Nadiêjda Khvoschínskaia é uma escritora russa desconhecida do século XIX. Sim, imaginem uma escritorA naquela sociedade! Ela foi romancista, poeta, crítica literária e tradutora. Em várias de suas publicações utilizou o nome dúbio de V. Krestovsky. Nascida 3 anos depois de Dostoiévski, e 4 antes de Tolstói, em 1824, era a mais velha de quatro filhos. Duas de suas irmãs mais novas, Sofia e Praskovia, também se tornaram escritoras. Este A moça do internato foi um estrondoso sucesso na época de seu lançamento, especialmente entre meninas e mulheres. O livro foi traduzido para o inglês ainda durante a vida de Khvoschínskaia.
Vou contar um pouco da boa história do livro, mas sem matar a futura leitura de vocês. É que é fundamental deixar claro que o empoderamento feminino é uma luta de séculos…
A heroína Liôlienka é uma menina de cerca de dezesseis anos. Ela nos é apresentada não por suas características físicas, mas por outras – tem boa memória, é inteligente, estudiosa e trabalhadora. Seus olhos não são bonitos, mas “claros e diretos”. E, de fato, Khvoschínskaia usa predominantemente anti-descrições das mulheres, opondo-as às definições típicas dos homens. O olhar da moça “não era coquete, não desafiava, não buscava uma conversa”. Ela conhece seu vizinho Veretítsin e eles conversam frequentemente através das grades que separam os jardins.
Veretítsin atua como uma espécie de professor alternativo para Liôlienka. Ele lhe revela a artificialidade de sua vida e coloca na cabeça da moça a ideia de liberdade, fazendo-a perceber o quão pouco ela tem: “Você é uma filha maravilhosa, obediente, gentil: você está apenas agindo de acordo com seu dever. Em vez disso, deveria viver para si mesma.” Na verdade, o vizinho está apenas entediado e brinca com a jovem. Ela é uma distração agradável. Quando ele lhe dá Romeu e Julieta para ler, o tom de seus pensamentos é boboca: “Bem, deixa ela se educar!”. Ela é uma brincadeira.
Mas para Liôlienka, suas palavras não são piadas. Ela percebe que nunca fez nada por si mesma. E passa aprender fora da escola. Percebe que sua educação consiste simplesmente em memorizar coisas, nunca em pensar por si mesma. Criadas com medo, as crianças de sua família conhecem apenas o caminho de ida e volta para a escola. Em casa, a mãe lhe diz para “costurar, costurar, cuidar dos irmãos e ler um livro só quando estiver cansada”. Só que ela começa a ver a hipocrisia de seus pais, a maneira como eles estão constantemente “se achando”, apesar de sua posição humilde e pobre. Ela reconhece que tem pouco poder para remediar isso. Excelente aluna, resolve ser reprovada nos exames escolares, como um ato de rebelião. Mas isso é tudo que pode fazer. Então, seus pais decidem que ela tem que casar.
A resposta é não. Bem, o vizinho, ao lhe dar Romeu e Julieta, abriu sua mente para um novo modo de existência, dominado pela paixão e interesse pessoal. A descrição da leitura de Liôlienka é cheia de alegria. E… o vizinho — incapaz de se libertar de seu próprio cinismo –, consegue libertar a moça de suas circunstâncias.
O capítulo final se passa oito anos após os eventos do resto da história. Somos levados ao Hermitage, em São Petersburgo. Khvoschínskaia nos dá uma visão panorâmica das pessoas que estão no museu – senhoras e homens sérios. E logo somos levados não a uma “dama”, mas a uma “artista mulher”. Claro que se trata de Liôlienka. Lá ela reconhece o ex-vizinho entre os visitantes e o convida para conversar em sua casa. Muita coisa mudou. Ela não é mais Liôlienka (um diminutivo), mas Elena. Quando Veretítsin se oferece para carregar suas coisas de artista, ela se recusa. Quando eles caminham nas margens do Neva, não há mais uma cerca que os separa.
Khvoschínskaia não toma partido. A adolescente certamente cresceu – e isso é uma coisa boa – mas o ponto final do livro projeta uma vida mais desafiadora para a maturidade. A continuação da história, infelizmente, não foi escrita. E é bonito isso.
Há algumas semanas, li a lista da extinta revista Bravo sobre os 100 livros essenciais da literatura mundial. A edição vendeu muito, disse o dono da banca de revistas meu vizinho. No final da revista, há uma página de Referências Bibliográficas de razoável tamanho, mas o editor esclarece que a maior influência veio dos trabalhos de Harold Bloom.
Vamos à lista? Depois farei alguns comentários a ela.
A lista é a seguinte (talvez haja erros de digitação, talvez não):
1. Ilíada, Homero
2. Odisseia, Homero
3. Hamlet, William Shakespeare
4. Dom Quixote, Miguel de Cervantes
5. A Divina Comédia, Dante Alighieri
6. Em Busca do Tempo Perdido, Marcel Proust
7. Ulysses, James Joyce
8. Guerra e Paz, Leon Tolstói
9. Crime e Castigo, Dostoiévski
10. Ensaios, Michel de Montaigne
11. Édipo Rei, Sófocles
12. Otelo, William Shakespeare
13. Madame Bovary, Gustave Flaubert
14. Fausto, Goethe
15. O Processo, Franz Kafka
16. Doutor Fausto, Thomas Mann
17. As Flores do Mal, Charles Baldelaire
18. Som e a Fúria, William Faulkner
19. A Terra Desolada, T.S. Eliot
20. Teogonia, Hesíodo
21. As Metamorfoses, Ovídio
22. O Vermelho e o Negro, Stendhal
23. O Grande Gatsby, F. Scott Fitzgerald
24. Uma Estação No Inferno,Arthur Rimbaud
25. Os Miseráveis, Victor Hugo
26. O Estrangeiro, Albert Camus
27. Medéia, Eurípedes
28. A Eneida, Virgilio
29. Noite de Reis, William Shakespeare
30. Adeus às Armas, Ernest Hemingway
31. Coração das Trevas, Joseph Conrad
32. Admirável Mundo Novo, Aldous Huxley
33. Mrs. Dalloway, Virgínia Woolf
34. Moby Dick, Herman Melville
35. Histórias Extraordinárias, Edgar Allan Poe
36. A Comédia Humana, Balzac
37. Grandes Esperanças, Charles Dickens
38. O Homem sem Qualidades, Robert Musil
39. As Viagens de Gulliver, Jonathan Swift
40. Finnegans Wake, James Joyce
41. Os Lusíadas, Luís de Camões
42. Os Três Mosqueteiros, Alexandre Dumas
43. Retrato de uma Senhora, Henry James
44. Decameron, Boccaccio
45. Esperando Godot, Samuel Beckett
46. 1984, George Orwell
47. Galileu Galilei, Bertold Brecht
48. Os Cantos de Maldoror, Lautréamont
49. A Tarde de um Fauno, Mallarmé
50. Lolita, Vladimir Nabokov
51. Tartufo, Molière
52. As Três Irmãs, Anton Tchekov
53. O Livro das Mil e uma Noites
54. Don Juan, Tirso de Molina
55. Mensagem, Fernando Pessoa
56. Paraíso Perdido, John Milton
57. Robinson Crusoé, Daniel Defoe
58. Os Moedeiros Falsos, André Gide
59. Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis
60. Retrato de Dorian Gray, Oscar Wilde
61. Seis Personagens em Busca de um Autor, Luigi Pirandello
62. Alice no País das Maravilhas, Lewis Caroll
63. A Náusea, Jean-Paul Sartre
64. A Consciência de Zeno, Italo Svevo
65. A Longa Jornada Adentro, Eugene O’Neill
66. A Condição Humana, André Malraux
67. Os Cantos, Ezra Pound
68. Canções da Inocência/ Canções do Exílio, William Blake
69. Um Bonde Chamado Desejo, Teneessee Williams
70. Ficções, Jorge Luis Borges
71. O Rinoceronte, Eugène Ionesco
72. A Morte de Virgilio, Herman Broch
73. As Folhas da Relva, Walt Whitman
74. Deserto dos Tártaros, Dino Buzzati
75. Cem Anos de Solidão, Gabriel García Márquez
76. Viagem ao Fim da Noite, Louis-Ferdinand Céline
77. A Ilustre Casa de Ramires, Eça de Queirós
78. Jogo da Amarelinha, Julio Cortazar
79. As Vinhas da Ira, John Steinbeck
80. Memórias de Adriano, Marguerite Yourcenar
81. O Apanhador no Campo de Centeio, J.D. Salinger
82. Huckleberry Finn, Mark Twain
83. Contos de Hans Christian Andersen
84. O Leopardo, Tomaso di Lampedusa
85. Vida e Opiniões do Cavaleiro Tristram Shandy, Laurence Sterne
86. Passagem para a Índia, E.M. Forster
87. Orgulho e Preconceito, Jane Austen
88. Trópico de Câncer, Henry Miller
89. Pais e Filhos, Ivan Turgueniev
90. O Náufrago, Thomas Bernhard
91. A Epopéia de Gilgamesh
92. O Mahabharata
93. As Cidades Invisíveis, Italo Calvino
94. On the Road, Jack Kerouac
95. O Lobo da Estepe, Hermann Hesse
96. Complexo de Portnoy, Philip Roth
97. Reparação, Ian McEwan
98. Desonra, J.M. Coetzee
99. As Irmãs Makioka, Junichiro Tanizaki
100 Pedro Páramo, Juan Rulfo
A lista é ótima, mas há critérios bastante estranhos.
Se não me engano, só três semideuses têm mais de um livro na lista: Homero, Shakespeare e Joyce. OK, está justo.
No restante, é uma lista mais de autores do que de livros e muitas vezes são escolhidos os livros mais famosos do autor e dane-se a qualidade da obra. Se a revista faz um gol ao escolher Doutor Fausto como o melhor Thomas Mann, erra ao escolher Crime e Castigo dentro da obra de Dostoiévski – Os Irmãos Karamázovi e O Idiota são melhores; ao escolher Guerra e Paz de Tolstói – por que não Ana Karênina? -; na escolha de O Complexo de Portnoy, de Philip Roth; que tem cinco romances muito superiores, iniciando por O Avesso da Vida (Counterlife) e ainda ao eleger Retrato de Uma Senhora na obra luminosa de Henry James. Li por aí reclamações análogas sobre as escolhas de Brás Cubas e não de Dom Casmurro, de Cem Anos de Solidão ao invés de O Amor nos Tempos do Cólera e de As Cidades Invisíveis de Calvino, mas acho que é uma questão de gosto pessoal e não de mérito. Ah, e é absurda a presença do bom O Náufrago e não dos imensos e perfeitos Extinção, Árvores Abatidas e O Sobrinho de Wittgenstein na obra de Thomas Bernhard.
Saúdo a presença de grandes livros pouco citados como Tristram Shandy, obra-prima de Sterne muito querida deste que vos escreve, de Viagem ao Fim da Noite, de Céline, de A Consciência de Zeno, genial livro de Ítalo Svevo, de O Deserto dos Tártaros (Buzzati) e do incompreendido e brilhante Grandes Esperanças, de Charles Dickens, de longe seu melhor romance.
Porém é estranha a escolha de A Comédia Humana, de Balzac. Ora, a Comédia são 88 romances! Não vale! Estranho ainda mais a presença de autores menores como Kerouac e Malraux, além do romance que não é romance — ou do romance que só é romance em 100 de suas 1200 páginas: O Homem sem Qualidades, de Robert Musil.
Também acho que presença de McEwan e de Coetzee prescindem do julgamento do tempo, o que não é o caso de alguns ausentes, como Lazarillo de Tormes, de Chamisso com seu Peter Schlemihl, de George Eliot com Middlemarch, de Homo Faber de Max Frisch e de O Anão, de Pär Lagerkvist, só para citar os primeiros que me vêm à mente. E, se McEwan e Coetzee esttão presentes, por que não Roberto Bolaño?
(O Bender escreve um comentário reclamando a ausência de Grande Sertão, Veredas, de Guimarães Rosa. É claro que ele tem razão! Esqueci. Coisas da idade.)
Com satisfação pessoal, digo que este não-especialista não leu apenas Os Miseráveis, o livro de Blake e os de Lautréamond, Mallarmé, Ovídio e Hesíodo. Isto é, seis dos cem. Tá bom.
P.S.- Milton mentiroso! Não li Finnegans também!
Este post foi publicado em 13 de dezembro de 2007, mas quase nada mudou.
Mas tenho mais fatos a narrar sobre a visita de Dostoiévski à Livraria Bamboletras, durante o lançamento do Ingresia de Franciel Cruz.
Apresentei-lhe ao célebre escritor um livro de seu conterrâneo e contemporâneo Tolstói, Anna Kariênina. Ele olhou, risonho porém visivelmente contrafeito, e disse:
— Ah, um Tolstói qualquer.
Notei que ele tinha achado minha atitude ofensiva e tentei consertar a situação dizendo que, imagina, atropelada por um trem, muito melhor uma machadinha ou um bom parricídio — já pensou que maravilha se acontecesse em Brasília, Dostô? –, mas como ele não reagia, reclamei das considerações agrícolas de Liêvin, louvei o príncipe Míchkin e o niilista Kirílov e fui saindo de fininho antes que ele jogasse em mim aquele copo de cerveja.
De posse da bela tradução direto do russo do Crime e Castigo da todavia — feita pelo grande Rubens Figueiredo –, eu lhe explicava como eram as traduções antigas de seus livros. Elas nos chegavam todas de segunda mão, a partir de traduções francesas. Parece que não havia ninguém que conhecesse russo no Brasil. Enquanto isso, ele, um eslavófilo furioso, 100% anti-francês, me olhava com aquela cara de quem tá louco pra pegar uma machadinha.
Tinha lido Almas Mortas quando adolescente, lá nos anos 70. O romance era o volume 42 da coleção Os Imortais da Literatura Universal, da Abril Cultural (livros vermelhos, capa dura, letras douradas, já viram?). Mas aquela velha tradução — mesmo sendo de autoria da ótima Tatiana Belinky — não se compara com o esplêndido trabalho de Rubens Figueiredo na edição recém lançada pela fundamental Editora 34.
Almas Mortas é um livro especialíssimo por diversas razões. Comecemos pelo fato de ser um romance inacabado. Explico: após publicar a primeira parte, Gógol tentou várias vezes completar o romance. Na segunda parte, ele demonstraria seu amor à Rússia e aos russos. Ele fez várias tentativas de escrevê-la e queimou várias vezes os manuscritos da mesma. O caso foi grave. Ele trabalhava um, dois anos e queimava. Escrevia mais e voltava a queimar tudo. Acho que o artista venceu. Ele não quis matar a primeira parte, dobrando-se a quem o criticara por ridicularizar seu país.
Em segundo lugar, há a modernidade. Na verdade, em muitos manuais de literatura o romance é qualificado como a primeira obra moderna da literatura russa. A leitura do livro confirma. O romance é moderno na criação de personagens nem bons nem maus, nem virtuosos nem exatamente corruptos, nem lindos nem feios, nem isso nem aquilo, nem gordos nem magros, como tantas vezes brinca Gógol. Durante a leitura, você esquece que aquilo foi escrito há quase dois séculos e com o romantismo ainda lacrimejando na Europa. Gógol concebeu uma obra que mostra a náusea da sociedade russa (e, por que não, de qualquer sociedade) através de uma história que se desenrola com extrema agilidade. Porque o enredo do livro, longe de ser um acessório, é um elemento importante. Vamos a ele SEM spoilers.
O hilariante Almas Mortas conta a história de Tchítchikov, um personagem que chega um dia à cidade de N. para empreender um negócio desconcertante. Ele busca estabelecer relações com os mais importantes proprietários de terra do lugar e faz a eles uma estranha oferta: comprar seus servos já falecidos a fim de que eles não precisem mais pagar ao Estado os impostos relativos àqueles. Ou seja, em linguagem do Brasil Imperial, ele comprava escravos mortos. As reações variam muito, mas ninguém sabe exatamente o motivo pelo qual Tchítchikov precisa das tais almas mortas.
As viagens de Tchítchikov dão-nos uma excelente visão da relação entre proprietários e servos e do funcionamento da economia da Rússia czarista. Mas há mais: de forma brilhante, Gógol cria alegorias, dando sentido a uma série de fatos aparentemente desconexos e de lógica escorregadia. Sob o manto de uma história cheia de humor e caricatura, de fervilhante energia, há outra realidade que o autor apenas nos deixa espreitar em momentos arrebatadores.
A resposta para a questão da compra de almas não é o ponto crucial do livro, mas contribui significativamente para criar uma atmosfera misteriosa em torno do personagem principal e de suas ações. Fundamental é o modo como Gógol retrata seus personagens. Tchítchikov é nobre na forma, mesquinho em pensamento. O cocheiro Selifán é bêbado e mentiroso. Nozdrióv é trapaceiro e escandaloso. Outros são corretíssimos e burros. Ou inteligentes. Ou corruptos. Enfim, uma fauna. São muitos personagens para descrevermos aqui, mas fica-se impressionado pela vivacidade deles. A gente devora o livro. Não há seres atormentados como em Dostoiévski. As criaturas de Gógol são mais amostras humorísticas de tipos sociais provavelmente existentes, acentuadas pela visão impiedosa do escritor.
Gógol ama descrever a figura do funcionário administrativo e retrata-o sempre de uma forma burlesca e satirizada. Todas as descrições apontam para uma sociedade extremamente burocratizada e de complexa hierarquia. Quando Tchítchikov chega à província, vai cumprimentar o governador, o vice-governador, o procurador, o presidente do tribunal, o chefe da polícia, os maiores donos de terra, os menores, os famosos alguéns, todo mundo. Ou seja…
O tema de Almas Mortas foi oferecido a Gógol por Púchkin. Os dois tinham-se conhecido em 1831. O seu relacionamento seria estreito e Gógol revelou a Púchkin os manuscritos do romance para serem avaliados. Púchkin esperava algo ainda mais cômico, mas aprovou o livro. Em 1842, os censores autorizaram a publicação do romance na Rússia e o escândalo, sobretudo entre as classes dirigentes, foi imediato. Acusaram Gógol de descrever uma Rússia falsa, muito pior do que ela seria. No livro, o país estaria afundado em tolice, ineficiência e corrupção.
Como já disse, a continuação de Almas Mortas foi destruída várias vezes. Naqueles anos, Gógol desenvolvera uma relação obsessiva com a religião. Sucessivas depressões levaram-no a recusar-se a ser tratado e alimentado, vindo a falecer em 1852, dez dias depois de ter queimado novamente o segundo tomo de Almas Mortas. Ainda hoje, gerações de leitores se perguntam como acabaria Tchítchikov. Um tanto cruelmente, podemos considerar a queima dos manuscritos de Gógol como seu último grande ato como escritor. Assim, ele nos legou uma obra incerta e ambígua. Sabemos que ele queria, nesta segunda parte, demonstrar a bondade do povo russo. Ele desejava melhorar a relação com quem o criticara… Ora, cremos que… Foi melhor deixar assim o herói canalha… A obra-prima está incompleta e isto é perfeito.
Trechos de uma carta de Nikolai Gógol:
Eu teria sido perdoado se [em ‘Almas Mortas’], tivesse retratado monstruosidades, mas por mostrar a vulgaridade não me perdoaram. O que assustou o homem russo foi a insignificância, mais do que os vícios e limitações. É um fenômeno impressionante! Um belo susto!
(…)
Quando eu comecei a ler para Púchkin os primeiro capítulos do livro, ele, que sempre rira com minhas leituras (ele era um apreciador do riso), foi aos poucos ficando soturno. Quando a leitura terminou, ele articulou em tom de voz melancólico: “Meu Deus, como é triste a nossa Rússia”.
Ele (Tchítchikov) percorre a nossa terra russa, encontra gentes de todas as condições, nobres e gente “pequena”. Se eu o escolhi foi para evidenciar não os méritos e as virtudes do povo russo, mas sim os seus defeitos e vícios.
É em vão que o senhor se indigna com o tom imoderado de alguns dos ataques a ‘Almas Mortas’. Isso tem seu lado bom. Por vezes, é necessário ter contra si os amargurados.
A apresentação de eventos ocorridos provam o caso muito melhor do que simples palavras e verborragia literária.
Hoje, no início da tarde, chegou um cliente de uns 40 anos que jamais tinha lido Dostoiévski. Descrevi rapidamente os temas de cada um dos cinco maiores romances do russo — Os Irmãos Karamázov, O Idiota, Crime e Castigo, Os Demônios e O Adolescente. Ele empilhou todos. Perguntou sobre a tradução de Paulo Bezerra (editora 34) e eu repeti os elogios que minha mulher, russa e grande leitora, tinha feito. Depois pediu Tchékhov. Falei sobre A Dama do Cachorrinho e Enfermaria N° 6. Ele empilhou mais esses. Passou a Bulgákov. E ele acabou acrescentando O Mestre e Margarida à pilha ou montanha (mágica?). E me disse: “Agora vou ter que escolher”. Pegou mais alguma coisa que não vi, hesitou dois segundos e decidiu.
— Quer saber de uma coisa? Vou levar tudo!
Não sei se a beleza salvará o mundo, mas acho que a leitura facilitará a vida dele na crise.
Fiquei feliz por ele. Imaginem que ele vai ler aquilo tudo PELA PRIMEIRA VEZ. E graças à Bamboletras.
P.S. — Perguntamos se algum era para presente e a resposta foi “Não, nenhum”.
Dia desses, em questão de minutos, entraram em meu esquecido Feedly duas críticas acerca do filme argentino O Cidadão Ilustre, de Gastón Duprat e Mariano Cohn. Uma tinha sido publicada domingo e outra segunda-feira. A do domingo era constrangedora. A de segunda-feira era excelente. O fato da primeira ser contrária ao filme não significa nada, há críticas devastadoras que demonstram extrema compreensão de quem viu a obra, assim como é normalíssimo vermos elogios que mal tocam sua superfície. Meus 59 anos me mandam dizer que, quem não sabe ver filmes, habitualmente não sabe ver peças de teatro, e pior, não sabe interpretar livros. Sim, o pacote parece vir instalado completo, sem personalizações, à exceção do caso da música, que merece outro post.
Ontem, apesar da chuva, caminhei bastante pela rua, e pude pensar sobre as armadilhas que os alguns autores modernos exigem de seus leitores-expectadores. Mesmo um filme aparentemente simples como Cópia Fiel, está cheio de armadilhas para serem destrinchadas por um expectador que não seria mais um mero receptor e sim um intérprete que tem de trabalhar um pouquinho para entender o filme. No caso do citado filme de Kiarostami, o quebra-cabeça começa pelo título do filme. O nome original está em italiano, Copie Conforme. Em italiano Copie significa Cópia, mas Coppie é Casal, enquanto Conforme pode ser Fiel ou Conformado. É muito mais do que um trocadilho idiota, tem tudo a ver com o filme.
Refleti principalmente sobre o cinema porque ele é a arte mais pública e comum que temos. É difícil de se encontrar com alguém que leu há pouco exatamente o livro que a gente quer comentar. Já com os filmes é simples. Como estão em cartaz, todos os meus amigos viram O Cidadão Ilustre ou Perdidos em Paris. Dá para trocar ideias. O cinema é a grande cultura pública de nosso tempo.
O problema de certa crítica é não causado pela falta de inteligência, mas antes de falta de vivência ou pura desatenção para com a coisa artística. Lembrei dos ensaios de Bakhtin sobre Dostoiévski e de como O Idiota passou a figurar automaticamente ao lado de Os Irmãos Karamázovi como meu livro preferido de Dostô — sempre acompanhado do primeiro que conheci (a primeira vez a gente nunca esquece), Crime e Castigo. Quando li o que escrevera Bakhtin, tive que voltar a O Idiota e pensar que o título referia-se a alguém como eu… Hum… Ontem, enquanto caminhava, ri sozinho ao lembrar que Marcelo Backes cometera EM LIVRO o erro de deixar por escrito que eu seria o melhor leitor não-profissional que ele conhecera. Acho que dou a impressão de ser alguém mais inteligente do que sou. Que siga assim…
Mas avancemos: considerando aquele comentarista constrangedor e pensando que praticamente todos os grandes cineastas realizam/realizaram trabalhos sobre a linguagem, gente como ele está a ponto de dizer que — para citar apenas os vivos — Sokúrov, Kusturica, von Trier, Lynch, os irmãos Cohen, Moodysson, Sorrentino, Hartley, Polanski, Vinterberg, Haneke, P. T. Anderson são ruins, pois abusam de situações que representam outras.
Não é um assunto que me faça morrer, o que escrevo é uma reflexão vagabunda que é, para mim, nada mais do que uma curiosidade. É que quando li a primeira crítica me pareceu que o cara estava decididamente em outro mundo, numa faixa própria de esquizofrenia e estupidez. Será que ver certos filmes requer alguma especialização?
Vim do inferno, o que criou nova forma de conviver com a vida; e, pela mesma razão, uma nova forma de romance.
Dyonelio Machado
— Mas por que seus livros estão sendo tão procurados e estudados agora? — perguntou a Dyonelio um leitor no final dos anos 70.
O escritor, que procurava um livro num sebo da Riachuelo, respondeu:
— Foi porque eu morri. Alguns escritores são reconhecidos só depois de mortos. Há vários tipos de mortes. Uma delas me pegou, fazer o quê?
— Uma boa morte, pelo visto.
— Meu filho, não existe morte boa.
Os Ratos, de Dyonelio Machado, completa 80 anos em 2015. O pequeno romance é um dos mais importantes da literatura brasileira. A história se passa durante um dia, são 24 horas de completa angústia para o personagem Naziazeno Barbosa em sua preocupação sobre como arranjar dinheiro para quitar uma dívida com o leiteiro.
O título Os Ratos é uma referência ao pesadelo do protagonista da história que, depois de ter conseguido o dinheiro para saldar a dívida, sonha que ratos estão roendo o dinheiro que ele deixara à disposição do leiteiro sobre a mesa da cozinha.
Até os anos 60, o leite era entregue na porta das casas das pessoas. Uma das opções era deixar a garrafa de vidro vazia na porta para que o entregador a trocasse por outra cheia. Funcionava um caderninho: num dia combinado antecipadamente, o leiteiro batia e cobrava os atrasados, “passando a régua”. Ou deixava-se a porta aberta para que o leiteiro deixasse o produto na cozinha. O desenrolar do drama do funcionário público endividado e com vergonha de olhar os credores atravessa os capítulos e enche de angústia o leitor. O dinheiro do leite, a doença do menino, a fome de Naziazeno… E enfim, o empréstimo salvador. Porém, ter conseguido o dinheiro para quitar a conta do leite é apenas o início de uma nova dívida, a expectativa de mais um dia caminhando atrás de uma solução.
O romance inicia com o ultimato do leiteiro. Ele suspenderá o fornecimento de leite caso não receba o pagamento até o dia seguinte. Ao final do dia, mesmo o descanso de Naziazeno não é verdadeiro. O triste e diminuto papel do protagonista no mundo é contado sem sentimentalismos pelo texto Dyonelio, altamente coloquial. O escritor nos envolve no drama do protagonista através dos pensamentos do personagem principal. A reviravolta na narrativa ocorre quando, ao anoitecer, pensamos que o caso está encerrado, mas tudo retorna nas angustiadas lembranças dos movimentos do dia, agora observado sob novos ângulos.
Dyonélio Machado escreveu Os Ratos em vinte noites, logo após chegar do trabalho como médico. Dormiu muito pouco naqueles dias e, cedo, deixava o que escrevera à noite para sua mulher fazer a primeira revisão. “Todo o livro estava muito claro para mim, porque eu havia passado nove anos pensando nele, nove anos pensando nesse livrinho. Então eu saía para atender os doentes, no hospício onde eu era médico e nos dois hospitais onde também trabalhava, e, após tudo isso, ia para casa e começava a escrever. Depois de minha mulher revisar eu levava as folhas para uma mocinha que era empregada da Livraria do Globo, a principal de Porto Alegre, e que tinha sido indicada pelo Érico Veríssimo. Ela datilografava o trabalho. Num dia, eu levava umas folhas manuscritas e pegava outras datilografadas, e assim o trabalho ia avançando. Numa dessas vezes ela perguntou: ‘Escute, doutor, o Naziazeno vai ser feliz?’ Eu lhe respondi: ‘Leia tudo, que você vai ver’. Foi assim que eu descobri que tinha um romance”.
Os Ratos enquadra-se no chamado Romance de 30: denominação dada ao conjunto de obras de ficção produzidas no Brasil a partir de 1928, ano de publicação de A Bagaceira, de José Américo de Almeida. É um romance social por excelência. O drama urbano da classe média baixa encontra protótipo perfeito na figura de Naziazeno Barbosa, um homem fragilizado pela incapacidade de cumprir um papel necessário no caos social em que vive.
Os Ratos costuma ser colocado lado a lado de Angústia, de Graciliano Ramos. Há coincidências que ligam os romances. São duas narrativas de estéticas inovadoras, mas que têm muito em comum. Ambas são muito sérias e densas, ambas trabalham com o psicológico dos personagens, ambas têm parentesco com Crime e castigo de Dostoiévski e, para terminar, ambos os autores foram comunistas e ambos foram presos em meados dos anos 30.
Em 1935, Dyonélio recebeu o Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras por Os Ratos. Soube da premiação quando estava preso, incomunicável, no porão de um navio estacionado no porto de Santos. Apesar disso, um amigo conseguiu lhe avisar do fato.
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Dyonelio Machado nasceu em Quarai, RS, em 1895. Político, psiquiatra, jornalista e poeta, aos 12 anos já trabalhava no semanário O Quaraí. Em 1911, fundou o jornal O Martelo, onde deixa clara sua adesão ao comunismo. Em 1929, formou-se médico e estudou psicanálise, constituindo-se num dos responsáveis pela divulgação da nova disciplina no Rio Grande do Sul. Em 1934, traduziu a obra Elementos da psicanálise, de Eduardo Weiss, livro fundamental na área.
Dyonelio Machado dividia-se entre a política, a psiquiatria e a literatura. O interesse pela última foi demonstrado por seu primeiro livro de contos – Um pobre homem – publicado em 1927. Depois viria sua mais importante obra, Os ratos, de 1935, e O louco do Catí (1942), outro romance clássico do autor. Sua obra foi reconhecida tardiamente, tendo recebido destaque nos meios acadêmicos apenas a partir da década de 80. Foi ainda um dos fundadores da Associação Rio-grandense de Imprensa (ARI) e, mais tarde, colaborador dos jornais Correio do Povo e Diário de Notícias, de Porto Alegre. Em 1946, com Décio Freitas, fundou o jornal Tribuna Gaúcha, porta-voz do Partido Comunista Brasileiro.
Membro do PCB, em 1935 foi acusado de atentar contra a ordem política e social ao trabalhar para a realização de uma greve de gráficos. Solto mediante sursis, voltou a ser preso no mesmo ano, em razão da Intentona Comunista. Suas posições ideológicas custaram-lhe dois anos passados na prisão. Mas seguiu fazendo política, tanto que foi deputado constituinte pela Partidão e, em 1947, com o PCB na legalidade, elegeu-se deputado estadual, tornando-se líder da sua bancada na Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul.
Em 1956, numa entrevista para o jornal A Hora, disse: “Se algum conselho eu tivesse o direito de dar aos jovens, seria de que a vida deve ser vivida com indiferença”. E, pouco antes de morrer, Dyonelio concedeu uma longa entrevista para Julieta de Godoy Ladeira onde fez uma declaração que sempre surpreende os que tem contato com seus bem cuidados textos: “Não releio o que faço. Meu narcisismo nasce e morre à primeira e única revisão”.
Dyonélio Machado faleceu em 1985, aos 90 anos.
Fontes:
— História da Literatura do Rio Grande do Sul, de Guilhermino Cesar
— O Pensamento Político de Dyonélio Machado, publicação da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul
— Tiro de Letra
— Passeiweb
Quem conheceu Otto Maria Carpeaux descrevia-o como uma espécie de monstro. O escritor José Roberto Teixeira Leite era seu amigo e desenhava assim a figura do austríaco: “Carpeaux foi um dos homens mais feios que conheci. Sua aparência neandertalesca, todo mandíbulas e sobrancelhas, fazia a delícia dos caricaturistas: parecia um troglodita, mas um troglodita que lia Homero e Virgílio no original, que se deliciava e ensinava sobre Bach e Beethoven, que diferenciava e palestrava sobre Rubens e Van Dyck”. Carpeaux também era gago. Carlos Drummond de Andrade, outro amigo, disse que, numa viagem de carro, ele foi citar Kierkegaard. “Começou a falar quando saímos de Juiz de Fora, Ki… Ki… Ki… e só completou o nome do autor dinamarquês em Barbacena, uns 80 quilômetros adiante’.
Antes de ser Otto Maria Carpeaux no Brasil, ele foi Otto Karpfen, um austríaco que estudou filosofia (doutorou-se em 1925), matemática (em Leipzig), sociologia (em Paris), literatura comparada (em Nápoles) e política (em Berlim); além de dedicar-se à música. Mesmo gago, ele falava e escrevia em inglês, francês, italiano, alemão, espanhol, flamengo, catalão, galego, provençal, latim e servo-croata. Mas não sabia muito da língua portuguesa quando chegou ao Brasil no final de 1939, fugido da Alemanha nazista. Tinha pai judeu e mãe católica. Identificava-se como católico. Quando chegou, foi trabalhar no interior do Paraná, numa fazenda, no campo.
O austríaco Stefan Zweig chegou aqui já famoso. Era um romancista muito popular. Judeu e austríaco, foi também poeta, dramaturgo, jornalista e biógrafo. Para as gerações mais antigas, Zweig era principalmente o autor de biografias. Escreveu várias: de Dostoiévski, Dickens, Balzac, Nietzsche, Tolstoi, Stendhal e uma famosíssima na primeira metade do século XX, de Maria Antonieta. Conseguiu o reconhecimento como romancista nas décadas de 20 e 30. Neste período, destacam-se os romances “Amok” (1922), “Angústia” (1925) e “Confusão de Sentimentos” (1927).
Em 1934 deixou o país e passou a viver na Inglaterra, entre Londres e Bath, onde se naturalizou cidadão britânico. Com o início da Segunda Guerra Mundial e o avanço das tropas de Hitler, o casal atravessou o Atlântico em 1940 e se estabeleceu nos Estados Unidos. Em 22 de agosto do mesmo ano, veio pela primeira vez ao nosso país. Ao todo, Zweig e sua esposa Lotte fizeram três viagens ao Brasil. Durante a primeira, entre 1940 e 1941 para uma série de palestras, escreveu:
“Você não pode imaginar o que significa ver este país que ainda não foi estragado por turistas e tão interessante. Hoje estive nas cabanas dos pobres que vivem aqui com praticamente nada (as bananas e mandiocas estão crescendo em volta), as crianças se desenvolvem como se estivessem no Paraíso — , a casa inteira, desde o chão, lhes custou seis dólares e, por isso, são proprietários para sempre. É uma boa lição ver como se pode viver simplesmente e, comparativamente, feliz — uma lição para todos nós que perdemos tudo e não somos felizes o bastante agora”.
É uma visão sociologicamente ingênua, mas demonstrava algum amor pelo país que adotaria.
O judeu Herbert Caro veio da Alemanha para Porto Alegre. Tinha em comum com Carpeaux a cultura literária enciclopédica e o profundo amor pela música. Na Alemanha, fora impedido de exercer a advocacia devido à promulgação das primeiras leis antissemitas pelo governo nazista. Primeiramente, refugiou-se na França, onde estudou Letras Clássicas na Universidade de Dijon. Para sustentar-se, dava aulas de latim e pingue-pongue – Caro havia integrado a seleção alemã de tênis de mesa durante seis anos e sido um dos dirigentes da federação de 1926 a 1933. Permaneceu um ano na França. Pressentindo a proximidade da guerra, buscou novo exílio. O Brasil surgiu como a melhor opção. Afinal, um amigo dissera que era um país barato de se viver. E Herbert Caro chegou a Porto Alegre em 7 de maio de 1935. Na mala, pouca coisa; no cérebro, um vocabulário de cerca de três mil palavras que aprendera em algumas aulas de português antes da viagem.
O vocabulário permitia que ele entendesse o Correio do Povo e pedisse informações na rua sem compreender perfeitamente a resposta. O ouvido ainda não estava acostumado. Seus conhecimentos de Direito eram inúteis e o doutorado em Filosofia também pouco valia na Porto Alegre da década de 30. O domínio de várias línguas proveu a subsistência nos primeiros anos e direcionou sua vida.
A ensaísta Flora Süssekind, num livro sobre literatura brasileira, criou o belo título Tal Brasil, qual romance? É com este espírito — apenas com o espírito, pois nossa pobre capacidade nos afasta inexoravelmente de Flora — que pautamos para este domingo o que representou (ou pesou) a União Soviética em termos culturais. Sua origem, a Rússia czarista, foi um estado que mudou o mundo não apenas por ter se tornado o primeiro país socialista do planeta, mas por ter sido o berço de uma das maiores literaturas de todos os tempos. Quem lê a literatura russa do século XIX, não imagina que aqueles imensos autores — Dostoiévski, Tolstói, Tchékhov, Turguênev, Leskov e outros — viviam numa sociedade com resquícios de feudalismo. Através de seus escritos, nota-se claramente a pobreza e a base puramente agrária do país, mas há poucas referências ao czar, monarca absolutista que não admitia oposição e que tinha a seu serviço uma eficiente censura. Na verdade, falar pouco no czar era uma atitude que revelava a dignidade daqueles autores.
No início do século XX, Nicolau II, o último czar da dinastia Romanov, facilitou a entrada de capitais estrangeiros para promover a industrialização do país, o que já ocorrera em outros países da Europa. Os investimentos para a criação de uma indústria russa ficaram concentrados nos principais centros urbanos, como Moscou, São Petersburgo, Odessa e Kiev. Nessas cidades, formou-se um operariado de aproximadamente 3 milhões de pessoas, que recebiam salários miseráveis e eram submetidos a jornadas de até 16 horas diárias de trabalho, sem receber alimentação e trabalhando em locais imundos. Ali, havia um ambiente propício às revoltas e ao caos social, situação que antecedeu o nascimento da União Soviética, país formado há 90 anos atrás, em 30 de dezembro de 1922.
Primeiro, houve a revolta de 1905. No dia 9 de janeiro daquele ano, um domingo, tropas czaristas massacraram um grupo de trabalhadores que viera fazer um protesto pacífico e desarmado em frente ao Palácio de Inverno do czar, em São Petersburgo. O protesto, marcado para depois da missa e com a presença de muitas crianças, tinha a intenção de entregar uma petição — sim, um papel — ao soberano, solicitando coisas como redução do horário de trabalho para oito horas diárias, assistência médica, melhor tratamento, liberdade de religião, etc. A resposta foi dada pela artilharia, que matou mais de cem trabalhadores e feriu outros trezentos. Lênin diria que aquele dia, também conhecido como Domingo Sangrento, foi o primeiro ensaio para a Revolução. O fato detonou uma série de revoltas internas, envolvendo operários, camponeses, marinheiros (como a revolta no Encouraçado Potemkin) e soldados do exército.
Se internamente havia problemas, também vinham péssimas notícias do exterior. A Guerra Russo-Japonesa fora um fiasco militar para a Rússia, que foi obrigada a abrir mão, em 1905, de suas pretensões sobre a Manchúria e na península de Liaodong. Pouco tempo depois, já sofrendo grande oposição interna, a Rússia envolveu-se em um outro grande conflito, a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), onde também sofreu pesadas derrotas em combates contra os alemães. A nova Guerra provocou enorme crise no abastecimento das cidades, desencadeando uma série de greves, revoltas populares e fome de boa parte da população. Incapaz de conter a onda de insatisfações, o regime czarista mostrava-se intensamente debilitado até que, em 1917, o conjunto de forças políticas de oposição (liberais e socialistas) depuseram o czar Nicolau II, dando início à Revolução Russa.
A revolução teve duas fases: (1) a Revolução de Fevereiro, que derrubou a autocracia do czar Nicolau II e procurou estabelecer em seu lugar uma república de cunho liberal e (2) a Revolução de Outubro, na qual o Partido Bolchevique derrubou o governo provisório. A Revolução Bolchevique começou com um golpe de estado liderado por Vladimir Lênin e foi a primeira revolução comunista marxista do século XX. A Revolução de Outubro foi seguida pela Guerra Civil Russa (1918-1922) e pela criação da URSS em 1922. A Guerra Civil teve como único vencedor o Exército Vermelho (bolchevique) e foi sob sua liderança que foi criado o Estado Soviético. Lênin tornou-se, assim, o homem forte da Rússia, acompanhado por Trotsky e Stálin. Seu governo foi marcado pela tentativa de superar a crise econômica e social que se abatia sobre a nação, realizando reformas de caráter sócio-econômico. Contra a adoção do socialismo na Rússia ergueu-se uma violenta reação apoiada pelo mundo capitalista, opondo o Exército Vermelho aos russos brancos (liberais).
O país que emergiu da Guerra Civil estava em frangalhos. Para piorar, em 1921, ocorreu a Grande Fome Russa que matou aproximadamente 5 milhões de pessoas. A fome resultou do efeito conjugado da interrupção da produção agrícola, que já começara durante a Primeira Guerra Mundial, e continuou com os distúrbios da Revolução Russa de 1917 e a Guerra Civil. Para completar, houve uma grande seca em 1921, o que agravou a situação para a de uma catástrofe nacional. A fome era tão severa que a população comia as sementes em vez de plantá-las. Muitos recorreram às ervas e até ao canibalismo, tentando guardar sementes para o plantio. (Não terá saído daí a fama dos comunistas serem comedores de criancinhas? Num documentário da BBC sobre o século XX, uma mulher, ao lembrar-se da fome, conta que sua mãe tentou morder sua filha pequena e que ela precisou trancar a mãe e fugir da casa. Bem, continuemos).
Liev Tolstói foi o primeiro grande injustiçado pelo Prêmio Nobel. Nascido em 9 de setembro de 1828, o escritor russo viveu até 1910 — o prêmio começou a ser entregue em 1901 — e, em seus últimos anos de vida, já era uma figura incontornável não apenas da literatura russa, mas da mundial. Ele foi um dos primeiros a entrar numa importante lista de não ganhadores que depois ganharia outros nomes notáveis como Marcel Proust, James Joyce, Vladimir Nabokov, Franz Kafka, Jorge Luis Borges, Machado de Assis, Émile Zola, Henrik Ibsen e Paul Valéry, para citar alguns. Obviamente, alguns destes nomes apenas tornaram-se importantes post mortem ou, como Machado de Assis, escreviam em línguas menos traduzidas, mas o caso de Tolstói foi bastante estranho, pois, como dissemos, o escritor viveu grande parte de sua vida como uma indiscutível celebridade. Nada mais merecido.
Caso semelhante ao de Dostoiévski, Tolstói foi por anos lido no Brasil em traduções de segunda mão. Isto é, como não havia no país tradutores de russo, ambos eram traduzidos do francês… Apenas nos últimos 30 anos, começaram a aparecer as traduções diretas do russo, as quais revelaram o descuido e o desrespeito com que eram tratados estes autores, além de muitos outros. O elogio mais comum feito a Tolstói era o de que se tratava de um estilista absolutamente impecável. O tradutor Rubens Figueiredo, que recentemente traduziu para a Cosac & Naify seus três principais romances — Anna Kariênina, Guerra e Paz e Ressurreição — obrigou-se a escrever uma série de explicações a respeito de certas estranhezas em seu texto. Ocorre que no original há repetições de palavras bem próximas umas das outras, procedimento que Figueiredo criteriosamente manteve, mas que os antigos tradutores não admitiam. Por exemplo, nas páginas 241-242 de Anna Kariênina (Cosac & Naify) há um parágrafo de quase uma página onde a palavra “camponeses” aparece 15 vezes. Tais repetições não devem ser confundidas com descaso. “Gosto daquilo que chamam de incorreção. Ou seja, daquilo que é característico”, dizia Tolstói. Também o uso de parênteses eram corrigidos pelos tradutores do passado, assim como as frases, muitas vezes longuíssimas, acabavam particionadas.
Desta forma, um dos caminhos para estarmos mais próximos do autor russo é o de procurar as traduções feitas diretamente do original e ignorar as antigas traduções da Editora Globo para Guerra e Paz e Kariênina, por exemplo, as quais traziam um autor distorcido, com maior elegância e polimento do que o original. Pois para expressar o pensamento mais simples de alguns mujiques — os camponeses russos — , Tolstói se utilizava de pouco requinte e de um vernáculo mais limitado. O escritor russo também pensava que, em alguns casos, as repetições davam mais coesão e clareza a certos trechos.
Nestes dois grandes romances, Tolstói demonstra sua arte de forma inequívoca. Ele foi um perfeito contador de histórias polifônicas. Trabalhava com muitos personagens, as interações entre eles, suas ações e pensamentos nunca são artificiais e, de forma profundamente humana, até as paisagens descritas passam pelo filtro do estado de espírito de quem as observa. Guerra e Paz e Anna Kariênina são belíssimas sinfonias para muitas vozes. Chama atenção o caminhão de realismo despejado pelo autor sobre seus personagens. Anna, por exemplo, está a léguas de poder aspirar a uma condição de boa pessoa do século XIX ou de qualquer tempo. Na época, ser virtuoso era o que mais contava e ela, passando por cima de Kitty e largando seu marido por pura concupiscência, renegando a filha ainda bebê e sendo suscetível a atitudes muito impulsivas, está longe do ideal virtuoso. Para completar, encontra justificativas para quase todos os seus atos, porém Tolstói não esboça o menor gesto de justificá-la assim ou assado.
Já as novelas Sonata a Kreutzer e A Morte de Ivan Ilitch são o extremo contrário. Focadas, com poucos personagens e devastadora análise psicológica, a primeira fala sobre o casamento, a infidelidade e a hipocrisia social e a segunda sobre a morte. Em agosto de 1883, duas semanas antes de falecer, o escritor russo Ivan Turguêniev escreveu a Tolstói: “Faz muito tempo que não lhe escrevo porque tenho estado e estou, literalmente, em meu leito de morte. Na realidade, escrevo apenas para lhe dizer que me sinto muito feliz por ter sido seu contemporâneo, e também para expressar-lhe minha última e mais sincera súplica. Meu amigo, volte à literatura”. Tolstói era efetivamente dado a passar longos períodos sem escrever e, diante do pedido do amigo, respondeu com a angustiada consciência do irrepreensível juiz Ivan Ilitch em breves 85 páginas. No texto, é mostrado um rigoroso acerto de contas interno, revelando a inutilidade da vida de Ivan. Preso ao leito, frente à morte certa, Ivan Ilitch vê como a rotina, nosso mais pesado algoz, e a vida burguesa impediram-no de apenas… pensar.
Se considerarmos sua obra como ficcionista, chegaremos à conclusão de que quase tudo aquilo que criou ainda é lido. Os três romances citados, mais as novelas A felicidade conjugal, Sonata a Kreutzer e A morte de Ivan Ilitch, além de relatos autobiográficos e de contos populares são a parte principal de sua obra. Tolstói foi romancista, novelista, contista, ensaísta e dramaturgo. Mas também foi o filósofo criador do tolstoísmo, uma forma de vida pastoral e pacifista que hoje nos parece bastante aparentada da forma de vida dos hippies dos anos 60 do século XX.
Atualmente, o lado filósofico e a vida pessoal de Tolstói fazem a festa de outros autores, de filmes e séries de TV. Só para citar os casos mais conhecidos: em Diário de uma Ilusão, de Philip Roth (cujo título original é The Ghost Writer, o que nos faz pensar nos critérios dos antigos tradutores de nosso retratado), há um capítulo intitulado Casado com Tolstói, que se refere ao contumaz sumiço de um dos cônjuges. Também houve o bom filme A última estação, onde vemos as causas de uma das tais fugas. É que, para além de ser um gênio, o escritor russo era um puro. Tão puro que gerava suspeitas. Em 1856, ele, que fazia parte da nobreza russa, libertou todos os seus servos e doou-lhes as terras onde trabalhavam. Estes, porém, desconfiados, devolveram as propriedades ao ex-dono. Ele tinha, aliás, uma recorrente inclinação de desfazer-se de seus bens materiais, inclinação que não estava de acordo com a opinião de sua esposa Sônia.
No final da década de 1850, preocupado com a péssima qualidade da educação no meio rural, Tolstói criou uma escola para filhos de camponeses na aldeia onde nasceu e viveu, a célebre Iasnaia Poliana. O escritor mesmo escreveu grande parte do material didático e, ao contrário da pedagogia da época, deixava os alunos estudarem quando quisessem, sem regras excessivas e, estranhamente, sem punições físicas. Educar para libertar. Esse era seu norte pedagógico. Recentemente, parte do material criado para a escola por seu fundador foi traduzido do russo. Contos da Nova Cartilha é o resultado desta incursão. A obra é uma coletânea de textos extraídos das duas cartilhas elaboradas por Tolstói. São fábulas, histórias reais, contos folclóricos, descrições de paisagens naturais e adivinhações. O estilo é conciso, aproximando-se do ritmo da linguagem oral.
Em 1862, casou-se com Sônia Andreievna Bers, com quem teve 13 filhos. A qualidade do casamento seria melhor aferida por um sismógrafo. Foi neste ambiente que Tolstoi produziu seus principais romances. Guerra e Paz consumiu sete anos de trabalho e é a prova de que um mau casamento pode produzir bons frutos. O autor atormentava-se mais do que habitual em seres humanos com questões sobre o sentido da vida e, após desistir de encontrar respostas na filosofia, na religião e na ciência, deixou seduzir-se pelo estilo de vida dos camponeses. Foi o que ele chamou de sua “conversão”. Após a “conversão”, Tolstói deixou de beber e fumar, tornou-se vegetariano e passou a vestir-se como camponês. Convencido de que ninguém deveria depender do trabalho alheio para viver, passou a limpar seu quarto, a plantar a comida da qual se alimentava e a produzir as próprias roupas e botas. Suas ideias atraíram um séquito de seguidores, que se denominavam “tolstoianos”. Como resultado, Tolstói passou a ser vigiado pela polícia do czar.
Porém, Sônia não o deixava alcançar a simplicidade. Ela lhe cobrava os luxos aos quais estava acostumada. Os filhos davam razão à mãe, que ameaçava matar-se quando o escritor dizia que fugiria de casa. A partir de 1883, houve uma disputa entre sua esposa e Tchértkov, um militar que gozava da confiança do autor e que se tornou um paladino de suas ideias na Rússia. Sônia foi nomeada controladora de seu patrimônio, combatendo o marido, que acreditava nos feitos purificadores da caridade. Obviamente, a bondade de Tolstói levou-o a afastar-se do governo, da justiça e da Igreja Ortodoxa russa; acabou excomungado.
No período final de sua vida, acentuou-se a briga entre Sônia e Tchértkov. Agora o motivo eram os direitos autoriais de seus livros. Em 1908, Tchértkov escreveu um testamento em nome de Tolstói, onde outorgava a si mesmo o direito sobre os livros após a morte do autor. O militar foi para história como um mal intencionado que se aproveitava da credulidade do autor de Guerra e Paz. Provavelmente mereceu tal má fama póstuma. O fato é que os anos próximos à morte do escritor foram um inferno familiar. O conflito com Sônia era tal que Tolstói fez o que já fizera em oportunidades anteriores: fugiu de casa. Sônia não se matou, na verdade foi mais uma vez atrás do marido fugitivo. Só que desta vez ele morreu em meio à fuga. Faleceu na aldeia de Astápovo, em 7 de novembro de 1910. Anos depois, Sônia recuperou para a família os direitos sobre a obra de seu marido.
Poema da gare de Astapovo, de Mario Quintana
O velho Leon Tolstói fugiu de casa aos oitenta anos E foi morrer na gare de Astapovo! Com certeza sentou-se a um velho banco, Um desses velhos bancos lustrosos pelo uso Que existem em todas as estaçõezinhas pobres do mundo Contra uma parede nua… Sentou-se …e sorriu amargamente Pensando que Em toda a sua vida Apenas restava de seu a Glória, Esse irrisório chocalho cheio de guizos e fitinhas Coloridas Nas mãos esclerosadas de um caduco! E entao a Morte, Ao vê-lo tão sozinho aquela hora Na estação deserta, Julgou que ele estivesse ali a sua espera, Quando apenas sentara para descansar um pouco! A morte chegou na sua antiga locomotiva (Ela sempre chega pontualmente na hora incerta…) Mas talvez não pensou em nada disso, o grande Velho, E quem sabe se ate não morreu feliz: ele fugiu… Ele fugiu de casa… Ele fugiu de casa aos oitenta anos de idade… Não são todos que realizam os velhos sonhos da infância!
Estes são dois fragmentos — os mais literários — de uma série publicada pelo Diário de Notícias de Portugal. O autor é o jornalista Rui Pedro Antunes.
‘Index’ proíbe 79 livros de autores portugueses
Autores e especialistas portugueses mostram-se indignados por o Opus Dei ter uma lista de livros que proíbe os seus membros de ler. José Saramago é um dos escritores mais castigados ao nível mundial, sendo um dos recordistas no número de livros proibidos. Também ‘censurada’, Lídia Jorge diz que o Opus Dei deveria ter “vergonha” de ter este tipo de listagem, igualmente arrasada pela Sociedade Portuguesa de Autores. A lista é, porém, ‘legal’.
José Saramago e Eça de Queirós são os escritores portugueses mais castigados pela “lista negra” de livros do Opus Dei. A organização da Igreja Católica tem uma listagem de livros proibidos, com diferentes níveis de gravidade (ver topo da página), na qual põe restrições a 33 573 livros. Nos três níveis mais elevados de proibição encontram-se 79 obras de escritores portugueses. Autores portugueses contactados pelo DN mostram-se indignados com o que classificam de “Index” e “livros da fogueira”.
O Opus Dei sempre teve um Guia Bibliográfico, onde incluía os livros proibidos, com uma classificação de 1 a 6 (o nível mais elevado). Há quatro anos, aquilo que era uma lista de Excel que circulava pelos membros da obra, ganhou forma na Internet (http://almudi.org) e passou a estar aberto à contribuição dos membros. Como explica o Opus Dei Portugal, passou a existir um site “tipo crowdsourcing, aberto à contribuição de interessados, moderado por dois editores: Carlos Cremades e Jorge Verdià [membros da obra]”. Mudaram-se as designações, dividiram-se os livros em duas partes (literatura e não ficção), mas mantiveram-se os níveis de proibição. E há uma novidade: uma lista de filmes “desaconselhados”.
“Deus é um filho da puta”, escreveu Saramago num dos livros proibidos (Caim). Porém, não é preciso haver um nível tão direto de confronto à Igreja para que o livro seja proibido. Só nos três mais elevados níveis de interdição, Saramago tem 12 livros. Caim, o Evangelho Segundo Jesus Cristo, o Manual de Pintura e Caligrafia e o Memorial do Convento são definidos como os mais perigosos (6; LC-3).
A presidente da Fundação Saramago e viúva do escritor, Pilar del Río, classifica em entrevista ao DN (ver página 33) este índice de “grosseiro e repugnante”, deixando várias críticas à obra: “É uma organização a que chamamos seita porque somos educados. Por acaso, eles não são.” Pilar revela ainda que Saramago nunca escreveu sobre o Opus Dei porque considerava a organização “uma formiga” e mostra-se ainda chocada pelo facto de “neste nível de pensamento cartesiano e da razão haja quem se submeta à irracionalidade das seitas”.
A escritora Lídia Jorge – que também tem dois livros no mais elevado nível de proibição (Costa dos Murmúrios e O Dia dos Prodígios) – confessou-se “chocada” quando confrontada pelo DN com a existência da lista. Lídia Jorge disse mesmo que os membros do Opus Dei deviam ter “vergonha” e classifica quem fez a listagem de “gente retrógrada e abstrusa”. “São pessoas que desprezo porque se armam em mentores, em guardas morais, quando, no fundo, revelam uma ignorância absoluta sobre o papel da literatura.” Quanto às duas obras proibidas, Lídia Jorge explica que têm “uma linguagem e uma atitude mais libertária perante a vida” e que, talvez por isso, tenham sido censuradas. O que a repugna.
Freud e Marx, os mais censurados na não ficção
Tudo o que são clássicos e grandes obras da literatura mundial passaram pelo crivo dos delegados de estudos do Opus Dei. Por isso é difícil encontrar um grande escritor que não tenha sido ‘censurado’ pela obra. Dos últimos 15 prémios Nobel da Literatura só um não tem livros proibidos. Os restantes 14 têm 72 obras ‘proibidas’. Na não ficção, que inclui obras de grande importância científica, Marx, Freud ou Nietzsche estão entre os que não escaparam ao ‘lápis azul’ da organização.
As aventuras de Leopold Bloom a fazer a sua odisseia por Dublin (em Ulisses, de James Joyce), a chegada de Cândido a Lisboa após o terramoto de 1755 (em Cândido, de Voltaire) ou as dúvidas existenciais de Zuckerman (obras de Philip Roth) são histórias que os membros do Opus Dei não podem desfrutar. Grandes nomes da literatura e das ciências sociais mundiais fazem parte da lista de 33 573 livros proibidos pela obra.
Olhando, por exemplo, para os últimos 15 prémios Nobel da Literatura, apenas um (Le Clézio) escapou à lista negra de livros do Opus Dei. Só nos três mais elevados níveis de proibição (ver infografia na página 31) existem 72 obras. O peruano Mario Vargas Llosa (Nobel em 2010) conta com 17 obras nestes níveis de proibição. É imediatamente seguido pelo português José Saramago, com 12 títulos (ver páginas 30 e 31). Mas a lista não para por aqui: Doris Lessing (nove livros), John Coetzee (oito), Günter Grass (sete) e Elfriede Jelinek (quatro) são outros dos mais castigados. Orhan Pamuk apenas foi brindado com um livro proibido e os dois últimos nóbeis (Mo Yan e Tomas Tranströmer) têm livros classificados com níveis de interdição mais baixos.
E a lista de grandes autores proibidos está longe de se esgotar nos últimos laureados pelo maior prémio da literatura. O romance Ulisses, de James Joyce – um marco do modernismo literário -, tem o mais elevado nível de proibição (6; L-C3). O mesmo acontece com livros de autores como Albert Camus, Gabriel García Márquez, Samuel Beckett, Jean-Paul Sartre (também eles Nobéis), Voltaire, Aldous Huxley, Henry Miller, Truman Capote, Philip Roth ou Vladimir Nabokov.
Também “censurados”, mas com níveis de proibição mais baixos, surgem os nomes de Ernest Hemingway, Orwell, Jorge Luis Borges, Dostoievski, Kafka ou F. Scott Fitzgerald.
O líder do Opus Dei Portugal, José Rafael Espírito Santo, explica que esta lista é “no fundo estar a procurar um conselho para defender a fé”, lembrando que “o Papa João Paulo II antes de ler um livro consultava e perguntava se era um livro adequado”. O vigário regional do Opus Dei utiliza ainda uma metáfora para justificar a lista: “Há medicamentos que só se vendem com receita médica. Por quê? Porque uma pessoa que não saiba, em vez de fazer bem à saúde, pode fazer mal. A fé não se apoia na razão. E, portanto, pode haver modos de empregar a razão que sejam nocivos para o próprio ser humano porque a verdade é só uma.”
“Se Deus não existe e a alma é mortal, tudo é permitido”, diz o personagem Ivan Karamázov em Os Irmãos Karamázovi, de Dostoiévski. O russo era cristão e foi um escritor genial. Tão genial que lograva transferir-se para a pele de seus personagens de tal maneira que é difícil supor as ideias do homem por trás do romancista. Pois Dostoiévski não parece projetar-se em ninguém; em seus romances não há uma voz onisciente que comande tudo. Desta forma, o ateu Ivan Karamázov era provocativo, principalmente com seu irmão mais moço, o beato Aliócha, e a célebre frase é um caso exemplar de descontextualização por ter sido pronunciada por Ivan para Aliócha e não de Dostoiévski para uma plateia, por exemplo.
A noção de entidades superiores que julgam os atos dos homens talvez preceda a própria noção de humanidade. Para a antiguidade, de forma mais indiscutível do que hoje, Deus criara não apenas a vida e a existência do mundo e do universo, mas encarnava os preceitos éticos do certo e do errado. Deparando-se com o caos da vida e com leis insuficientes, os homens precisavam de limites. Sem eles, talvez os homens roubassem e matassem uns aos outros, cada um pensando ter direito a tudo. Deus os olharia e julgaria, no papel de representante do bem, do correto e da retidão, enquanto o Diabo representaria o mal, o errado, a destruição, o roubo e a morte. O ser humano que estivesse em coesão com Deus estaria de acordo com sua justiça.
Depois — durante toda a Idade Média e além, houve longo predomínio da moral cristã no mundo ocidental — , Deus permaneceu identificado com o Bem, a Justiça e a Verdade. Santo Agostinho (354-430), bispo, teólogo e filósofo da Igreja Católica, fundamentou a moral cristã na busca pela felicidade e a felicidade suprema consistiria num encontro com Deus na imortalidade. Só assim o homem poderia ser verdadeiramente feliz. E, para sê-lo, bastaria obedecer às leis e aos preceitos de Deus.
Desta forma, a Justiça dos homens acostumou-se a invocar Deus a fim de julgar corretamente os problemas do mundo, pois o contexto impedia a existência de teorias éticas autônomas da doutrina da Igreja. Todas elas, de uma forma ou outra, teriam que estar de acordo com os princípios divinos. Quem não viu filmes onde a testemunha, antes de responder a qualquer coisa, jurava dizer a verdade, somente a verdade, nada mais do que a verdade, com a mão sobre a Bíblia?
Crucifixo que abençoa o plenário da Câmara Municipal de Porto Alegre | Foto: Ramiro Furquim/Sul21.com.br
Não surpreende, portanto, que até hoje haja símbolos católicos nos prédios da Justiça e de outros órgãos públicos. É contra isto que a Liga Brasileira de Lésbicas (LBL) e outras cinco entidades protocolaram pedidos. Desejavam a retirada dos símbolos religiosos das repartições do Executivo estadual, da Assembleia Legislativa, da Câmara dos Vereadores de Porto Alegre e do TJ-RS, Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Em resposta, o juiz assessor Antonio Vinicius Amaro da Silveira utilizou o argumento de que, no preâmbulo da Constituição de 1988, consta a frase de que esta fora promulgada “sob a proteção de Deus” e isto garantiria que aqueles símbolos religiosos não deveriam ofender os ateus e os adeptos de outras crenças. Seriam esperados e “naturais”.
Naiara Malavolta, articuladora estadual (RS) da Liga Brasileira de Lésbicas, explica a ação na Justiça: “Primeiramente, há uma clara contradição na Constituição Federal. A constituição que declara o estado como laico foi escrita ‘sob a proteção de Deus’. O fato é que precisamos reagir contra a invasão do público pelo privado. Nas escolas, a história das religiões deveria ser ministrada por historiadores, não por religiosos. A consequência de toda esta presença é a desconstituição de direitos por parte de representantes da moral católica”. Sobre os símbolos, Naiara explica que os símbolos religiosos agridem boa parte dos homossexuais, pois simbolizam não apenas a fé como a tutela da instituição sob uma moral religiosa. “Muitos evangélicos, por exemplo, pouco sabem do que está escrito na Bíblia, mas ouvem o que é dito nas reuniões. E o que é dito é a posição majoritária evangélica: são homofóbicos, contra o aborto, propõem ‘curas gays’, etc. A oposição ao PLC122 (Projeto de lei que criminaliza a discriminação por orientação sexual) por parte da bancada evangélica diz tudo.
Monumento à Bíblia em praça de Paranavaí
O antropólogo Emerson Giumbelli, professor da UFRGS e coordenador do Núcleo de Estudos da Religião (NER) afirma que há, cada vez mais, iniciativas visando a retirada dos símbolos religiosos de locais públicos, mas que a resistência é forte. “As respostas costumam ser ou evasivas ou de clara recusa. Porém, se reconhecemos a sociedade como plural em termos religiosos, tais símbolos, tidos como naturais a quem professa a religião católica, deveriam ser retirados”. Perguntado sobre o fato dos símbolos serem católicos, Giumbelli respondeu que “o cruxifixo é uma imagem rigorosamente católica, os protestantes e muitos evangélicos usam as cruzes sem o Cristo. A novidade é que a Bíblia tem crescido como símbolo de religiosidade, principalmente entre os evangélicos, mas também em Câmaras de Vereadores, etc. Por exemplo, no interior do país, já há muitos Monumentos à Bíblia. Os crucifixos têm cada vez menor representatividade”.
Sobre o fato da iniciativa dos pedidos de retiradas serem basicamente dos movimentos LGBT, Giumbelli afirma: “É claro que tais movimentos são muito mais sensíveis à questão. Porém, e isto agora é uma opinião pessoal, penso que eles só conseguirão avançar quando um leque mais amplo da sociedade civil lhes der apoio. O fato é que não há mais símbolos consensuais. A extensão de cada um é limitada e há ainda que considerar as pessoas sem religião”.
O antropólogo da UFRGS faz questão de sublinhar um fato que vem ao encontro da manifestação do desembargador Túlio de Oliveira Martins, presidente do Conselho de Comunicação Social do TJ-RS e finaliza: “Fico feliz que esta discussão exista. Discutir símbolos religiosos ou a retirada total deles é muito importante. Além da questão cultural e pessoal há o princípio do estado laico que não deve ser desrespeitado”.
E Dostoiévski? Melhor esquecê-lo? Não, de modo algum. Afinal, a frase deve ser limitada a uma inteligente provocação de Ivan Karamázov a seu irmão Aliócha. A quem duvidar disto, bastará ler o que diz Raskolnikov em Crime e Castigo e saber que Dostoiévski jamais assassinou velhinhas a machadadas. O personagem acaba antes do autor, assim como o privado antes do público.
Publicado originalmente no Sul21 — É um texto antigo que foi bastante revisado para publicação no site
É curiosa a celebridade póstuma alcançada por Anton Tchékhov. Seja na Rússia ou em qualquer lugar do mundo, o escritor está cada vez mais próximo do nível de semideuses de Dostoiévski e Tolstói, só para ficar entre seus conterrâneos. É justo. Não há uma “grande obra” do autor, mas o numeroso mosaico formado por seus contos, peças teatrais e novelas merece lugar entre as maiores da literatura ocidental.
O fascínio de nossa contemporaneidade com o escritor russo não é casual: o realismo, a clareza, o humor, a leveza, a abordagem compreensiva dos personagens, a pouca ênfase a coisas que outros escreveriam cheios de exclamações — ele parece dizer: não te ajudarei, descubra sozinho o que há de importante aqui — , a imaginação para criar cenas e situações significantes, sua visão sem ilusões do amor e a total falta de preconceitos não apenas o permitia transitar por toda a sociedade russa do século XIX como permite que o mesmo aconteça entre os leitores de hoje. Talvez ele não fale a todos da mesma forma, mas há um fato comum citado por vários ensaístas: ele é uma leitura inteligente cuja presença e essência é amiga e irônica. Ou seja, ele vicia.
Tchékhov viveu apenas 44 anos e era médico. Até os 26 anos, publicou 300 histórias em jornais russos, quase todas cômicas. Vivendo em Moscou, era obscuro. Porém, sem que soubesse, estava tornando-se famoso em São Petersburgo, onde tinha numerosos leitores. Isto perdurou até o dia em que recebeu uma carta do severíssimo crítico Grigorovitch:
Os atributos variados de seu indiscutível talento, a verdade de suas análises psicológicas, a maestria de suas descrições (…) deram-me a convicção de que está destinado a criar obras admiráveis e verdadeiramente artísticas. E o senhor se tornará culpado de um grande pecado moral, se não corresponder a estas esperanças. O que lhe falta é estima por este talento, tão raramente conhecido por um ser humano. Pare de escrever depressa demais…
Tchékhov mudou e, sem perder a graça e a leveza mozartiana de seu texto, tornou-se realista. O novo estilo custou-lhe violentas críticas, que acusavam seu “mau gosto” e a utilização de “detalhes sujos e grosseiros”. Ele respondeu: “Pensar que a literatura tem como finalidade descobrir as pérolas e mostrá-las livres de qualquer impureza, equivale a rejeitá-la.”
Rubens Figueiredo, tradutor e prefaciador de O Assassinato e outras histórias faz importantes observações sobre Tchékhov:
No ambiente intelectual russo, o debate só parecia fazer sentido quando tomava formas extremadas. A fama crescente de Tchékhov e a expectativa em torno de seus textos obrigaram-no a defender-se dos mal-entendidos, cada vez mais numerosos.
Os leitores russos se haviam acostumado a tomar os escritores como campeões de credos políticos e religiosos mas, no caso de Tchékhov, esbarravam em textos obstinadamente inconclusivos. Mais grave ainda, suas entrelinhas pareciam indicar que tanto as grandes sínteses intelectuais quanto os padrões de pensamento herdados pelos costumes serviam antes para encobrir a realidade.
O desconcertante é que Tchékhov consegue munir sua prosa de uma sutileza capaz de sugerir outras camadas de experiência, como se a realidade nunca se esgotasse.
E, mais desconcertante para a época:
Para Tchékhov, a religião era moralmente indiferente. Ou seja, a crença, seus conceitos, seus símbolos e rituais eram ineficazes para deter a crueldade e o egoísmo, mas tampouco constituíam suas causas.
E o próprio Tchekhov escreveu, demonstrando uma posição absolutamente moderna, a do escritor que se nega a proferir “verdades”:
Não cabe ao escritor a solução de problemas como Deus ou o pessimismo; seu trabalho consiste em registrar quem, em que circunstâncias, disse ou pensou sobre Deus e o pessimismo.
Indicações de leitura
Há muitos livros de Tchékhov para serem indicados. Como ele era contista, novelista e dramaturgo, há muitas coletâneas e, nelas, muitos contos e novelas repetidas. Vamos começar pelas peças teatrais: As Três Irmãs, A Gaivota, Tio Vânia e O Jardim das Cerejeiras são tão extraordinárias que prescindem dos atores e podem ser lidas como uma novela de diálogos. O extraordinário A Enfermaria Nº 6 está em vários livros, assim como os contos Inimigos, A Dama do Cachorrinho e um conto clássico que os tradutores deveriam reunir-se a fim de estabelecer um nome, pois ele pode se chamar Queridinha aqui, O Coração de Olenka ali, Dô-doce (?) acolá, assim como Amorzinho ou qualquer outra coisa.
A novela A Estepe, curta e genial, narra a viagem de uma criança como uma metáfora da viagem que atravessamos sem saber porque e para quê. A impressão estranha que a novela causa é semelhante a causada pelo filme Olhos Negros de Nikita Mikhálkov, em que Mastroianni recorda “as névoas da Rússia num passeio de carruagem, na infância, há muito tempo”.
O melhor livro talvez seja uma tradução dos contos feita por Bóris Schnaidermann:
— A Dama do Cachorrinho e outros contos. Editado primeiro pela Civilização Brasileira, depois pela Max Limonad e finalmentye para Editora 34.
Outros livros:
— Contos e Novelas. Edições Ráduga (Moscou). 1987. Um primor de tradução para o português realizada por Andrei Melnikov.
— O Assassinato e outras histórias. Cosac & Naify. 2002. Trad. de Rubens Figueiredo.
— O Beijo e outras histórias. Círculo do Livro. 1978. Trad. de Bóris Schnaidermann.
— A Enfermaria Nº 6 e outros contos. Editorial Verbo. 1972. Trad. de Maria Luísa Anahory.
— Os mais brilhantes contos de Tchekhov. Edições de Ouro. 1978. Trad. de Tatiana Belinky.
— Lenco Tchékhov. Ensaio e Contos. Ediouro. 2004. Trad.de Tatiana Belinky.
Filmes: há dois esplêndidos filmes de Nikita Mikhálkov baseados “em qualquer coisa de Tchékhov” (palavras do próprio diretor e roteirista): Peça Inacabada para Piano Mecânico (1977) e o famoso Olhos Negros (1987) com Marcello Mastroianni detonando no papel principal atrás da Dama do Cachorrinho.
A opinião de Tolstói
Os personagens de Tchékhov são cheios de boas intenções sobrecarregadas de estupidez, inatividade e finalidade. Tchekhov é moderno em sua concisão, pouca adjetivação e principalmente na recusa em explicar o mundo. Confrontado com as idéias de Tolstói — o qual em seus textos parece ter resolvido todos os impasses da humanidade — , Tchékhov era um apresentador de realidades complexas e insolúveis que habitam uma dentro da outra. Também defendia, uma novidade na época, os efeitos benéficos da ciência e do progresso. Porém, apesar de totalmente diferente, Tolstói apreciava muito sua obra.
Em vida, Anton Tchékhov era razoavelmente conhecido, mas não era uma celebridade. Após sua morte, Tolstói disse: “Creio que Tchékhov criou novas — absolutamente novas — formas de literatura que não encontrei em parte alguma. Deixando de lado falsas modéstias, afirmo que Tchékhov está muito acima de mim”.
Naquele tempo, os contemporâneos não deram atenção a esta opinião. Pensavam que o conde já idoso estava a superestimar o amigo, atribuindo-lhe características acima das que merecia. Passados cem anos, vemos agora que Tolstói não estava tão equivocado. Atualmente, na Rússia, Anton Tchékhov encontra-se ao lado dos grandes clássicos: Púchkin, Gogol, Dostoiévski e Tolstói. E, como dramaturgo, está entre os mais célebres e montados autores mundiais.
As mortes de Tchékhov
Anton Pavlovitch Tchekhov sentou-se na cama e de maneira significativa disse, em voz alta e em alemão: ´Ich sterbe´ – estou morrendo. Depois, segurou o copo, voltou-se para mim, sorriu seu maravilhoso sorriso e disse: ´Faz muito tempo que não bebo champanhe´. Bebeu todo o copo, estendeu-se em silêncio e, instantes depois, calou-se para sempre. E a pavorosa calma da noite foi apenas alterada por um estampido terrível: a rolha da garrafa não terminada voou longe.
Olga Knipper, esposa de Anton Tchékhov.
A morte de Tchékhov no balneário de Badenweiler é uma das mais recontadas da historia da literatura. Parece haver enorme sedução na cena do escritor moribundo, sua mulher, seu médico, o estudante que chegou para ajudar e a garrafa de champanhe. Quem pediu a bebida? O médico ou Tchékhov? A sedução é tanta que o grande Raymond Carver escreveu um conto, Três rosas amarelas, no qual narra a cena, só que cheia de detalhes inventados. Talvez isso tenha nascido da narrativa de Olga Knipper, atriz e mulher do escritor. Em seu relato, a cena é contada com tanto, mas tanto romantismo que não parece verdadeira. O cômico sobre sua morte é que a prórpia Olga narrou a morte do marido várias vezes. De forma sempre diversa…
Faz pouco mais de 100 anos que o fato narrado ocorreu. Tchékhov faleceu em 15 de julho de 1904 em Badenweiler, Alemanha. Tinha nascido em 29 de janeiro de 1860.
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Comentário de: PAULO TIMM | 29 de janeiro de 2012 | 16:29 |Editar
Suplico , por favor, a publicaçao do citado conto:
Raymond Carver -Três rosas amarelas
E, se for impossível, peço que me enviem por email. Fico morrendo de ansiedade para lê-lo. Aguardo [email protected]
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Comentário de: Celso | 29 de janeiro de 2012 | 17:50 |Editar
Além do Tchekhov, o escritor que está acima de todos, é fundamental conhecer o que pensava o homem Tchekhov. Sugiro 2 livrinhos imprescindíveis, ambos de 2007 e editados pela editora Martins (São Paulo): “UM BOM PAR DE SAPATOS E UM CADERNO DE ANOTAÇÕES – Como fazer uma reportagem” e “SEM TRAMA E SEM FINAL – 90 conselhos de escrita”, ambos baseados em correspondências de Anton Tchekhov.
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Comentário de: Jeferson | 30 de janeiro de 2012 | 0:22 |Editar
Estupenda apresentação. Parabéns. Vou só deixar uma discordância, a título de colaboração. Não concordo com a ideia de ler o teatro do Tchekhov como se fosse novela. Acho que o leitor ganha em salientar as diferentes tarefas dos dois gêneros e em compreender como o autor fez uso dessas diferenças.
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Comentário de: Jéferson Assumção | 30 de janeiro de 2012 | 9:33 |Editar
Parabéns, pelo texto. Sugiro colocar na lista Consejos a un Escritor, com as cartas entre ele e Olga. Há quatro anos, seis amigos me presentearam com os seis volumes dos contos completos de Tchecov. Maravilhoso!
Meu amigo Ricardo Branco conta uma história mais ou menos assim: um dia um leigo pediu para que Albert Einstein lhe explicasse a Teoria da Relatividade. Einstein detalhou-a e o cara não entendeu nada, pedindo nova explicação. Tudo repetiu-se com o cientista facilitando um pouco as coisas, mas o sujeito não entendia. Na terceira ou quarta explicação, o leigo finalmente entendeu, mas então Einstein respondeu: “Bem, mas acho que simplifiquei tanto que o que disse não descreve mais a Teoria da Relatividade”.
Fiquei com esta historinha na cabeça enquanto lia este livro de Pamuk. Quem lê romances há quase quarenta anos sabe que é uma arte complicada, quem consegue enxergar as falhas e discutir os erros e o leque de opções que eles apresentam, acaba por valorizar a arte contida no gênero literário mais popular e que literalmente engole as outras formas literárias por onde passa. Neste O romancista ingênuo e o sentimental (Cia. das Letras, 146 páginas), Pamuk simplifica tanto, é tão brilhante e claro em suas analogias que, durante a leitura, ficava feliz, mas pensando se ele não estava agindo como o Einstein da historinha do Branco.
Olha, eu acho que não. Achei o livro brilhante mesmo. Hesitei muito (dois dias…) para escrever esta curta resenha por pura insegurança. Estava esperando uma segunda opinião. E ontem li algumas listas de melhores livros de 2011. Como sempre faço, fui ler os nomes dos votantes e dei de cara com o de José Castello. Pô, esse eu respeito. Melhor livro estrangeiro de 2011? O ensaio O romancista ingênuo e o sentimental, de Orhan Pamuk, seguido de outros livros de Flusser, Barthes, Macedonio Fernández e Tolstói.
Ok, então! O livro consiste de seis palestras sobre o romance proferidas por Pamuk na Universidade de Harvard. O ritmo é o da conversa, o mesmo utilizado no clássico Aspectos do Romance, de E. M. Forster. A Carol Bensimon, que não leu ainda este livro do Pamuk, me perguntou se eu já tinha lido o Como Funciona a Ficção (How Fiction Works) do genial James Wood. Não, não li. Mancada, tenho que comprar.
Pamuk fala sobre a série de questões que angustiam quem escreve um romance. Planejar ou não? Como esconder o verdadeiro centro (assunto ou discurso) do romance? É mesmo deselegante mostrá-lo claramente? Como um romance cresce e se transforma? (Exemplo: o verdadeiro camaleão Moby Dick — inicia como a vida do mar, vai para a obsessão e termina como metáfora do mundo inteiro). Como utilizar a memória ou a experiência do leitor? E a trama? E o tempo? E as descrições? Claro que não ensina nada e que ninguém vai tornar-se escritor após a leitura, mas reflete sobre os problemas de forma organizada e inteligente. Se quisesse provocar, diria que funciona melhor do que qualquer oficina literária, às quais também não ensinam ninguém sobre como tornar-se escritor e que raramente tem um Pamuk como instrutor…
Indico fortemente a leitura. Mas o livro torna-se ainda melhor se o leitor conhecer Tolstói (principalmente Anna Kariênina, mas tambémGuerra e Paz), Dostoiévski, Melville, Borges e Calvino. Muito são citados, mas estes são os principais. O estranho título do livro refere-se ao ensaio de Schiller que fala sobre os escritores ingenuamente inconscientes e os sentimentalmente reflexivos.
O curador, responsável pelo espólio ou autor da fascinante personagem Alma Welt volta a atacar repetidamente, desta vez no Facebook. O ataque é dos mais, digamos, doces. Ele vem através de mais e mais poemas da singular obra desta autora que certamente jamais existiu, apesar de ter biografia e livro publicado. Anos atrás, um dos comentaristas deste blog — um policial — chegou a investigar as mortes ocorridas na região do estado onde teria vivido Alma Welt. Nada. Se a coisa ainda pudesse piorar, diria que em alguns poemas e textos noto um tom gauchesco meio forçado, talvez pelo fato do autor ser paulista. Guilherme de Faria é um talentoso desenhista e gravurista. É também um poeta extremamente prolífico — tem obra literária própria e os escritos de Alma Welt não param de surgir. De modo algum considero Guilherme uma fraude, de modo algum o censuro. Alma Welt é uma verdade ficcional, uma personagem que sai do papel ou das teclas para ganhar vida própria. Eu adoro Alma Welt e seus sonetos de moça de fazenda que mal dá-se conta da modernidade. Ela existe da mesma forma que Ivan Karamázov existiu ou da mesma forma que Dostoiévski existiu para mim. Eu acredito que Guilherme acredita em Alma Welt, sua musa, assim como sei que Ivan tem existência ficcional real e que Dostoiévski teve epilepsia e vísceras palpáveis e respirou um ar mais limpo do que disponível em nossos dias e é uma lenda.
Ontem, depois de muito tempo, Guilherme veio bater papo comigo no Facebook. Ele, um sujeito que já deu mostras de brilhantismo em outras oportunidades, sei lá por que quase confessou a inexistência / existência de Alma.
— Olá Milton! Pelo jeito, você afinal “acredita em Alma Welt”… Grande abraço!
— Hum… Não. :¬))) Eu acredito em Guilherme de Faria.
— Oba! Pra mim já tá bom… Sinal de apreço… Obrigadíssimo, Milton! Mas, sabe, quanto a mim, o engraçado é que eu acredito mesmo na Alma Welt…
— Eu acredito que acreditas em Alma Welt, mas eu acredito em ti!
— Milton, isso é a coisa mais lisonjeira (no melhor sentido) que já ouvi de alguém. Melhor que isso só quando você disse num comentário: “Eu amo Alma Welt”… É sinal de que eu não estive enganado este tempo todo, e a Alma tinha (e tem) mesmo o que dizer, e encanta gente informada e culta. Aliás, eu não posso me queixar, ela só tem me dado alegrias, com um retorno magnífico na Internet. Só falta que o mundo oficial da cultura (será que isso existe?) a reconheça e consagre…
Olha, eu gostaria de entrevistar o Guilherme de Faria. Julgo que suas ironias e o jogo de espelhos da irrealidade manipulada por ele, todas as histórias que ele maneja tão bem, todas as irritações burras que teve de suportar, tudo isso é muito complicado e bonito. A citação que coloco no início do primeiro post abaixo (link abaixo) dá a chave de toda leitura: inverto as frases — “num mundo imaginário onde até mesmo a imagem de si mesmo é constructo imaginário, o significado do que se diz é dado por quem escuta e não por quem fala”.
Notem como o cara é brincalhão: o tíitulo da gravura-tríptica vertical que está ao final deste post é A Verdadeira Estória de Sherazade…
(Eu tenho um romance quase pronto. Minha personagem principal foi visitada por Alma Welt, que lhe leu dois sonetos. É uma de minhas cenas preferidas).
Há não muito tempo dei-me conta de que somente eu vi e convivi com a grande poetisa Alma Welt, e isso por um tempo limitado de dois anos, mais ou menos. Foi um imenso privilégio ter amado e sido amado por ela, que além de poetisa de gênio foi a mais bela mulher que meus olhos puderam ver nesta vida. Recentemente, percebendo isso, comecei a pesquisar e descobri, perplexo, que nunca ninguém, fora a sua irmã Lucia e os seus empregados da Estância Sta. Gertrudes, jamais a viu pessoalmente ou qualquer foto da poetisa (não existe na Internet, no Google ou em qualquer lugar sequer uma só foto da Musa, nem mesmo no casarão pampiano). Começo a suspeitar que Alma Welt viveu num universo paralelo que só teve seu ponto de contato, com o nosso, em mim. Sei que isso pode parecer fantasioso, fantástico mesmo, mas é a única explicação que me ocorre. Vejam vocês: após a morte da Poetisa eu viajei ao Pampa e visitei a estância e os lugares sagrados da grande artista, monitorado pela sua irmã Lucia, pelo Galdério e pela Matilde, fiéis serviçais que ainda a choravam, desolados com a tragédia de sua morte prematura aos 35 anos, no auge de sua beleza e talento. Rôdo como sempre não estava lá, disseram que voltara a jogar pelos cassinos do mundo, rodando no seu carro esporte. Fiquei imensamente comovido com tudo que vi e ouvi, as lembranças, os objetos e vestidos da minha musa, e pela transbordante Arca da Alma, tesouro que fotografei no sótão do casarão. Entretanto, depois disso nunca encontrei ninguém que conhecesse a família Welt, lá no Sul, aqui ou alhures. Nem mesmo em Rosário do Sul, Alegrete (onde ela teria sido internada duas vezes numa Clínica), em Santana do Livramento ou fora do Pampa, em Novo Hamburgo, onde ela viveu até os oito anos antes de mudar-se para estância e o vinhedo de seus avós. Ninguém nunca a viu ou à sua família nem soube deles a partir de 2001 em São Paulo, e até começarem as postagens na Internet a partir de 2006 no Recanto das Letras, depois nos blogs abertos pela Lucia, atualmente em número de 48 para abrigar a imensa obra da Poetisa do Pampa. Um mistério! Somente a teoria recente da Física dos Onze Universos Paralelos poderia explicar isso. Entrementes conclamo eventuais testemunhas da passagem da Musa pelo nosso mundo, que entrem em contato comigo e se possível me tragam uma ou mais fotos, para eu conferir. De antemão agradeço quaisquer subsídios que levem ao esclarecimento deste grande Mistério… (GUILHERME DE FARIA)
A pena do perdigão (de Alma Welt)
(158)
“Perdigão perdeu a pena
Não há mal que lhe não venha.” (Luiz Vaz de Camões)
Um dia, colhendo na campina
As flores pra fazer lindo buquê
Eu vi no ar uma ave de rapina
Que vinha descendo num piquê (1)
E parecia vir em minha direção
Mas virei-me para logo ver o alvo:
Um velho triste e cansado perdigão
De perdida pena e meio calvo.
E lembrei-me do soneto de Camões,
Inteiro, antes de vê-lo apanhado
Pois não pude salvar o desasado
Pois que quando o coração já sossobrou
Estamos à mercê dos gaviões
Que virão buscar o que sobrou…
(1) Casta de tecidos feito de dois panos aplicados um sobre o outro e unidos por pontos cujas linhas formam desenhos.
Nota da editora:
Este curioso e pouco citado poema auto-satírico de Camões, escrito a partir de um mote maldoso que lhe lançaram (ele andava sendo apelidado na côrte, de “perdigão”, a ave de vôo curto) num momento de profunda dor e decepção amorosa, tem sua primeira quadra assim:
“Perdigão perdeu a pena” (o mote)
Não há mal que lhe não venha.
Quis subir a alta torre
Mas achou-se desasado
E se vendo depenado
De puro penado morre…
Perdigão perdeu a pena
não há mal que lhe não venha.
…………………….
Alma era profunda admiradora de Camões,
que ela considerava o seu mestre direto no soneto
(Lucia Welt)
SONETOS PAMPIANOS DE ALMA WELT (postagem XXXV)
O que é a Verdade? (de Alma Welt)
350
“…a Verdade é a Beleza, a Beleza é a Verdade,
isto é tudo o que há para saber.”
(John Keats, em Ode a uma urna grega)
Olhar a vida, o mundo e o de dentro
É a prerrogativa do poeta
Mas simultaneamente, como esteta,
Pois que a Beleza está no centro
De tudo, pois que ela é a Verdade,
Como escreveu Keats no poema
Da urna grega, que logo virou lema
E responde à pergunta sem idade
Que Pilatos teria formulado
Num momento ao Cristo aprisionado,
Deixando-nos, a muitos, sem ação
Pois o Mestre calou-se sabiamente
Legando aos poetas a missão
De reconstruí-la lentamente…
(sem data)
A verdadeira estória de Sherazaade – Guilherme de Faria (2011)
Uma amiga minha que é psicóloga está querendo ler Dostoiévski. Tem mais de 30 anos e não direi seu nome pelo simples fato de que discordo de sua abordagem… Ela começou por ler o livro de Bakhtin sobre Dostô, Problemas da Poética de Dostoiévski, e depois lerá Tolstói ou Dostoiévski: um Ensaio Sobre o Velho Criticismo, de George Steiner. O que não entendo é porque não vai direto ao assunto. Lê os criticos depois, porra!
Novamente me pedem para fazer uma lista de meus dez melhores livros. Já fiz várias dessas e acho até que outra(s) por aí no blog. Mas vamos lá, vou escrever a listinha de um jato, em um minuto, e vocês prometem não lê-la, certo?
Dom Quixote, Cervantes.
Moby Dick, Melville.
Doutor Fausto, Thomas Mann.
Uma Confraria de Tolos, John Kennedy Toole.
Grande Sertão: Veredas, Guimarães Rosa.
Entre Heróis e Tumbas, Ernesto Sabato.
Berlim Alexanderplatz, Alfred Döblin.
Ulysses, James Joyce.
Middlemarch, George Eliot.
Os Irmãos Karamázov, Dostoiévski.
Ana Karênina, Tolstói.
A Vida e as Opiniões de Tristram Shandy, Laurence Sterne.
A História Maravilhosa de Peter Schlemihl, Adelbert Von Chamisso.
Cheguei aos 10? Tem 13? Kafka e Machado de Assis fora? E Virginia Woolf? E meu amado Jonathan Swift? Putz. Não, é sem revisão. Deixa assim. Quem quiser que retire três deles.