas dependia de uma autorização do prefeito da cidade, que analisava empiricamente os ventos e a umidade do ar e das casas. Risco completo.
A indecisão para se fazerem as derrubadas era compreensível diante de seus custos, tanto de demolição quanto de reconstrução. No grande incêndio de 1666, houve demasiada hesitação e, quando as demolições foram autorizadas, grande parte da cidade já estava em chamas. Então os imóveis passaram a ser simplesmente explodidos, o que criou outros focos de fogo. Também não se sabia o número de vítimas dos sinistros pelo simples fato de que os não nobres não eram registrados. Do ponto de vista do estado, sumia gente que não existia. No grande Incêndio foram destruídas, pelo fogo e pela ação humana, 13.200 casas e uma área de 1,7 km²
Antes do incêndio, nos quase 15 anos em que esteve ativo, o Globe foi um estrondoso sucesso. No século XVI, as companhias de teatro apresentavam-se em locais improvisados, geralmente em bares ou na rua. Em 1576, James Burbage construiu o The Theater, primeira casa do gênero do país. Em 1581, Shakespeare juntou-se a Burbage escrevendo peças e trabalhando como ator. Apesar da casa sempre lotada, sobrevieram problemas financeiros e a casa acabou fechada. A curiosidade é que o Globe foi construído com a madeira do desmonte do The Theater. Do mesmo modo que o Theater, o Globe vivia com a casa cheia e as peças apresentadas eram normalmente de seu famoso sócio.
Então, no dia 29 de junho de 1613, o Globe incendiou durante uma performance de Henrique VIII. Um canhão de luz pegou fogo, inflamando as vigas de madeira. De acordo com os poucos documentos existentes, ninguém ficou ferido, exceto um homem que perdeu as calças, tendo sido apagadas com cerveja por seus amigos. Era o que estava à mão. As peças teatrais, naquela época, recebiam um povo ruidoso e festivo, que vibrava com as cenas, vaiava os vilões e assobiava, desejando ou não as seduções . Não havia estatuto que impedisse o uso do álcool.
O Globe foi reconstruído no ano seguinte, porém, como todos os outros teatros de Londres, foi fechado e destruído pelos puritanos em 1642, dando lugar a outro tipo de construção. Atualmente, Londres ostenta o Globe na margem do Tâmisa, na região de Southwark. Não é o ponto exato do ex-teatro de Shakespeare. Ele se localizava há uns 230m de onde está hoje. Não ficava exatamente na margem. A reconstrução é fiel e foi feita com base nos edifícios de 1599 e 1614. O atual Globe apresenta exclusivamente peças de Shakespeare. O Grupo Galpão, de Belo Horizonte, é a única companhia brasileira que se apresentou lá. Houve uma temporada de Romeu & Julieta que está documentada em DVD.
Há em Shakespeare paixão, ambição, amor, inveja, traição, tudo isso temperado por poesia e lirismo absolutamente originais. O Globe era e é um edifício de forma octogonal, com abertura no centro. De dentro do teatro, vê-se o céu. Não existia cortina e, por causa disso, os personagens mortos – muita gente morre nas sanguinárias peças de Shakespeare – tinham que ser retirados por auxiliares. Todos os papéis eram representados pelos homens – mulheres eram proibidas de entrar em cena – , sendo os mais jovens os encarregados de fazerem papéis femininos. No período Globe, é certo que o autor estreou Hamlet, Otelo, Rei Lear e Macbeth, talvez Romeu e Julieta e Júlio César. Foi o chamado “Período Trágico”.
Falar de Shakespeare é como falar de um ser mitológico, de um produtor de trágedias, comédias, dramas históricos e sonetos geniais. Sua obra, assim como a de pouquíssimos outros artistas, é quase indiscutível. Em Shakespeare, a Invenção do Humano, do crítico literário Harold Bloom, nota-se a dificuldade de falar de um autor tão completo. Para Bloom, Shakespeare não apenas era dono de um cérebro muito privilegiado, como também criou personagens igualmente inteligentíssimos, que seriam capazes de refletirem sobre si próprios, sobre a interação com os outros para, a partir daí, crescerem dentro das histórias, modificando suas maneiras de pensar e agir. Mas a agudeza mental dos personagens são muito bem temperadas, não existem personagens meramente frios ou chatos. Os personagens têm humor, sarcasmo, poder de sedução e são muito diferentes entre si.
Bloom destaca Hamlet e Rosalinda (de As You like it), mas talvez seja Falstaff o maior de todos. Falstaff é o soldado que não quer saber da guerra. Foi o personagem mais popular na época em que Shakespeare estava vivo. Ele aparece no drama histórico Henrique IV e na comédia As Alegres Comadres de Windsor. “Não quero glória. Dêem-me vida”. Hamlet é alguém que não acredita em nada, principalmente em si mesmo, não obstante estar entregue a uma permanente reflexão. Ele tem sete monólogos absolutamente céticos na enorme peça. E Rosalinda é uma mulher apaixonada que corteja homens e é irônica em relação àquilo que mais deseja: o amor.
Mas é impossível estabelecer a grandeza de Shakespeare em uma pequena crônica, que na verdade, era sobre aquela curiosa construção que restou queimada há 400 anos.
Com poesia, ele realizou brilhantemente o sonho de todo escritor: colocou nos palcos o poder, o amor, a vingança, a traição, a injustiça, a ambição, o ódio, a beleza. A humanidade seria diferente sem ele, certamente ainda pior. Ele tudo compreendia e há tudo em suas peças e poemas. Não apenas uma enorme diversidade de tipos humanos de qualquer classe social, como os mais variados desafios e sentimentos. O papel central de William Shakespeare no cânone ocidental consolidou-se a partir do século XVIII e de lá não mais saiu.
Você pretende beber em honra ao velho Bill?
(MACBETH, William Shakespeare, ATO II, Cena III)
MACDUFF — Quais são as três coisas que a bebida provoca especialmente?
PORTEIRO — Ora, senhor, nariz vermelho, sono e urinas. A lascívia, senhor, ela provoca e deixa sem efeito; provoca o desejo, mas impede a execução; por isso pode-se dizer que a bebida usa de subterfúgios com a lascívia: ela a cria e a destrói; anima-a e desencoraja-a; fá-la ficar de pé e depois a obriga a descansar. Em resumo: leva-a a dormir com muita lábia e, lançando-lhe o desmentido, abandona-a a si mesma.
Como poeta, Luiz de Miranda não é tudo aquilo, mas poderia fazer um excelente Shakespeare no cinema. Um dia, passei por nosso candidato ao Prêmio Nobel na Feira do Livro e fiquei pensando: “De onde eu conheço esse cara?”. Claro, né?
Esta novela ficou muito famosa pelo fato de Shostakovich tê-la adaptado para a ópera. A versão musical — espetacular, chamada apenas de Lady Macbeth de Mtzensk — foi proibida por Stalin, juntando escândalo a escândalo. Sim, porque a novela é espalhafatosa, um verdadeiro paroxismo de maldade, bem no estilo do modelo shakespeareano tomado por Leskov. Não há nenhuma hesitação, nenhuma incerteza, nenhum retroceder na mulher. Ela é ainda menos reflexiva do que a Lady Macbeth de Shakespeare.
E é neste ponto que vejo seu único problema. São noventa páginas divididas em quinze capítulos que cobrem a violenta vida amorosa de Catierina Lvovna, nossa Lady Macbeth. Em cada um deles, há um clímax onde algo de hediondo é tramado ou realizado. Isto dá ao livro um ar mais de roteiro do que de novela. Tudo ocorre sem muita preparação e Shostakovich, ao lê-la, deve ter pensado: “Nossa, mas isso é um libreto de ópera pronto!”. É mesmo. Porém, não pensem que Leskov fez isso por inabilidade. Foi uma opção tomada por um autor sofisticado. Do tipo desta vez vou ser tosco, tá?
Não obstante os quinze clímax sem preliminares, a história é excelente e é impossível largá-la antes do final, tal o impressionismo solar de cada uma delas. As cenas que apavoraram Stalin — que chamou a ópera de “pornofonia” antes de censurá-la, colocando Shostakovich em temporária desgraça –, estão todas no livro, plenas de desejo e ódio. Deixo de lado meu incondicional ateísmo para pedir aos céus nunca cruzar com uma Catierina Lvovna, Deus me livre delas! O próprio Leskov considerava a história perturbadora e dizia ter medo dela. Esqueça. Vale a pena ler essa história tosca do nada tosco Leskov.