Middlemarch é um mistério. Muitos clássicos do século XIX são de conhecimento quase geral entre leitores contumazes, mas o livro de George Eliot — que era uma mulher, nascida Mary Anne Evans — permanece ignorado pela maioria.
Acertando como sempre, Virginia Woolf escreveu que Middlemarch era “um dos poucos romances ingleses escritos para adultos”. Eu diria: “escrito exclusivamente para adultos”. O livro aborda temas muito atuais: o status das mulheres perante à sociedade, a ascensão da classe média e a crítica da moralidade, da religião e do casamento.
Sem exagero, trata-se de um livro estupendamente inteligente, publicado em 1871.
Middlemarch é o nome de uma cidade fictícia do interior da Inglaterra a a ação se passa lá volta de 1830. Como Anna Kariênina, o livro tem enredo múltiplo, centrando-se em dois casais, montando um quadro da vida rural inglesa e uma análise dos relacionamentos humanos em geral, especialmente das relações amorosas e do casamento.
O núcleo são os casais Dorothea e Edward Casaubon, Rosamond e Tertius Lydgate.
Dorothea, mulher excepcionalmente independente, politizada para sua época e de grande sede intelectual, casa-se com Casaubon, homem erudito e quase 30 anos mais velho. Ela o admirava, ele prometia muito, mas se revelou frio e chato. Um desastre.
Por outro lado, Lydgate é um médico entusiasmado, amante da ciência, que casa com a fútil Rosamond, que o faz gastar o que não tem. Outro desastre.
O curioso é o afastamento dos dois casais. algo muito semelhante novamente à Anna Kariênina. Um drama aqui, outro lá.
Mas nada desta apresentação faz sentido se não levarmos em conta as intervenções da narradora, com comentários cheios de ideias, pensamentos revolucionários e a colocação de situações morais muito originais.
Nas suas 800 páginas, há um bom número de personagens e tramas que encontram os temas subliminares, incluindo a situação das mulheres, a natureza do casamento, o idealismo e o interesse pessoal, religião e hipocrisia, reforma política e educação. Esse livro é maravilhoso!
Ah, tem algo que não era uma novidade no romance vitoriano, mas que Eliot professa como ninguém: sua profunda simpatia pelos personagens secundários, pelas pessoas simples, feias e pobres,
Vamos a um pouco mais de Virginia Woolf?
“A luta das heroínas de George Eliot, por conta da suprema coragem do empreendimento a que se dedicavam, termina em tragédia ou num compromisso que é ainda mais melancólico”.
Tudo porque, ainda nas palavras de Woolf, “o fardo e a complexidade da condição feminina não lhes era suficiente. Elas desejavam sair do santuário e colher para si mesmas os estranhos frutos da arte e do conhecimento”.
Temos Middlemarch na Livraria Bamboletras. Sim, a tradução da Martim Claret é boa.
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Em diferentes fases da vida, eu li três vezes este livro. E sempre o li como se comesse chocolate, sempre com a intenção de me deliciar mais um pouquinho. Isso não acontece devido a alguma reviravolta na trama, nem a réplicas espirituosas, nem a envolvimentos românticos. Na verdade, Virginia Woolf frequentemente ignora a trama em favor do exame das minúcias, colocando sob seu microscópio as emoções humanas ou, como na seção central deste livro, a maneira como uma casa se decompõe, como se a casa fosse humana. Eu sou um sujeito, acho, que exijo consistência e profundidade naquilo que leio, mas com VW esqueço de tudo. Está frio em Porto Alegre e fiquei mais do que contente em afundar de novo no banho quente deste livro e isso, creio, foi devido aos personagens.
A história acompanha a família Ramsay e suas visitas à Ilha de Skye, na Escócia, de 1910 a 1920. Lá, há enormes ondas, há um céu sempre mudando de humor e, claro, há o brilho do farol. Quando você entra no fluxo da prosa, é difícil escapar. O estilo de escrita de Woolf é propositalmente inovador. Ela cria frases gigantescas seguidas por linhas abruptas e mais curtas. É quase um poema disfarçado de romance. Normalmente não sou fã de poesia. Sempre preferi uma experiência de leitura mais tangível, uma que não seja movida por imagens.
A proximidade com os personagens, a compreensão que VW tem deles é o que os tornou tão envolventes. Eles não são extraordinários — na verdade, até pelo contrário. São tipos intelectuais de classe média, do tipo que você encontra em muitos livros. Pode-se até dizer que eles não oferecem nada de novo, nada para surpreender ou excitar um leitor. No entanto, para mim, a familiaridade com eles era uma prova da habilidade com que foram descritos – porque todo mundo conhece alguém como eles. Virginia Woolf, em algumas centenas de páginas, pareceu capturar exatamente a essência de certas pessoas — certos traços, peculiaridades e maneirismos que posso reconhecer da minha vida, do meu mundo, apesar de estar a cem anos de distância.
Se a Sra. Ramsay é a baseada na figura da mãe de VW, o que dizer de Lily Briscoe? Sua posição fora da família Ramsay torna sua perspectiva uma das mais interessantes e importantes do romance. Sempre senti uma conexão emocional com Lily enquanto ela anseia pelo apoio e amor dos outros. Ela vê a família Ramsay como um símbolo idealizado de amor e união perfeita; no entanto, as outras perspectivas revelam uma realidade muito diferente. Lily é uma constante em todo o romance, assim como o próprio farol. Mesmo quando o tempo passa e certos personagens vêm e vão, Lily está sempre lá com sua pintura, otimismo e introspecção fascinante. Ela é feminina e independente, uma figura contrastante com a Sra. Ramsay. Ou melhor, a feminilidade convencional, representada pela Sra. Ramsay na forma de casamento e família, confunde Lily, e ela, bem, ela talvez seja VW x sua mãe.
Ah, o farol. É o fio condutor que atravessa todo o romance, aquele destino tão desejado pelos filhos da Sra. Ramsay e tão persistentemente evitado pelo Sr. Ramsay. A ênfase contínua em visitar o farol… Ele parece representar uma espécie de objetivo final inatingível. Quando James finalmente chega ao farol depois de anos querendo visitá-lo, ele percebe que ele não se compara ao farol que ele imaginou quando criança. É interessante ver o relacionamento de todos com o farol conforme o romance avança, especialmente na sua seção final.
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Virginia Woolf nasceu no dia 25 de janeiro de 1882. James Joyce em 2 de fevereiro do mesmo ano. São 8 dias de diferença.
James Joyce publicou seu primeiro livro, Música de Câmara, em 1907. Woolf estreou na literatura em 1915, com The Voyage Out. São 8 anos de diferença.
A curiosidade leva a gente a lugares estranhos. Deste modo, descobrimos que, adulto, Joyce media 1,78m. E que Woolf media 1,70m. 8 centímetros de diferença.
Por justificadas razões, James Joyce escolheu o dia 16 de junho de 1904, uma quinta-feira, para a ação de Ulysses. Já Virginia Woolf marcou Mrs. Dalloway, um romance que também se passa em um dia, para uma quarta-feira também de junho, mas não nos disse dia nem ano. Talvez seja 8 dias antes ou depois do dia 16, mas já estaríamos forçando um pouco, até porque ela falou em meados do mês.
Ulysses foi publicado em 1922, Mrs. Dalloway em 1925, o que quebra de vez nossa numerologia.
Enquanto o Bloomsday é comemorado há décadas, o Dalloway`s Day é bem mais recente, o que talvez seja uma prova de tudo o que Virginia sempre disse: há a ausência da voz das mulheres.
Em fevereiro de 1922, logo após o lançamento de Ulysses, Virginia Woolf escreveu para sua irmã Vanessa, então em Paris: “Pelo amor de Deus, faça amizade com Joyce. Quero saber como ele é”. Ao que tudo indica, Vanessa fracassou em sua missão, porém, em abril, Virginia adquiriu um exemplar de Ulysses por caríssimas – na época – 4 libras. Quando fez a compra, trabalhava em um romance chamado Mrs. Dalloway em Bond Street.
Sim, Virginia leu Ulysses e escreveu em seu diário uma série de considerações que ficavam entre um decidido não gostei e o respeito. Após ler as primeiras 200 páginas, sentenciou: E Tom (T. S. Eliot), o grande Tom, acha que isso se equipara a Guerra e Paz! Parece-me um livro analfabeto e malcriado. (…) É claro que o gênio pode explodir na página 652, mas tenho minhas dúvidas.
Porém, ainda parada na página 200, ela elogiou publicamente o capítulo 6…
Após finalizar a leitura, novas críticas: Terminei Ulysses e acho que foi um erro. É genial, mas difuso e pretensioso. (…) Um escritor de primeira linha, (…) surpreendente; fazendo acrobacias. Lembrou-me o tempo todo algum colegial imaturo, cheio de inteligência e poderes, mas tão autoconsciente e egoísta que perde a cabeça, torna-se extravagante, barulhento, pouco à vontade, faz com que as pessoas gentis sintam pena dele, e as severas apenas se irritem. (…) mas como Joyce tem 40 anos, não amadurece mais. Não o li com atenção; & apenas uma vez; & é muito obscuro.
Enquanto isso, o amigo T. S. Eliot rebatia: Considero Ulysses a expressão mais importante que a era atual encontrou; é um livro ao qual todos devemos e do qual nenhum de nós poderá escapar. As palavras de Eliot se aplicam também a Virginia Woolf – não importa o quanto ela tentasse escapar de Ulysses – ela nunca conseguiu parar de pensar no romance de Joyce. Como observa Suzette Henke, Joyce era uma espécie de “duplo artístico, um aliado masculino na batalha modernista pelo realismo psicológico”.
Já Joyce não parece ter lido Virginia.
Há muitas coisas em comum entre Ulysses e Mrs. Dalloway. Ambos utilizam fluxo de consciência, referências ao passado, epifanias e histórias que se cruzam. Leopold Bloom sai de casa, trabalha, vai a um enterro, caminha pela praia, discute com um antissemita, vai a um bordel, pensa na mulher, volta, etc. Já Clarissa Dalloway flana por Londres a fim de comprar flores para um jantar que dará naquela noite, atravessa um parque, olha vitrines, volta. Notem que os verbos que cabem à Bloom são trabalhar e caminhar, já para Mrs. Dalloway são flanar e passear. Sim, há uma leveza que perpassa o livro de Woolf que é rara em Ulysses. Mas voltemos às semelhanças: ambos os livros dão espaço aos personagens que cruzam com os protagonistas e tocam em fatos bastante rotineiros assim como em outros nem tanto – a guerra no caso de Woolf e o papel da igreja na Irlanda, no caso de Joyce.
Woolf nasceu em berço de ouro e convivia com a nobreza e com os grandes personagens de sua época. Joyce foi um exilado sem recursos que teve lutar duramente pela sobrevivência e para ter sua obra reconhecida. Há outra curiosidade: o casal Leonard e Virginia Woolf tinha uma pequena editora, a Hogarth Press, e um dia eles escreveram a James Joyce a fim de rejeitar o manuscrito de Ulysses. Era muito longo, além da capacidade de sua editora, declararam os Woolf em carta. Era exatamente o tipo de declaração da qual eles teriam se ressentido e desconfiado como escritores.
Lendo Mrs. Dalloway, temos a impressão de que Woolf absorveu muito do livro de Joyce, por mais que o desgostasse.
São duas obras-primas, livros fundamentais da ficção moderna.
Os dois escritores morreram em 1941. Joyce em 13 de janeiro em Zurique e Virginia 74 dias depois, no dia 28 de março, em Lewes, próximo de Londres.
O mundo literário pode ser uma espécie de câmara de eco. Ou seja, se um número suficiente de pessoas diz que um livro é “ótimo”, o fato se torna oficial. Torna-se um Grande Livro, e olhares horrorizados são dirigidos a quem ousar menosprezá-lo. Reputações como essa podem ser feitas mesmo quando quase ninguém leu o livro em questão, apenas passando alguns “ouvi dizer que é incrível”. Mas mesmo quando todos parecem concordar, é uma aposta segura que existem alguns — em alguns casos mais do que alguns — dissidentes por aí. Eles podem estar apenas escondidos.
Parece uma pena hoje em dia que muitos escritores sentem que não podem expressar publicamente quaisquer sentimentos negativos sobre um livro — isto é ruim para os leitores, que cada vez mais contam com seus autores favoritos para sugestões, e também para a indústria do livro, que corre o risco de exagerar em seus esquecimentos. Entendo por que isso acontece, mas isso é um ensaio para outra hora.
Tudo isso para dizer que é divertido ver um gigante levar uma surra (especialmente se você secretamente não gostou tanto daquele gigante), e ainda mais divertido ver gigantes lutarem — que é mais ou menos como eu me sinto lendo grandes escritores menosprezando o trabalho de outros grandes escritores. Todas as lendas em questão são seguras, o que torna a dissensão literária — e convenhamos, comentários maldosos — um prazer sem culpa.
Então, sem mais delongas, uma seleção de escritores que odiavam livros que se tornaram clássicos e o que diziam sobre eles. Se eles estavam certos ou errados ainda está em debate.
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Virginia Woolf em Ulysses, de James Joyce
De seus diários:
Quarta -feira , 16 de agosto de 1922:
Eu deveria estar lendo Ulysses e inventando o meu a favor e contra. Li 200 páginas até agora — nem um terço — e foram momentos divertidos, estimulantes, encantadores, interessantes os primeiros dois ou três capítulos, até o fim da cena do cemitério. E então tudo ficou entediante, irritante e desiludido como se fosse escrito por um estudante enjoado. Tom, o grande Tom [TS Eliot], acha que isso está no mesmo nível de Guerra e Paz! Um livro analfabeto, mesquinho, parece-me. O livro de um trabalhador autodidata, e todos sabemos como são angustiantes, como são egoístas, insistentes, crus e, em última análise, nauseantes. Quando se pode comer a carne cozida, por que servir-se da crua? Mas acho que se você é anêmico como Tom, há glória no sangue. Posso revisar isso mais tarde sem comprometer minha sagacidade crítica. Eu planto um graveto no chão, marcando a página 200.
Quarta-feira, 6 de setembro de 1922:
terminei Ulysses e acho que é falho. É também genial, eu acho; mas de extração inferior. O livro é difuso. É salobro. É pretensioso. É um subproduto não apenas no sentido óbvio, mas também no sentido literário. Um escritor de primeira linha que quer escrever para ser complicado, que gosta de acrobacias. Lembrou-me o tempo todo de algum garoto de escola inexperiente, cheio de inteligência e poderes, mas tão autoconsciente e egoísta que perde a cabeça, torna-se extravagante, barulhento, inquieto, faz as pessoas gentis sentirem pena ele e deixa as pessoas severas irritadas; esperando que ele cresça com isso. Só que, como Joyce tem 40 anos, isso não parece provável… É totalmente absurdo compará-lo com Tolstói.
Hoje é o Bloomsday, mas pelo visto apareceu outra efeméride para ser comemorada pertinho, quase na mesma data, neste ano exatamente na mesma data. O curioso é que Virginia Woolf não gostava nada do Ulysses de James Joyce, mas olha só:
Todos os anos, na “quarta-feira de meados de junho”, a Royal Society of Literature celebra o trabalho e o legado de Virginia Woolf. Este ano, o Dalloway Day cai na quarta-feira, 16 de junho (que também é Bloomsday), e as comemorações marcarão o centenário da Monday or Tuesday, a única coleção de contos de Woolf.
A Lit Hub tem o orgulho de fazer parte das festividades, que este ano incluem um workshop de redação de contos, uma discussão explorando a relação entre Woolf e Katherine Mansfield, passeios a pé, um podcast e uma mesa redonda. Você pode ver o programa completo aqui , mas é claro que recomendamos o podcast, no qual a editora sênior do Lit Hub, Corinne Segal, moderou uma conversa entre Deborah Levy e Merve Emre enquanto discutiam o que Virginia Woolf significava para eles e a influência duradoura de seu trabalho sobre sua própria escrita. Esta ampla conversa apresentará uma exploração da força e fragilidade de Woolf, e de como a leitura de escritores do passado muda os autores de hoje e o que ainda temos que aprender com Virginia Woolf. Registre-se aquipara ouvir e tenha um ótimo Dalloway Day!
Há o extraordinário Ao farol, há Mrs. Dalloway, há As Ondas, e Entre os atos. Há também o fantástico ensaio de Um teto todo seu, mas se tiver que escolher o melhor livro de Virginia Woolf, escolho a alegria de ler Orlando. Nem vou comparar a qualidade literária de um e outro livro de VW. Escolho Orlando pelo mais puro afeto. Pois não lembro de nada mais que seja ao mesmo tempo tão satisfatoriamente feérico, alegre e inteligente do que este romance digno de grandes paixões.
Orlando é um jovem aristocrata inglês da época elisabetana (1558-1603). Sacha, uma jovem russa, foi sua grande paixão e desilusão. Os encontros entre eles são puro tesão literário. Mas acontecem coisas a Orlando: ele algumas vezes dorme e avança no tempo. Então, no século XVIII, vai a Constantinopla como embaixador. Um dia, há uma revolta na cidade. E Orlando acorda mulher. É recolhida por ciganos e regressa a Inglaterra. O livro prossegue até Orlando chegar ao século XX, com 36 anos. E, mesmo desprovido da sua masculinidade, continua a amar Sacha. Virginia era casada com o grande Leonard Woolf, a quem amava incondicionalmente como amigo. Talvez o seu maior amor carnal tivesse sido Vita Sackville-West, a quem Orlando e sua indefinições é dedicado.
Como em Um teto todo seu, Virginia Woolf permanece dentro de um feminismo esclarecido, sem culpas ou ódio, apenas fazendo anotações sarcásticas e desencantadas sobre uma humanidade que despreza as mulheres. Os símbolos são fortes e elegantes, como quando Orlando retorna à Inglaterra e apenas os cães e os animais o(a) reconhecem. São os únicos a respeitarem Orlando sem se importar com seu novo sexo.
Mas não pensem Orlando como um livro centrado apenas na questão do feminino. Há as questões da sabedoria, do tempo, da felicidade e da permanência, representada pelo filho que ela tem com o estranho Marmaduke Bonthrop Shelmerdine. Quando lançado, Orlando fez imenso sucesso e permitiu a Virginia e Leonard comprarem o carro em que passeavam por Londres… Nenhuma surpresa, pois o livro é de um modernismo alegre, repleto de poesia e humor. Apaixone-se por Orlando. Na minha opinião, é inevitável que isto ocorra logo nas primeira páginas.
Há algumas semanas, li a lista da extinta revista Bravo sobre os 100 livros essenciais da literatura mundial. A edição vendeu muito, disse o dono da banca de revistas meu vizinho. No final da revista, há uma página de Referências Bibliográficas de razoável tamanho, mas o editor esclarece que a maior influência veio dos trabalhos de Harold Bloom.
Vamos à lista? Depois farei alguns comentários a ela.
A lista é a seguinte (talvez haja erros de digitação, talvez não):
1. Ilíada, Homero
2. Odisseia, Homero
3. Hamlet, William Shakespeare
4. Dom Quixote, Miguel de Cervantes
5. A Divina Comédia, Dante Alighieri
6. Em Busca do Tempo Perdido, Marcel Proust
7. Ulysses, James Joyce
8. Guerra e Paz, Leon Tolstói
9. Crime e Castigo, Dostoiévski
10. Ensaios, Michel de Montaigne
11. Édipo Rei, Sófocles
12. Otelo, William Shakespeare
13. Madame Bovary, Gustave Flaubert
14. Fausto, Goethe
15. O Processo, Franz Kafka
16. Doutor Fausto, Thomas Mann
17. As Flores do Mal, Charles Baldelaire
18. Som e a Fúria, William Faulkner
19. A Terra Desolada, T.S. Eliot
20. Teogonia, Hesíodo
21. As Metamorfoses, Ovídio
22. O Vermelho e o Negro, Stendhal
23. O Grande Gatsby, F. Scott Fitzgerald
24. Uma Estação No Inferno,Arthur Rimbaud
25. Os Miseráveis, Victor Hugo
26. O Estrangeiro, Albert Camus
27. Medéia, Eurípedes
28. A Eneida, Virgilio
29. Noite de Reis, William Shakespeare
30. Adeus às Armas, Ernest Hemingway
31. Coração das Trevas, Joseph Conrad
32. Admirável Mundo Novo, Aldous Huxley
33. Mrs. Dalloway, Virgínia Woolf
34. Moby Dick, Herman Melville
35. Histórias Extraordinárias, Edgar Allan Poe
36. A Comédia Humana, Balzac
37. Grandes Esperanças, Charles Dickens
38. O Homem sem Qualidades, Robert Musil
39. As Viagens de Gulliver, Jonathan Swift
40. Finnegans Wake, James Joyce
41. Os Lusíadas, Luís de Camões
42. Os Três Mosqueteiros, Alexandre Dumas
43. Retrato de uma Senhora, Henry James
44. Decameron, Boccaccio
45. Esperando Godot, Samuel Beckett
46. 1984, George Orwell
47. Galileu Galilei, Bertold Brecht
48. Os Cantos de Maldoror, Lautréamont
49. A Tarde de um Fauno, Mallarmé
50. Lolita, Vladimir Nabokov
51. Tartufo, Molière
52. As Três Irmãs, Anton Tchekov
53. O Livro das Mil e uma Noites
54. Don Juan, Tirso de Molina
55. Mensagem, Fernando Pessoa
56. Paraíso Perdido, John Milton
57. Robinson Crusoé, Daniel Defoe
58. Os Moedeiros Falsos, André Gide
59. Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis
60. Retrato de Dorian Gray, Oscar Wilde
61. Seis Personagens em Busca de um Autor, Luigi Pirandello
62. Alice no País das Maravilhas, Lewis Caroll
63. A Náusea, Jean-Paul Sartre
64. A Consciência de Zeno, Italo Svevo
65. A Longa Jornada Adentro, Eugene O’Neill
66. A Condição Humana, André Malraux
67. Os Cantos, Ezra Pound
68. Canções da Inocência/ Canções do Exílio, William Blake
69. Um Bonde Chamado Desejo, Teneessee Williams
70. Ficções, Jorge Luis Borges
71. O Rinoceronte, Eugène Ionesco
72. A Morte de Virgilio, Herman Broch
73. As Folhas da Relva, Walt Whitman
74. Deserto dos Tártaros, Dino Buzzati
75. Cem Anos de Solidão, Gabriel García Márquez
76. Viagem ao Fim da Noite, Louis-Ferdinand Céline
77. A Ilustre Casa de Ramires, Eça de Queirós
78. Jogo da Amarelinha, Julio Cortazar
79. As Vinhas da Ira, John Steinbeck
80. Memórias de Adriano, Marguerite Yourcenar
81. O Apanhador no Campo de Centeio, J.D. Salinger
82. Huckleberry Finn, Mark Twain
83. Contos de Hans Christian Andersen
84. O Leopardo, Tomaso di Lampedusa
85. Vida e Opiniões do Cavaleiro Tristram Shandy, Laurence Sterne
86. Passagem para a Índia, E.M. Forster
87. Orgulho e Preconceito, Jane Austen
88. Trópico de Câncer, Henry Miller
89. Pais e Filhos, Ivan Turgueniev
90. O Náufrago, Thomas Bernhard
91. A Epopéia de Gilgamesh
92. O Mahabharata
93. As Cidades Invisíveis, Italo Calvino
94. On the Road, Jack Kerouac
95. O Lobo da Estepe, Hermann Hesse
96. Complexo de Portnoy, Philip Roth
97. Reparação, Ian McEwan
98. Desonra, J.M. Coetzee
99. As Irmãs Makioka, Junichiro Tanizaki
100 Pedro Páramo, Juan Rulfo
A lista é ótima, mas há critérios bastante estranhos.
Se não me engano, só três semideuses têm mais de um livro na lista: Homero, Shakespeare e Joyce. OK, está justo.
No restante, é uma lista mais de autores do que de livros e muitas vezes são escolhidos os livros mais famosos do autor e dane-se a qualidade da obra. Se a revista faz um gol ao escolher Doutor Fausto como o melhor Thomas Mann, erra ao escolher Crime e Castigo dentro da obra de Dostoiévski – Os Irmãos Karamázovi e O Idiota são melhores; ao escolher Guerra e Paz de Tolstói – por que não Ana Karênina? -; na escolha de O Complexo de Portnoy, de Philip Roth; que tem cinco romances muito superiores, iniciando por O Avesso da Vida (Counterlife) e ainda ao eleger Retrato de Uma Senhora na obra luminosa de Henry James. Li por aí reclamações análogas sobre as escolhas de Brás Cubas e não de Dom Casmurro, de Cem Anos de Solidão ao invés de O Amor nos Tempos do Cólera e de As Cidades Invisíveis de Calvino, mas acho que é uma questão de gosto pessoal e não de mérito. Ah, e é absurda a presença do bom O Náufrago e não dos imensos e perfeitos Extinção, Árvores Abatidas e O Sobrinho de Wittgenstein na obra de Thomas Bernhard.
Saúdo a presença de grandes livros pouco citados como Tristram Shandy, obra-prima de Sterne muito querida deste que vos escreve, de Viagem ao Fim da Noite, de Céline, de A Consciência de Zeno, genial livro de Ítalo Svevo, de O Deserto dos Tártaros (Buzzati) e do incompreendido e brilhante Grandes Esperanças, de Charles Dickens, de longe seu melhor romance.
Porém é estranha a escolha de A Comédia Humana, de Balzac. Ora, a Comédia são 88 romances! Não vale! Estranho ainda mais a presença de autores menores como Kerouac e Malraux, além do romance que não é romance — ou do romance que só é romance em 100 de suas 1200 páginas: O Homem sem Qualidades, de Robert Musil.
Também acho que presença de McEwan e de Coetzee prescindem do julgamento do tempo, o que não é o caso de alguns ausentes, como Lazarillo de Tormes, de Chamisso com seu Peter Schlemihl, de George Eliot com Middlemarch, de Homo Faber de Max Frisch e de O Anão, de Pär Lagerkvist, só para citar os primeiros que me vêm à mente. E, se McEwan e Coetzee esttão presentes, por que não Roberto Bolaño?
(O Bender escreve um comentário reclamando a ausência de Grande Sertão, Veredas, de Guimarães Rosa. É claro que ele tem razão! Esqueci. Coisas da idade.)
Com satisfação pessoal, digo que este não-especialista não leu apenas Os Miseráveis, o livro de Blake e os de Lautréamond, Mallarmé, Ovídio e Hesíodo. Isto é, seis dos cem. Tá bom.
P.S.- Milton mentiroso! Não li Finnegans também!
Este post foi publicado em 13 de dezembro de 2007, mas quase nada mudou.
Um crítico escreveu algo assim: “Li Ao Farol da mesma forma como costumo comer chocolate, pretendendo fazê-lo aos poucos entre outros afazeres, só que logo me deu aquela vontade incontrolável de ler tudo sem parar”. Certamente isso não se deveu a uma trama envolvente, nem a casos românticos para os quais ele precisasse saber do desenlace. E realmente, os livros de Virginia Woolf quase deixam de lado a trama e se fixam nas minúcias humanas, mesmo que a seção central de Ao Farol fale de como uma casa se deteriora. O curioso é que sou um sujeito que pede alguma profundidade dos romances, mas a diluição de VW jamais me incomoda, pois há profundidade de observação — mesmo que seja de coisas secundárias –, assim como qualidade narrativa, clareza estrutural e estupenda criação de personagens.
O livro trata da família Ramsay, casal, oito filhos e agregados em férias. A personagem central é a Sra. Ramsay, uma bela mulher que usa seu charme e trato social para manter a harmonia entre todos. Mas ela parece ser sabotada pelo próprio marido, um homem “do contra” e amargo.
O livro é dividido em 3 capítulos. A janela funciona como uma apresentação dos personagens, temperada pela inteligente e sutil dinâmica de Virginia. Tudo se passa em um só dia na casa de veraneio da família, próxima a um farol que James Ramsay, o filho caçula, deseja muito visitar. Só que a previsão do tempo conspira contra os planos. James alimenta ódio pelo pai, por ele ser tão grosseiro em suas colocações sobre o passeio. O tempo passa, além de mostrar a degradação da casa, revela acontecimentos cruciais na família Ramsay. Já O farol é o momento em que realmente acontece o tão esperado passeio, porém de uma forma muito diferente.
Ao Farol poderia ser um livro denso escrito em insistentes “fluxos de consciência”, mas é leve ao acompanhar o vaivém dos pensamentos, dos medos e vacilações de seus personagens. Estes são mostrados em extrema proximidade no microscópio de Woolf e a compreensão das pessoas é o que vale neste extraordinário romance. Que personagem notável é Lily Briscoe! Que descrições maravilhosas temos do que lhe ocorre enquanto pinta! Não são pensamentos extraordinários ou filosóficos — na verdade, pelo contrário, ela e os outros personagens são intelectuais bastante convencionais, do tipo que se encontra em muitos livros. Pode ser dito que eles não oferecem nada novo, mas um mundo interior muito semelhante ao nosso, com pensamentos completos ou incompletos e livres-associações as mais absurdas.
Excelente tradução de Denise Bottmann para a L&PM.
Tolstói não levou o Nobel, nem Proust, Joyce e Greene. Jorge Luis Borges não ganhou o Nobel, nem Nabokov, Virginia Woolf e Drummond. Mas todo ano são abertos os arquivos do prêmio de 50 anos atrás e descobrem-se coisas.
Agora descobriu-se as razões, certamente esdrúxulas, que tiraram o prêmio de Borges em 1967. Estava decidido que o vencedor seria um latino-americano. Então Borges era franco-favorito, só que perdeu a láurea para o guatemalteco Miguel Ángel Asturias. Os motivos? Ora, o então presidente do comitê do Nobel, Anders Osterling, achava o escritor “demasiado exclusivo ou artificial em sua engenhosa miniatura”.
A sumidade também barrou outros autores importantes. Um ano antes, em 1966, havia eliminado Samuel Beckett. Achava-o “niilista e pessimista”, fora do que considerava “o espírito da Academia”. Beckett acabou virando o jogo e recebeu o prêmio em 1969. O mesmo não aconteceu com Borges, morto em 1986 sem o Nobel.
Um teto todo seu (A Room of One`s Own, 1929) é um dos mais surpreendentes livros da célebre ficcionista inglesa Virginia Woolf. A primeira surpresa é o fato de não ser ficção; a segunda é a absoluta ousadia no trato do assunto abordado: o feminismo. Mas há mais.
O livro nasceu a partir de duas palestras chamadas “As mulheres e a ficção”, proferidas por Virginia para a plateia essencialmente feminina da Sociedade das Artes, na Londres de outubro de 1928. O texto de Virginia tem a qualidade estupenda de seus livros da época. Mrs. Dalloway (1925), Passeio ao Farol (1927) e Orlando (1928) foram seus predecessores; As Ondas (1931) deu continuidade à série de obras-primas. Encrustado na sequência principal de romances de Virginia, o ensaio Um teto todo seu não decepciona de modo algum. O livro tem cerca de 140 páginas. Não pensem que ela o leu por inteiro em duas noites – algo como 70 páginas por dia – , na verdade o texto foi bastante ampliado para publicação logo após as palestras.
Intermezzo: é notável a sorte de Virginia Woolf no Brasil. Seus tradutores foram extraordinários: Orlando foi traduzido por Cecília Meireles; Mrs. Dalloway, por Mario Quintana; As Ondas e Entre os Atos, por Lya Luft em fase pré-Veja e pré-Yeda; Passeio ao Farol, por Luiza Lobo e Um teto todo seu, recebeu tratamento impecável de Vera Ribeiro. Muita, muita sorte. Fim do intermezzo.
Dotado da mesma prosa alegre e saltitante de Mrs. Dalloway e Orlando, Um teto todo seu trata do feminismo de forma levíssima, mesmo que afirme as coisas mais terríveis sobre a vida da mulher. Alegre, feliz e livre de todo rancor, como na foto abaixo, à esquerda, Virginia Woolf cria algumas imagens fortíssimas que ficaram célebres. A primeira é a da irmã de Shakespeare, Judith. Tão talentosa quanto o irmão, ela teria vivido subjugada por tarefas domésticas e todos os seus esforços para demonstrar seu talento teriam sido esmagados pela família. Então, desesperada, ela foge, apresenta-se num teatro de onde é sem mais nem menos enxotada, para depois prostituir-se e suicidar-se. A outra é da escritora fictícia Mary Carmichael. Ela não é muito boa, sua frase é dura e seu romance, que Virginia finge ler, é mais ou menos chato. Só que lá pelo meio há uma frase: “Chloe gosta de Olivia”. E então, finalmente, naquele livro bem ruinzinho, apareceu a Grande Mudança, pois às vezes mulheres gostam de mulheres, não?
Seu raciocínio, até desembocar na tese do Teto e das 500 libras anuais, é brilhante. Virginia Woolf parte das precursoras da literatura inglesa até chegar na grande explosão do século XIX, com o aparecimento de Jane Austen, das irmãs Brontë, Emily e Charlotte, além da grande George Eliot que, em verdade, chamava-se Mary Ann Evans. Suas obras-primas não nascem de gênios isolados, mas após anos e anos de labuta conjunta. A experiência apresentada por estas escritoras dá forma perfeita ao que veio antes, à tradição. Então, escreve Woolf, Jane Austen deveria ter depositado uma coroa de flores no túmulo de Fanny Burney e George Eliot deveria ter rendido homenagem à resoluta Eliza Carter, a bravíssima escritora que amarrava uma sineta na armação da cama de forma a não dormir muito e poder estudar grego. E todas elas deveriam derramar flores sobre o túmulo de Aphra Behn, que está enterrada – surpresa! – na Abadia de Westminster, pois foi ela quem começou a assegurar a todas o direito de dizerem o que pensam. Trata-se de parafrasear o velho e bom Newton, físico presente em quase todas as opiniões literárias da tradição inglesa que costuma sempre dizer que “Se vemos mais longe, é por estarmos em pé sobre ombros de gigantes”.
Woolf faz questão de deixar claro que, casualmente ou não, as escritoras que foram melhor sucedidas são aquelas que guardaram para si seu justo rancor. Se Austen ressentia-se contra sua sociedade e família – e ressentia-se, basta lê-la com profundidade – , tratou de passar ao largo das longas tardes em que escrevia seus livros na sala sob as constantes interrupções das “coisas que são tarefas de mulher”. (Pois as mulheres do século XIX nasciam e morriam trabalhando para os homens). De George Eliot nunca se ouviu nada, pois ela se fingia de homem… Porém, em Jane Eyre, Charlotte Brontë teve seu pior momento ao escrever claramente um trecho rancoroso, o que não fez Emily, de coração de poeta e maior talento. Ah, as questões seculares! García Márquez e Saramago e todos os que podem aspirar à imortalidade preteriram-nas em suas grandes obras em favor das parábolas.
O livro, escrito nove anos após as mulheres obterem direito de voto na Inglaterra, é uma ampla análise da situação da mulher e de sua relação com o dinheiro. Virginia Woolf insiste em que as mulheres precisam de duas coisas para criarem uma nova literatura: um teto todo seu, ou seja, um quarto que pudesse ser trancado à chave para escrever, e uma renda de aproximadamente 500 libras anuais. Para tanto, a mulher deveria trabalhar (Virginia fazia parte da Liga do Trabalho Feminino) a fim de obter alguma independência.
Sim, as teses estão bem amarradas – por exemplo, Virginia demonstra que todos os bons poetas de sua época são abastados… – , mas o milagre do livro é o que subjaz às teses. É o tremendo talento da autora para fazer nascer seus argumentos e frases num texto vertiginoso, agradável e sem lugar para gritos ou deselegância. É um feminismo dócil? De modo nenhum. É um feminismo culto, fino, esclarecido, isso sim. E duríssimo e de resultados.
Lindo texto de Virginia Woolf que roubo desavergonhadamente do perfil do Facebook de Gustavo Melo Czekster. Confesso que fiquei meio confuso com as aspas, mas é óbvio que isto se deve à minha incurável estupidez:
Ontem reli este ensaio magnífico: o momento em que Virginia Woolf fala da sua admiração irrestrita por Montaigne, e consegue ser quase superior ao filósofo francês. Para mim, o centro do texto ainda está em uma frase: “enquanto houver tinta e papel, “sem cessar e sem fadiga” (III, 9), Montaigne escreverá.” Mas o resto é igualmente bonito:
“Há pessoas que, quando viajam, se fecham em si mesmas, “protegendo-se do contágio de um ambiente desconhecido” (III, 9), em silêncio e desconfiança. Quando comem precisam ter o mesmo tipo de comida que têm em casa. Qualquer visão e costume é ruim a não ser que se assemelhe aos de seu próprio vilarejo. Viajam apenas para voltar. É a maneira mais errada de abordagem. Devemos começar sem nenhuma ideia fixa sobre onde vamos passar a noite, ou quando pretendemos voltar; o caminho é tudo. Mais necessário que tudo, mas sorte das mais raras, devemos tentar encontrar, antes de partir, algum homem de nossa própria classe que vá conosco e a quem podemos dizer a primeira coisa que nos vem à cabeça. Pois o prazer não tem nenhuma graça a menos que o partilhemos. Quanto aos riscos – que possamos apanhar um resfriado ou ter uma dor de cabeça – sempre vale a pena arriscar uma doença passageira em nome do prazer. “O prazer é uma das principais espécies de proveito” (III, 13). Além disso, se fizermos o que gostamos, sempre faremos o que é bom para nós. Médicos e sábios podem ter as suas objeções, mas deixemos os médicos e os sábios com sua própria e triste filosofia. Quanto a nós, que somos homens e mulheres comuns, vamos dar graças à Natureza por sua generosidade, usando cada um dos sentidos que ela nos deu; variar o nosso estado tanto quanto possível; voltar ora este lado, ora aquele, para o calor, e saborear ao máximo, antes que o sol se ponha, os beijos da juventude e os ecos de uma bela voz cantando Catulo. Todas as estações são desfrutáveis, e dias úmidos e dias lindos, vinho tinto e vinho branco, companhia e estar só. Mesmo o sono, essa deplorável redução do prazer da vida, pode ser pleno de sonhos; e as ações mais comuns – uma caminhada, uma conversa, ficar só no seu próprio pomar – podem ser intensificadas e iluminadas pela associação da mente. A beleza está por toda parte, e a beleza está a apenas dois dedos de distância da bondade. Assim, em nome da saúde e da sanidade, não descansemos no fim da jornada. Que a morte nos surpreenda plantando nossas couves, ou no lombo de um cavalo, ou nos permita escapulir para alguma casinha no interior onde estranhos possam fechar os nossos olhos, pois um criado soluçando ou o toque de uma mão nos deixariam arrasados. Melhor ainda, que a morte nos encontre em nossas ocupações normais, entre moças e bons camaradas que não façam nenhuma declaração ou lamento; que ela nos encontre “entre os jogos, os festins, as brincadeiras comuns e populares, e a música, e versos de amor” (III, 9). Mas chega de morte; é a vida que importa.”
Erico Veríssimo dizia que Lygia Fagundes Telles não devia ter tanto talento para a literatura. Era bonita demais para isso. Ela ria, envaidecida.
Convencionou-se dizer que Clarice Lispector era uma bela mulher. Belo telefone, não?
Belíssima era Cecília Meirelles, dona daquele sorriso que tudo parece compreender. Foi tradutora de …
… Virginia Woolf *, que tinha perfil de camafeu, extraordinários livros e sofria enormemente com sua loucura.
Suicida como Virginia, tivemos a bonita brasileira Ana Cristina César. Apesar de sua boa poesia, ela ficaria aos pés de…
… Anna Akhmátova *, cujo grande sofrimento era de causas exteriores. Que poetisa maravilhosa ela era! Dá vontade de aprender russo como quis uma vez …
… Simone de Beauvoir, aqui em linda e arejada foto, demonstrando que tinha a frente, o conteúdo e o verso interessantes.
Tão de esquerda quanto Simone foi a ex-stalinista Doris Lessing, que se tornou a mais irritante das direitistas.
Sempre foi de direita a talentosa belga Marguerite Yourcenar, apesar do costume de fantasiar-se como agente da KGB.
A outra Marguerite, a Duras, gostava de cinema, de amantes orientais e sua obra permanecerá mais do que a das três anteriores.
Conversas mais íntimas tinha Anaïs Nin, que escrevia diários e corria atrás de um homem sensível.
Nome de francesa tinha a severamente inglesa Daphne du Maurier, autora de livros que assustaram minha adolescência, como Rebecca.
Também gostava de assustar a imensa, perfeita e maravilhosa dinamarquesa Karen Blixen *, que publicou suas obras-primas com o nome masculino de Isak Dinesen e que …
… traduzia seus livros para o inglês. Quando envelheceu, ficou “meio anoréxica”, mas mantinha as boas companhias — minha nossa!
Conversando com Karen, à direita, está a caçadora solitária Carson McCullers, …
… tão menos famosa do que Jane Austen *, cujos seis romances são cantados em prosa e verso pelos críticos e é adorada pelo cinema.
Em comum com Karen na utilização de nome um nome masculino, com Austen no espetacular talento, temos a insuperável George Eliot * (Mary Ann Evans).
A também inglesa Muriel Spark faz livros menos intelectuais quanto os de Eliot, mas é sempre fascinante e grudenta. Escreveu pelo menos duas obras-primas modernas.
Tem nome comprido e estranho a grande e bela poetisa portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen, descoberta por mim logo após sua morte.
Com algumas exceções, são todas mulheres bonitas — às outras sobraria a beleza interior… — e as que receberam asterisco logo após seu nome são as minhas Top 5 da literatura feminina mundial.
Em 28 de Março de 1941, aos 57 anos, a escritora Virgínia Woolf vestiu um casaco, encheu os bolsos de pedras e afogou-se deliberadamente no Rio Ouse (Sussex, Reino Unido). Antes do ato suicida final, após um colapso nervoso, a escritora deixou uma breve carta para seu marido Leonard, que era o melhor conselheiro e editor de Virgínia.
Eis a sentida carta de despedida que Virginia Woolf deixou ao marido (manuscrito e transcrição):
Meu Muito Querido:
Tenho a certeza de que estou novamente enlouquecendo: sinto que não posso suportar outro destes terríveis períodos. E desta vez não me restabelecerei. Estou a começar a ouvir vozes e não consigo concentrar-me. Por isso vou fazer o que me parece ser o melhor. Deste-me a maior felicidade possível. Foste em todos os sentidos tudo o que qualquer pessoa podia ser. Não creio que duas pessoas pudessem ter sido mais felizes até surgir esta terrível doença. Não consigo lutar mais contra ela, sei que estou destruindo a tua vida, que sem mim poderias trabalhar. E trabalharás, eu sei. Como vês, nem isto consigo escrever como deve ser. Não consigo ler. O que quero dizer é que te devo toda a felicidade da minha vida. Foste inteiramente paciente comigo e incrivelmente bom. Quero dizer isso — e toda a gente o sabe. Se alguém me pudesse ter salvo, esse alguém terias sido tu. Perdi tudo, menos a certeza da tua bondade. Não posso continuar a estragar a tua vida. Não creio que duas pessoas pudessem ter sido mais felizes do que nós fomos.
Houve tempo em que elas eram poucas, houve tempo em que Erico Verissimo dizia com certa ironia à Lygia Fagundes Telles que era bela demais para ser escritora. Este panorama, porém, alterou-se completamente. Um tanto irresponsavelmente, pinçando nomes aqui e ali, temos uma nominata nada desprezível de escritoras mulheres no Brasil. Clarice Lispector, Cecilia Meireles, Maria Alice Barroso, Rachel de Queiroz, Lygia Fagundes Teles, Nélida Piñon, Sonia Coutinho, Ana Cristina César, Hilda Hilst, Adélia Prado, Zelia Gattai, Ana Miranda, Marina Colasanti, Lygia Bojunga Nunes, Maria Adelaide Amaral, Flora Sussekind, Leyla Perrone-Moisés, Cora Coralina, Walnice Nogueira Galvão, Lucia Abreu, Regina Zilbermann, Marilena Chauí, Zulmira Ribeiro Tavares, Patricia Melo, Jane Tutikian, Fernanda Young, Claudia Tajes, Carol Bensimon, Mariana Ianelli.
O fato é que há muito tempo o termo “Literatura de Mulherzinha” tornou-se anacrônico. Apesar da dificuldade para caracterizar os elementos que fazem a literatura feminina ser diversa, os leitores reconhecem sua poética, parecendo pressentir seus elementos próprios: de modo geral, acertaremos dizendo que ela é habitualmente mais sensorial, poética e livre. Não se pode falar em gênero, pois os estilos e as temáticas variam muito. “Não se pode dizer que a literatura feminina seja sempre feita por mulheres, assim como boas narrativas gays podem ser escritas por heterossexuais e boas narrativas carcerárias podem ser escritas por gente que nunca esteve presa. Ao menos não há nada, nenhuma barreira física ou moral, que impeça isso.”, escreveu Nelson de Oliveira. “Da mesma maneira que a literatura policial não é a literatura escrita apenas pelos policiais, a literatura feminina não precisa necessariamente ser a literatura escrita apenas pelas mulheres. É certo que há policiais escrevendo literatura policial, mas também há professores, psicanalistas, filósofos… O mesmo acontece com a literatura feminina da maneira como eu a vejo: há homens e mulheres trabalhando dentro dos limites desse gênero”, completa.
Mas, se hoje Lídia Jorge é acompanhada de muitas outras, tivemos precursoras seminais. E a maior delas foi Virginia Woolf, que escreveu um curioso — e muito feminino — livro fundador.
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Um teto todo seu (A Room of One`s Own, 1929) é um dos mais surpreendentes livros da célebre ficcionista inglesa Virginia Woolf. A primeira surpresa é o fato de não ser ficção; a segunda é a absoluta ousadia no trato do assunto abordado: o feminismo.
O livro nasceu a partir de duas palestras chamadas “As mulheres e a ficção”, proferidas por Virginia para uma plateia essencialmente feminina da Sociedade das Artes, na Londres de outubro de 1928. O texto de Virginia tem a qualidade estupenda de seus livros da época. Mrs. Dalloway (1925), Passeio ao Farol (1927) e Orlando (1928) foram seus predecessores; As Ondas (1931) deu continuidade à série de grande livros. Encrustado na sequência mais importante de romances de Virginia, o ensaio Um teto todo seu não decepciona de modo algum. O livro tem cerca de 140 páginas. Não pensem que ela o leu por inteiro nas duas palestras – algo como 70 páginas por dia; na verdade o texto foi bastante ampliado para publicação logo após as palestras.
A chamada Grande Peste de Londres (1665-1666) foi uma epidemia que vitimou entre 75.000 e 100.000 pessoas, ou seja, um quinto da população da cidade. Um Diário do Ano da Peste (A Journal of the Plague Year) é um livro muito enganador escrito por Daniel Defoe (1660-1731), escritor e jornalista que completa mais um aniversário de morte neste domingo, 21 de abril. Até Gabriel García Márquez, que não é exatamente um tolo, quando se encantou pela obra, caiu no conto de que era uma reportagem da lavra do grande jornalista que o inglês também era. Sua perspectiva alterou-se muito ao ser informado de que Defoe tinha entre quatro e cinco anos de idade quando ocorreu a peste bubônica londrina. O autor descreve a peste como um repórter gonzo que, espicaçado pela curiosidade, vive de rua em rua cada drama, apesar do receio de contrair a doença. Como Defoe conversa com famílias que contam seus dramas em detalhes, é óbvio que se trata de um relato parcialmente ficcional. Defoe também era um ficcionista de mão cheia e estilo bastante original: num ambiente em que os escritores eram cheios de floreios e de citações à mitologia, ele era o escritor simples e direto que criara o livro mais mais vendido da Inglaterra três anos antes: Robinson Crusoe.
No livro, todo o esforço é para que o contato com os doentes seja minimizado a fim de que fosse evitada a transmissão da peste. Casas eram fechadas com doentes dentro. Também eram tomados cuidados extremos com a água. A angústia do leitor moderno aumenta muito ao saber que tudo aquilo era em vão. Os contemporâneos do escritor ignoravam como a peste bubônica era disseminada: a doença contaminava os ratos, as pulgas sugavam sangue contendo bacilos e as mesmas atacavam homens, inoculando-os. A contaminação dava-se de rato para homem através da pulga. O incrível é que Defoe faz referências aos grande número de ratos, mas não chega a apontá-los como um potencial problema. Os sintomas eram dor de cabeça, frio, dores nas costas, pulso e respiração aceleradas, febre alta e grande inquietação. Em 70% dos casos, a morte acontecia entre três e quatro dias.
Daniel Foe, de pseudônimo um pouco mais nobre – Daniel Defoe –, foi o autor, dentre outros, de três livros extraordinários: além de Um Diário do Ano da Peste e do conhecidíssimo Robinson Crusoe, Defoe foi o autor do igualmente clássico Moll Flanders, outro exemplo de romance realista “com interesses práticos e imediatos, não clássicos e remotos”, como escreveu Anthony Burgess (autor de Laranja Mecânia). Com efeito, sua formação foi o jornalismo. Pode-se dizer que a primeira versão de Defoe foi a do jornalista combativo e posicionado. A segunda foi ainda jornalística: ele percorreu seu país em busca de relatos rápidos, curiosos e despretensiosos. Será que eram todos ficção? A pergunta se justifica. Afinal, às vezes, Defoe trazia entrevistas surpreendentes com criminosos à beira do patíbulo. Ninguém testemunhou nenhuma delas, mas tais “confissões” ainda quentes, presumivelmente saídas da boca do inferno, faziam enorme sucesso.
Aos 43 anos de idade, na época da Rainha Ana, Defoe — um dissenter, nome dado aos protestantes ingleses não anglicanos — passou a atacá-la em razão de ela ser anglicana. O escritor acabou preso e condenado à exposição no pelourinho. Voltou a liberdade mas, dez anos depois, voltou ao cárcere em razão de outros panfletos contrários ao governo. Cansado das lutas, quando já tinha mais de 60 anos, veio a terceira versão e ele passou a dedicar-se exclusivamente ao romance. Mas mesmo o romancista não abria mão do jornalista. O estilo de Defoe é direto e abre mão de floreios e das demonstrações de erudição e outros que tais, tão apreciados por seus colegas. Ele sempre utilizou o verídico e o crível como apoio.
Em 1719, ele publicou Robinson Crusoe. Naquela primavera, esgotaram-se quatro edições do livro, revelando-se um excelente negócio para Defoe, que o considerava uma mercadoria, uma ficção popular, algo que dava mais lucro que o jornalismo. A história é conhecida. O personagem-título é um náufrago que passou 28 anos em uma remota ilha tropical, encontrando índios – alguns deles canibais – e todo o gênero de aventuras pelo caminho. De grande sucesso, o livro recebeu considerações inclusive de Karl Marx, que escreveu que Crusoe não representava aquilo que diziam dele – uns diziam que ele seria uma representação do homem universal, outros da superioridade do homem branco – e sim o homem capitalista em seu momento heroico. A leitura de Marx, assim como as outras citadas podem ser facilmente reconhecidas no livro de Defoe.
Mas seus grandes livros são Moll Flanders e Um Diário do Ano da Peste. Na época de Defoe, os romances tinham títulos enormes. O de Moll Flandres diz quase tudo a respeito:
Era a mais bela capa para o Sul21. Na época, o lay-out de nossa página tinha uma foto grande e a capa do jornal ficara assim por alguns minutos:
Só que, justo naquele domingo, houve a tragédia na boate Kiss e tivemos que mudar tudo. Abaixo, o extraordinário artigo de Nikelen Witter sobre um dos melhores livros de todos os tempos.
No final do século XVIII, uma jovem inglesa escreveu um romance. Não era algo incomum em sua época, nem era seu primeiro texto de ficção. Como era de costume, ela fez leituras para sua família que, depois de alguns debates, parece tê-lo aprovado. Sua intenção, inicialmente, era a de fazer um romance epistolar, algo muito em voga no período, mas as cartas minguaram dentro do texto, mesclando-se com a narrativa. O pai da jovem, acreditando no talento da filha mais nova, levou o manuscrito a um editor, que recusou a história. Este poderia ter sido o fim de First Impressions, título do romance recusado, mas, como qualquer escritor sabe: a primeira versão de um livro nunca é sua versão final. A jovem aspirante voltou a trabalhar seu texto, ao mesmo tempo em que escrevia outros. Em 1811, ela publicou seu primeiro romance e, aproveitando o sucesso deste, no dia 28 de janeiro de 1813, há 200 anos atrás, finalmente o texto anteriormente recusado chegou ao público. Tinha um roteiro melhor trabalhado, um texto mais perspicaz e um novo título: Pride and prejudice ou, em nosso idioma, Orgulho e preconceito. Nascia, assim, o romance mais popular de Jane Austen – uma das mais brilhantes escritoras inglesas – e, com ele, uma notoriedade que já perdura por duzentos anos.
A autora
Quem nunca leu nada de Jane Austen pode acabar tendo uma ideia errada de seus leitores-amantes, vendo-os como cegos seguidores de um certo tipo de culto, que elegeu a autora inglesa como musa e deusa. A quantidade (e o tipo) de menções na mídia à escritora, por outro lado, pode fazer com alguns venham a imaginá-la como uma espécie de Norah Efron (**) da virada do século XVIII para o XIX. De fato, já conheci leitores que interpretaram seus livros superficialmente, como quem lê um roteiro hollywoodiano, acreditando que seus romances não passam um conjunto bem amarrado dos clichês do tipo moça encontra rapaz e vice-versa. E, desde sempre, houve aqueles que a acreditaram como autora de livros tipicamente femininos, contos conservadores para “mulherzinhas” sonhadoras. Contudo, nada poderia ser mais enganoso. Primeiro, porque nenhum fã de Austen deixará de lhe fazer críticas na mesma medida em que reconhece sua genialidade. Segundo, porque se as comédias românticas beberam em Austen, fique-se certo que ela nunca bebeu delas. Por fim, dispensar um grande escritor com base num conceito duvidoso de literatura de meninos e meninas, diz mais sobre o leitor do que sobre o livro em questão, então, melhor deixar pra lá.
O fato é que Jane Austen continua, após dois séculos de existência de sua obra, um fenômeno tanto de crítica, quanto de público. O número impressionante de adaptações pelas quais seus livros são lembrados e recriados, porém, não é o suficiente para que se compreenda como inglesa de vida obscura tem conseguido manter tanta vitalidade. Arrisco a dizer que, para entender o fenômeno Jane Austen é preciso lê-la e, se me permitem, fazer isso mais de uma vez. O gênio de Austen é o de fazer muito com o mínimo. E tal talento exige um leitor capaz de divertir-se como quem observa pessoas pelos buracos das fechaduras, entendendo-as mais pelo que fazem e dizem, do que por longas apresentações retóricas sobre quem realmente são. Os livros da Jane Austen são como pinturas delicadas, dadas como um presente aos observadores atentos. Sem “efeitos bombásticos” (usando as palavras de Sir Walter Scott, seu grande admirador), Austen dominava como ninguém a arte de representar o cotidiano em suas grandezas e misérias, em sua beleza e mediocridade. O resultado é um espelho atemporal das relações humanas que ultrapassam em muito as relações amorosas entre homens e mulheres. Em Austen, o minúsculo da existência aparece como um caminho que, em qualquer época ou lugar, pode refletir o que somos e onde estamos. Sobretudo, o fato de que, na grande maioria das vezes, não conseguimos estar onde gostaríamos, apesar de nossas melhores intenções.
Austen escrevia sobre pessoas e sobre gerações. Falava dos mais velhos acomodados a suas manias, controles, posições e fracassos. E escolhia como protagonistas jovens que precisavam abrir caminho ante tudo isso. Destes jovens, ela se ocupou mais das mulheres, criaturas sem qualquer poder ou destinação que não o casamento; muitas vezes, prisioneiras da ignorância, da vida sem perspectiva ou ilusões, assombradas pela decrepitude física (decretada antes dos 30 anos) e pela ruína econômica. Jane Austen colocava o amor como uma questão importante, mas o via por meio de um caleidoscópio, pois ninguém ama ou é amado solitariamente. O difícil relacionamento amoroso com a família na fase adulta é, para a autora, um tema tão forte quanto à busca de um amor companheiro para construir um novo núcleo familiar.
Porém, ledo engano dos que, sem a terem lido, imaginam-na como uma autora sentimental. Se bem que Mark Twain, que detestava seus livros – especialmente Orgulho e Preconceito –, talvez acreditasse nisso. Já Charlotte Brönte, autora de Jane Eyre, a acusava de ser fria, de não ter fogo ou paixão e classificava seus romances como insípidos. Minha leitura de Jane Austen a percebe como uma racionalista, até mesmo um tanto radical em seus termos. Isso é claro em Razão e sensibilidade e não menos em Orgulho e Preconceito. Os muito românticos podem ficar chocados, mas Jane Austen parece defender a ideia de que o amor é, antes de tudo, uma mistura de desejo, afeto e discernimento. A receita para o desastre está na falta de qualquer um destes. Claro que não se há de ler nenhuma declaração de amor em seus livros como a que Edward Rochester faz a Jane Eyre, porém, para Austen, o amor, mais que por palavras, é demonstrado por ações que nada exigem em troca. Numa sociedade tão apegada ao jogo de favores e cortesias, nada poderia ser maior que o desinteresse na retribuição, que a paz e felicidade do outro como único reconhecimento.
Vida e morte
A biografia de Jane Austen é bem conhecida, quando não, esmiuçada para explicar a escritora e a impressionante longevidade e popularidade de sua obra. Houve críticos que, inclusive, se utilizaram de sua trajetória para opor-se a seus escritos. Ora, o que, afinal, uma solteirona provinciana poderia saber de amor, de casamentos e, especialmente, das universalidades do gênero humano?
Jane nasceu em 16 de dezembro de 1775, em Steventon, um vilarejo ainda hoje de aspectos rurais, ao norte do condado de Hampshire, no sul da Inglaterra. Originária da gentry, pequena nobreza rural, ela era oriunda de uma numerosa família, sendo a sétima filha do pastor George Austen e de sua esposa Cassandra, o mesmo nome de sua única irmã e confidente. O pai era também reitor e tutor de alunos, os quais recebia e educava em sua casa.
É difícil saber se por atenção às novas exigências da época quanto ao ensino das moças – nos últimos 50 anos do século XVIII, sob influência da burguesia ascendente, se passou a valorizar a educação feminina no mercado de casamentos – ou se por convicção professoral, o fato é que os Austen preocuparam-se em fornecer às duas filhas instrução de alto nível. Cassandra e Jane moraram com uma tutora em Southampton e, mais tarde, no internato de Reading. Sabe-se, porém, que o próprio pai foi um dos grandes educadores dos próprios filhos. Ele mantinha em sua casa uma ampla biblioteca e se orgulhava da família ser ávida na leitura de romances, além de outros tipos de literatura.
É interessante notar que se as bibliotecas particulares já não eram nenhuma novidade por esta época, o estímulo à leitura, em especial de romances e pelas mulheres, estava ainda sob forte ataque. São bastante conhecidos os textos do período que criticam a chamada “fome por leitura”, a qual, no entanto, espalhava-se pelos alfabetizados num volume cada vez maior. Tais textos eram opositores à leitura feita “por qualquer um”, e acreditavam que nada poderia ser mais pernicioso para a vida de uma moça do que a leitura de romances. Os detratores do gênero acusavam-no de estar repleto de fantasias e aventuras absurdas, que só fariam adicionar à cabeça “fraca” das jovens desejos que nunca poderiam ser satisfeitos, mergulhando-as na melancolia. Pior, poderia fazê-las falhar com seus deveres de boas filhas, irmãs e esposas, tornando-as ávidas de sensações moralmente recrimináveis e passíveis de se lançarem nas mãos dos aproveitadores e inescrupulosos que rondavam as famílias. Em prol da segurança das jovens e das linhagens, devolveu-se grandemente uma literatura moralista, baseada em textos bíblicos, que tinha função de orientar as moças em direção à caridade e a conformação com a vida limitada, que todas tinham pela frente.
Alguns destes livros devem ter passado pela biblioteca do reverendo Austen e Jane os conhecia bem. Pode-se acreditar nisso porque determinadas ideias destes textos estão presentes em seus escritos. Afinal, Jane não se furtava em criticar romances com perspectivas irrealistas da vida ou das relações amorosas. Northanger Abbey, sua obra de juventude publicada postumamente, é justamente sobre as tolices das jovens que se deixam levar pelo imaginário dos romances. Por outro lado, Austen não era nenhuma entusiasta da longa e aplicada leitura dos moralistas. Em Orgulho e preconceito, este detalhe é inserido como parte da personalidade patética de pelo menos dois personagens: o infame Mr. Collins e Mary Bennet, a menos encantadora das cinco irmãs.
Das leituras à escrita, Jane revelou precocemente o talento e o desejo de compor seus próprios textos. Pequenos esquetes representados pela família na reitoria, paródias da literatura da época em que ela exercitava seu humor e capacidade crítica, presentes igualmente nas longas cartas escritas para a irmã Cassandra, nos breves períodos em que ficavam separadas. Os biógrafos apontam que entre 1795 a 1799, Austen também teria desenvolvido o cerne de alguns de seus principais romances, os quais foram, depois, longamente retrabalhados. No início dos anos 1800, fala-se da existência de alguns pequenos interesses de cunho amoroso, porém, nenhum deles seguiu adiante. (Em 2007, esses quase enlaces de Jane Austen, foram costurados num único – Thomas Lefroy – pelo roteiro do filme Becoming Jane, que se utilizou de Orgulho e Preconceito para construir um argumento romântico, numa livre interpretação da vida da escritora).
No final de novembro, a Penguin-Companhia das Letras publicará uma nova tradução de Dom Quixote. Os dois volumes — o primeiro publicado originalmente em 1605 e o segundo em 1615 — virão dentro de uma caixa da coleção Penguin Classics. Na última terça-feira, o Sul21 entrevistou o tradutor Ernani Ssó. O ambiente foi bastante estimulante à conversa: o Bar Tuim. Foram duas horas e quinze minutos de literatura, chopes e bolinhos de bacalhau que procuramos condensar no texto a seguir, deixando de lado a parte gastronômica, mas não o chope, presente na conversa cada vez mais franca e informativa. Mas antes apresentemos o tradutor do Quixote.
Ernani Ssó é um homem que veio do frio: nasceu em Bom Jesus, RS, numa tarde de neve. Ainda hoje, ele duvida que o Brasil seja um país tropical. Começou a cursar Jornalismo em 1973, em Porto Alegre, porque queria ser escritor. No ano seguinte, desistiu pelo mesmo motivo. Daí por diante se dedicou à literatura. Tem livros para adultos, muitas traduções, mas gosta mais de seus livros para crianças, porque são mais difíceis de escrever.
Eventualmente escreve resenhas e crônicas de humor para a imprensa. Mantém uma coluna semanal na revista eletrônica Coletiva.net e no Sul21, onde comenta literatura e política. Trabalha também, como já dissemos, como tradutor de espanhol. São mais de cinquenta livros traduzidos. Dentre eles, um que ama especialmente: Dom Quixote de la Mancha (ou El Engenioso Hidalgo Don Quijote de la Mancha), de Miguel de Cervantes.
Sul21 — Como surgiu a ideia de traduzir o Dom Quixote?
Ernani Ssó — Eu tenho uma história antiga com Cervantes. Antes de fazer vestibular, quando eu tinha 17 anos, havia uma livraria no centro de Porto Alegre chamada Duca. Isso em 1972. Eu sou de 53. Um dia, encontrei lá uma edição de bolso do Quixote, de capa dura e papel bem fininho, com letrinha microscópica. Eu não sabia nada de espanhol, mas resolvi encarar, porque tinha ouvido dizer que o Quixote era um idealista, um cara que tentava viver sonhos impossíveis. Esse cara era eu, não? Com o livro debaixo do braço, fui comprar um dicionário de bolso e um manual de espanhol. Estudei por umas duas semanas e fui ler o Cervantes. Empaquei no primeiro parágrafo, meio apavorado. Não entendi praticamente nada. Voltei pro manual, comecei a ler outras coisas, descobri Borges, Cortázar e os demais latinos. De tanto em tanto, voltava ao cavaleiro. Então, lá por 1974-75, saiu o Quixote na tradução portuguesa dos viscondes de Castilho e Azevedo. O Ivan Lessa disse no Pasquim: “Se você vai ler só mais um romance na vida, leia esse”. Obedeci na hora, comprei a tradução, mas me decepcionei: achei tudo muito chato. Pensei que Cervantes não podia ser aquilo. Depois, li as traduções brasileiras, mas não consegui me acertar inteiramente com nenhuma delas. Talvez seja birra minha, mas sentia que o livro perdia muito de sua vida e humor. Daí minha vontade de tentar recuperá-lo até onde fosse possível.
Sul21 — Na tradução, tu usas que tipo de linguagem?
Ernani Ssó – O espanhol de Cervantes tem mais de quatrocentos anos. Nem os próprios espanhóis entendem direito, tanto que as edições atuais vêm com dezenas e dezenas de notas. Se eu traduzo pra um português também de quatrocentos anos, estamos fritos. Só os especialistas poderiam ler. Mas esses não precisam de tradução. Se você manja de português arcaico, não terá grandes dificuldades com o espanhol daquela época. Ao mesmo tempo você não pode modernizar a ferro e fogo. Sabe, botar o Sancho falando como um personagem do Nelson Rodrigues, por exemplo. O que fiz foi preservar um ar antigo. Em vez de usar “alapar”, por exemplo, usei esconder, palavra na verdade mais antiga mas perfeitamente legível hoje. Eu tenho mania de legibilidade. Mas é claro que pra ler o Quixote o leitor tem de ter alguma cancha. Vai quebrar a cara se foi alfabetizado o mês passado.
Sul21 — O Sancho Pança é um personagem especialmente difícil de traduzir, imagino, porque ele fala através de adágios populares.
Ernani Ssó — Cara, as horas que eu gastei pesquisando! Alguns ditados não fazem sentido em português, outros perdem as rimas, perdem o ritmo, perdem a graça. Você sabe, os ditados são frases muito medidas, telegráficas. São dribles, não? Muitas vezes encontrei correspondentes em português. Mas às vezes tive até de inventar ou refazer. Sem internet eu não teria conseguido, provavelmente.
Sul21 — Tu sempre tiveste uma relação importante com o livro, mas como surgiu a encomenda da tradução?
Ernani Ssó — Sim, já era um caso. Eu pegava o original pra ler e, ao invés de curtir a história, ficava pensando “como se diz isso em português?”. Isso me acontece com outros livros, mas não o tempo todo. Deformação profissional é fogo. Mas antes de traduzir qualquer livro eu já fazia isso com Cervantes. Nos anos 90, me encorajei e comecei a traduzir o Quixote. Fiz umas duzentas páginas que ficaram no fundo da gaveta, porque nenhuma editora se interessou.
Sul21 – Quanto tempo levaste pra traduzir os dois volumes?
Ernani Ssó – Uns dois anos. Nesse meio tempo se comemorou o quarto centenário do Quixote, saiu a tradução do Sérgio Molina pra 34, a do Carlos Nougué pra Record, dizem que o Eugênio Amado reviu a que tinha feito pra Itatiaia. Aí sim é que ninguém mais me deu bola. Até que por agosto do ano retrasado, eu liguei para a Companhia das Letras e eles toparam, pra sair nessa coleção dos clássicos da Penguin-Companhia.
Sul21 — Vamos falar do romance em si. É um romance que Cervantes escreve contra alguma coisa. A motivação dele foi a raiva? É o fato de não gostar dos romances de cavalaria? Ou pelo menos fingir não gostar?
Ernani Ssó — Eu acho que ele se sentiu traído pelos romances de cavalaria. Esses romances são fantasias tão desatadas que é impossível a gente acreditar. Um cavaleiro contra um milhão de soldados, pode? Mais alguns gigantes de quebra. Não é mais humano. Se não tem nada humano em que tu possas te reconhecer, não há como se emocionar, curtir. É puro vazio. É como num filme americano: quem consegue acreditar numa cena em que aparece um cara agarrado só pelas unhas no precipício e um bandido pisando nos dedos dele? Você sente o perigo? Acredita que o mocinho vai morrer? Só um imbecil se deixa levar por isso. Cervantes gostava de aventura, mas conhecia a realidade bem demais, esteve na guerra, foi preso, vivia na pobreza.
Sul21 — O Quixote enxerga um castelo em qualquer estalagem, uma linda donzela em qualquer prostituta. Vai lá, quebra a cara. E segue.
Ernani Ssó – Quando a força bruta da realidade pega o coitado, ele tem uma saída ótima: isso não é a realidade, são os magos que encenaram tudo. Essa reação é muito humana. A gente vê essa saída todo dia, em políticos, em religiosos, em casais apaixonados.
Sul21 — E Cervantes não desiste do humor.
Ernani Ssó – Não. Quando a coisa periga, ou pra solenidade, ou pro sentimentalismo, pode esperar: lá vem bala. Acho que quando o Cervantes começou a escrever, ele não tinha noção do que viria a ser o livro. Essa edição da Penguin-Companhia tem uma introdução do John Rutherford. Ele é o tradutor da versão inglesa da Penguin. Ele diz que o Cervantes sentou para escrever um romance popular. Ele não pensou que aquilo ia ser uma obra-prima. Acho que à medida que o troço foi crescendo, ele foi se dando conta da importância do livro, mas tenho minhas dúvidas de que tenha tido consciência plena do que fez. Agora, esse negócio do humor é gozado, digamos. Teve gente que reclamou para mim porque eu escrevi que o Quixote é um dos grandes livros de humor. Disseram que eu estaria diminuindo o livro ao dizer isso. É uma visão tão estreita do humor, é achar que humor é o Renato Aragão e nada mais. Se é um grande livro de humor, é porque tem outras coisas lá também. Tire o humor de Cervantes, de Borges, de Cortázar, por exemplo. Sobra um terço e olhe lá.
Sul21 — O humor é algo muito nobre, impossível viver sem.
Ernani Ssó — Mas essa birra vem desde Aristóteles, que dizia que a comédia é inferior à tragédia porque a comédia não tem a dor. Mas tu podes inverter a frase e dizer que a tragédia não tem o riso, e aí como é que fica? Eu prefiro a tragicomédia, que tem os dois lados. Os grandes momentos do Cervantes são quando ele consegue a tragicomédia.
Sul21 — É um livro muito humano. É uma dupla visão, tu vês as duas coisas: o que o Quixote imagina e o que é real, a loucura e o idealismo sobre um fundo de melancolia. Hoje, quando estava me preparando para falar contigo, li um artigo dizendo que a primeira parte do livro é muito diferente da segunda. Que a primeira tinha a forma mais livre, que era melhor. Minha lembrança é a de que eu gostei muito mais da segunda, mas não me lembro por quê…
Ernani Ssó — Naquele livro dos diálogos do Borges com o Sábato, compilados pelo Orlando Barone, os dois acham que a segunda parte é melhor. Na primeira, o Cervantes tentava agradar os acadêmicos e na segunda ele caga pra academia e escreve muito mais solto. Acho que a primeira parte tem coisas chatíssimas como aquelas inserções de novelas.
Sul21 — Essas inserções são chatas, não têm a ver com o romance.
Ernani Ssó – Sim, sim, o primeiro volume tem essas inserções chatas, mas quase todas as grandes cenas pelas quais o Quixote é lembrado, como a do moinho e a libertação dos prisioneiros das galés, estão lá. No segundo volume o texto é ainda melhor, mais natural. Existem histórias paralelas, mas são de personagens que estão envolvidos com o Quixote, histórias em que ele participa. Então é mais harmônico, é mais pensado, mais bem estruturado. Numa conta geral, também gosto mais do segundo.
Sul21 — No início tivemos os gregos, os romanos e depois houve um período em que não tivemos grandes livros. O Quixote é o fundador do romance?
Ernani Ssó — Acho que é. Pelo menos do romance ocidental. E o incrível é que, brincando brincando, Cervantes fez com mais talento e mais graça o que muitos pós-modernos tentaram fazer, e ainda tentam, coitados. Na introdução, o Rutheford até dá uma gozada nos caras.
Sul21 — Como são as notas de rodapé da tua tradução?
Ernani Ssó – Reduzi ao mínimo possível. Mas tem algumas que se referem a dados históricos ou mitológicos de que não têm como escapar. Minhas mesmo são poucas e rápidas. São sobre trechos problemáticos da tradução em que apostei mais na audácia.
Sul21 — O que há de Cervantes no livro? Ele era esse louco que enfrentava moinhos e pensava loucuras?
Ernani Ssó – Quer dizer, até onde Cervantes era quixotesco?
Sul21 — Sim.
Ernani Ssó — É aquilo que a gente estava comentando, acho que ele era um romântico, gostava de aventura, queria que o mundo fosse mais interessante, mais bonito, menos tedioso. Acho que o livro dele não é só uma vingança aos romances de cavalaria, ou aos leitores que se babavam com eles. Acredito que é uma desilusão dele com a Espanha, com o heroísmo espanhol. Você vê ele mostrando a miséria dos soldados, quebrando a cara, ficando do lado dos mouros que estão sendo expulsos da Espanha. O próprio enredo desmente os elogios que alguns personagens fazem ao Rei e à Igreja. Acho que existe uma desilusão do próprio Cervantes com a realidade espanhola. Ele era um cara talentoso, mas se ralou a vida toda, foi ferido na guerra, foi preso, viu muitos escritores medíocres faturando.
Sul21 — Ele tem pouca coisa além do Quixote.
Ernani Ssó — Sim, pouca. Tem a Galateia. São coisas que foram escritas antes, mas publicadas depois de Dom Quixote. Fora Galateia, o resto foi publicado na época segundo volume do Quixote. Ele ficou famoso e resolveu despachar tudo. Tem as Novelas Exemplares — mais satíricas que exemplares, como ele mesmo admitiu —, peças de teatro, muitas comédias. Mas só o Quixote emplacou. Ele deu azar até aí, morreu logo depois de publicar o segundo volume.
Sul21 — Temos um contraste entre o Quixote e o Sancho Pança, que é um cara bem realista. Começa burro e vira gênio.
Ernani Ssó — Sim. Ele entra no primeiro volume como um cara estúpido, a estupidez em pessoa. E no segundo, ele vai ficando inteligente, vai mudando, parece que o Cervantes mudou de ideia. Há essas incongruências no livro. Ele foi improvisando à medida que escrevia. Nesse sentido, é espantoso que o segundo volume tenha uma história mais fechada. Mas o interessante é que Cervantes se orgulhava mais de ter criado Sancho que Quixote. Sancho é muito menos crível que Quixote. Veja o que é a opinião do próprio autor sobre sua obra.
Sul21 — A Virginia Woolf disse que Dom Quixote foi o único livro que a fazia chorar, que a emocionava muito. Muitos escritores enormes escreveram a respeito do livro. Nabokov tem uma belíssima série de palestras sobre o Quixote. Por que tu achas que ele impacta tanto?
Ernani Ssó — Até Freud se deu ao trabalho de aprender espanhol para ler no original. Acho que você pode não acreditar muito nas aventuras do Quixote e do Sancho, mas você acredita nos personagens, se sente amigo deles. Na verdade todos nós somos um pouco o Quixote. Pelo menos eu sou: não me conformo com a realidade. É uma merda, ela não acompanha a minha imaginação e as minhas emoções. Mas a gente acaba se conformando. Tornar-se adulto é mais ou menos isso, não? Mas esse cerne irracional continua com a gente até o cemitério. Daí, nos identificamos profundamente com o Quixote. A gente ri do coitado como se se vingasse de nossa própria ingenuidade. É como quando olhamos fotos antigas nossas: veja como eu era ridículo de calça boca de sino. Rimos e ao mesmo tempo secamos as lágrimas.
Sul21 — Tu falaste sobre os personagens. O livro é muito centrado em dois personagens com os quais a gente se identifica. A Dulcineia aparece muito pouco.
Ernani Ssó — Falando nas incongruências, quando o Quixote arruma um nome para o cavalo e para ele mesmo, no começo da aventura, logo pensa que tem que ter uma amada. Aí ele se lembra de uma camponesa por quem tinha uma quedinha. O Sancho conhecia ela e o pai, e faz piadas, porque em vez de uma princesa linda é uma fulana que anda metida com os rapazes da aldeia e tal. Isso tudo nos primeiros capítulos. À medida que o livro anda, ninguém mais conhece ela. Quando o Sancho tem que levar uma carta, ele não sabe onde ou a quem entregar. O Cervantes esqueceu totalmente. No segundo volume, cadê a Dulcineia? Para eles ela não existe, é uma invenção. O Cervantes esqueceu totalmente, acho que nunca releu o próprio romance.
Sul21 — Vamos voltar à questão de traduzir humor. Acho isso muito difícil, porém, no caso do Quixote, fundamental.
Ernani Ssó – É um inferno. A graça de uma piada às vezes depende de uma palavra, ou da colocação dessa palavra na frase. Se na tradução você erra na escolha da palavra, ou no lugar onde ela entra, babaus. Há ainda a agilidade, a formulação da frase, não? Veja a tirada do Nelson Rodrigues. Nem toda mulher gosta de apanhar, só as normais. Que graça tem se eu digo só as mulheres normais gostam de apanhar? Talvez não seja necessário você ser humorista pra traduzir humor, mas certamente ajuda. Depois, no caso do Cervantes, há jogos de palavras, há piadas em cima de referências culturais. Se não se recriar tudo isso, a coisa fica insípida, achatada. Ou nem faz sentido nenhum.
Sul21 – Tu tens uma ligação com o humor.
Ernani Ssó – Sim, eu queria ser humorista quando era adolescente. Não consegui. Tive de me contentar em ser um escritor com senso de humor.
Sul21 — Onde tu localiza o tempo do teu texto?
Ernani Ssó — Eu peguei o Houaiss, que tem datação das palavras, e tomei uma atitude radical e totalmente arbitrária: até 1900 é antigo, o que veio depois é moderno. Não usei palavras que apareceram na imprensa depois de 1900. Mas a gente não devia levar essas datações muito a sério. As palavras circulam muito antes de aparecer impressas. Veja só. Cervantes usa normalmente a palavra “voleo”. Segundo o Houaiss, “voleio” só entra no português escrito no século XX. Enfim, tratei de usar palavras anteriores a 1900, mas que fossem compreensíveis hoje. E deixei de lado palavras antigas que soam moderninhas, como “esperto”, que é do século XIII. Esperto tem todo um peso hoje que detonaria com o sentido das frases de Cervantes. Outro problema são as palavras que se tornaram ridículas. Cervantes não usa “porquero” pra ser engraçado. Mas porqueiro ou, pior, porcariço são palavras cômicas, não? Chamam muita atenção. Eu preferi um termo mais neutro, guardador de porcos, pra me manter no clima do original. São por coisas assim que não se pode ser muito literal. Veja, Cervantes despacha um adjetivo ao correr da pena, mas eu ficava queimando a mufa por uma semana ou mais até achar um correspondente à altura. Um tradutor precisa certamente de algum talento, de jeito pra coisa. Mas precisa muito mais de paciência. É um serviço bom pra um preso, que não tem aonde ir e pode ficar brincando o dia todo com as palavras, e até tirar uma soneca entre uma página e outra. Eu tenho um saco de filó, como se diz, e tive a sorte de a editora não ficar me apressando. O pessoal só queria o trabalho direito. É incrível, não? No Brasil parece um luxo agir com profissionalismo.
Virginia Woolf amava Leonard. Ele era seu grande amigo e editor. Como a escritora não se interessava por homens, o termo amigo serve com exatidão. Eram grandes amigos, grandes companheiros que se amavam e buscavam sexo em outras paragens. Uma curiosidade: como VW revisava, revisava e revisava interminavelmente seus livros, Leonard os “roubava” quando achava que estavam prontos. Simplesmente pegava uma cópia e mandada para o prelo. Virginia seguia mexendo em suas vírgulas, enquanto Leonard só observava. Dias depois, para não torturá-la muito, ele a informava: “Pode parar de revisar. O livro está sendo impresso. Está pronto há semanas!”. Ela ficava puta, mas acabava por agradecer a Leonard, seu adorado marido. Estava livre do livro e podia planejar outro.
Abaixo, a carta que deixou para Leonard quando sentiu que ia entrar em nova crise depressiva e desistiu da vida.
Há Mrs. Dalloway, há As Ondas, Passeio ao farol e Entre os atos. Há também o fantástico ensaio de Um teto todo seu, mas se tiver que escolher o melhor livro de Virginia Woolf, escolho a alegria de ler Orlando. Nem vou comparar a qualidade literária de um e outro livro de VW. Escolho Orlando pelo mais puro afeto. Pois não lembro de nada mais que seja ao mesmo tempo tão satisfatoriamente feérico, alegre e inteligente do que este romance digno de grandes paixões.
Orlando é um jovem aristocrata inglês da época elisabetana (1558-1603). Sacha, uma jovem russa, foi sua grande paixão e desilusão. Os encontros entre eles são puro tesão literário. Mas acontecem coisas a Orlando: ele algumas vezes dorme e avança no tempo. Então, no século XVIII, vai a Constantinopla como embaixador. Um dia, há uma revolta na cidade. E Orlando acorda mulher. É recolhida por ciganos e regressa a Inglaterra. O livro prossegue até Orlando chegar ao século XX, com 36 anos. E, mesmo desprovido da sua masculinidade, continua a amar Sacha. Virginia era casada com o grande Leonard Woolf, a quem amava incondicionalmente como amigo. Talvez o seu maior amor carnal tivesse sido Vita Sackville-West, a quem Orlando e sua indefinições é dedicado.
Como em Um teto todo seu, Virginia Woolf permanece dentro de um feminismo esclarecido, sem culpas ou ódio, apenas fazendo anotações sarcásticas e desencantadas sobre uma humanidade que despreza as mulheres. Os símbolos são fortes e elegantes, como quando Orlando retorna à Inglaterra e apenas os cães e os animais o(a) reconhecem. São os únicos a respeitarem Orlando sem se importar com seu novo sexo.
Mas não pensem Orlando como um livro centrado apenas na questão do feminino. Há as questões da sabedoria, do tempo, da felicidade e da permanência, representada pelo filho que ela tem com o estranho Marmaduke Bonthrop Shelmerdine. Quando lançado, Orlando fez imenso sucesso e permitiu a Virginia e Leonard comprarem o carro em que passeavam por Londres… Nenhuma surpresa, pois o livro é de um modernismo alegre, repleto de poesia e humor. Apaixone-se por Orlando. Na minha opinião, é inevitável que isto ocorra logo nas primeira páginas.
Édouard Dujardin é o inventor do monólogo interior, também chamado de fluxo de consciência. A técnica, cuja invenção e utilização são normalmente atribuídas a Joyce, foi creditada pelo irlandês a Dujardim (1861-1949), assim como também parte de sua inspiração para escrever Ulysses. E paramos por aí, pois o livro do simbolista francês não tem nada a ver com uma leitura de Joyce. Apesar de ser bem mais que um tuíte, o livro de Dujardin está mais para a curiosidade histórica ou para uma aula de como tudo isso começou. Publicado em 1888, Os loureiros estão cortados (Brejo Editora; 2005; 117 páginas) acompanha os pensamentos de um jovem que, durante seis horas, caminha por Paris à espera de sua amante. A história é interessante, pois o homem morre de medo da bela mulher que o suga financeiramente.
É um bom livro, simples, fácil de ler, mas é arqueologia literária, trampolim para escritores maiores, como Woolf, Faulkner, Joyce e meio mundo. O engraçado é que o autor francês definiu seu achado:
Discurso sem interlocutor e não pronunciado através do qual um personagem exprime seus pensamentos mais íntimos, mais próximos do inconsciente, anteriores a qualquer organização lógica, isto é, no seu estado original, por meio de frases diretas reduzidas à sintaxe mínima, de maneira a dar a impressão de não terem sido elaboradas.
Menos, Dujardin, menos. Quem conseguiu foram outros. Teu texto parece prosa poética. Menos.